Principais resultados
Atividade sexual desprotegida foi relatada por 77% dos brasileiros. Indivíduos do sexo feminino, moradores de áreas rurais, casados, menos escolarizados e pessoas de idades mais avançadas apresentaram maior prevalência de atividade sexual desprotegida.
Introdução
As infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) são um sério problema global de saúde pública e apresentam elevado número de notificação e taxas de detecção, anualmente.1-3 No Brasil, houve mais de 1 bilhão e meio de casos diagnosticados de sífilis adquirida, hepatites virais e síndrome da imunodeficiência adquirida (aids) desde 2010,4 e a atividade sexual desprotegida na última relação tem se mostrado positivamente associada à prevalência desses desfechos.5,6 Em 2020, a gestão pública brasileira gastou quase R$ 2 bilhões com medicamentos para tratamento das ISTs,7 o que representa um aumento de 16% em relação aos custos registrados no ano anterior. O uso do preservativo é o principal meio, e, também, o mais eficaz na prevenção das ISTs,4 além de evitar a gravidez precoce ou indesejada.5
Diversos fatores podem influenciar a atividade sexual desprotegida. Desigualdades sociais apresentam influência direta, tanto nos comportamentos sexuais de risco como no acesso a serviços de saúde e a informações adequadas, sendo os estratos mais pobres e menos escolarizados a categoria da sociedade sob maior risco de realizar atividade sexual desprotegida.8,9 Ainda, a necessidade de empoderamento feminino, especialmente para negociar o uso de preservativo masculino com parceiros, espelha a prevalência aumentada de atividade sexual desprotegida entre as mulheres,10,11 sobretudo com o avanço da idade.
Conhecer os fatores associados à atividade sexual desprotegida é tema relevante e constitui objeto de investigação de alguns estudos regionais.11,12 A última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), um inquérito de base domiciliar de âmbito nacional, realizada no Brasil em 2019, coletou informações sobre a atividade sexual dos brasileiros. Entretanto, até o momento desta publicação, ainda não havia estudos que tivessem investigado os fatores associados à atividade sexual desprotegida na população brasileira com dados obtidos da PNS 2019. Investigar essas questões a partir de inquéritos nacionais permite reunir e dispor elementos fundamentais para o planejamento de políticas de ação e serviços em saúde voltados ao enfrentamento dos fatores associados à atividade sexual desprotegida e, nesse sentido, contribuir para a prevenção das ISTs. Investigações nesse sentido, ademais, oferecem subsídios para monitoramento e adequações nas intervenções que já vêm sendo realizadas.
O estudo teve por objetivo investigar a prevalência de atividade sexual desprotegida no Brasil e Unidades da Federação (UFs), e fatores associados a esse comportamento de risco para a saúde.
Métodos
Delineamento
Estudo transversal que analisou dados da Pesquisa Nacional de Saúde 2019, coordenada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde, conduzida entre os meses de agosto de 2019 e março de 2020.13 Foram analisados dados referentes a 61.523 brasileiros com 18 anos ou mais de idade, respondentes do módulo sobre atividade sexual, o qual integra o bloco de questões individuais da PNS.
