Principais resultados
Verificaram-se tendência crescente na incidência por COVID-19 e estabilidade na mortalidade pela doença. Houve correlações significativas do índice de desenvolvimento humano municipal (IDHM) com as taxas de incidência e de mortalidade, porém não com o índice de vulnerabilidade social (IVS).
Introdução
A pandemia de COVID-19, doença infecciosa multissistêmica causada por um vírus de alta transmissibilidade (SARS-CoV-2),1 passou a ser reconhecida como responsável pela maior e mais nova crise global de saúde pública.2
O Brasil apresentava indicadores preocupantes de COVID-19 até fevereiro de 2022, quando já haviam se registrado aproximados 25 milhões de casos e mais de 600 mil óbitos pela doença desde o início da pandemia no país.3 No mesmo momento, o estado do Piauí contabilizava 345.807 casos confirmados e 7.398 óbitos por COVID-19.3
As acentuadas desigualdades sociais, econômicas e de acesso a serviços de saúde, observadas entre as grandes regiões geográficas, ficaram mais evidenciadas no contexto da pandemia no Brasil.4,5 Essas disparidades socioeconômicas e de saúde, refletidas nos baixos índices de vulnerabilidade social (IVS) e desenvolvimento humano municipal (IDHM), implicaram maiores riscos para as populações mais pobres, as quais têm sido fortemente afetadas pela rápida e elevada transmissão do vírus e notificação dos casos de COVID-19.2
Em 2021, Tiwari et al.2 demonstraram que questões como vulnerabilidade socioeconômica, habitação e transporte precários, composição familiar (caracterizada por grande quantidade de dependentes), pertencer a minorias raciais, falar inglês ‘menos do que bem’, capacidade, recursos e preparação do sistema de saúde e dados epidemiológicos relacionados às condições cardiovasculares e respiratórias estão associados à propagação e gravidade da doença.2 Além do que, desvelou-se o caráter sindêmico da pandemia de COVID-19, ou seja, sua interação sinérgica com doenças crônicas não transmissíveis e doenças infecciosas, agravadas pelo contexto socioeconômico, acentuando os impactos dessa crise global.6
Estudos de revisão têm demonstrado que pessoas com múltiplas comorbidades são as mais suscetíveis à infecção e apresentam pior prognóstico da COVID-19.7,8 Contudo, a importância das condições de vida e seu papel no desenvolvimento da pandemia, demonstrado nos indicadores sociais e econômicos, têm sido pouco investigados. Para além de focar o problema sob a perspectiva biológica, comumente abordada, o presente estudo propôs-se a investigar a relação dos aspectos sociais com a morbimortalidade da COVID-19 durante a pandemia, e fomentar o debate para a construção de estratégias de prevenção, promoção da saúde e controle da doença no contexto socioeconômico da população.
Nesse sentido, o objetivo do trabalho foi analisar a tendência temporal das taxas de incidência e de mortalidade por COVID-19, e sua relação com indicadores socioeconômicos no estado do Piauí.
Métodos
Estudo ecológico de série temporal que avaliou as taxas de incidência e de mortalidade por COVID-19 no estado do Piauí, no período de março de 2020 a maio de 2021. As taxas de incidência e de mortalidade por COVID-19 foram correlacionadas aos valores de dois indicadores socioeconômicos: IVS e IDHM.
O Piauí está situado na região Nordeste do Brasil e, de acordo com estimativas intercensitárias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para 2020, o estado contava com uma população de 3.281.480 habitantes, distribuída entre 224 municípios.9 Em 2010, o Piauí apresentava índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,646 e IVS de 0,403.10,11
Os dados de casos e óbitos por COVID-19 foram obtidos do Painel Coronavírus, portal público atualizado diariamente pelo Ministério da Saúde com dados disponibilizados pelas Secretarias de Estado de Saúde (https://covid.saude.gov.br/).3 As informações populacionais foram obtidas do IBGE, com base no censo demográfico de 2010 e na estimativa de projeção populacional para 2020. Os escores do IVS e do IDHM foram obtidos na página eletrônica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),10,11 em 1º de junho de 2021.
