Principais resultados
Pessoas do sexo feminino vivendo com aids de raça/cor da pele preta/parda e/ou residentes em distritos sanitários de maior vulnerabilidade social tiveram maiores taxas de APVPs, sugerindo o impacto de desigualdades raciais na mortalidade precoce no contexto da aids.
Introdução
Mundialmente, doenças relacionadas à aids são as principais causas de morte de pessoas do sexo feminino em idade reprodutiva, ou de gestantes e puérperas.1 No Brasil, 49% dos óbitos femininos, em 2017, aconteceram na faixa etária dos 25 a 39 anos de idade,2 implicando perda de potenciais anos de vida dessa população.
Em 2018, na cidade de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, registrou-se uma taxa de mortalidade por aids de 24 óbitos por 100 mil habitantes, superando em cinco vezes o indicador nacional.2 Desde 2007, Porto Alegre apresenta elevação persistente das taxas de mortalidade de mulheres relacionada à aids,3,4 situando-se entre as capitais com as maiores taxas, especialmente entre mulheres de 30 a 39 anos.5
Apesar das evidências da elevada carga de doença relacionada à aids nas mulheres,1 são poucos os estudos dedicados a investigar os anos potenciais de vida perdidos (APVPs) nesse segmento da população,6-9 estudos propostos a investigar o número de anos que determinada população deixa de viver se morrer prematuramente, por determinada causa.10 Um deles, realizado na Tanzânia, sobre causas da mortalidade precoce, evidenciou que a aids foi responsável pelo maior número de APVPs, inclusive com aumento desse indicador entre 2006 e 2015, e que mulheres tiveram mais APVPs por essa causa do que homens.6 Na Letônia, um dos países do Leste Europeu com maiores taxas de mortalidade por aids, investigação dos APVPs no período de 1991 a 2001 não identificou diferenças entre homens e mulheres ou maiores taxas entre usuários de drogas injetáveis e imigrantes.7 No Brasil, um estudo de análise dos APVPs por aids, referente ao período 1985-2006, explorou a associação da mortalidade precoce com indicadores de vulnerabilidade social e baixa escolaridade em mulheres residentes no estado de São Paulo, não encontrando evidências suficientes para sugerir que as vulnerabilidades impactam na diminuição dos anos potencias de vida dessa população.8 Em Pernambuco, estudo sobre APVPs por aids entre 1996 e 2005 apontou que o aumento dos anos potenciais de vida perdidos por aids decorre da expansão da epidemia em regiões de maior urbanização, onde o acesso desigual aos serviços de saúde e os determinantes sociais presentes podem influenciar no indicador.9
A análise dos APVPs, ao captar a mortalidade prematura de forma mais precisa, assim como desigualdades econômicas e sociais relacionadas, pode contribuir para a avaliação das condições e da situação de saúde da população.
O objetivo do estudo foi descrever os APVPs por aids na população do sexo feminino residente em Porto Alegre/RS, Brasil, e analisar sua possível associação com indicadores de vulnerabilidade social, conforme os distritos sanitários de saúde da maior capital do Sul do Brasil. Este estudo foi publicado em versão preprint.11
Métodos
Delineamento
Trata-se de um estudo descritivo, fundamentado em dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) da vigilância epidemiológica de Porto Alegre.
Contexto
Porto Alegre, de acordo com o Censo Demográfico de 2010, somava 1.409.351 habitantes, com predominância do sexo feminino: 53% (755.564).12 A cidade apresenta persistente crescimento na taxa de mortalidade relacionada a aids entre mulheres, desde o ano de 2007, refletida em taxa que a destaca entre as demais capitais brasileiras.2 A estrutura dos serviços de saúde de Porto Alegre, em 2017, era composta por 146 unidades básicas de saúde (UBS), quatro serviços de atendimento especializado para pessoas com HIV/aids e um centro de testagem e aconselhamento para a população geral.13 Como unidades de análise do estudo em tela, foram considerados os 17 distritos sanitários do município: Ilhas, Humaitá-Navegantes, Centro, Noroeste, Norte, Eixo Baltazar, Leste, Nordeste, Glória, Cruzeiro, Cristal, Sul, Centro-Sul, Partenon, Lomba do Pinheiro, Restinga e Extremo Sul.