Contexto
A PNS 2019 é um inquérito de base populacional, representativo da população residente em domicílios particulares do Brasil, localizados em áreas urbana e rural, macrorregiões do país, UFs, capitais e regiões metropolitanas. Para tanto, os coordenadores e entrevistadores passaram por um treinamento nas unidades estaduais do IBGE.13
Participantes
A pesquisa incluiu indivíduos na idade de 15 anos ou mais, residentes em domicílios particulares permanentes; foram excluídos do estudo os moradores de agrupamentos indígenas, quartéis, bases militares, alojamentos, acampamentos, embarcações, penitenciárias, colônias penais, presídios, cadeias, instituições de longa permanência para idosos, redes de atendimento integrado à criança e ao adolescente, conventos, hospitais, agrovilas de projetos de assentamento e agrupamentos quilombolas.13
A amostragem da PNS 2019 adotou um plano conglomerado em três estágios: (i) a seleção de setores censitários do IBGE, unidades primárias de amostragem, a partir de probabilidade proporcional ao tamanho, definida pelo número de domicílios particulares permanentes; (ii) a eleição de domicílios permanentes da área de abrangência, designados por meio de amostragem aleatória simples; e (iii) os moradores de cada domicílio, na idade de 15 anos ou mais, também escolhidos pela amostragem aleatória simples.13 O questionário da PNS 2019 foi dividido em três partes: (i) as questões sobre o domicílio, dirigidas ao chefe da família, (ii) as questões gerais, sobre todos os moradores do domicílio (e.g.: nível de escolaridade, ocupação, rendimentos, deficiência física e/ou intelectual, cobertura de planos de saúde, acesso e utilização dos serviços de saúde), respondidas por um integrante da família com 18 anos ou mais de idade, e (iii) as questões individuais direcionadas a um residente com 15 anos ou mais.13 O módulo sobre atividade sexual, tema deste artigo, fez parte deste último bloco de questões individuais; porém, ele foi respondido apenas por indivíduos na idade de 18 anos ou mais.13
A PNS 2019 sorteou 94.114 brasileiros, dos quais 90.846 foram entrevistados.13 Destes, 88.531 eram moradores na idade de 18 anos ou mais e, por conseguinte, poderiam ter respondido às questões sobre atividade sexual. Foi selecionada uma pergunta-filtro sobre ter tido relação sexual nos últimos 12 meses, para estimar o uso do preservativo e determinar a atividade sexual desprotegida. Dos participantes que responderam a essa pergunta (n = 62.223), 61.523 apresentaram informações completas para o desfecho (Figura 1).
Variáveis
A variável de desfecho foi definida como "atividade sexual desprotegida", originalmente mensurada a partir da proposição da seguinte pergunta, Nos últimos doze meses, nas relações sexuais que teve, com que frequência usou camisinha?, cujas respostas disponíveis eram: 1) Sempre; 2) Às vezes; 3) Nenhuma vez; 4) Recusou-se a responder. Para a presente análise, a resposta "Sempre" foi enquadrada na categoria "Não (atividade sexual protegida)", e as respostas "Às vezes" e "Nenhuma vez" na categoria "Sim (atividade sexual desprotegida)". A categoria "Recusou-se a responder" foi classificada como informação do tipo "faltante".
As variáveis independentes analisadas foram:
-
Características demográficas
- Macrorregiões do Brasil (Norte; Nordeste; Sudeste; Sul; Centro-Oeste).
- Zona de domicílio (urbana; rural).
- Faixa etária (em anos completos: 18 a 24; 25 a 39; 40 a 59; 60 e mais).
- Sexo (masculino; feminino).
- Raça/cor da pele (branca; preta; indígena; parda; amarela).
-
Características socioeconômicas
- Renda domiciliar per capita (em quintis).
- Escolaridade (em anos de estudo: até 8; mais de 8).
Fonte de dados e mensuração
O banco de dados da PNS 2019 é de domínio público, e pode ser acessado no endereço eletrônico do IBGE: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/downloads-estatisticas.html. Os dados foram coletados nos domicílios selecionados, mediante aplicação de um questionário eletrônico em dispositivos móveis de coletas de dados, com perguntas autorreferidas e respondidas em entrevistas face a face.13
Controle de vieses
Os procedimentos de amostragem aleatória por conglomerados em estágios, adotados pela PNS 2019, visaram minimizar vieses de seleção. Todos os responsáveis pela coleta, supervisão e coordenação da pesquisa foram capacitados e treinados para sua realização, buscando-se evitar vieses de informação.13 Fatores de expansão e pesos amostrais foram aplicados na análise de dados, procedimento justificado pelo desenho amostral complexo e probabilidades distintas de seleção permitidas pela PNS.13
Tamanho do estudo
Para o cálculo do tamanho da amostra da PNS 2019, considerou-se a estimação de proporções, com o nível de precisão esperado descrito em intervalos de confiança de 95% (IC95%), e o efeito do plano de amostragem.13 Outrossim, selecionou-se o número de domicílios de cada unidade primária de amostragem e dividiu-se o tamanho da amostra conforme os subgrupos populacionais.13 O cálculo da amostra também considerou a proporção de domicílios com pessoas na faixa etária de interesse.13
Métodos estatísticos
Os dados foram analisados utilizando-se o software Stata (StataCorp LP, College Station, Estados Unidos) em sua versão 14.2, mediante o comando survey, que considera efeitos da estratificação e da conglomeração na estimação dos indicadores e suas medidas de precisão. Foram estimadas as prevalências de atividade sexual desprotegida e respectivos IC95%, no plano geral e segundo variáveis socioeconômicas e demográficas, tanto para a totalidade do Brasil como para suas UFs separadamente. Regressões de Poisson - bruta e ajustada - estimaram as razões de prevalências (RPs) e os IC95% da associação entre a atividade sexual desprotegida e as demais variáveis. Todas as variáveis independentes foram consideradas teoricamente importantes para o ajuste do modelo e, portanto, foram incluídas no modelo ajustado final. O teste de Wald com significância de 5% identificou as variáveis associadas à atividade sexual desprotegida, após análise ajustada.
