Principais resultados
Verificou-se tendência de aumento da letalidade materna hospitalar pós-parto de gestantes de risco habitual no Brasil, entre 2010 e 2019. Disparidades regionais foram observadas. Gestações de alto risco apresentaram maior letalidades.
Introdução
A mortalidade materna é um problema de saúde pública; e uma grave violação dos direitos humanos da mulher, principalmente pelo fato de a maior parte dos casos caracterizar-se como evento evitável.1
A redução da mortalidade materna, independentemente do risco gestacional, é uma das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização Mundial da Saúde (OMS) para 2030.2 Em 2019, no Brasil, a razão da mortalidade materna (RMM) era de 58 óbitos maternos por 100 mil nascidos vivos (NVs), valor quase duas vezes superior à meta estabelecida pela OMS para 2030, de 30 óbitos por 100 mil NVs.3
A assistência obstétrica brasileira é baseada em um modelo intervencionista, que já levou a uma “epidemia de cesariana”. Atualmente, o Brasil é o segundo país que mais realiza partos cirúrgicos no mundo, tendo este tipo de parto atingido a proporção de 55,8% dos partos ocorridos no país entre 2014 e 2017.4 Entretanto, estudos mostram maior risco de morte materna após cesarianas, quando comparado ao risco com partos vaginais, no país.5,6
A análise de informações sobre indicadores de mortalidade materna é essencial para conhecer o cenário de saúde da mulher e a assistência ofertada a ela, auxiliando nas decisões para reduzir suas causas e prevenir novos óbitos. Embora o indicador de RMM seja bastante utilizado, de acordo com a literatura nacional e internacional, pouca ênfase é dada ao óbito enquanto desfecho das internações para parto - uma fração da RMM, referente ao puerpério imediato e diretamente relacionada aos cuidados no momento do nascimento. Nesse contexto, o estudo teve como objetivo analisar a série temporal da letalidade materna pós-parto segundo risco gestacional e via de parto realizado, no Brasil e suas macrorregiões, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), entre 2010 e 2019.
Métodos
Trata-se de um estudo ecológico de séries temporais, que analisou a letalidade materna hospitalar pós-parto no Brasil, entre os anos de 2010 e 2019. Segundo dados do Censo Demográfico de 2010, a população total feminina em idade fértil (faixa etária de 15 a 49 anos, segundo a OMS),7 correspondia a 28% (53.669.289) da população brasileira. Foram registrados 29.157.184 nascidos vivos no período de 2010 a 2019, no Brasil, sendo 39% deles na região Sudeste, a mais populosa do país.8
O estudo utilizou dados do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS), que registra todas as internações hospitalares realizadas pelo SUS no território nacional, em todas as cinco grandes regiões brasileiras (Norte, Nordeste, Centro--Oeste, Sudeste e Sul), no período de 2010 a 2019. Estima-se que 80% dos partos realizados no país sejam realizados no âmbito do SUS.9 Os dados do SIH/SUS, disponibilizados no sítio eletrônico do Departamento de Informática do SUS (Datasus),10 foram acessados em 20 de dezembro de 2020, utilizando-se o aplicativo Tabnet.
A população do estudo foi composta por todas as gestantes que deram entrada para o parto em um hospital vinculado ao SUS (público ou privado conveniado). A análise incluiu as internações para parto, identificadas pelo Capítulo XV - Gravidez, parto e Puerpério - da Décima Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), sendo selecionados os procedimentos realizados: parto normal; parto normal em gestação de alto risco; parto cesariano; e parto cesariano em gestação de alto risco. A categorização do risco gestacional é realizada previamente, pelo profissional de saúde que atendeu a gestante. Segundo o Ministério da Saúde do Brasil,1 a condição de alto risco gestacional envolve uma análise individual que considere a história reprodutiva e clínica prévia, ademais de intercorrências clínicas/obstétricas na gestação atual, tais como obesidade com IMC > 40, abortamentos de repetição, restrição de crescimento ou óbito fetal, doenças prévias e/ou doenças infecciosas na gestação. Os dados de interesse coletados para o estudo foram (i) a internação materna para o parto (a partir das Autorizações de Internação Hospitalar [AIH] pelo SUS) e (ii) os óbitos maternos após o parto (número de internações que tiveram alta por óbito), segundo a classificação de risco gestacional e via de parto, por macrorregião do Brasil, em cada ano estudado.