Fonte de dados e mensuração
Os dados de óbito foram extraídos do SIM, fornecido pela vigilância epidemiológica - Diretoria de Vigilância em Saúde/Secretaria Municipal da Saúde de Porto Alegre. Informações sobre raça/cor de pele (branca ou negra) foram extraídas dos registros da Declaração de Óbito (DO). Foram considerados os óbitos cuja causa básica foi registrada como relacionada a aids, de acordo com o código B20-24, definido pela 10ª Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10: B20-24). Informações sobre a população residente no município e por distrito sanitário de saúde (DS) foram obtidas de levantamentos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre o ano de 2010.12
Participantes
Foram analisados os registros de óbito da população do sexo feminino com idade entre 15 e 75 anos, residente em Porto Alegre, que teve aids como causa básica, entre os anos de 2007 e 2017. Considerou-se uma expectativa de vida ao nascer de 77,6 anos (2010).12 A definição de 75 anos de idade como limite máximo de expectativa de vida foi considerada pelo fato de esse valor aproximar-se da estimativa de vida ao nascer, sendo excluídos os maiores de 75 anos.4,8,9 O estudo abordou a população feminina maior de 15 anos de idade; aquelas com idade inferior foram excluídas, porque o indicador não é sensível a essa faixa etária.14
Variáveis
As variáveis de estudo foram: índice de vulnerabilidade social (IVS) do DS; caracterização dos casos (faixa etária; raça/cor da pele); e APVPs, considerando-se o período de análise (2007-2017). Foram consideradas as categorias de raça/cor da pele branca e preta/parda, sendo esta última resultado do agrupamento das duas categorias, conforme recomendações do IBGE.15 As idades foram agrupadas por faixas etárias de cinco anos (15-19; 20-24; 25-29; 30-34; 35-39; 40-44; 45-49; 50-54; 55-59; 60-64; 65-69; 70-75). O IVS de cada DS foi calculado adotando-se a metodologia do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),16 baseada em 16 indicadores descritos no Atlas da Vulnerabilidade Social nos Municípios Brasileiros, contemplando as seguintes dimensões: infraestrutura urbana; capital humano; renda e trabalho. Cada dimensão é formada por indicadores que recebem pesos ponderados, e a média aritmética das três dimensões compõe o IVS.16 Para os DS de Porto Alegre, foram consideradas: “baixa vulnerabilidade”, valores de 0,000 a 0,200; “média vulnerabilidade”, valores de 0,201 a 0,300; e “alta vulnerabilidade”, valores de 0,301 a 0,500. As taxas de APVPs por cada 1 mil pessoas do sexo feminino foram calculadas de acordo com o DS de ocorrência do óbito, dividido pela população do sexo feminino residente no mesmo DS, na faixa etária estudada.
Controle de viés
Considerando-se que duas populações com causas de mortalidade diferentes podem produzir números absolutos de APVPs similares, mesmo que apresentem diferentes tamanhos populacionais, foram calculados tanto o número absoluto quanto o número relativo de APVPs, representado por sua taxa, para se obter um panorama mais completo do desfecho investigado. Visando realizar comparações entre as unidades de análise, nos diferentes anos, foram utilizadas taxas de APVPs padronizadas por idade, reduzindo-se assim a influência das diferentes estruturas etárias.17
Métodos estatísticos
As frequências absolutas e relativas foram aferidas considerando-se as variáveis de interesse (IVS, raça/cor da pele e APVPs). O cálculo do valor absoluto dos APVPs de cada período estudado (2007; 2017; 2007 a 2017) foi realizado multiplicando-se o número de óbitos em cada faixa etária pelo número de anos restantes de vida, considerando-se o limite máximo de 75 anos. O total de APVPs foi obtido pela soma dos APVPs em cada faixa etária, com a aplicação da seguinte fórmula:
em que ai representa a diferença entre o limite de idade (75 anos) e o ponto médio de idade em cada faixa etária (2,5), assumindo-se uma distribuição uniforme de óbitos em cada grupo; e di é o número de óbitos por aids na mesma faixa etária.