As variáveis dependentes foram as taxas de incidência e de mortalidade. A taxa de incidência foi calculada dividindo-se o número mensal de casos confirmados de COVID-19 na população residente no município (numerador) pelo número de habitantes do município (denominador), multiplicado por 100 mil hab. A taxa de mortalidade foi calculada com a divisão do número mensal de óbitos confirmados por COVID-19 na população residente (numerador) pelo número de habitantes do município (denominador), multiplicado por 100 mil hab.
As variáveis independentes foram o IVS e o IDHM. O IVS consiste na média dos valores dos indicadores relativos a três dimensões: infraestrutura urbana; capital humano; renda e trabalho. A dimensão "infraestrutura urbana" afere o acesso a serviços de saneamento básico e de mobilidade urbana, enquanto o "capital humano" expressa as condições de saúde e o acesso dos indivíduos à educação, e a dimensão "renda e trabalho", o estado de insegurança financeira desses indivíduos.10 Os 16 indicadores que compõem o cálculo do IVS são expressos por escores, que variam de 0 a 1, em que 0 corresponde à situação ideal, ou desejável, e 1 à pior situação, conforme a seguinte classificação: de 0 a 0,200 - IVS muito baixo; de 0,201 a 0,300 - IVS baixo; de 0,301 a 0,400 - IVS médio; de 0,401 a 0,500 - IVS alto; de 0,501 a 1,000 - IVS muito alto.10
O IDHM compreende três dimensões do desenvolvimento humano: longevidade; educação e renda. Portanto, responde pela esperança de vida ao nascer, o acesso à educação (médias e expectativas de anos de estudo) e a renda (produto interno bruto per capita); seu escore também varia de 0 a 1, sendo que, quanto mais próximo de 1, maior é o desenvolvimento humano do município, conforme a seguinte classificação: de 0 a 0,499 - IDHM muito baixo; de 0,500 a 0,599 - IDHM baixo; de 0,600 a 0,699 - IDHM médio; de 0,700 a 0,799 - IDHM alto; de 0,800 a 1,000 - IDHM muito alto.11
A análise de tendência temporal das taxas mensais de incidência e de mortalidade por COVID-19 foi realizada pelo método da regressão linear proposto por Prais-Winsten,12 que observa a autocorrelação serial, isto é, a relação de uma série de valores de uma medida em períodos anteriores. Foi calculada a variação percentual mensal (VPM) e seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%), para todos os municípios. As taxas de incidência e de mortalidade foram categorizadas da seguinte forma: crescente (p-valor < 0,05 e beta positivo); decrescente (p-valor < 0,05 e beta negativo); estável (p-valor ≥ 0,05).12
As taxas de incidência e de mortalidade por COVID-19 foram calculadas para todos os 224 municípios piauienses. No entanto, dado o elevado número de municípios, apenas aqueles cujas taxas de incidência (n = 23 municípios) e de mortalidade (n = 24 municípios) se situavam no decil mais elevado da distribuição dos valores são apresentados nas Tabelas 1 e 2. Estas tabelas ainda incluem as médias das taxas de incidência e de mortalidade no 1º (março a maio de 2020) e no 5º (março a maio de 2021) trimestres, e o desvio-padrão (DP) de todas essas médias, correspondentes ao período analisado.
As correlações entre as taxas de incidência e de mortalidade por COVID-19, e o IVS e o IDHM - consideradas as três dimensões de cada índice -, foram analisadas pelo teste de correlação de Spearman.13 Foram realizados os testes de normalidade de Kolmogorov-Smirnov e de Shapiro-Wilk, para evidenciar a distribuição não normal das taxas de incidência e de mortalidade com p-valor < 0,05 em ambos os testes. Os resultados estatisticamente significativos (p-valor < 0,05) da correlação de Spearman foram classificados em cinco categorias: muito fraca (0,00-0,19); fraca (0,20-0,39); moderada (0,40-0,59); forte (0,60-0,79); muito forte (0,80-1,00).14
Foram elaborados mapas da distribuição das médias trimestrais das taxas de incidência e de mortalidade por COVID-19 nos municípios piauienses. As análises estatísticas foram realizadas utilizando-se o programa Stata versão 14 (StataCorp LP, College Station, EUA, n° de série 401406370959); e os mapas, construídos com a utilização do programa QGIS versão 3.16.
