Contribuições do estudo
Principais resultados
Um em cada dez indivíduos referiu diagnóstico de depressão na vida. Houve aumento nas prevalências de depressão autorreferida e de busca por atendimento médico para a depressão. Serviços privados foram o principal local de atendimento para depressão.
Introdução
O reconhecimento da importância dos transtornos mentais e do comportamento entre as causas de morbimortalidade da população global resultou na inclusão de temas relacionados à saúde mental e qualidade de vida entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, endossados pela Organização das Nações Unidas (ONU).1 Estimativas do estudo Global Burden of Disease (GBD), de 2019, apontaram que mais de 1 bilhão de pessoas sofriam de transtornos mentais e por abuso e dependência de substâncias no mundo, representando cerca de 6% da carga global de doenças, e mais de 17% dos anos vividos com incapacidade.2 Estima-se, ainda, que mais de 75% das pessoas que apresentam transtornos mentais, incluindo pessoas com condições neurológicas e relacionadas ao uso de drogas, não têm acesso a serviços de saúde mental, especialmente em países de baixa e média renda.3
A depressão é uma das condições que mais contribuem para a carga global das doenças relacionadas à saúde mental. Além de ser uma das principais causas de incapacidade no mundo, a depressão está associada a mortes prematuras por suicídio e por outras doenças crônicas. Dados de 2019 do estudo GBD estimaram que mais de 270 milhões de pessoas apresentavam transtornos depressivos, o que representava, à época, aproximadamente 3,8% da população mundial.2 No Brasil, a prevalência de transtornos depressivos está estimada em 4,3%.2 O componente brasileiro do Estudo Mundial de Saúde Mental (World mental health survey), São Paulo Megacity mental health survey, realizado entre 2005 e 2007, identificou que a prevalência de depressão ao longo da vida e nos últimos 12 meses anteriores à entrevista para todos os estudos foi de 16,9% e 9,4%, respectivamente, entre adultos residentes na Região Metropolitana de São Paulo.4,5
A investigação da prevalência de transtornos depressivos e de sintomas depressivos em diferentes estratos populacionais tem sido realizada a partir de diversos métodos, revelando as múltiplas faces das pesquisas sobre saúde mental, tema complexo e estigmatizado.6 Nesse contexto, as pesquisas que identificam o diagnóstico de transtornos psiquiátricos, por meio de autorrelato dirigido, possibilitam evidenciar não somente a identificação de sintomas por parte dos indivíduos, como também a busca por serviços e o reconhecimento do diagnóstico na rede de assistência em saúde.7 Pesquisas populacionais sobre a prevalência de depressão autorreferida representam um importante recurso para realizar a vigilância de eventos relacionados à saúde mental e fatores associados, e podem contribuir para se conhecer o acesso ao diagnóstico e tratamento, propiciando a possibilidade de desenvolvimento de estratégias mais efetivas de prevenção e atenção às pessoas com estes problemas.
A inclusão da investigação de depressão autorreferida na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) em 2013,7 e a sua manutenção na edição de 2019, representam um importante esforço para acompanhar a evolução desse problema de saúde no conjunto da população brasileira. Nesse sentido, o objetivo deste estudo foi descrever a prevalência de depressão autorreferida na população adulta brasileira na PNS 2019, segundo variáveis sociodemográficas, e comparar com os resultados da PNS 2013.
Métodos
Realizamos um estudo transversal da prevalência de diagnóstico médico de depressão autorreferido no Brasil, empregando dados da PNS das edições de 2019 e 2013. A PNS é um inquérito nacional representativo da população brasileira adulta domiciliada, conduzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde. Os dados são de domínio público, disponíveis no sítio eletrônico do IBGE, e foram extraídos em 10 de abril de 2021. Em 2013, a amostra abrangeu a população com 18 anos ou mais de idade, enquanto em 2019 atingiu a população com 15 anos ou mais de idade, residente em domicílios particulares no Brasil.8
Os participantes foram selecionados por meio de amostragem complexa por conglomerados, em três estágios: estratificação das unidades primárias de amostragem (UPAs), compostas por um ou mais setores censitários e seleção aleatória com probabilidade proporcional ao número de domicílios particulares permanentes existentes nesse(s) setor(es) censitário(s); seleção dos domicílios em cada UPA, a partir da atualização mais recente disponível do Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos, por amostragem aleatória simples; e seleção aleatória simples de um morador com 15 anos de idade ou mais, com base na lista de moradores elaborada no momento da entrevista, sem substituição.