Para calcular as taxas de APVPs por 1 mil pessoas do sexo feminino, utilizou-se a razão obtida pela soma dos APVPs por faixa etária dividida pelo número total de habitantes da mesma faixa etária multiplicado por 1 mil. A média de APVPs foi calculada como o resultado da divisão do total de APVPs pelo número de óbitos analisados, para se conhecer a idade média em que ocorreram os óbitos. E, para calcular os mesmos indicadores conforme o DS, considerou-se a população e o número de óbitos de cada distrito sanitário nos anos investigados.
Realizou-se análise de correlação de Pearson para aferir possíveis associações das taxas de APVPs com (i) os níveis de IVS e (ii) a proporção de pessoas do sexo feminino pretas nos DS. A tabulação dos dados e o cálculo dos indicadores foram realizados utilizando-se os aplicativos Microsoft Excel e Statistical Package for the Social Sciences (SPSS 2.0).
Aspectos éticos
Este trabalho integra um estudo maior, intitulado Indicadores espaço-temporais e fatores de risco associados à mortalidade em mulheres vivendo com HIV, aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos [CEP/Unisinos: Parecer nº 3.233.242, aprovado em 29 de março de 2019; Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 06210919.7.0000.5344] e da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre (CEP/SMSPA: Parecer nº 3.281.948, aprovado em 24 de abril de 2019; CAAE nº 06210919.7.3001.5338).
Resultados
Entre os anos de 2007 e 2017, foram registrados 1.603 óbitos de pessoas do sexo feminino residentes na cidade de Porto Alegre que tiveram como causa básica a aids. Foram excluídos 14 registros de pessoas com idade inferior a 15 anos, 18 pessoas com idade superior a 75 anos, e mais 4 registros de pessoas da raça/cor da pele amarela/indígena. Exclusões por dados faltantes relativos a idade, raça/cor da pele e distrito sanitário somaram 32. A amostra final foi composta de 1.539 registros de óbito (Figura 1).

Figura 1 Processo de seleção dos óbitos por aids na população do sexo feminino residente em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 2007-2017
Os óbitos por aids foram mais frequentes na população feminina da faixa etária de 40 a 44 anos (n = 259; 16,8%), de raça/cor de pele branca (n = 839; 54,5%). Pessoas de raça/cor da pele preta/parda representaram 45,5% (n = 700). Para o período, foram estimados 51.075 APVPs por aids na população de estudo. A taxa de APVPs por aids foi de 86,5 por cada 1 mil pessoas do sexo feminino - média de 32,5 APVPs. Quando compradas às brancas, com 54,4 APVPs/1 mil (média de 32,0 APVPs), as pessoas pretas/pardas apresentaram uma taxa de APVPs maior, de 200,3 APVPs/1 mil (média de 33,4 APVPs) (Tabelas 1 e 2).