O estudo foi desenvolvido com dados anônimos secundários obtidos em plataformas de acesso público, não sendo necessária a submissão do projeto à apreciação de Comitê de Ética em Pesquisa.
Resultados
No período de março de 2020 a maio de 2021, foram confirmados 271.228 casos de COVID-19, resultando em uma taxa de incidência de 8.265,4/100 mil hab., e 5.888 óbitos pela doença, o que correspondeu a uma taxa de mortalidade de 179,4/100 mil hab. Percentuais de 34,8% dos casos e de 37,0% dos óbitos foram registrados em residentes na capital do estado, Teresina. Até maio de 2021, todos os municípios do Piauí haviam notificado casos de COVID-19, e somente dois não apresentavam registros de óbito pela doença.
A Tabela 1 apresenta as taxas de incidência, total e por trimestre, e a tendência temporal desse indicador nos 23 municípios integrantes do decil com as maiores taxas de incidência; destes 23 municípios, 20 revelaram tendência crescente. As taxas de incidência mais altas foram observadas nos municípios de Demerval Lobão (21.445,1/100 mil hab.), Lagoa do Piauí (21.055,2/100 mil hab.) e Lagoa do Barro do Piauí (19.222,5/100 mil hab.). Lagoa do Piauí apresentou a maior taxa de incidência média no 5º trimestre (3.846,8/100 mil hab.). As maiores variações percentuais mensais foram observadas nos municípios de Caridade do Piauí (74,5%; IC95% 44,0;111,6), Miguel Leão (74,3%; IC95% 22,4;148,3) e Francisco Macedo (69,6%; IC95% 9,0;163,9).
Municípios | Taxa de incidência | DPb | VPMc | IC95%d | p-valore | Tendência | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Total | 1º Ta | 5º Ta | ||||||
Demerval Lobão | 21.445,1 | 106,1 | 3.129,0 | 1.212,7 | 57,1 | 5,4;134,1 | 0,030 | Crescente |
Lagoa do Piauí | 21.055,2 | 139,4 | 3.846,8 | 1.506,1 | 64,8 | 6,7;154,5 | 0,028 | Crescente |
Lagoa do Barro do Piauí | 19.222,5 | 57,3 | 2.305,8 | 904,8 | 52,8 | 4,3;123,8 | 0,032 | Crescente |
Baixa Grande do Ribeiro | 18.327,5 | 23,0 | 1.214,1 | 928,3 | 64,8 | 0,9;169,0 | 0,046 | Crescente |
Uruçuí | 16.107,1 | 94,3 | 1.482,8 | 733,1 | 54,3 | 0,8;136,3 | 0,046 | Crescente |
Miguel Leão | 15.378,4 | 0,0 | 3.584,8 | 1.460,7 | 74,3 | 22,4;148,3 | 0,005 | Crescente |
Bertolínia | 15.089,9 | 24,2 | 1.502,8 | 883,6 | 59,6 | 1,5;150,8 | 0,044 | Crescente |