Aspectos éticos
O projeto da Pesquisa Nacional de Saúde 2019 foi submetido por meio do Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 11713319.7.0000.0008, e teve a aprovação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, do Conselho Nacional de Saúde (Conep/CNS), de acordo com o Parecer nº 3.529.376, emitido em 23 de agosto de 2019.13 A PNS assegurou o sigilo das informações e dados pessoais coletados, e o consentimento de todos os respondentes.13
Resultados
A maioria dos participantes residia na região Sudeste (43,2%; IC95% 42,2;44,2) e em zonas urbanas (86,2%; IC95% 85,8;86,7), mais da metade da amostra (52,2%; IC95% 51,6;52,9) era do sexo masculino e 38,2% (IC95% 37,5;38,9) contavam entre 40 e 59 anos de idade. A amostra era composta, predominantemente, por indivíduos pardos (44,2%; IC95% 43,5;45,0) e brancos (43,0%; IC95% 42,2;43,9), e 36,2% (IC95% 35,4;37,0) relataram ter até oito anos de estudo. A prevalência geral de atividade sexual desprotegida foi de 76,9% (IC95% 76,3;77,6). Proporcionalmente, a região Sul foi a que apresentou maior prevalência de relação sexual desprotegida (79,4%; IC95% 78,1;80,7), assim como moradores de zonas rurais (81,6%; IC95% 80,4;82,6) e participantes do sexo feminino (78,8%; IC95% 77,9;79,6). A prevalência de atividade sexual sem proteção chegou a 88,3% (IC95% 87,1;89,4) entre os idosos, com 60 anos ou mais, e a 87,5% (IC95% 86,9;88,2) entre as pessoas casadas (Tabela 1).
Variável | Amostra | Atividade sexual desprotegida | |
---|---|---|---|
n | % (IC95% a) | % (IC95% a) | |
Macrorregião nacional | |||
Norte | 12.458 | 8,0 (7,7;8,4) | 71,6 (69,9;73,2) |
Nordeste | 20.440 | 25,5 (24,9;26,2) | 78,0 (77,1;78,8) |
Sudeste | 13.179 | 43,2 (42,2;44,2) | 76,3 (75,1;77,6) |
Sul | 8.032 | 15,3 (14,8;15,9) | 79,4 (78,1;80,7) |
Centro-Oeste | 7.414 | 8,0 (7,7;8,3) | 77,4 (75,7;79,1) |
Zona de domicílio | |||
Urbana | 47.137 | 86,2 (85,8;86,7) | 76,2 (75,5;76,9) |
Rural | 14.386 | 13,8 (13,3;14,2) | 81,6 (80,4;82,6) |
Sexo | |||
Masculino | 33.197 | 52,2 (51,6;52,9) | 75,2 (74,4;76,1) |
Feminino | 28.326 | 47,8 (47,1;48,5) | 78,8 (77,9;79,6) |
Faixa etária (em anos) | |||
18-24 | 6.355 | 14,6 (13,9;15,2) | 57,7 (55,4;59,9) |
25-39 | 22.806 | 36,2 (35,5;36,8) | 76,1 (75,0;77,1) |
40-59 | 24.453 | 38,2 (37,5;38,9) | 81,8 (80,9;82,7) |
≥ 60 | 7.909 | 11,0 (10,6;11,4) | 88,3 (87,1;89,4) |
Raça/cor da pele | |||
Branca | 22.091 | 43,0 (42,2;43,9) | 78,2 (77,2;79,1) |
Preta | 6.948 | 11,5 (11,0;11,9) | 74,5 (72,6;76,4) |
Amarela | 449 | 0,8 (0,7;0,9) | 73,8 (66,7;79,8) |
Parda | 31.562 | 44,2 (43,5;45,0) | 76,5 (75,6;77,4) |
Indígena | 466 | 0,5 (0,4;0,7) | 69,1 (55,5;80,0) |
Estado civil | |||
Solteiro/viúvo/divorciado | 33.444 | 50,4 (49,6;51,2) | 66,5 (65,5;67,5) |
Casado | 28.079 | 49,6 (48,8;50,4) | 87,5 (86,9;88,2) |
Escolaridade (em anos de estudo) | |||
Mais de 8 | 36.560 | 63,8 (63,0;64,6) | 74,1 (73,3;75,0) |
Até 8 | 24.963 | 36,2 (35,4;37,0) | 81,9 (81,0;82,7) |
