O enfrentamento da pandemia da COVID-19 intensificou o debate sobre as possibilidades e limites das ações e práticas de vigilância no campo da Saúde. Nesse sentido, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e outros organismos internacionais vêm discutindo a necessidade de estruturar políticas e ações para o enfrentamento de crises sanitárias, sugerindo que a vigilância seja tratada a partir de uma abordagem integral e como parte de uma gestão prospectiva dos riscos, em lugar de se limitar a abordagens setoriais e gestão reativa sobre danos e consequências.1
No Brasil, o debate em torno das estratégias de enfrentamento da pandemia não apenas reativou uma reflexão conceitual acerca da noção de Vigilância em Saúde (VS), presente desde os primórdios da construção do Sistema Único de Saúde (SUS); ele também estimulou a elaboração de propostas por parte da comunidade acadêmica da Saúde Coletiva, caso do Plano da Frente pela Vida,2 e reativou uma discussão fomentada pelo Conselho Nacional de Saúde em 2018, durante a 1ª Conferência Nacional de Vigilância em Saúde (1ª CNVS),3 um marco no processo de elaboração da Política Nacional de Vigilância em Saúde.4
A análise do desenvolvimento conceitual da VS evidencia que essa noção se vincula às distintas "vigilâncias" - epidemiológica, sanitária, ambiental, saúde do trabalhador etc. -, denominando práticas institucionais que delimitam objetos, métodos e tecnologias de intervenção sobre problemas de saúde e grupos populacionais expostos a riscos específicos. Entretanto, a mesma noção, seja como Vigilância à, da ou em Saúde, também contribuiu para o debate sobre a mudança do modelo de atenção, enquanto
[...] uma forma de organização de um conjunto heterogêneo de práticas de saúde - de promoção da saúde, prevenção de riscos e agravos, assistência e reabilitação -, tendo em vista o princípio da integralidade da atenção e a possibilidade de integração dessas diversas práticas no processo de reorganização do trabalho em saúde nos distintos níveis organizacionais do sistema.5
O processo de institucionalização da VS, por seu turno, deu-se sob a égide de uma visão fragmentada, apresentando um desenvolvimento desigual nas últimas décadas, tanto no que concerne à definição da legislação, que embasa e regulamenta as ações de vigilância, quanto no âmbito político-institucional, em função da direcionalidade conferida à política de saúde e ao processo de construção do SUS.6 Configurou-se, assim, a divisão da gestão nacional da VS entre o Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ao tempo em que a implementação das distintas "vigilâncias", nos âmbitos estadual e municipal do SUS, tem sido marcada por tensões e conflitos em torno do financiamento e das formas de organização e gestão das ações de VS entre as Secretarias de Estado (SES) e as Municipais (SMS) de saúde.7
Cabe destacar, todavia, os esforços na articulação entre as ações de Atenção Básica e as atividades de VS, cujas gestões são separadas institucionalmente, tanto no organograma do Ministério da Saúde como nos das SES. Apesar disso, no período de expansão da Estratégia Saúde da Família (ESF), propunha-se ir além da atenção à demanda espontânea, que predomina nas unidades básicas, capacitando-se as equipes para o planejamento e programação das ações a partir da análise e priorização dos problemas de saúde da população dos territórios de abrangência. Assim, buscava-se articular práticas de promoção da saúde, prevenção de riscos e assistência a grupos populacionais priorizados,8,9 de maneira a se aproximar da concepção integral da VS, que busca articular o controle de determinantes, riscos e danos à saúde da população dos distintos territórios.5
Nos últimos anos, muito disso tem se perdido, não só por conta das dificuldades pelas quais o SUS vem passando ao longo de sua história, mas, sobretudo, em decorrência das mudanças promovidas pelo governo federal a partir de 2015, e do processo acelerado de desmonte de políticas e programas de saúde.10 De fato, o subfinanciamento, a privatização, a precarização do trabalho e a drástica redução dos investimentos em infraestrutura, ciência e tecnologia, formação e qualificação de pessoal e, especificamente, as decisões políticas com relação ao financiamento e organização da Atenção Básica,11 intensificaram os problemas estruturais do SUS, o que, somado à eclosão da pandemia da COVID-19, colocou em questão a viabilidade da manutenção do sistema tal como proposto na Constituição Federal de 1988.12,13 No curso da pandemia, apesar dos inúmeros problemas que caracterizaram a gestão federal da crise, governadores e prefeitos implementaram medidas de prevenção, controle da transmissão, assistência aos casos graves via expansão de leitos, contratação de pessoal e compra de equipamentos, acionaram laboratórios e centros de pesquisa, adotaram medidas de contenção da mobilidade social e forneceram apoio econômico a uma parte significativa da população, diante do desemprego e redução de sua renda familiar.14 A Atenção Básica, por sua vez, enfrentou sérios problemas decorrentes da escassez de conhecimentos acerca da COVID-19 e da precarização das condições de trabalho das equipes, ocorrendo, em muitos casos, a redução drástica dos atendimentos, com represamento da demanda por atenção às doenças crônicas de maior incidência.1,15 Vários municípios, porém, trataram de adequar sua infraestrutura, capacitar e proteger os profissionais de saúde, verificando-se, inclusive, um grande esforço na implementação do programa de vacinação, quando as vacinas foram disponibilizadas.