Piripiri | 14.811,8 | 42,4 | 2.614,2 | 965,1 | 63,2 | 11,4;139,2 | 0,016 | Crescente |
Landri Sales | 13.836,8 | 25,2 | 3.575,7 | 1.499,5 | 68,6 | 44,6;96,6 | < 0,001 | Crescente |
Francisco Macedo | 13.593,8 | 0,0 | 1.151,6 | 511,0 | 69,6 | 9,0;163,9 | 0,023 | Crescente |
Monsenhor Gil | 13.290,4 | 60,0 | 1.905,8 | 754,9 | 57,9 | 4,7;138,1 | 0,032 | Crescente |
Antônio Almeida | 12.712,9 | 0,0 | 590,0 | 840,9 | 42,3 | -13,6;134,5 | 0,151 | Estacionária |
Hugo Napoleão | 12.632,1 | 25,8 | 851,2 | 873,0 | 54,1 | -2,9;114,4 | 0,064 | Crescente |
Santa Cruz do Piauí | 12.454,0 | 5,3 | 187,0 | 991,7 | 39,5 | -20,7;145,5 | 0,225 | Estacionária |
Floriano | 12.204,9 | 42,8 | 1.048,2 | 448,6 | 57,8 | 4,1;139,2 | 0,034 | Crescente |
Belém do Piauí | 12.182,9 | 56,1 | 645,0 | 797,6 | 50,5 | 9,0;107,6 | 0,017 | Crescente |
Bom Jesus | 12.155,8 | 78,6 | 1.081,6 | 491,8 | 60,5 | 2,9;150,2 | 0,039 | Crescente |
José de Freitas | 11.986,5 | 23,0 | 2.335,4 | 900,3 | 65,7 | 15,3;138,0 | 0,010 | Crescente |
Morro do Chapéu do Piauí | 11.466,7 | 117,7 | 1.324,3 | 578,1 | 48,1 | -1,6;123,0 | 0,059 | Estacionária |
Caridade do Piauí | 10.953,8 | 0,0 | 1.508,6 | 842,4 | 74,5 | 44,0;111,6 | < 0,001 | Crescente |
Oeiras | 10.931,6 | 54,0 | 1.356,6 | 491,0 | 59,1 | 7,5;135,4 | 0,020 | Crescente |
Teresina | 10.872,9 | 86,6 | 1.246,7 | 420,1 | 51,6 | 5,4;118,0 | 0,030 | Crescente |
Guadalupe | 10.793,6 | 3,2 | 1.362,0 | 725,9 | 57,8 | 15,6;115,3 | 0,010 | Crescente |
a) T: Trimestre; b) DP: Desvio-padrão; c) VPM: Variação percentual mensal; d) IC95%: Intervalo de confiança de 95%; e) Regressão linear pelo método de Prais-Winsten.
A Tabela 2 apresenta as taxas de mortalidade, total e por trimestre, e a tendência temporal desse indicador nos 24 municípios integrantes do decil com as maiores taxas de mortalidade por COVID-19; destes 24 municípios, dez apresentaram tendência crescente. As taxas de mortalidade mais elevadas foram observadas nos municípios de Água Branca (354,9/100 mil hab.), Beneditinos (324,6/100 mil hab.) e Antônio Almeida (315,5/100 mil hab.). As maiores variações percentuais mensais foram observadas nos municípios de Simplício Mendes (40,7%; IC95% 26,3;56,7) e Eliseu Martins (36,6%; IC95% 19,1;56,6); Simplício Mendes foi o município de maior taxa de mortalidade média por COVID-19 no 5º trimestre (83,9/100 mil hab.).