A variável-desfecho de interesse do estudo foi o óbito após o parto, ou seja, no puerpério imediato, considerando-se o número de internações para o parto que tiveram alta por óbito. As variáveis independentes analisadas foram (i) o ano da internação (2010 a 2019), (ii) a região do país (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul, Sudeste), (iii) o risco gestacional (alto risco, risco habitual) e (iv) a via de parto (vaginal, cesariana). O risco gestacional e a via de parto foram selecionados de acordo com a classificação: parto vaginal de alto risco, parto vaginal de risco habitual, parto cesariano de alto risco, parto cesariano de risco habitual.
O cálculo da letalidade materna hospitalar pós-parto foi realizado dividindo-se o número de internações maternas para parto que tiveram alta hospitalar por óbito pelo total de internações maternas para o parto, multiplicado por 10 mil, segundo ano e região.
Para análise da tendência temporal da letalidade materna hospitalar relacionada à via de parto e das relações tempo/evento no período 2010-2019, utilizou-se a análise de regressão linear generalizada pelo método de Prais-Winsten,11 calculando-se o coeficiente de determinação (R2) e a variação média anual dos valores das séries (coeficiente β). A variável-resposta (Yi) foi a letalidade materna hospitalar, em cada ano; e a variável explicativa (Xi), o ano do óbito. O valor do coeficiente angular (β) positivo/negativo representa a média anual de aumento/diminuição da letalidade materna, respectivamente, para cada ano analisado, e se expressa em pontos percentuais (p.p.) ao ano. Foi estimada a letalidade materna hospitalar média, como também seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%), visando comparar os indicadores de acordo com as características de interesse. O nível de significância foi de 5%.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Sul de Santa Catarina (CEP Unisul) em 22 de dezembro de 2020, sob Parecer nº 4.482.150. A base de dados utilizada é de domínio público e não está vinculada a dados individuais.
Resultados
No Brasil, o total de gestantes internadas para o parto, entre 2010 e 2019, foi de 19.158.167; foram registrados 5.110 óbitos após o parto, no mesmo período. Houve 17.137.656 internações para parto classificadas como gestação de risco habitual, e 2.020.511 internações (aproximadamente 12%) de gestantes de alto risco, conforme dados detalhados na Tabela 1.
Brasil e macrorregiões | Risco habitual | Alto risco gestacional | |||||||||
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Parto vaginal | Parto via cesariana | Parto vaginal | Parto via cesariana | ||||||||
Internações | Óbitos | Internações | Óbitos | Internações | Óbitos | Internações | Óbitos | ||||
Brasil | 10.618.496 | 1.522 | 6.519.160 | 2.101 | 792.592 | 378 | 1.227.919 | 1.109 | |||
Norte | 1.345.161 | 310 | 800.707 | 325 | 53.320 | 43 | 101.225 | 114 | |||
Nordeste | 3.543.874 | 540 | 2.053.375 | 604 | 306.758 | 186 | 435.899 | 465 | |||
Sudeste | 319.167 | 117 | 2.183.128 | 702 | 319.167 | 117 | 509.262 | 415 | |||
Sul | 88.894 | 16 | 916.743 | 285 | 88.894 | 16 | 125.403 | 49 | |||
Centro-Oeste | 24.417 | 16 | 565.207 | 185 | 24.417 | 16 | 56.130 | 66 |
No Brasil, a letalidade hospitalar de gestantes de risco habitual, após cesarianas, foi de 3,2 óbitos por 10 mil, em 2010, e atingiu 3,6 por 10 mil em 2019, indicando estabilidade e taxa média durante o período de 3,2 (IC95% 2,9;3,6) óbitos por 10 mil. A região Norte foi a única a apresentar aumento significativo da letalidade hospitalar após parto via cesariana em gestação de risco habitual, passando de 3,4 óbitos por 10 mil internações para parto, em 2010, para 4,2 óbitos a cada 10 mil internações em 2019 (p-valor = 0,003). Considerando-se os partos vaginais de risco habitual realizados no país como um todo, a letalidade aumentou significativamente, de 1,1 óbito por 10 mil internações por parto, em 2010, para 1,9 em 2019 (p-valor = 0,001), conforme descrito na Tabela 2 e na Figura 1.
Legenda: CesBaixo: Cesarianas em gestações de risco habitual; CesAlto: Cesarianas em gestações de alto risco; NoBaixo: Parto normal em gestações de risco habitual; NoAlto: Parto normal em gestações de alto risco.
