A desigualdade de gênero na ciência e os fatores responsáveis por esse fenômeno têm sido cada vez mais discutidos e pesquisados. Mundialmente, a participação das mulheres na ciência é menor que a dos homens, diminuindo ainda mais nas posições de poder, em cargos de liderança e de tomada de decisão.1 Embora, no Brasil, estejamos caminhando para um número semelhante de cientistas homens e mulheres, a progressão na carreira científica é mais lenta e difícil para elas. Diversos cargos relacionados à academia e à ciência nunca foram ocupados por mulheres,2 de tal forma que se encontram mais mulheres na base da carreira científica brasileira, enquanto no topo, mais homens - o conhecido efeito-tesoura.2,3
Os fatores que ajudam a entender esse fenômeno são diversos, incluindo desde determinantes culturais, relacionadas ao papel social atribuído a homens e mulheres, até questões relacionadas ao preconceito explícito, assédio, violências diversas e viés implícito, afastando as mulheres do ambiente hostil que a academia frequentemente assume.4 Nesse conjunto de múltiplos fatores, insere-se a maternidade.5,6 A parentalidade traz consigo grandes e diferentes responsabilidades, que podem impactar a carreira de cientistas, e a comunidade acadêmica deve estar ciente desse impacto, que não é igual para homens e mulheres.
O movimento parent in science
O movimento Parent in Science (PiS) foi criado em 2016, com o objetivo de promover discussões acerca do impacto da parentalidade na carreira de cientistas no Brasil. Entre as primeiras ações do PiS está a criação da campanha #maternidadenolattes, na busca por um campo para sinalizar os períodos de licença-maternidade no currículo Lattes, incluído em 2021.7
A partir da mobilização e das discussões motivadas pela campanha #maternidadenolattes, tornou-se mais evidente a necessidade de considerar os períodos de licença-maternidade na avaliação do currículo de cientistas mães. A partir de 2019, diversas universidades passaram a incluir, em seus editais internos de fomento e de programas de pós-graduação, a consideração de licença-maternidade. De maneira geral, a política adotada tem sido a de considerar um período ampliado para análise do currículo, ou a utilização de fatores de correção ou pontuação adicional na avaliação de currículos de cientistas mães.
Maternidade e ciência: o que dizem os dados?
O primeiro levantamento do PiS, realizado entre 2017 e 2018,5 investigou o impacto da maternidade na carreira das cientistas brasileiras, revelando o que muitas já identificavam no cotidiano acadêmico: grande impacto da maternidade na produtividade. Os resultados mostraram que, depois do nascimento dos(as) filhos(as), sua repercussão é imediata na produtividade das cientistas, com redução do número de publicações científicas.5 Essa redução é percebida de forma semelhante em diferentes áreas, incluindo as ciências da saúde, e não se restringe ao período de licença-maternidade - parece durar pelo menos quatro anos após o nascimento do primeiro filho.5 O mesmo cenário já foi observado em outros países.8
Estes resultados sugerem que a maternidade tem impacto importante na carreira das cientistas, o que não é uma caraterística específica da academia, mas dos ambientes de trabalho, de um modo geral. Estudos prévios indicaram que a maternidade acaba por penalizar as mulheres, enquanto a paternidade não tem a mesma consequência na carreira profissional dos homens. Um estudo, realizado nos Estados Unidos e publicado em 2007, simulou a aplicação para um emprego e comparou a avaliação de candidatos e candidatas igualmente qualificados(as), equivalendo "sexo"e "raça/cor da pele", sendo os grupos comparados diferentes apenas no status parental.9 O experimento revelou que as mães foram penalizadas no processo, recebendo, por exemplo, recomendação de salário inicial menor do que as mulheres sem filhos.9 Em contraste, os pais não foram penalizados, e eventualmente, foram até beneficiados pelo próprio status.9
Este último resultado, provavelmente, está relacionado ao estereótipo de que cuidar dos filhos é, majoritariamente, responsabilidade das mulheres - uma construção social, que acaba repercutindo na carreira profissional delas. No Brasil, as mulheres são as principais responsáveis pelas tarefas domésticas e o cuidado de pessoas, dedicando o dobro de tempo semanal que os homens reservam para essas mesmas funções.10 Tal demanda de tempo reduz a disponibilidade das mulheres para outras tarefas, gera cansaço e estresse e, logo, prejudica sua saúde física e mental. Ademais, sabe-se que a jornada de trabalho acadêmico-científico, frequentemente, ultrapassa o tempo de trabalho regular, demandando horas extras para escrita e revisão de artigos, leituras e estudos, orientação de estudantes etc. - horas que, muitas vezes, não estão disponíveis na rotina das mulheres que conciliam esse trabalho com o cuidado da casa e dos filhos.