Renda domiciliar per capita (em quintis) | |||
1 (mais pobre) | 10.306 | 12,8 (12,4;13,3) | 77,1 (75,7;78,5) |
2 | 10.622 | 16,4 (15,9;17,0) | 76,9 (75,3;78,4) |
3 | 12.140 | 20,7 (20,0;21,3) | 77,0 (75,6;78,4) |
4 | 12.368 | 22,4 (21,8;23,0) | 76,6 (75,2;78,0) |
5 (mais rico) | 16.074 | 27,7 (26,8;28,6) | 77,1 (75,8;78,3) |
a) IC95%: Intervalo de confiança de 95%.
Os estados que apresentaram maior prevalência de relação sexual sem proteção entre os participantes do sexo masculino foram o Espírito Santo (80,7%; IC95% 77,8;83,4) e o Paraná (79,8%; IC95% 76,7;82,6), enquanto as prevalências de sexo sem proteção entre as participantes do sexo feminino foram maiores nos estados da Paraíba (86,8%; IC95% 84,2;89,0) e do Paraná (82,8%; IC95% 79,8;85,4) (Tabela Suplementar 1). Quanto à faixa etária, especialmente entre os participantes com 18 a 24 anos, a atividade sexual desprotegida foi mais relatada por residentes nos estados da Bahia (66,9%; IC95% 58,0;74,8) e do Espírito Santo (66,3%; IC95% 58,1;73,6). Entre idosos (≥ 60 anos), a prevalência de relação sexual desprotegida foi maior nos estados do Rio Grande do Norte (94,1%; IC95% 90,2;96,6) e de Sergipe (93,4%; IC95% 89,8;95,8) (Tabela Suplementar 2).
Variável | RPa bruta (IC95%b) | p-valorc | RPa ajustada (IC95%b)d | p-valorc |
---|---|---|---|---|
Macrorregião nacional | < 0,001 | < 0,001 | ||
Norte | 1,00 | 1,00 | ||
Nordeste | 1,08 (1,06;1,11) | 1,07 (1,05;1,10) | ||
Sudeste | 1,06 (1,03;1,09) | 1,04 (1,01;1,07) | ||
Sul | 1,10 (1,07;1,14) | 1,08 (1,05;1,12) | ||
Centro-Oeste | 1,08 (1,04;1,11) | 1,08 (1,05;1,11) | ||
Zona de domicílio | < 0,001 | < 0,001 | ||
Urbana | 1,00 | 1,00 | ||
Rural | 1,07 (1,05;1,08) | 1,04 (1,03;1,06) | ||
Sexo | < 0,001 | < 0,001 | ||
Masculino | 1,00 | 1,00 | ||
Feminino | 1,04 (1,03;1,06) | 1,06 (1,05;1,08) | ||
Faixa etária (em anos) | < 0,001 | < 0,001 | ||
18-24 | 1,00 | 1,00 | ||
25-39 | 1,31 (1,26;1,37) | 1,22 (1,17;1,27) | ||
40-59 | 1,41 (1,36;1,47) | 1,25 (1,20;1,31) | ||
≥ 60 | 1,52 (1,46;1,59) | 1,33 (1,27;1,38) | ||
Raça/cor da pele | < 0,001 | 0,352 | ||
Branca | 1,00 | 1,00 | ||
Preta | 0,95 (0,92;0,98) | 0,98 (0,95;1,01) | ||
Amarela | 0,94 (0,86;1,03) | 0,95 (0,88;1,03) | ||
Parda | 0,97 (0,96;0,99) | 1,00 (0,98;1,01) | ||
Indígena | 0,88 (0,73;1,05) | 0,92 (0,80;1,06) | ||
Estado civil | < 0,001 | < 0,001 | ||
Solteiro/viúvo/divorciado | 1,00 | 1,00 | ||
Casado | 1,31 (1,29;1,33) | 1,25 (1,23;1,27) | ||
Escolaridade (em anos de estudo) | < 0,001 | < 0,001 | ||
Mais de 8 | 1,00 | 1,00 | ||
Até 8 | 1,10 (1,08;1,12) | 1,05 (1,03;1,06) | ||
Renda domiciliar per capita (em quintis) | 0,009 | 0,070 | ||
1 (mais pobre) | 1,00 | 1,00 | ||
2 | 0,99 (0,97;1,02) | 1,00 (0,97;1,03) | ||
3 | 0,99 (0,97;1,02) | 0,98 (0,96;1,01) | ||
4 | 0,99 (0,96;1,01) | 0,97 (0,94;0,99) | ||
5 (mais rico) | 0,99 (0,97;1,02) | 0,97 (0,94;1,00) |
a) IC95%: Intervalo de confiança de 95%.