Para a PNS 2019, o tamanho amostral foi calculado com base em indicadores selecionados de sua edição de 2013. De um total de 15.096 UPAs, foram selecionados 108.525 domicílios, com um número esperado de 86.820 entrevistas.8 Mais detalhes sobre o plano amostral, o processo de coleta de dados e ponderação foram publicados por Stopa et al.8 e pelo IBGE.9 Para a PNS 2013, o tamanho amostral foi dimensionado com base em estimativas esperadas de indicadores e coeficientes de variação desejados. De um total de 6.069 UPAs, foram selecionados 81.357 domicílios, considerando-se uma estimativa de perdas esperada de 23%. Detalhes sobre o plano amostral e ponderação da PNS 2013 foram publicados por Damacena et al.10 e Souza-Júnior et al.11
Para este estudo, atentando para as diferenças nas faixas etárias entre as amostras de 2019 e 2013 da PNS, foram incluídos apenas respondentes com 18 anos ou mais de idade, a fim de garantir a comparabilidade das estimativas.
Foram analisados dados relativos à depressão autorreferida, por meio da pergunta: Algum médico ou profissional de saúde mental (como psiquiatra ou psicólogo) já lhe deu o diagnóstico de depressão? (sim; não). Também foram utilizados os dados relativos à última vez que o(a) respondente recebeu atendimento médico para depressão e ao local de atendimento, por meio das perguntas: i) Quando foi a última vez que o(a) Sr.(a) recebeu atendimento médico por causa da depressão? (menos de 6 meses; de 6 meses a menos de 1 ano; de 1 ano a menos de 2 anos; de 2 anos e menos de 3 anos; 3 anos ou mais; nunca recebeu); e ii) Na última vez que recebeu assistência médica para depressão, onde o(a) Sr.(a) foi atendido? [farmácia; unidade básica de saúde (posto ou centro de saúde ou unidade de saúde da família); policlínica pública, PAM (posto de assistência médica) ou centro de especialidades público; UPA (unidade de pronto atendimento); outro tipo de pronto atendimento público (24 horas), pronto socorro ou emergência de hospital público; ambulatório de hospital público; consultório particular, clínica privada ou ambulatório de hospital privado; pronto atendimento ou emergência de hospital privado; no domicílio; outro].
De início foram estimadas as prevalências e intervalos de confiança de 95% (IC95%) em 2019, segundo características sociodemográficas: sexo (masculino; feminino); faixa etária (18 a 29; 30 a 59; e 60 anos e mais); escolaridade (sem instrução e fundamental incompleto; fundamental completo e médio incompleto; médio completo e superior incompleto; superior completo); raça/cor da pele autodeclarada [branca e negra (preta e parda)] e zona de residência (urbana; rural).
Foram processadas análises bivariadas da associação entre depressão autorreferida e características demográficas dos indivíduos, por meio do teste qui-quadrado, considerando nível de significância de 5%. Razões de prevalência brutas de depressão em relação às variáveis demográficas e IC95% foram estimadas por meio de regressão de Poisson, a fim de se avaliarem as diferenças na probabilidade entre estratos das variáveis demográficas. Dados de prevalência entre indivíduos com raça/cor da pele autorrelatada indígena ou amarela não foram apresentados, devido à falta de representatividade da pesquisa para esses grupos.
Por fim, foram comparadas descritivamente, por meio de avaliação das estimativas e seus intervalos de confiança, as prevalências de depressão autorreferida, de atendimento médico para a depressão, nos últimos 12 meses, e a distribuição proporcional dos serviços de saúde utilizados para esse atendimento, em 2013 e 2019.
Todas as análises estatísticas foram realizadas usando o módulo survey do programa Stata, versão 14.2 (StataCorp. 2015. Stata Statistical Software: Release 14. College Station, TX: StataCorp LP), que considera a ponderação para amostras complexas.