Nesse contexto, pode-se observar a coexistência, nos discursos e na prática das instituições sanitárias, de uma concepção restrita de vigilância, limitada à divulgação de informações sobre número de casos, óbitos e taxas de ocupação de leitos gerais e de unidades de terapia intensiva (UTIs), paralelamente a recomendações de "distanciamento social", "quarentena", protocolos de cuidados a pessoas com COVID-19 e, por fim, a vacinação, ao tempo em que os discursos de especialistas e entidades cientificas da área da Saúde Coletiva apontam para uma concepção ampliada de VS, reconhecendo a necessidade de articulação das diferentes vigilâncias - transversais aos diversos níveis de atenção do SUS - com as ações de promoção da saúde e com a Atenção Primária no âmbito territorial, valorizando, ademais, as medidas de suporte social a grupos vulneráveis, além do combate às fake news.
Reproduziram-se, no debate em torno da pandemia da COVID-19, as distintas vertentes teóricas e ideológicas que cruzam o campo da Saúde Coletiva, observando-se discursos e práticas que evidenciam a permanência da "velha" saúde pública, subordinada ao modelo médico hegemônico. Este, inclusive, viu-se fortalecido com a expansão da atenção hospitalar, sob a égide da gestão privada dos serviços públicos, ao lado de propostas oriundas da "nova" saúde pública, baseadas em evidências que orientam a definição de estratégias e ações focalizadas em grupos específicos.16
Enquanto isso, a vertente crítica da comunidade científica da área, também representada no grupo que elaborou o Plano da Frente pela Vida, apontava a complexidade da pandemia,17 destacando o contexto de grande desigualdade econômica e social que favoreceu sua difusão no país. Insistia-se na necessidade de uma ação abrangente, fundamentada no conceito de "determinação social da saúde",18,19 que articulasse políticas intersetoriais de promoção da saúde e melhoria da qualidade de vida da população, com propostas específicas voltadas a grupos sociais prioritários, em função de sua maior vulnerabilidade social, à defesa de um sistema integrado de saúde, gratuito e universal, garantido pela Constituição, e à ampla difusão de ações de comunicação social e educação em saúde, visando elevar a consciência sanitária da população, entendida como condição necessária para o enfrentamento da atual e de futuras epidemias.
Conforme apontei em outro lugar,20 a pandemia da COVID-19 evidenciou as tensões paradigmáticas presentes no campo da Saúde e da Saúde Coletiva em particular, intensificando os conflitos teóricos e políticos entre i) a perspectiva biomédica, clínica e hospitalocêntrica, ii) a perspectiva epidemiológica, que fundamenta as práticas da "velha" e da "nova" saúde pública, acionadas para o controle de doenças transmissíveis, e iii) a perspectiva radicalmente crítica da Saúde Coletiva, que concebe a pandemia como um fenômeno "hipercomplexo", a demandar estudos interdisciplinares capazes de dar conta de suas múltiplas dimensões - determinantes, características e efeitos sobre a saúde e as condições de vida da população. Ao mesmo tempo, a emergência da COVID-19 propõe a implementação de políticas e planos de ação que incidam sobre as diversas dimensões do fenômeno de uma pandemia.
Colocam-se, portanto, como desafios para a área, a produção de conhecimentos e o desenvolvimento de tecnologias, bem como o aperfeiçoamento de políticas e práticas de VS fundamentadas na concepção integral, intersetorial e participativa, foco de pesquisadores, gestores e lideranças políticas comprometidos com a Reforma Sanitária Brasileira. Isto exige o desencadeamento de processos de mudança, em um contexto de incertezas acerca da situação econômica e política do país nos próximos anos, podendo-se, entretanto, pensar a VS como uma proposta de ação capaz de inspirar e orientar a tomada de decisões acerca do "que fazer" em cada realidade concreta, tendo em vista a retomada do processo de construção do SUS.