Após a análise ajustada, a prevalência de relação sexual desprotegida foi maior em todas as grandes regiões do país, em relação à Norte, nos residentes de zona rural (RP = 1,04; IC95% 1,03;1,06), em pessoas do sexo feminino (RP = 1,06; IC95% 1,05;1,08), nos idosos (≥ 60 anos: RP = 1,33; IC95% 1,27;1,38), casados (RP = 1,25; IC95% 1,23;1,27), e nos menos escolarizados (RP = 1,05; IC95% 1,03;1,06) (Tabela 2).
Um efeito linear ajustado da idade na atividade sexual desprotegida foi observado entre os estratos da variável "estado civil": o maior efeito foi observado para o grupo dos casados e idosos: RP = 1,70; IC95% 1,62;1,78 (Tabela 3).
Estado civil e idade (em anos) | RPa bruta (IC95%b) | RPa ajustada (IC95%b)c |
---|---|---|
Solteiro/viúvo/divorciado e 18-24 | 1,00 | 1,00 |
Solteiro/viúvo/divorciado e 25-39 | 1,27 (1,21;1,33) | 1,26 (1,20;1,32) |
Solteiro/viúvo/divorciado e 40-59 | 1,31 (1,25;1,38) | 1,29 (1,23;1,36) |
Solteiro/viúvo/divorciado e ≥ 60 | 1,36 (1,28;1,44) | 1,35 (1,27;1,43) |
Casado e 18-24 | 1,48 (1,38;1,58) | 1,46 (1,37;1,56) |
Casado e 25-39 | 1,55 (1,48;1,63) | 1,55 (1,48;1,63) |
Casado e 40-59 | 1,61 (1,54;1,69) | 1,60 (1,53;1,68) |
Casado e ≥ 60 | 1,71 (1,63;1,79) | 1,70 (1,62;1,78) |
a) RP: Razões de prevalência; b) IC95%: Intervalo de confiança de 95%; c) Interação entre estado civil e idade, ajustada por região, zona de domicílio, sexo, raça/cor da pele, escolaridade e renda familiar per capita. Nota: P-valor do teste de interação, nas análises bruta e ajustada < 0,001.
Discussão
Quase 80% dos participantes da PNS 2019 praticaram sexo desprotegido nas relações sexuais dos últimos 12 meses. Foram identificadas desigualdades socioeconômicas e demográficas na prevalência de atividade sexual desprotegida. As maiores prevalências de atividade sexual desprotegida foram verificadas entre o sexo feminino, moradores de áreas rurais, indivíduos casados, pessoas com menor escolaridade, e nas idades mais avançadas. A região Norte foi a que apresentou menor prevalência de relações sexuais desprotegidas. Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste tiveram prevalências semelhantes entre si.