Os dados referentes às duas edições da PNS são de acesso público e foram aprovados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, do Conselho Nacional de Saúde, conforme Parecer nº 328.159, para a edição de 2013 e nº 3.529.376, para a edição de 2019.
Resultados
Participaram do estudo 90.846 indivíduos com idade ≥ 18 anos na PNS 2019, e 60.202 na PNS 2013. A prevalência global de depressão autorreferida em adultos domiciliados no Brasil, em 2019, foi de 10,2% (IC95% 9,9;10,6). Entre as regiões brasileiras, a região Sul apresentou a maior prevalência (15,2%; IC95% 14,2;16,2) e, entre os estados, a maior prevalência foi observada no Rio Grande do Sul (17,9%; IC95% 16,2;19,6). As menores prevalências foram observadas na região Norte (5,0%; IC95% 4,4;5,6) e no estado do Pará (4,1%; IC95% 3,0;4,1), conforme consta da Tabela 1.
Macrorregião/Unidade da Federação | na | % | IC95%b |
---|---|---|---|
Norte | 16.937 | 5,0 | 4,4;5,6 |
Rondônia | 2.108 | 9,0 | 7,3;10,7 |
Acre | 2.283 | 6,0 | 4,8;7,2 |
Amazonas | 3.370 | 4,2 | 3,2;5,2 |
Roraima | 2.135 | 5,1 | 3,9;6,3 |
Pará | 3.696 | 4,1 | 3,0;5,2 |
Amapá | 1.473 | 4,5 | 2,4;6,7 |
Tocantins | 1.872 | 6,6 | 5,3;8,0 |
Nordeste | 30.702 | 6,9 | 6,5;7,3 |
Maranhão | 4.889 | 5,4 | 4,7;6,2 |
Piauí | 2.674 | 6,9 | 5,6;8,2 |
Ceará | 4.141 | 8,1 | 7;9,2 |
Rio Grande do Norte | 2.877 | 8,5 | 7,2;9,8 |
Paraíba | 3.068 | 7,6 | 6,3;8,8 |
Pernambuco | 3.992 | 6,8 | 5,7;7,8 |
Alagoas | 2.898 | 6,2 | 5;7,4 |
Sergipe | 2.563 | 8,5 | 7,4;9,7 |
Bahia | 3.600 | 6,3 | 5,3;7,3 |
Sudeste | 19.435 | 11,5 | 10,8;12,2 |
Minas Gerais | 5.128 | 13,7 | 12,1;15,2 |
Espírito Santo | 3.463 | 11,3 | 9,8;12,8 |
Rio de Janeiro | 4.849 | 8,1 | 7,1;9,0 |
São Paulo | 5.995 | 11,8 | 10,6;12,9 |
Sul | 11.276 | 15,2 | 14,2;16,2 |
Paraná | 3.893 | 13,9 | 12,2;15,6 |
Santa Catarina | 3.676 | 13,1 | 11,8;14,5 |
Rio Grande do Sul | 3.707 | 17,9 | 16,2;19,6 |
Centro-Oeste | 10.181 | 10,4 | 9,5;11,3 |
Mato Grosso do Sul | 2.805 | 10,1 | 8,8;11,3 |
Mato Grosso | 2.423 | 8,2 | 6,8;9,5 |
Goiás | 2.648 | 12,0 | 10,3;13,8 |
Distrito Federal | 2.305 | 9,4 | 7,8;11,0 |
Brasil | 88.531 | 10,2 | 9,9;10,6 |
a) Valores não ponderados; b) IC95%: Intervalo de confiança.
Verificaram-se maiores taxas para o ano de 2019 entre as pessoas do sexo feminino (14,7%; IC95% 14,1;15,4; p-valor < 0,001), raça/cor da pele branca (12,5%; IC95% 11,8;13,1; p-valor < 0,001) e residentes da zona urbana (10,7%; IC95% 10,2;11,1; p-valor < 0,001). Em relação à escolaridade, as maiores prevalências foram encontradas entre os indivíduos sem escolaridade ou com ensino fundamental incompleto (10,9%; IC95% 10,3;11,5) e com ensino superior completo (12,2%; IC95% 11,3;13,2). Já em relação à faixa etária, adultos jovens (18 a 29 anos) apresentaram a menor prevalência de depressão (5,9%; IC95% 5,2;6,7; p-valor < 0,001), conforme a Tabela 2.