Municípios | Taxa de mortalidade | DPb | VPMc | IC95%d | p-valore | Tendência | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Total | 1º Ta | 5º Ta | ||||||
Água Branca | 354,9 | 11,5 | 24,9 | 17,0 | 9,2 | -17,0;43,6 | 0,502 | Estacionária |
Beneditinos | 324,6 | 0,0 | 54,1 | 21,1 | 30,2 | 7,2;58,1 | 0,012 | Crescente |
Antônio Almeida | 315,5 | 0,0 | 21,1 | 24,7 | 17,8 | -9,8;53,7 | 0,208 | Estacionária |
Simplício Mendes | 306,0 | 0,0 | 83,9 | 35,7 | 40,7 | 26,3;56,7 | <0,001 | Crescente |
Valença do Piauí | 296,2 | 1,6 | 54,2 | 20,5 | 29,0 | 17,7;41,4 | <0,001 | Crescente |
Monsenhor Gil | 293,5 | 0,0 | 44,2 | 16,8 | 27,0 | 5,1;53,5 | 0,017 | Crescente |
Eliseu Martins | 284,0 | 0,0 | 67,8 | 28,1 | 36,6 | 19,1;56,6 | <0,001 | Crescente |
Piripiri | 282,2 | 1,0 | 57,5 | 22,2 | 27,7 | 10,8;47,1 | 0,003 | Crescente |
Campo Maior | 270,8 | 2,1 | 45,6 | 18,1 | 19,9 | -2,8;48,0 | 0,085 | Estacionária |
Parnaíba | 260,6 | 2,0 | 48,1 | 19,8 | 30,1 | -5,3;78,7 | 0,097 | Estacionária |
Piracuruca | 259,8 | 2,3 | 60,2 | 24,2 | 23,8 | 9,1;40,5 | 0,003 | Crescente |
Teresina | 251,0 | 3,3 | 32,0 | 13,9 | 32,9 | -0,5;77,4 | 0,053 | Estacionária |
Marcolândia | 245,9 | 0,0 | 35,3 | 14,5 | 15,4 | -6,6;42,7 | 0,167 | Estacionária |
Nossa Senhora de Nazaré | 245,4 | 0,0 | 34,2 | 12,4 | 24,8 | -0,6;54,9 | 0,056 | Estacionária |
Pavussu | 245,3 | 9,1 | 54,4 | 22,6 | 22,4 | -3,9;55,9 | 0,095 | Estacionária |
Cocal de Telha | 245,0 | 0,0 | 40,9 | 15,7 | 25,5 | 0,5;56,8 | 0,046 | Crescente |
Lagoinha do Piauí | 245,0 | 0,0 | 35,1 | 13,4 | 15,4 | -5,1;40,3 | 0,137 | Estacionária |
Manoel Emídio | 243,0 | 6,2 | 37,4 | 14,3 | 7,6 | -15,5;37,1 | 0,524 | Estacionária |
Uruçuí | 235,5 | 3,1 | 23,2 | 11,1 | 15,3 | -5,5;40,6 | 0,147 | Estacionária |
Cajueiro da Praia | 234,6 | 0,0 | 21,8 | 11,4 | 13,2 | -14,7;50,2 | 0,360 | Estacionária |
Passagem Franca do Piauí | 231,3 | 0,0 | 30,9 | 14,5 | 12,3 | -11,1;42,0 | 0,300 | Estacionária |
Santa Cruz do Piauí | 224,1 | 0,0 | 5,3 | 12,8 | 6,3 | -19,7;40,7 | 0,650 | Estacionária |
Várzea Branca | 222,8 | 0,0 | 40,4 | 16,1 | 20,9 | 0,6;45,4 | 0,040 | Crescente |
Floriano | 221,6 | 1,1 | 33,4 | 12,9 | 22,4 | 2,6;45,9 | 0,030 | Crescente |
a) T: Trimestre; b) DP: Desvio-padrão; c) VPM: Variação percentual mensal; d) IC95%: Intervalo de confiança de 95%; e) Regressão linear pelo método de Prais-Winsten.
No período estudado, a tendência temporal das taxas de incidência foi crescente em 146 municípios, enquanto as taxas de mortalidade apresentaram estabilidade em 150 municípios do estado do Piauí (Tabelas 1 e 2).
A Figura 1 apresenta a distribuição geográfica e a evolução das médias trimestrais das taxas de incidência por COVID-19 nos 224 municípios do estado. No 1º trimestre, todos os municípios referiram incidência menor que 330,2/100 mil hab. (Figura 1A), passando a um crescimento acentuado no 2º e 5º trimestres, com taxas de incidência superiores a 1.023,1/100 mil hab., o que representou incrementos na incidência da doença da ordem de 13,8% e 25,0% respectivamente (Figuras 1B e 1E).