Algumas limitações deste trabalho devem ser mencionadas. Ressalta-se que, dado o fato de o estudo fazer parte de um módulo de atividade sexual da PNS 2019, muitas pessoas não responderam à pergunta-filtro e outras tantas podem ter oferecido respostas socialmente desejáveis, o que pode ter subestimado o desfecho do estudo. Mais um fator limitante foi o não aprofundamento de algumas questões acerca de comportamentos sexuais de risco, como o envolvimento com múltiplos parceiros sexuais. Uma sugestão para pesquisas futuras seria que os inquéritos incluíssem uma pergunta relacionada ao número de parceiros sexuais, para que essa variável pudesse ser associada com o uso do preservativo e, assim, comportamentos sexuais de risco fossem melhor analisados.
Moradores da região Norte apresentaram menor prevalência de relação sexual desprotegida. Este achado é consistente com os de outras pesquisas, a exemplo de (i) um estudo de coorte, realizado com mais de 5 mil brasileiros de 16 a 65 anos, que verificou as tendências do uso de preservativo na população brasileira entre 1998 e 2005,14 e (ii) um estudo transversal com indicadores nacionais da saúde sexual de mais de 100 mil adolescentes em 2015.5 Moradores do Norte do país referem alta prevalência de múltiplos parceiros ocasionais,6 comportamento este que pode estar associado ao maior uso de preservativo entre jovens. Mais um estudo transversal sobre comportamento sexual, este fundamentado em dados da mesma PNS 2019,15 mostrou que o uso dos serviços de saúde para obter preservativos foi maior na região Norte. Contudo, tal associação deve ser analisada com cautela, uma vez que grupos mais favorecidos socioeconomicamente são menos dependentes dos serviços públicos de saúde para conseguir preservativos de forma gratuita. Também é preciso destacar que, na análise nacional dos indicadores de saúde sexual dos adolescentes realizada em 2015,5 a região Norte apresentou as maiores taxas de iniciação sexual precoce e gravidez na adolescência. Sabe-se que o baixo nível socioeconômico pode estar relacionado a baixo conhecimento sexual e gravidez não planejada.16,17
A relação sexual desprotegida foi mais prevalente em residentes de áreas rurais, semelhantemente aos resultados descritos em um estudo transversal de 2016,18 realizado na Nigéria, com mais de 6 mil mulheres em idade reprodutiva, e que concluiu serem as mulheres de áreas rurais as mais propensas a não usar preservativos. Da mesma forma, na África Subsaariana, segundo inquéritos demográficos realizados nas quatro regiões, entre 2011 e 2016, com 99 mil jovens de 15 a 24 anos,19 os residentes de zona rural apresentaram maior prevalência de atividade sexual sem proteção. No Brasil, um inquérito domiciliar, realizado em 2013,20 divulgou que o acesso a preservativos gratuitos, entre os indivíduos sexualmente ativos de 15 a 64 anos, foi maior em áreas urbanas, sugerindo-se, portanto, que o acesso fácil e confidencial aos preservativos também seja garantido à população rural.
Observou-se maior prevalência de atividade sexual desprotegida em participantes do sexo feminino. O mesmo padrão foi constatado nos Estados Unidos, em um estudo transversal realizado com 24 mil adultos de 18 a 44 anos, entre 2006-2010 e 2011-2013,21 quando as mulheres tiveram uma maior prevalência de relação sexual desprotegida entre a população adulta. Na África do Sul, uma análise realizada em 2005, com 10 mil adultos jovens de 15 a 24 anos,22 revelou que ser do sexo feminino também se associou com o baixo uso do preservativo. Estes achados podem ser explicados pelo controle dos homens sobre questões que envolvem a relação sexual, implicando, muitas vezes, um comportamento submisso das mulheres, que chegam a ser repreendidas quando sugerem o uso de preservativos com seus parceiros.23 Nos Estados Unidos, uma pesquisa transversal com 12 mil mulheres, realizada entre 2006 e 2010,24 expôs que os métodos mais utilizados por mulheres eram pílulas contraceptivas e esterilização feminina, o que torna o uso do preservativo redundante quando se pensa que este método serve apenas para evitar gravidez, e não para prevenção de doenças.