Ano | Gestação de risco habitual | ||||||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Brasil | Norte | Nordeste | Sudeste | Sul | Centro-Oeste | ||||||||||||
Cesariana | Vaginal | Cesariana | Vaginal | Cesariana | Vaginal | Cesariana | Vaginal | Cesariana | Vaginal | Cesariana | Vaginal | ||||||
2010 | 3,2 | 1,1 | 3,4 | 1,3 | 2,9 | 1,4 | 3,3 | 0,9 | 4,4 | 0,7 | 2,5 | 1,0 | |||||
2011 | 3,0 | 1,1 | 3,8 | 1,1 | 2,7 | 1,3 | 2,8 | 1,1 | 3,6 | 0,7 | 3,0 | 1,4 | |||||
2012 | 3,0 | 1,1 | 3,2 | 1,7 | 3,0 | 1,3 | 2,7 | 0,9 | 3,4 | 0,9 | 3,0 | 0,7 | |||||
2013 | 2,6 | 1,1 | 5,0 | 1,0 | 2,4 | 1,7 | 2,1 | 0,8 | 2,1 | 0,4 | 3,2 | 0,8 | |||||
2014 | 2,6 | 0,8 | 3,0 | 0,9 | 2,5 | 0,8 | 2,5 | 0,7 | 2,6 | 0,4 | 2,6 | 0,9 | |||||
2015 | 3,2 | 1,8 | 3,3 | 2,8 | 3,1 | 2,0 | 3,3 | 1,1 | 2,9 | 2,5 | 3,1 | 1,6 | |||||
2016 | 4,2 | 2,3 | 5,7 | 6,4 | 3,2 | 1,4 | 4,3 | 1,4 | 3,9 | 3,1 | 5,5 | 2,0 | |||||
2017 | 3,3 | 1,5 | 4,0 | 2,6 | 2,9 | 1,8 | 3,8 | 1,1 | 2,8 | 1,1 | 2,2 | 0,8 | |||||
2018 | 3,6 | 1,8 | 5,0 | 2,8 | 3,3 | 1,8 | 3,5 | 1,7 | 3,8 | 1,4 | 3,0 | 2,0 | |||||
2019 | 3,6 | 1,9 | 4,2 | 2,8 | 3,7 | 2,1 | 3,9 | 1,7 | 1,8 | 1,4 | 4,5 | 1,6 | |||||
Média | 3,2 | 1,5 | 4,0 | 2,3 | 2,9 | 1,5 | 3,2 | 1,1 | 3,1 | 1,3 | 3,3 | 1,3 | |||||
IC95%a | 2,9;3,6 | 1,1;1,8 | 3,4;4,7 | 1,2;3,5 | 2,7;3,2 | 1,3;1,8 | 2,7;3,7 | 0,9;1,4 | 2,6;5,9 | 0,6;1,9 | 2,6;3,9 | 0,9;1,6 | |||||
βb | 0,08 | 0,11 | 0,14 | 0,28 | 0,09 | 0,08 | 0,10 | 0,08 | -0,45 | 0,12 | 0,12 | 0,09 | |||||
p-valor | 0,100 | 0,001 | 0,003 | 0,040 | 0,060 | < 0,001 | 0,238 | 0,040 | 0,02 | 0,112 | 0,009 | 0,021 |
a) IC95%: Intervalo de confiança de 95%; b) β: Coeficiente beta da regressão, indicando a variação da letalidade em pontos percentuais (p.p.) ao ano.
No que concerne às gestações de risco habitual, as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste acompanharam a tendência de aumento da letalidade hospitalar após partos vaginais, no âmbito nacional, no período de estudo. Na região Norte, igualmente, observou-se elevação da letalidade por essa via de parto, de 1,3 óbito por 10 mil internações, em 2010, para 2,8 por 10 mil em 2019 (média de 2,3 no período; IC95% 1,2;3,5), enquanto, na região Nordeste, a elevação foi de 1,4 (2010) para 2,1 (2019) e a média de 1,5; IC95% 1,3;1,8. Na região Centro-Oeste, houve aumento da letalidade materna, de 1,0 por 10 mil internações para parto (2010) para 1,6 (2019), e média de 1,3 (IC95% 0,9;1,6) por 10 mil. Na região Sudeste, o indicador que era de 0,9 em 2010, passou a 1,7 em 2019, com média de 1,1 (IC95% 0,9;1,4). Na região Sul, que já exibia valores mais baixos, a letalidade hospitalar manteve-se estável ao longo de todo o período.