A Figura 2 mostra a evolução das médias trimestrais da taxa de mortalidade por COVID-19. Houve aumento no 2º e 5º trimestres, quando 6,3% e 25,0% dos municípios, respectivamente, apresentaram taxas superiores a 25,7/100 mil hab. (Figuras 2B e 2E). No 1º trimestre, a maioria dos municípios apresentaram taxas de mortalidade de até 6,6/100 mil hab. (Figura 2A).
Não houve correlações estatisticamente significativas entre a incidência de COVID-19 e o IVS (r = -0,049; p-valor = 0,465), e entre a mortalidade pela doença e o IVS (r = -0,110; p-valor = 0,099). Em relação ao IDHM, observou-se correlação moderada e fraca, respectivamente, com as taxas de incidência (r = 0,419; p-valor < 0,001) e de mortalidade (r = 0,358; p-valor < 0,001) (Tabela 3).
Indicadores socioeconômicos | Taxa de incidência | Taxa de mortalidade | ||
---|---|---|---|---|
ra | p-valorb | ra | p-valorb | |
IVSc | -0,049 | 0,465 | -0,110 | 0,099 |
Infraestrutura urbana | 0,076 | 0,258 | 0,067 | 0,315 |
Capital humano | -0,132 | 0,048 | -0,167 | 0,012 |
Renda e trabalho | -0,196 | 0,003 | -0,288 | < 0,001 |
IDHMd | 0,419 | < 0,001 | 0,358 | < 0,001 |
Longevidade | 0,151 | 0,024 | 0,270 | < 0,001 |
Educação | 0,373 | < 0,001 | 0,274 | < 0,001 |
Renda | 0,449 | < 0,001 | 0,385 | < 0,001 |
a) R: Coeficiente de correlação; b) Teste de correlação de Spearman; c) IVS: Índice de vulnerabilidade social; d) IDHM: Índice de desenvolvimento humano municipal. Nota: "c" e "d" correspondem ao valor total, considerando-se as três dimensões.
Considerando-se as três dimensões do IVS, não se observou correlação entre a infraestrutura urbana e as taxas de incidência (r = 0,076; p-valor = 0,258) e de mortalidade (r = 0,067; p-valor = 0,315). Foram constatadas correlações, a variar entre muito fraca e fraca, da dimensão "capital humano" com as taxas de incidência (r = -0,132; p-valor = 0,048) e de mortalidade (r = -0,167; p-valor = 0,012), e entre a dimensão "renda e trabalho" e as taxas de incidência (r = -0,196; p-valor = 0,003) e de mortalidade (r = -0,288; p-valor < 0,001). Quanto ao IDHM, identificou-se correlação entre todas as dimensões (longevidade, educação e renda) e as taxas de incidência/mortalidade de todos os municípios analisados, com destaque entre renda e taxa de incidência (r = 0,449; p-valor < 0,001 - magnitude do efeito: moderado) (Tabela 3).
Discusão
A maior parte dos municípios do Piauí analisados, aqueles com as maiores taxas de incidência e de mortalidade por COVID-19, apresentaram tendência crescente das taxas de incidência e tendência estacionária das taxas de mortalidade, entre março de 2020 e maio de 2021. Outrossim, conforme demonstrado nos mapas ilustrativos desta análise, houve crescimento significativo das taxas de incidência e de mortalidade em todos os municípios do estado, durante todo o período estudado. Além disso, a análise de todos os municípios não encontrou fortes correlações das taxas de incidência e de mortalidade com o IVS, embora tenham-se encontrado correlações significativas entre as taxas de incidência e de mortalidade e o IDHM.