Variáveis | na | % | IC95%b | RPc | IC95%b | p-valor |
---|---|---|---|---|---|---|
Sexo | ||||||
Masculino | 1.930 | 5,1 | 4,7;5,5 | 1,0 | < 0,001 | |
Feminino | 6.312 | 14,7 | 14,1;15,4 | 2,9 | 2,6;3,1 | |
Faixa etária (anos) | ||||||
18-29 | 836 | 5,9 | 5,2;6,7 | 1,0 | < 0,001 | |
30-59 | 5.040 | 11,3 | 10,8;11,9 | 1,9 | 1,7;2,2 | |
60 e mais | 2.366 | 11,8 | 11,1;12,6 | 2,0 | 1,7;2,3 | |
Escolaridade | ||||||
Superior completo | 1.614 | 12,2 | 11,3;13,2 | 1,0 | < 0,001 | |
Médio completo ou superior incompleto | 2.363 | 9,0 | 8,4;9,6 | 0,7 | 0,7;0,8 | |
Fundamental completo ou médio incompleto | 996 | 9,4 | 8,4;10,4 | 0,8 | 0,7;0,9 | |
Sem instrução ou fundamental incompleto | 3.269 | 10,9 | 10,3;11,5 | 0,9 | 0,8;1,0 | |
Raça/cor da pele | ||||||
Negra (pretos e pardos) | 4.339 | 8,6 | 8,1;9,0 | 1,0 | < 0,001 | |
Branca | 3.796 | 12,5 | 11,8;13,1 | 1,5 | 1,4;1,6 | |
Zona de residência | ||||||
Rural | 1.373 | 7,6 | 7,0;8,3 | 1,0 | < 0,001 | |
Urbana | 6.869 | 10,7 | 10,2;11,1 | 1,4 | 1,3;1,5 |
a) Valores não ponderados; b) IC95%: Intervalo de confiança; c) RP: Razão de prevalência.
Observou-se um aumento da prevalência de depressão autorreferida para todas as categorias das variáveis sociodemográficas analisadas, entre 2013 e 2019, de 7,6% (IC95% 7,2;8,1) para 10,2% (IC95% 9,9;10,6), respectivamente. Esse aumento mostrou-se mais acentuado entre o sexo feminino, raça/cor da pele branca, pessoas com ensino superior completo e residentes na zona urbana (Figura 1).
Observou-se, ainda, um aumento significativo na prevalência de indivíduos que receberam atendimento médico nos últimos 12 meses, de 46,4% (IC95% 43,75;49,1), em 2013, para 52,8% (IC95% 50,7;55,0), em 2019, especialmente entre jovens adultos (18 a 29 anos) e residentes na zona urbana (Figura 2). Entre esses indivíduos, a maioria (47,5%; IC95% 44,7;50,2) utilizou-se de atendimento em consultórios ou clínicas privadas ou ambulatórios de hospitais privados. Entre 2013 e 2019, verificou-se também uma redução nas proporções de indivíduos que receberam atendimento em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e em ambulatórios de hospitais públicos (Figura 3).
Discussão
As análises dos dados das PNS 2013 e 2019 demonstraram maiores prevalências de depressão autorreferida em estados das regiões Sul e Sudeste, e menores nas regiões Norte e Nordeste, bem como um aumento generalizado nas taxas quando comparadas as pesquisas de ambos os anos. Destacam-se as pessoas do sexo feminino, brancas, com ensino superior completo e residentes na zona urbana. Consultórios, clínicas e ambulatórios de hospitais privados corresponderam ao principal local de assistência entre os indivíduos que buscaram atendimento médico, nos 12 meses anteriores à entrevista; por outro lado, as UBS foram o segundo local mais frequente, ainda que com uma redução da proporção de atendimentos realizados nesses locais em 2019.