Em relação às gestações de alto risco, a letalidade após cesarianas no Brasil, que era de 10,5 óbitos por 10 mil internações para parto, em 2010, reduziu-se para 7,0 por 10 mil em 2019, com média de 9,2 (IC95% 8,5;9,9) no período (Tabela 3). Apesar da redução, a maior letalidade após o parto no período, no Brasil e em todas as suas regiões, continua sendo para as gestações de alto risco e após parto via cesariana (Tabela 3 e Figura 1).
Ano | Gestações de alto risco | ||||||||||||||||
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Brasil | Norte | Nordeste | Sudeste | Sul | Centro-Oeste | ||||||||||||
Cesariana | Vaginal | Cesariana | Vaginal | Cesariana | Vaginal | Cesariana | Vaginal | Cesariana | Vaginal | Cesariana | Vaginal | ||||||
2010 | 10,5 | 4,1 | 16,7 | 9,6 | 10,9 | 3,8 | 9,8 | 3,5 | 6,9 | 5,7 | 9,5 | 0,0 | |||||
2011 | 9,7 | 3,2 | 9,8 | 0,0 | 10,6 | 3,5 | 9,1 | 3,5 | 7,6 | 2,0 | 10,4 | 8,3 | |||||
2012 | 8,8 | 4,4 | 11,4 | 5,9 | 9,2 | 4,6 | 7,8 | 4,1 | 6,8 | 0,0 | 14,0 | 15,3 | |||||
2013 | 9,4 | 3,9 | 9,1 | 4,4 | 12,1 | 3,8 | 8,1 | 4,4 | 1,2 | 1,9 | 13,8 | 4,5 | |||||
2014 | 9,3 | 2,5 | 9,8 | 4,6 | 10,7 | 2,1 | 8,6 | 2,7 | 2,4 | 0,0 | 16,1 | 8,5 | |||||
2015 | 8,7 | 4,1 | 5,2 | 3,6 | 12,1 | 4,7 | 7,6 | 3,8 | 2,6 | 1,2 | 13,9 | 10,5 | |||||
2016 | 10,3 | 4,1 | 12,7 | 3,0 | 11,6 | 6,0 | 9,6 | 2,8 | 6,0 | 2,8 | 13,4 | 7,3 | |||||
2017 | 9,5 | 5,6 | 11,7 | 22,9 | 9,7 | 6,7 | 10,4 | 3,0 | 3,9 | 2,5 | 9,5 | 0,0 | |||||
2018 | 8,4 | 6,9 | 12,7 | 10,3 | 11,8 | 13,8 | 6,1 | 2,7 | 3,7 | 0,7 | 8,7 | 8,1 | |||||
2019 | 7,0 | 6,6 | 13,4 | 10,1 | 8,4 | 8,5 | 5,6 | 6,5 | 2,2 | 1,8 | 10,4 | 5,6 | |||||
Média | 9,2 | 4,5 | 11,2 | 7,4 | 10,7 | 5,7 | 8,3 | 3,7 | 4,3 | 1,9 | 12,0 | 6,8 | |||||
IC95%a | 8,5;9,9 | 3,5;5,5 | 9,1;13,4 | 2,9;12,0 | 9,8;11,6 | 3,3;8,2 | 7,2;9,4 | 2,9;4,5 | 2,7;5,9 | 0,7;3,0 | 10,1;13,8 | 3,5;10,1 | |||||
βb | -0,29 | 0,31 | -0,09 | 0,99 | -0,06 | 0,78 | -0,32 | 0,13 | -0,45 | -0,27 | 0,08 | -0,07 | |||||
p-valor | 0,004 | 0,050 | 0,853 | 0,122 | 0,680 | 0,048 | 0,160 | 0,558 | 0,018 | 0,403 | 0,878 | 0,915 |
a) IC95%: Intervalo de confiança de 95%; b) β: Coeficiente beta da regressão, indicando a variação da letalidade em pontos percentuais (p.p.) ao ano.