Embora essa configuração mereça ser questionada, as mulheres, especialmente as mães, ficam para trás. Um argumento falacioso comumente utilizado é que “mulheres são melhores em multitarefas”. Em um estudo realizado na Alemanha, no ano de 2019, em que os pesquisadores testaram o desempenho de homens e mulheres em diferentes multitarefas, verificou-se que não houve diferença entre os sexos no que concerne ao desempenho.11 Ou seja, a ideia de que mulheres podem fazer muitas coisas ao mesmo tempo reflete um estereótipo que ajuda a manter as diferenças de gênero em nossa sociedade.
Maternidades diversas
Se a maternidade, por si só, impacta a carreira das cientistas mães, quando outros fatores são considerados, a implicação é ainda maior. A interação de fatores que interferem na vida em sociedade, como raça/cor da pele, sexualidade, condição de deficiência, entre outros, é chamada de interseccionalidade. Um estudo, divulgado em 2022, analisou milhões de artigos científicos publicados, com o objetivo de estudar a relação entre os cientistas e a ciência que eles produzem, bem como a relação entre identidades interseccionais dos cientistas, seus tópicos de pesquisa e impacto científico.12 Os autores observaram que cientistas de grupos minoritários tendiam a publicar em áreas científicas e em tópicos de pesquisa que refletiam suas identidades sociais de gênero e raça, enquanto a participação de autores brancos em diferentes tópicos de pesquisa mostrou-se equilibrada.12
No que diz respeito à raça/cor da pele, não é novidade que, no mundo todo, a ciência é feita, majoritariamente, por pessoas brancas.13 A participação de pessoas negras é limitada, especialmente quando são mulheres.13 No Brasil, as mulheres negras representam apenas 3% dos orientadores de doutorado.14 Gonzales e Harris15 discutem a ideia da suposição de incompetência de mulheres negras na academia, com efeitos na contratação, promoção e estabilidade profissional dessas mulheres, além de influências nas relações com estudantes, colegas e administradores. Essas mesmas mulheres são fortemente impactadas pelo estereótipo relacionado à raça, de forma que se torna essencial estabelecer redes de apoio com o propósito de transformar o ambiente de trabalho.15 Ainda, as questões raciais e de gênero associam-se à maternidade, de maneira que as mulheres mães negras enfrentam múltiplos vieses,16 e um impacto ainda maior na carreira acadêmica.17
Quando se fala de deficiências, há duas situações principais a serem consideradas: a dos cientistas com deficiências, e a daqueles que são pais ou mães de pessoas com deficiências. Em diversas áreas do conhecimento existem cientistas com deficiências; entretanto, essas pessoas estão sub-representadas, em comparação com os números da população geral,18 e isso não está relacionado à falta de interesse ou de habilidades.19 A deficiência - e a discriminação advinda dela -, em um contexto de altas exigências e competitividade como a academia, ajuda a explicar essa sub-representação.20 Embora algumas instituições adotem políticas de apoio voltadas a pessoas com deficiência, o capacitismo, a estigmatização e as barreiras incapacitantes dificultam a participação desses cientistas.20 Outro aspecto a se considerar, na interseccionalidade com a parentalidade, é a situação de mães e pais de filhos com deficiências. Cabe aqui mencionar que as mães são as principais cuidadoras dos filhos com deficiências e, em grande parte das vezes, ocorre abandono por parte do pai, tornando-se elas as únicas cuidadoras.21,22
Nessas situações, nas quais os filhos muitas vezes requerem cuidado constante e por muitos anos, o impacto na carreira, especialmente das mães cientistas, pode ser ainda maior. Atualmente, há um projeto de lei tramitando no Senado (PL 242/2020), que estabelece prorrogação do tempo de licença-maternidade por 180 dias, como também a estabilidade provisória no caso de recém-nascido com deficiência.23 Esta política é importante para que a família possa se organizar e se adequar à nova rotina. Políticas de apoio à maternidade na ciência devem considerar que mães de filhos com deficiência experienciam um impacto ainda mais significativo em sua carreira e produtividade científica. Estratégias de apoio devem ser consideradas, como a compensação permanente no tempo de avaliação do currículo dessas mães, comparadas às demais, visto que filhos com deficiência podem requerer cuidados prolongados, por vezes estendidos ao longo de toda a vida.