Encontrou-se maior prevalência de atividade sexual desprotegida naqueles de faixa etária mais avançada, achado condizente com os de estudos nacionais e internacionais. Em 2011, nos idosos assistidos pela Estratégia Saúde da Família (ESF) do Brasil em uma região urbana,25 apenas 17% dos sexualmente ativos utilizavam algum método de proteção. No mesmo sentido, a pesquisa realizada nos Estados Unidos24 observou os padrões de mudança no uso de contraceptivos entre 1995 e 2010, e mostrou que, conforme envelhecem, as pessoas tendem a não usar preservativos, pelo desejo de gerar filhos ou, até mesmo, usar outros métodos caso não tenham mais interesse em ter crianças. Isso também pode explicar a alta prevalência de relação sexual desprotegida entre indivíduos casados, encontrada tanto no presente estudo como em outro já mencionado.22 Em João Pessoa, capital da Paraíba, um inquérito domiciliar realizado em 2013, com 300 mulheres solteiras e casadas,26 sexualmente ativas, apontou que a confiança no parceiro foi uma das principais razões para que o uso do preservativo fosse evitado entre essas mulheres. O aumento da prevalência de atividade sexual desprotegida conforme o avançar da idade também foi observado, sendo maior entre casados e idosos. Se, por um lado, a proteção menos frequente entre casados pode refletir a confiança no parceiro, por outro lado, é possível que ocorra um aumento da prevalência de sexo desprotegido entre casados com o aumento da idade, o que pode justificar a interação encontrada entre estado civil e idade. Tais fatores fazem crescer o risco para ISTs, uma vez que não há garantia absoluta da fidelidade dos parceiros conjugais.
Pessoas com menor escolaridade referiram maior frequência de atividade sexual desprotegida, neste estudo. Na América Latina e no Caribe, as desigualdades socioeconômicas têm relação direta com informação sobre transmissão de ISTs e uso de preservativo.9 Nessas regiões das Américas, entre 2008 e 2018, os países com nível socioeconômico superior apresentaram indivíduos com maior probabilidade de usar preservativos,9 tanto na primeira como na última relação sexual. Outro estudo, este desenvolvido na África Subsaariana, ao utilizar pesquisas demográficas realizadas entre 2011 e 2018, com adolescentes solteiros de 15 a 19 anos,27 sugere que a baixa escolaridade é um fator positivamente associado à prática de sexo sem preservativos e a apresentar comportamentos sexuais de risco, como ter múltiplos parceiros. Esses dados são reproduzidos em nosso país, onde, segundo os indicadores nacionais de ISTs,4 pessoas com baixa escolaridade apresentam índices maiores dessas doenças. Estes achados realçam a necessidade de debater os efeitos das desigualdades sociais no conhecimento das ISTs e no uso de métodos preventivos nas relações sexuais.
Não houve associação entre atividade sexual desprotegida, renda familiar e raça/cor da pele dos indivíduos. O efeito da renda sobre o desfecho analisado pode estar relacionado aos programas de acesso gratuito a preservativos, amplamente difundidos em todo o país, o que pode ter contribuído para reduzir a influência das desigualdades de renda sobre o desfecho. Já o resultado sobre raça/cor da pele segue as tendências do uso do preservativo na população brasileira, observadas entre 1998 e 2005,14 quando não foi encontrada associação entre não usar preservativos e a raça/cor da pele. Nos indicadores epidemiológicos do Brasil, referentes ao período de 2010 a 2021,4 os casos de ISTs foram mais prevalentes nos brasileiros de raça/cor da pele preta/parda. Na cidade de Salvador, capital da Bahia, no período de 2012 a 2017, identificou-se uma maior prevalência de ISTs em adolescentes também de raça/cor da pele preta/parda.28 Estes dados podem ser resultado da dificuldade de acesso desses contingentes aos serviços de saúde, do qual sempre se ressentiram, reforçada pela estrutura social brasileira.29,30 Na Bahia, um trabalho descritivo realizado com mulheres brancas, negras e pardas de 25 anos ou mais de idade, respondentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE) de 2008,30 revelou que as mulheres negras representam um percentual superior entre os níveis de acesso ruins dos serviços de saúde, evidenciando que esse grupo deve ser um foco prioritário das políticas de prevenção e campanhas de informações para a saúde.
Os resultados apresentados enfatizam a necessidade de implantação de políticas públicas e estratégias de ação pelos profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), direcionadas aos grupos mais vulneráveis apontados no presente estudo, no que concerne à informação e educação em saúde, que sensibilizem a população brasileira e, buscando uma maior conscientização, promovam a ampliação e maior adesão ao uso de preservativos.