Em relação às macrorregiões, o Sul foi a única a apresentar redução significativa da letalidade materna hospitalar pós-parto, após cesariana de gestações de alto risco, passando de 6,9 óbitos por 10 mil internações, em 2010, para 2,2 em 2019 (p-valor = 0,018). A região Centro-Oeste foi onde se observou a maior letalidade hospitalar entre as mulheres com alto risco gestacional, especialmente após cesarianas: 12,0 (IC95% 10,1;13,8), uma média superior à média nacional e às do Sudeste e do Sul. A propósito, a região Sul foi a que apresentou a menor letalidade hospitalar para gestações de alto risco no Brasil, após cesarianas (4,3; IC95% 2,7;5,9), ou após parto vaginal (1,9; IC95% 0,7;3,0).
Em relação à letalidade hospitalar após partos vaginais de alto risco, a medida nacional foi de 4,1 óbitos por 10 mil internações, em 2010, e de 6,6 em 2019, com média de 4,5 (IC95% 3,5;5,5) no período. O Nordeste foi a única região com tendência de aumento, tendo passado de 3,8 (2010) para 8,5 óbitos por 10 mil internações para parto (2019), com média de 5,7 (IC95% 3,3;8,2).
Ao se comparar a letalidade hospitalar pós-parto média por risco gestacional no Brasil, entre 2010 e 2019, ela foi maior em gestantes de alto risco, após parto via cesariana (9,2; IC95% 8,5;9,9) e parto vaginal (4,5; IC95% 3,5;5,5), seguindo-se as gestações de risco habitual após cesarianas (3,2; IC95% 2,9;3,6); e a menor letalidade hospitalar materna foi identificada após parto vaginal em gestantes de risco habitual (1,5; IC95% 1,1;1,8). Este padrão nacional foi semelhante ao verificado nas regiões Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste, cujas médias de letalidade variaram de 2,9 a 3,3 óbitos por 10 mil internações para parto via cesariana, e de 1,1 a 1,5 óbito por 10 mil internações para parto vaginal, entre gestantes de risco habitual; nessas mesmas regiões, para partos de alto risco gestacional, as médias de letalidade variaram de 8,3 a 12,0 óbitos por 10 mil internações para parto via cesariana, e de 3,7 a 6,8 óbitos por 10 mil internações para parto vaginal. Por sua vez, na região Sul, as gestantes de alto risco e cujo parto foi cesariano foram as que apresentaram maior letalidade pós-parto (4,3; IC95% 2,7;5,9), seguidas - na mesma região Sul - das gestantes com risco habitual e parto via cesariana (3,1; IC95% 2,6;5,9). Na região Sul, a maior letalidade ocorreu após partos cesarianos, independentemente do risco gestacional, e as menores medidas, após o parto vaginal, igualmente sem diferenças significativas de acordo com o risco gestacional. Na região Norte, houve diferença estatisticamente significativa apenas quanto aos óbitos após cesarianas de alto risco (11,2; IC95% 9,1;13,4), cuja letalidade foi maior quando comparada à letalidade após partos vaginais e cesarianos de risco habitual.
Discussão
Neste estudo, verificou-se tendência de aumento da letalidade hospitalar após o parto vaginal de gestantes de risco habitual, ademais de redução da letalidade após parto cesariano de mulheres de alto risco gestacional, no Brasil, entre 2010 e 2019. As gestações de alto risco evidenciaram as maiores taxas de letalidade no país, independentemente da via de parto. A análise segundo macrorregiões mostrou que o Sul foi a única região nacional a apresentar redução da letalidade materna hospitalar entre as gestantes de alto risco que realizaram parto via cesariana.
A tendência de aumento da letalidade materna após o parto em gestações de risco habitual encontrada no estudo não foi concordante com os dados de mortalidade materna publicados no mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde,3 que considera os óbitos durante a gestação e até 42 dias após o parto. Na consulta ao boletim citado, observa-se uma tendência decrescente da mortalidade materna entre 1990 e 2019, com redução da declínio a partir de 2001. Pode-se sugerir que, apesar da redução da mortalidade durante a gestação e puerpério tardio (até 42 dias), ocorreu um aumento no número de óbitos maternos logo após o parto, ainda durante a internação hospitalar, caracterizando a letalidade hospitalar pós-parto avaliada neste estudo. Os primeiros dias do puerpério correspondem ao período em que ocorre o maior número de hemorragias pós-parto, sendo esta a principal causa de morte materna no mundo nos últimos 25 anos.12 Óbitos por hemorragia pós-parto estão fortemente relacionados a problemas no manejo obstétrico da hemorragia e disfunções organizacionais/estruturais no hospital-maternidade, contribuindo para o atraso no manejo do sangramento puerperal.13 Evidencia-se a importância da incorporação de protocolos que previnam a hemorragia pós-parto no Brasil, como forma de reduzir a morte materna no puerpério precoce.