Tabela 1 Número absoluto, percentual, taxa e média de anos potenciais de vida perdidos por aids de pessoas do sexo feminino (n = 1.539) residentes em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 2007-2017
Características | Total (2007-2017) | 2007 | 2017 | |||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Óbitos (%) | APVPsa | Taxa de APVPsa | Média de APVPsa | Óbitos (%) | APVPsa | Taxa de APVPsa | Média de APVPsa | Óbitos (%) | APVPsa | Taxa de APVPsa | Média de APVPsa | |||
Faixa etária (em anos) | ||||||||||||||
15-19 | 15 (1,0) | 862,5 | 16,5 | 57,5 | - | - | - | - | 2 (1,6) | 115,0 | 2,2 | 57,5 | ||
20-24 | 65 (4,2) | 3.570,0 | 58,9 | 52,5 | 2 (1,3) | 105,0 | 1,7 | 52,5 | 2 (1,6) | 105,0 | 1,7 | 52,5 | ||
25-29 | 149 (9,5) | 7.077,5 | 104,2 | 47,5 | 24 (15,8) | 1.140,0 | 16,8 | 47,5 | 8 (6,2) | 380,0 | 5,6 | 47,5 | ||
30-34 | 225 (14,5) | 9.647,5 | 155,7 | 42,5 | 28 (18,4) | 1.190,0 | 19,2 | 42,5 | 12 (9,3) | 510,0 | 8,2 | 42,5 | ||
35-39 | 246 (15,9) | 9.337,5 | 180,7 | 37,5 | 21 (13,8) | 787,5 | 15,2 | 37,5 | 19 (14,7) | 712,5 | 13,8 | 37,5 | ||
40-44 | 259 (16,8) | 8.677,5 | 172,3 | 32,5 | 33 (21,7) | 1.072,5 | 21,3 | 32,5 | 26 (20,2) | 845,0 | 16,8 | 32,5 | ||
45-49 | 184 (11,9) | 5.115,0 | 92,0 | 27,5 | 20 (13,2) | 550,0 | 9,9 | 27,5 | 20 (15,5) | 550,0 | 9,9 | 27,5 | ||
50-54 | 163 (10,7) | 3.780,0 | 70,8 | 22,5 | 10 (6,6) | 225,0 | 4,2 | 22,5 | 15 (11,6) | 337,5 | 6,3 | 22,5 | ||
55-59 | 99 (6,4) | 1.767,5 | 37,9 | 17,5 | 8 (5,3) | 140,0 | 3,0 | 17,5 | 7 (5,4) | 122,5 | 2,6 | 17,5 | ||
60-64 | 63 (4,1) | 812,5 | 21,4 | 12,5 | 4 (2,6) | 50,0 | 1,3 | 12,5 | 9 (7,0) | 112,5 | 3,0 | 12,5 | ||
65-69 | 46 (3,1) | 360,0 | 12,6 | 7,5 | 1 (0,7) | 7,5 | 0,3 | 7,5 | 4 (3,1) | 30,0 | 1,1 | 7,5 | ||
70-75 | 25 (1,7) | 67,5 | 2,9 | 2,5 | 1 (0,7) | 2,5 | 0,1 | 2,5 | 5 (3,9) | 12,5 | 0,5 | 2,5 | ||
Total | 1.539 (100,0) | 51.075,0 | 86,5 | 32,5 | 152 (100,0) | 5.270,0 | 8,9 | 34,7 | 129 (100,0) | 3.832,5 | 6,5 | 29,7 | ||
Raça/cor da pele | ||||||||||||||
Branca | 53,4 | 26.842,5 | 54,4 | 32,0 | 57,2 | 2.862,5 | 5,8 | 32,9 | 45,0 | 1.570,0 | 3,2 | 27,1 | ||
Preta/parda | 44,6 | 23.370,0 | 200,3 | 33,4 | 41,5 | 2.342,5 | 20,1 | 37,2 | 51,9 | 2.142,5 | 18,4 | 32,0 |
a) APVPs: Anos potenciais de vida perdidos; b) IVS: Índice de vulnerabilidade social.