Considerando-se que este estudo avaliou a prevalência de diagnóstico de depressão autorreferido, e não a prevalência de transtornos depressivos pregressos ou clinicamente manifestos na ocasião da pesquisa, essas diferenças na distribuição das prevalências entre as regiões não necessariamente descrevem a distribuição de indivíduos que apresentam sintomas depressivos. Os dados representam a organização, disponibilidade e acesso dos residentes nas diferentes regiões do Brasil a profissionais e a serviços de saúde mental, bem como a autopercepção de saúde-doença e busca por tratamento, fatores que impactam a possibilidade de diagnóstico.
A elevada prevalência observada na região Sul é compatível com outros estudos,12 possivelmente correlacionada com as elevadas taxas de suicídio e tentativas de suicídio nessa região,13 especialmente no Rio Grande do Sul.14 Além disso, ela pode estar relacionada às diferenças regionais no ordenamento dos serviços e capacitação dos profissionais para atender às demandas em saúde mental.
Fernandes e colaboradores15 avaliaram a cobertura dos Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) no Brasil, demonstrando maiores coberturas nas regiões Sul e Nordeste, onde esses serviços abrangem, respectivamente, 57% e 55% da população, enquanto a região Norte apresentou a menor cobertura, alcançando apenas 35% da população. Cabe assinalar que os CAPS são serviços especializados e que a implementação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS),16 que inclui a atenção primária e serviços de reabilitação, apresenta importantes vazios assistenciais, tanto geográficos quanto dos quadros clínicos/diagnósticos.
Em pesquisa sobre a efetiva implementação da RAPS nas regiões de saúde,17 identificou-se que, das 438 regiões de saúde do Brasil, mais de um terço caracterizam-se pelo baixo desenvolvimento socioeconômico e baixa oferta de serviços. As regiões Norte e Nordeste apresentaram os maiores percentuais de regiões de saúde com menor oferta de serviços,17 o que contribuiu para explicar as menores prevalências de relato de diagnóstico de depressão. No que tange à capacidade das equipes da atenção primária, Gerbaldo et al.18 demonstraram maior rotatividade de profissionais e menores proporções de profissionais que referiram estar preparados para demandas de saúde mental nas regiões Norte e Nordeste, em contraste com as regiões Sudeste e Sul. Além disso, as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste apresentaram piores resultados em todos os indicadores de oferta de cuidado em saúde mental, em contraste com as regiões Sudeste e Sul, o que revela importantes desigualdades da organização e estruturação dos serviços de saúde nessas regiões.
Em relação ao perfil sociodemográfico, a maior prevalência de depressão autorreferida entre o sexo feminino é consistente com as literaturas nacional e internacional,19,20 que apontam as mulheres como duas vezes mais propensas a desenvolver depressão no curso da vida do que os homens. Essas diferenças são associadas a aspectos biológicos (sexo) e socioculturais (gênero) relacionados à identificação de sintomas e busca por ajuda para transtornos psiquiátricos em geral e aos sintomas depressivos, em especial.21,22
No que se refere à escolaridade, maiores prevalências entre pessoas nos extremos das faixas de escolarização são consistentes com a literatura, que aponta maior incidência de transtornos mentais tanto entre indivíduos com baixo nível socioeconômico e educacional23,24 como entre aqueles com maior escolaridade e com maior acesso às informações sobre saúde e aos serviços de saúde privados e conveniados.25,26
A literatura sobre associação entre raça/cor da pele e saúde mental no Brasil é escassa, mas não corrobora o presente estudo, que identificou maior prevalência em pessoas que se autodeclaram brancas. Em artigo de revisão sistemática recente, Smolen e Araújo27 identificaram uma tendência de maior prevalência de transtornos mentais em indivíduos não brancos. Essa diferença entre resultados em estudos sobre raça/cor/etnia e saúde mental tem sido foco de investigação, especialmente na população estadunidense, que identificou que o sofrimento psicológico é mais frequente em negros, apesar de estes não atenderem aos critérios de diagnósticos para depressão maior.28
No Brasil, a autodeclaração de cor/raça/etnia é uma variável complexa, que inclui aspectos genéticos e fenotípicos e, também, psicológicos, socioeconômicos e culturais e, portanto, é afetada por processos de mudança na identificação racial relacionados à melhoria das condições de vida da população negra, envolvendo também diferenças regionais e geracionais.27 Assim, considerando-se que a medida de depressão no presente estudo foi autorreferida, é possível que a população negra, que tem maior proporção de indivíduos com menor escolaridade, renda e acesso a serviços de saúde,25 tenha contribuído para a prevalência de depressão mais elevada entre indivíduos que se autodeclaram brancos.