Entretanto, destaca-se que, para atingir a meta de redução da mortalidade materna pactuada pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) até 2015, o Ministério da Saúde, em 2008, intensificou a vigilância do óbito materno, a fim de melhorar as informações sobre as causas de morte entre puérperas.14 Foram definidas diretrizes, como a descentralização das ações de vigilância de óbito e a atuação integrada e articulada da vigilância e da assistência das três instâncias de gestão do SUS.15 A partir da investigação e do uso de fatores de correção, o Brasil apresentou um aumento de óbitos entre mulheres em idade fértil da ordem de 26%, em 2009, e de 29% em 2017.14 Ressalta-se que um aumento no número de óbitos no período pode ser influenciado por melhorias no registro e não apenas por piores resultados maternos. De qualquer forma, o país não atingiu a meta de redução da mortalidade materna acordada para 2015, alcançando um valor muito superior (62 óbitos maternos por 100 mil NVs) ao estipulado nos ODM, de 35,8 por 100 mil NVs.14
Ao contrário das gestações de risco habitual no Brasil, os óbitos relacionados às gestações de alto risco apresentaram estabilidade no período estudado, considerando-se os partos vaginais; e redução, considerando-se os partos cesarianos. Em concordância com o dado observado, o ministério publicou nota relatando que a assistência pré-natal e puerperal oferecida pelo SUS tem levado a uma redução do número de óbitos maternos por hipertensão arterial, hemorragia e síndromes infecciosas, patologias muitas vezes relacionadas a gestações de alto risco.16
Além disso, a região Sul foi a única a ter redução da letalidade hospitalar em algum subgrupo estudado, dentro do grupo de cesarianas de alto risco. Os três estados pertencentes ao Sul estão entre os cinco com maior índice de desenvolvimento humano (IDH) do país,17 o que pode ter contribuído para uma melhor assistência ao parto e puerpério naquela região. Em consonância com esse achado, um estudo realizado na Suíça, país com o 3º melhor IDH do mundo,18 também encontrou redução da mortalidade após cesarianas, no período entre 2005 e 2014.19
As diferenças entre as macrorregiões observadas neste estudo foram acentuadas. Na região Nordeste, houve aumento da letalidade nas internações de gestantes que realizaram parto vaginal, independentemente do risco gestacional, enquanto, na região Sul, observou-se redução da letalidade de gestantes de alto risco submetidas a cesariana. Um estudo de avaliação da RMM realizado no Brasil, no período entre 1997 e 2012, encontrou aumento na região Nordeste e diminuição na região Sul, durante aqueles anos.20 Nesse contexto, sugere-se que as diferenças socioeconômicas e de qualidade da assistência ao parto entre as regiões são importantes influenciadores da mortalidade materna. O Nordeste apresenta o maior percentual de analfabetismo21 entre as cinco regiões, e seus municípios, alguns dos piores índices de vulnerabilidade socioeconômica do país,22 além do que, habitantes de regiões menos desenvolvidas tendem a ter maior dificuldade de acesso e utilização dos serviços de saúde.23
As maiores letalidades pós-parto ocorreram após cesarianas de gestações de alto risco. Em se tratando do risco gestacional, o Ministério da Saúde considera as consequências da gravidez de alto risco como algumas das principais causas de morte materna no mundo.1 É fato que gestações de alto risco aumentam as taxas de cesarianas, principalmente em casos de risco iminente de morte materna. Contudo, ressalta-se que a gestação de alto risco não é indicação absoluta de parto cesariano e, portanto, o profissional encarregado de auxiliar o parto deve avaliar previamente as condições da mulher. Dependendo de cada caso, é possível aguardar o início do parto espontâneo ou realizar indução por via vaginal.24
As gestantes de alto risco apresentaram maior letalidade hospitalar pós-parto do que as gestantes de risco habitual, independentemente da via de parto. Apesar da indicação de monitoramento mais frequente durante o pré-natal de alto risco,1 presume-se que nem todas as condições sejam adequadamente controladas, permanecendo um risco aumentado de complicações e óbitos para as mulheres com condições preexistentes. O Sul foi o único a expressar um padrão diferente do Brasil: naquela região, as gestantes de risco habitual submetidas a cesariana tiveram a segunda maior letalidade após o parto. O pré-natal realizado no Sul do país é considerado três vezes mais acessível, comparado ao mesmo serviço prestado nas demais regiões brasileiras, e apresenta os maiores níveis de orientação às gestantes sobre os riscos gestacionais.25 Dessa forma, sugere-se que, na região mais meridional do Brasil, a maior qualidade da assistência pré-natal, aliada à maior escolaridade da população, pode ter facilitado o controle de comorbidades entre as gestantes, reduzindo os óbitos por doenças e destacando os óbitos decorrentes do procedimento cirúrgico.