Tabela 2 Distribuição dos óbitos e idade média (em anos, por 1 mil) no óbito por aids de pessoas do sexo feminino (n = 1.539) residentes em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 2007-2017
Raça/cor da pele | Óbitos n (%) | Idade média dos óbitos (em anos) | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
2007-2017 | 2007 | 2017 | 2007-2017 | 2007 | 2017 | |
Branca | 839 (54,5) | 87 (57,2) | 58 (45,0) | 43,0 | 42,1 | 48,0 |
Preta/parda | 700 (45,5) | 65 (42,8) | 71 (55,0) | 41,6 | 37,8 | 43,0 |
Total | 1.539 (100,0) | 152 (9,9) | 129 (8,4) | 42,5 | 40,3 | 45,3 |
Foi observada uma redução da média de APVPs entre o primeiro (2007) e o último ano (2017) da série estudada. Em 2007, a idade média do óbito foi de 40,3 anos, passando a 45,3 anos em 2017. Quanto às diferenças do indicador por raça/cor de pele, observou-se, igualmente, aumento da idade média do óbito: em 2017, enquanto a idade média do óbito foi de 43 anos entre as pessoas pretas/pardas, a idade média dos óbitos entre as brancas foi de 48 anos de idade (Tabela 2).
Na análise dos APVPs, segundo o DS, foram observadas taxas mais elevadas nos DS Cruzeiro (220,9 APVPs/1 mil), Lomba do Pinheiro (175,5 APVPs/1 mil) e Restinga (168,3 APVPs/1 mil). Nestes territórios, a idade média dos óbitos foi de 42 anos. Os DS de Ilhas (0,48), Nordeste (0,33), Lomba do Pinheiro (0,31) e Restinga (0,31) apresentaram maior IVS, e seus valores para APVPs foram maiores quando comparados aos APVPs nos DS com menor IVS (Tabela 3). A análise bivariada de Pearson identificou correlação fraca entre as taxas de APVPs dos DS e os níveis de IVS (r = 0,557; p-valor = 0,020), como também entre taxas de APVPs e proporção de pessoas pretas/pardas residentes em cada DS (r = 0,560; p-valor = 0,020). Relação inversa foi observada entre as taxas de APVPs e a proporção de pessoas brancas do sexo feminino (Tabela 4).
Tabela 3 Óbitos por aids (n), idade média dos óbitos, proporção de óbitos segundo raça/cor da pele branca ou preta/parda, taxa média de anos potenciais de vida perdidos por aids de pessoas do sexo feminino e escore de índice de vulnerabilidade social, segundo distritos sanitários, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 2007-2017
Distritos Sanitários | Óbitos por aids no sexo feminino | Taxa média de APVPa (por 1 mil) | IVSb | |||
---|---|---|---|---|---|---|
n | Idade média dos óbitos (em anos) | Raça/cor da pele branca (%) | Raça/cor da pele preta/parda (%) | |||
Cruzeiro | 155 | 41,0 | 53,2 | 46,8 | 220,9 | 0,27 |
Lomba do Pinheiro | 114 | 42,0 | 54,0 | 46,0 | 175,5 | 0,31 |
Restinga | 115 | 42,2 | 42,1 | 57,9 | 168,3 | 0,31 |
Nordeste | 51 | 43,9 | 46,2 | 53,8 | 127,9 | 0,33 |
Glória | 77 | 40,9 | 56,6 | 43,4 | 121,0 | 0,27 |
Humaitá/Navegantes | 69 | 42,8 | 54,4 | 45,6 | 120,2 | 0,25 |
Leste | 163 | 42,1 | 48,2 | 51,8 | 119,3 | 0,25 |
Eixo Baltazar | 110 | 44,1 | 60,9 | 39,1 | 86,8 | 0,15 |
Extremo Sul | 32 | 41,4 | 76,7 | 23,3 | 84,3 | 0,27 |
Ilhas | 8 | 45,0 | 87,5 | 12,5 | 84,1 | 0,48 |
Norte | 96 | 42,2 | 55,2 | 44,8 | 77,4 | 0,26 |
Centro-Sul | 89 | 42,7 | 65,9 | 34,1 | 69,4 | 0,22 |
Cristal | 22 | 39,3 | 70,8 | 29,2 | 60,4 | 0,22 |
Sul | 52 | 42,6 | 77,4 | 22,6 | 46,1 | 0,22 |
Partenon | 174 | 44,1 | 48,6 | 51,4 | 41,4 | 0,25 |
Centro | 136 | 43,0 | 56,2 | 43,8 | 34,4 | 0,17 |
Noroeste | 48 | 44,3 | 65,3 | 34,7 | 25,2 | 0,18 |
Total | 1.511 | 32,5 | 54,5 | 45,5 | 86,5 | - |
a) APVPs: Anos potenciais de vida perdidos; b) IVS: Índice de vulnerabilidade social.