No que se refere à utilização dos serviços de saúde, o aumento na prevalência de indivíduos com diagnóstico de depressão autorreferido que receberam atendimento médico nos últimos 12 meses, especialmente entre jovens adultos (18 a 29 anos) e residentes na zona urbana, é consistente com dados de estudo brasileiro em coorte de nascimento de adolescentes e adultos jovens, que identificou maiores prevalências de episódio depressivo maior atual em adultos jovens,23 e com trabalhos sobre estudantes universitários,29 reforçando a importância de mais estudos sobre a saúde mental nessa faixa etária.
Considerando-se a escassez de inquéritos de base populacional e de amplitude nacional para avaliação da prevalência de depressão, o presente estudo fornece informações relevantes sobre a distribuição de depressão autorreferida na população brasileira e fatores sociodemográficos relacionados, bem como sobre a disponibilidade e o acesso ao diagnóstico e tratamento na RAPS. Além disso, a comparação com a PNS de 2013 permitiu analisar a prevalência de depressão autorreferida ao longo dos anos.
Contudo, este estudo apresenta limitações que devem ser consideradas. É provável que a restrição de seleção da amostra entre pessoas domiciliadas subestime a prevalência de depressão, uma vez que populações em situação de extrema vulnerabilidade (em situação de rua, deslocadas internas, privadas de liberdade, hospitalizadas etc.) possuem maior risco de serem acometidas por transtornos mentais e sofrimento psicológico e não foram incluídas na amostra. Além disso, a prevalência de depressão autorreferida é um indicador limitado para estimar a prevalência de depressão na população, que idealmente deve ser medida por meio de instrumento diagnóstico padronizado e validado ou avaliação clínica. Nesse sentido, os resultados apresentados não devem ser compreendidos como prevalências de transtornos depressivos na população, devendo ser interpretados à luz das desigualdades no acesso aos serviços de saúde mental no país, determinantes para o acesso ao diagnóstico da depressão.
Questões relacionadas à influência das dimensões psicossociais (gênero, raça/cor/etnia, ciclo de vida, entre outras) na compreensão do processo saúde-doença, na autopercepção de sintomas depressivos e na capacitação dos profissionais de saúde para identificar sintomas psiquiátricos não foram exploradas neste estudo, e podem estar relacionadas à busca e aos tratamentos disponíveis. Nesse sentido, sugere-se que essas questões sejam investigadas em pesquisas sobre o uso dos serviços de saúde.
A utilização de instrumentos de rastreio validados para a identificação de sintomas depressivos, transtornos de ansiedade e transtornos decorrentes do abuso de álcool, em inquéritos populacionais recorrentes, podem melhor estimar a prevalência pontual desses transtornos, reduzindo a incerteza decorrente das variabilidades que cercam o diagnóstico pregresso autorrelatado, monitorando e incrementando a vigilância desses transtornos altamente prevalentes na população geral.
Conclui-se que a depressão se caracteriza como um transtorno altamente prevalente na população brasileira. O aumento das prevalências de depressão autorreferida pode decorrer do incremento da cobertura assistencial no período, dado reforçado pelo crescimento da proporção de indivíduos com diagnóstico de depressão que receberam atendimento médico nos últimos 12 meses anteriores à entrevista. As diferenças demográficas dessas prevalências, por outro lado, chamam atenção para as disparidades no acesso a serviços de saúde mental para diagnóstico. A elevada proporção de atendimentos em consultórios privados indica uma fragilidade no acesso equitativo aos serviços de saúde mental pela população brasileira.
Por fim, a realização de estudos epidemiológicos de âmbito nacional utilizando instrumentos diagnósticos padronizados, e que permitam a investigação de comportamentos de risco e de exposição a eventos adversos, poderia contribuir para que um melhor panorama da saúde mental da população brasileira possa ser definido, alicerçando as políticas de saúde mental no Brasil.