Diante do cenário da COVID-19 no Brasil, o Piauí apresenta particularidades no IVS, refletidas na morbimortalidade pela doença e no enfrentamento da pandemia nos âmbitos político, social e econômico. Essas especificidades podem se relacionar com a presença de 186 municípios (83%) classificados sob alta ou muito alta vulnerabilidade social, segundo a Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí (Cepro).15 Além disso, apenas três municípios do estado são classificados com baixa vulnerabilidade social, Teresina, Picos e Floriano; nenhum município apresentou IVS muito baixo.15
A capital Teresina registrou o maior número de casos e óbitos por COVID-19 confirmados, no estado. Esse resultado corrobora dados de um estudo conduzido nos primeiros 60 dias desde o surgimento da doença no Piauí,16 quando Teresina, justamente o município mais afetado nesse período, concentrava 54,4% dos casos e 47,1% dos óbitos por COVID-19 no estado. Este achado de Teresina pode-se atribuir ao fato de a cidade ser a mais populosa e dispor de ampla interligação rodoviária e aeroviária com outras regiões do estado.17 Ademais, Teresina concentra os serviços de saúde de alta complexidade no Piauí, ocasionando desequilíbrio na oferta dos serviços e sobrecarga do sistema de saúde na capital.17,18
Entre os municípios cujas taxas de mortalidade se mostraram estáveis, constam Teresina, Floriano, Campo Maior, Uruçuí e Valença, que possuem rede de atenção à saúde mais estruturada, seja na Atenção Básica, responsável pela detecção de casos e vacinação contra a COVID-19, seja na rede hospitalar presente nessas localidades, cujos serviços estão mais bem capacitados a atender os casos graves da doença.19
Alguns municípios avaliados não chegaram a apresentar uma significância estatística durante a análise da tendência temporal, a exemplo de Morro do Chapéu do Piauí, na avaliação da taxa de incidência, e Campo Maior, Teresina, Nossa Senhora de Nazaré, Pavussu, Lagoinha do Piauí e Uruçuí na avaliação da taxa de mortalidade. Entretanto, esses municípios apresentaram uma tendência crescente que, para fins de planejamento estadual, precisa ser levada em consideração ao se formularem medidas em favor da estabilidade ou decréscimo do número de casos e óbitos.
Após o registro dos primeiros casos de COVID-19 no Piauí, medidas de distanciamento social, como o fechamento de escolas e de estabelecimentos não essenciais, foram implementadas de maneira descentralizada e independente pelos municípios, que optaram por seguir caminhos interventivos próprios, dado que não havia uma recomendação única do ente federativo.20 Quando houve decréscimo no número de casos e óbitos, especialmente no final de 2020 e início de 2021, períodos dentro do 3º e do 4º trimestres avaliados, observou-se relaxamento dessas medidas de prevenção, a que se seguiu aumento da morbimortalidade por COVID-19 no estado, com a ocorrência de “ondas” ou “picos” da pandemia.21
Assim como observado no âmbito nacional,22 ao longo do período analisado neste estudo, aconteceram duas “ondas” da doença: a primeira, nos meses de junho a agosto de 2020; e a segunda, de março a abril de 2021. O aumento da morbimortalidade notado durante a segunda onda foi maior que o observado na primeira, tanto no Piauí como no restante do país, visto que os estados adotaram medidas preventivas antes e durante a primeira onda da COVID-19,22 ao passo que, na segunda onda, os gestores retardaram a implementação de medidas rígidas de distanciamento, utilizando-as como último recurso na iminência do aumento da morbimortalidade.22
Os resultados da presente pesquisa, diferentemente do estudo de âmbito nacional desenvolvido por Martins-Filho et al.,14 mostraram ausência de correlação entre morbimortalidade por COVID-19 e IVS.