O estudo também apontou um risco maior para a mulher ir a óbito quando a via de parto foi a cesariana, na comparação com o parto vaginal, independentemente do risco gestacional. No entanto, ressalta-se que a maior ocorrência de óbito após cesariana pode estar associada à indicação do parto cirúrgico e não diretamente ao procedimento, uma vez que condições de sofrimento materno-fetal agudo podem determinar a escolha da cesariana como a forma mais rápida de resolver a condição.1 Todavia, o parto cesariano aumenta o risco de infecção cirúrgica em cinco vezes, sendo a sepse uma das maiores causas de morte materna no mundo, com aumento do risco de morte em 3,5 vezes.26 Uma coorte brasileira também relacionou o excesso de cesarianas a um maior risco de desfechos desfavoráveis para a puérpera: risco 56% maior de complicações precoces, 79% maior de infecção urinaria, e 2,98 vezes mais chances de infecção pós-parto.5 Uma revisão sistemática, realizada na América Latina, encontrou maior risco de óbito após cesarianas, frente ao parto vaginal [odds ratio (OR) de 1,6 para 7,08].6 No Brasil, a popularização da cesariana faz com que o parto cirúrgico em mulheres com risco obstétrico habitual chegue a mais de 45,5%.27 A cesariana é uma opção importante na obstetrícia, principalmente em condições de emergências obstétricas que necessitam de uma resolução rápida da gestação, e em condições nas quais o parto vaginal está contraindicado; entretanto, por ser um procedimento cirúrgico e dado o risco de complicações, o parto via cesariana deve-se realizar mediante indicações patológicas adequadas.28
Como limitações deste estudo, cumpre mencionar aquelas inerentes ao uso de dados secundários, influenciados pela qualidade do registro feito pelo profissional que realizou o atendimento, ao caracterizar e registrar o risco gestacional e a via de parto. Ademais, por se tratar de um estudo ecológico, há um propósito exploratório a partir de dados agregados, sem que uma relação de causa-efeito possa ser definida. Ressalta-se que foram avaliados os óbitos de mulheres durante a internação para o parto, ou seja, em nível hospitalar. Dessa forma, o estudo não reflete a totalidade dos óbitos maternos decorrentes de trabalhos de parto, principalmente aqueles realizados em ambientes inseguros e/ou sem assistência médica adequada, embora estes representem cerca de 0,6% dos partos.29
Importante destacar que foram avaliados os óbitos maternos ocorridos após o parto e tão somente durante o tempo de internação hospitalar, não englobando os 42 dias de pós-parto avaliados no indicador de mortalidade materna da OMS. Além disso, não foram contabilizados óbitos maternos após abortamento ou outras causas não registradas no sistema como decorrentes de internação para parto, tampouco foram avaliados os dados específicos do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). Assim, os dados aqui apresentados não são totalmente comparáveis às RMMs, estas, de fato, mais exploradas na literatura científica, limitando a relação com as evidências sobre o assunto. Finalmente, o baixo número de publicações sobre a letalidade materna decorrente do parto segundo o risco gestacional fortalece a contribuição deste estudo para a compreensão da atenção à saúde da mulher no momento do parto. No sentido de aprimorar os dados relativos ao óbito materno no pós-parto imediato, sugere-se, como próxima etapa, o cálculo das taxas de mortalidade a partir da vinculação dos dados do SIH/SUS com os de outros sistemas de informações em saúde, a exemplo do SIM e do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc).
Este estudo mostra uma tendência de aumento da letalidade hospitalar pós-parto de gestantes de risco habitual que realizaram parto vaginal no Brasil, no período entre 2010 e 2019. Disparidades regionais foram observadas, principalmente da região Sul, comparada às demais. As gestações de alto risco apresentaram as maiores letalidades no Brasil, com a maior proporção ocorrendo após cesarianas.