A sexualidade é outro aspecto merecedor de atenção. Um levantamento realizado no Reino Unido revelou que 18% dos cientistas que são gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros, além de outras minorias sexuais e de gênero (LGBTQIA+), relataram ter sofrido assédio, bullying ou algum tipo de comportamento excludente no local de trabalho; esse número sobe para 32% quando se trata exclusivamente de pessoas transgênero e daquelas que não se identificam como homem ou mulher (não binárias).24 Quando se inclui a parentalidade na discussão, para esse grupo especialmente, o tema precisa ser debatido para além das atividades profissionais ou da ciência, sendo essencial que questões relacionadas às pessoas LGBTQIA+ sejam mais discutidas na sociedade, com o objetivo de promover o empoderamento parental e o acolhimento desses pais e mães.25 Os números de pessoas LGBTQIA+ com filhos ainda são desconhecidos na maioria dos países, haja vista os dados universais coletados raramente incluírem o gênero ou a orientação sexual de gestantes ou de seus parceiros.26 Na ciência, isso não é diferente, sendo raras as informações sobre a sexualidade dos cientistas. Estes dados são fundamentais para que sejam propostas políticas efetivas de promoção da diversidade na ciência.
Desafios
Considerar o impacto da maternidade na ciência e em especial, a interseccionalidade, é por si só um desafio enorme. Além dele, a pandemia da COVID-19 impactou o trabalho de cientistas do mundo todo e, mais uma vez, esse impacto não foi - como não tem sido - igual para todos. A diminuição do número de novos projetos iniciados em 2020, no contexto da pandemia, foi mais acentuada para as cientistas mulheres e com filhos pequenos, entre 0 e 5 anos de idade.27 No Brasil, pesquisa do PiS ratificou esses dados, mostrando que as cientistas brasileiras mães e as cientistas negras, independentemente da maternidade, tiveram maior dificuldade em manter a submissão de artigos no período da pandemia.17 Estes dados são reveladores dos desafios ainda maiores que as mulheres terão pela frente no período pós-pandemia.
Gradativamente, as atividades presenciais vêm sendo retomadas nas instituições de ensino e pesquisa brasileiras, e ações efetivas para mitigar os impactos negativos da pandemia, especialmente na carreira de mulheres mães, são fundamentais.28 Recentemente, o PiS destacou essa importância e sugeriu algumas ações,29 as quais, em conjunto com outras, estão exemplificadas na Figura 1.

Nota: A maternidade impacta a carreira das cientistas, trazendo muitos desafios. Esse impacto é ainda maior quando fatores interseccionais são considerados. Como consequência, tem-se uma série de eventos que culminam em um menor número de mulheres na carreira acadêmica. Dessa maneira, ações são necessárias para garantir a participação das cientistas mães e maior diversidade na ciência.
Figura 1 Exemplos de ações para mitigar os impactos da maternidade na carreira das cientistas
É essencial valorizar a diversidade na ciência, para além do discurso! A diversidade impacta positivamente na capacidade de inovação e aumenta a capacidade criativa da equipe de pesquisa.30 Buscar mudanças em prol de equipes mais diversas não é só uma luta pelos direitos de todos estarem onde querem estar, senão também por uma ciência melhor.