O Piauí apresenta um dos piores IDHs do Brasil, à frente apenas dos estados do Pará, Maranhão e Alagoas.23 Nenhum dos municípios piauienses possui IDHM muito alto (acima de 0,800), e tão somente Teresina e Floriano são classificados com IDHM alto (entre 0,700 e 0,799).11 As correlações entre o IDHM e a morbimortalidade por COVID-19 identificadas, com magnitudes fracas ou moderadas, corroboram os resultados de análise semelhante realizada no estado do Ceará.24 Os autores do estudo citado concluíram que os municípios cearenses com maior IDHM possuem maior circulação viral e maior transmissibilidade da COVID-19, haja vista os municípios do interior ainda guardarem intensas relações sociais e econômicas com os maiores centros urbanos, por conta da grande mobilidade da população em busca de serviços de que esses centros dispõem.24 Diante das relações semelhantes estabelecidas entre os municípios do Piauí, acredita-se que esse argumento também seja válido para o estado.
Algumas limitações necessitam ser consideradas na interpretação dos dados apresentados, entre elas a demora na notificação de óbitos por COVID-19 no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), no período da coleta de dados. Para tanto, optou-se pela utilização do Painel Coronavírus, considerado o canal oficial de informações sobre COVID-19 no país e que, apesar de fragilidades em sua constituição, é de fácil manuseio e rápida disponibilização dos dados.25
Outrossim, ressalta-se a ausência de dados socioeconômicos atualizados para a análise de sua associação com as taxas de incidência e de mortalidade, pois não se realizou o censo de 2020 e, por conseguinte, as associações observadas podem não refletir a realidade atual. A baixa quantidade de testagens rápidas e a subnotificação dos casos e óbitos também precisam ser consideradas, uma vez que subestimam os indicadores calculados e dificultam a compreensão fidedigna da análise epidemiológica da doença no estado. Tais limitações são inerentes aos sistemas de vigilância, à administração pública federal e à atuação da gestão em saúde do Estado, o que limita o poder de intervenção dos pesquisadores no sentido de saná-las.
A ausência de fortes correlações entre os indicadores de morbimortalidade e o IVS são inquietantes. Elas demonstram o avanço da doença, tanto nas camadas sociais mais vulneráveis quanto nas menos vulneráveis, sem distinções. Por sua vez, as correlações significativas entre essas taxas de incidência e de mortalidade e o IDHM apontam para a necessidade de políticas que garantam o desenvolvimento dos indivíduos e estes não vivenciem impactos significativos, tanto na atual como nas próximas crises sanitárias, considerando-se as três dimensões do IDHM: longevidade, educação e renda.
Diante de um país diverso, de dimensões continentais e desigualdades reconhecidas como é o Brasil, há um conjunto de estratégias a serem consideradas. A diversidade do território requer papel ativo do Governo Federal e intensa cooperação dos governos estaduais e municipais. Entre as ações conjuntas e necessárias para potencializar a resposta do Estado à pandemia, encontram-se: (i) o monitoramento transparente e detalhado da situação epidemiológica; (ii) as determinações de distanciamento social; (iii) a articulação da comunicação estabelecida entre os vários grupos da sociedade; (iv) o fortalecimento do sistema público de saúde, em seus diversos níveis, bem como do sistema de saúde privado; (v) e as medidas de apoio ao emprego e à economia, com estratégias voltadas à proteção social de populações de maior vulnerabilidade. À vista disso, no Piauí e demais estados, as ações também devem ser articuladas, o que requer uma coordenação entre as diversas áreas da política e gestão governamental, para evitar a propagação da doença em sucessivas ondas e diminuir suas consequências socioeconômicas.26
Por fim, o trabalho em tela trouxe uma abordagem inovadora, até então pouco vista na literatura, ao analisar as taxas de incidência e de mortalidade utilizando-se do IVS e IDHM. Ao constatar o crescimento de casos confirmados de COVID-19 nos municípios, na medida em que existe uma correlação entre a doença e o IDHM, a pesquisa auxilia e demanda sensibilidade, por parte dos administradores de todas as esferas públicas, no uso das ferramentas de gestão para enfrentar a pandemia. Finalmente, recomenda-se a elaboração de mais pesquisas e publicações acerca do tema, além da adoção de medidas que levem em consideração os aspectos socioeconômicos, com vistas a reduzir a morbimortalidade e os impactos causados pela pandemia da COVID-19 na população.