Tabela 4 Coeficientes da correlação entre taxas de anos potenciais de vida perdidos por aids na população do sexo feminino, índice de vulnerabilidade social e proporção populacional por raça/cor da pele, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 2007-2017
Variável | APVPsa r(IC95%)b | p-valor |
---|---|---|
IVSc | 0,557 (0,154;0,874) | 0,020 |
População feminina branca (%) | -0,560 (- 0,812;-0,347) | 0,020 |
População feminina pretas/pardas (%) | 0,560 (0,350;0,796) | 0,020 |
a) APVPs: Anos potenciais de vida perdidos; b) IC95%: Índice de confiança 95%; c) IVS: Índice de vulnerabilidade social.
Quando os DS foram agrupados segundo níveis do IVS, observou-se que a média das taxas do APVPs por aids, na categoria de distrito sanitário com menor nível de IVS, foi de 48,8 anos perdidos por 1 mil pessoas do sexo feminino, enquanto a taxa média de APVPs no grupo de DS com média vulnerabilidade social foi de 103,8 anos perdidos/1 mil, e no grupo de DS com maior IVS, de 138,9 APVPs/1 mil. A taxa média de APVPs na categoria de distritos com alta vulnerabilidade social foi 185% superior à taxa média de APVPs observada na categoria de distritos com menor nível de IVS (Figura Suplementar 1).
Discussão
O estudo evidenciou redução dos APVPs por aids entre o primeiro e o último ano da série estudada e, consequentemente, aumento da idade média ao morrer. Entretanto, a idade média do óbito por aids foi menor entre pessoas do sexo feminino pretas/pardas residentes em distritos sanitários de maior vulnerabilidade.
Enquanto o aumento da idade média dos óbitos corrobora os resultados alcançados com a universalização da terapia antirretroviral no Brasil, que acarretou diminuição dos óbitos por aids, este estudo mostra que o impacto dessa medida foi diferente para a população feminina preta/parda, possivelmente devido às iniquidades sociais e falhas assistenciais.18 Destaca-se que, mesmo com os avanços das políticas públicas no campo do HIV/aids, em virtude da falta de acesso aos serviços de saúde, especialmente em regiões de maior vulnerabilidade social, onde as condições de vida são precárias, os vetores para o adoecimento e morte são potencializados.19
Torna-se necessário considerar a existência de algumas limitações deste estudo. Por exemplo, a exclusão dos óbitos de pessoas do sexo feminino menores de 15 anos e maiores de 75 anos de idade no cálculo do APVPs pode levar à subestimação desse indicador. Independentemente do baixo número de exclusões, sugerem-se estudos específicos, focados nessas faixas etárias e que abordem essas lacunas. Outra limitação deste trabalho reside nos óbitos por aids subestimados na base de dados do SIM, pois, além do estigma que gera subnotificações, existe uma quantidade considerável de causas externas (suicídio, feminicídio, entre outras) que podem ocultar óbitos. Salienta-se que, embora fosse identificada maior prevalência de óbitos em brancas, isto poderia refletir a estrutura populacional do município, com aproximadamente 79% de residentes autodeclarados brancos, segundo o Censo de 2010.12 Ademais, é preciso lembrar que, como decorrência do racismo estrutural, pessoas negras podem ser mais propensas a ter registro de mortalidade por aids do que pessoas brancas na mesma condição,20 contribuindo para a invisibilidade de ações em saúde que atendam negros, especialmente nas estratégias de prevenção e atenção em HIV/aids.
Observou-se possível impacto do expressivo gradiente social nas condições de saúde das pessoas do sexo feminino investigadas, ou seja: quanto piores foram as condições sociais de determinados DS, maiores foram as taxas de APVPs. Nos DS de Cruzeiro, Lomba do Pinheiro e Restinga, os altos IVS refletem a escassez de recursos e de saneamento básico, sendo ainda esses três DS os que concentram a maior parte da população negra da cidade. Isso foi observado entre pessoas do sexo feminino paulistas, especialmente as adultas jovens, de baixa escolaridade, usuárias de drogas e residentes em regiões de maior vulnerabilidade.8 Tais achados salientam a presença de iniquidades sistemáticas, que potencializam mortes precoces por aids.3
Nesse sentido, a precocidade dos óbitos em pessoas do sexo feminino pretas/pardas pode refletir processos de racismo estrutural, que normalizam a distribuição de privilégios/desvantagens entre os diferentes grupos raciais, resultando em desigualdades de acesso ao diagnóstico e aos cuidados dos serviços de saúde, e nas próprias condições de viver, adoecer e morrer dessas pessoas.21 Análise dos APVPs por aids nos Estados Unidos observou evidências de iniquidades na mortalidade precoce, sendo o impacto na idade média do óbito significativamente maior em pessoas pretas/pardas em relação às brancas.22
O cenário de iniquidades para a população negra no Brasil vincula-se ao racismo estrutural, que determina piores indicadores sociais e de saúde mediante reprodução de desvantagens como forma social naturalizada.23 As pessoas do sexo feminino pretas e pardas experimentam vulnerabilidades que interseccionam sexo e classe social,24,25 pois, quando comparadas às brancas, as pessoas negras também pertencem, em sua maioria, ao grupo de menores escolaridade e renda, que vive em condições de moradia mais precárias e que são, mais frequentemente, as principais responsáveis pela família26 e as mais expostas a diferentes formas de violência.27
Em relação à utilização de serviços de saúde sexual e reprodutiva no país, as pessoas do sexo feminino pretas/pardas são as mais expostas a barreiras individuais e institucionais de acesso aos cuidados, desde a procura pelo serviço até o momento do atendimento,28 sendo também as que mais sofrem negligências graves, a ponto de levá-las à morte.29 No âmbito do HIV/aids, um estudo comparativo entre mulheres pretas e brancas vivendo com HIV, na cidade de São Paulo, apontou várias diferenças que impactavam negativamente nas pretas e pardas, e que incidiam sobre a qualidade do atendimento de saúde recebido.27
Ainda que não se tenha avaliado o fator econômico no presente estudo, as barreiras financeiras podem impactar indicadores como os APVPs. Pessoas do sexo feminino pretas e pardas são as mais expostas à falta de recursos para o transporte, incluindo o acesso à atenção em saúde pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o que acaba por se refletir nas iniquidades em saúde verificadas no país.30 Tais observações reforçam o caráter contextual das vulnerabilidades ao HIV/aids, devendo-se considerar essas características na estruturação do cuidado prestado às mulheres vivendo com HIV, principalmente aquelas mais afetadas pelas desigualdades sociais.
Os achados do presente estudo sugerem a necessidade de desenvolver ações e estratégias de cuidado dirigidas à evitabilidade desses óbitos, especialmente para o sexo feminino. Os resultados encontrados alertam, também, para o alto custo social de mortes precoces, as quais podem potencializar vulnerabilidades diretas aos filhos e familiares, para além da violação do direito humano à vida dessas pessoas. Dada a complexidade de fatores envolvidos, é imprescindível que se ampliem esforços no sentido de minimizar as vulnerabilidades estruturais relacionadas a raça/cor da pele, sexo e classe social, visando reduzir os óbitos por aids e seu impacto no agravamento da situação de saúde da população feminina no Brasil.