Contribuições do estudo
Principais resultados
Jornadas de trabalho mais longas foram associadas a menores chances de engajamento em atividade física (AF) doméstica, no deslocamento e no lazer, e com maiores chances de engajamento em AF intensa no trabalho.
Introdução
A atividade física (AF) desempenha papel fundamental na vida diária, sendo fonte de transformação social e estratégia potencial para a promoção da saúde.1 Treze dos 17 objetivos propostos para um desenvolvimento sustentável podem ser alcançados a partir do estímulo à AF, que integra a agenda global de saúde com alcance de metas até 2030.2 Para tanto, é fundamental que o ensino, a pesquisa e a política adotem uma visão holística da AF.1
No que concerne à iniquidade, um estudo analisando dados de 111 países mostrou a existência de iniquidade na distribuição de AF dentro dos países, e observou que grande parte foi decorrente do baixo nível de AF entre mulheres. Segundo os autores, em cidades onde era possível caminhar, a AF era maior ao longo do dia em todos os grupos de idade, sexo e índice de massa corporal.3 Outro estudo,4 desenvolvido no contexto europeu, apontou que as desigualdades socioeconômicas tornam mais severa a situação de morbimortalidade decorrente das doenças crônicas não transmissíveis. Neste caso, a AF no lazer estava atrelada ao nível de renda e à classe social, ou seja, à posição socioeconômica, e foi menos prevalente do que as AFs ocupacionais.
No Brasil, as iniquidades sociais são bastante expressivas e interferem na saúde da população.5 Dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 20136 já apontavam desigualdades sociais importantes nos adultos brasileiros, como maior inatividade física no lazer entre os menos escolarizados, da raça/cor da pele não branca e entre aqueles sem plano privado de saúde. Com isso, o presente estudo teve como objetivo analisar os indicadores sociodemográficos associados ao engajamento em AF nos domínios do lazer, do deslocamento, doméstico e do trabalho, a partir de dados da PNS 2019.
Método
Desenho do estudo
Trata-se de uma análise secundária dos dados da PNS, de 2019, realizada em convênio entre o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Ministério da Saúde. Os microdados foram acessados em 1º de dezembro de 2020, a partir da disponibilidade no subdiretório da página do IBGE referente à pesquisa.7
População e amostra
Foi utilizada amostragem por conglomerado em três estágios: (i) setores censitários ou conjunto de setores, como unidades primárias; (ii) os domicílios, como unidades secundárias; (iii) e indivíduos com idade ≥ 15 anos, como unidades terciárias. O procedimento de amostragem aleatória simples foi adotado para todos os estágios. Detalhes a respeito do procedimento amostral estão disponíveis em documentos publicados.8,9 Neste estudo, foram considerados elegíveis os indivíduos com idade ≥ 18 anos com dados completos em todas as variáveis analisadas. As informações foram obtidas por entrevista no domicílio com a utilização de dispositivos móveis programados com o questionário da pesquisa. As entrevistas foram agendadas e realizadas nos dias mais convenientes para os entrevistados, e conduzidas por agentes de coleta previamente treinados.
Tratamento dos dados
As variáveis dependentes foram: (i) AF doméstica contempla a realização de faxina pesada, carregamento de cargas ou outras atividades pesadas (não considera atividade doméstica remunerada); (ii) AF no deslocamento comporta a realização de trajetos a pé ou de bicicleta para o trabalho ou para demais atividades habituais; (iii) AF no lazer contempla a prática de exercícios físicos ou de esportes; (iv) AF no trabalho abrange a realização de caminhadas, faxina pesada, carregamento de cargas ou outras atividades pesadas que requerem esforço físico intenso no trabalho. As variáveis referentes a cada domínio da AF foram dicotomizadas em “não engajado”, quando o participante reportou não se envolver em AF ou se envolver em frequência menor do que um dia na semana; e “engajado”, quando reportado o envolvimento por, pelo menos, um dia na semana.
O tipo de AF praticada com maior frequência foi reportado pelos participantes engajados em AF no lazer. As categorias de análise foram: não engajado em AF no lazer; caminhada (ao ar livre/em esteira ergométrica); corrida (ao ar livre/em esteira ergométrica); ciclismo (bicicleta/bicicleta ergométrica); musculação/fortalecimento (incluindo ginástica localizada/pilates/alongamento/ioga); ginástica de academia/aeróbia (incluindo spinning/step/jump/hidroginástica/dança); esportes (natação/artes marciais/lutas, futebol/basquetebol/voleibol/tênis de quadra). As questões voltadas à AF do instrumento da PNS foram previamente validadas.10,11
As variáveis independentes foram: situação censitária (urbana; rural); rendimento per capita (até meio salário mínimo - SM); mais de meio até um SM; mais de um até dois SMs; mais de dois até três SMs; mais de três até cinco SMs; mais de cinco SMs); escolaridade (fundamental incompleto; fundamental completo; médio completo; superior completo); sexo (masculino; feminino); faixa etária (18 a 24 anos; 25 a 39 anos; 40 a 59 anos; ≥ 60 anos); raça/cor da pele (branca; preta; parda); morar com o cônjuge (sim; não); condição de trabalho/ocupação (fora da força de trabalho; na força de trabalho e com ocupação; na força de trabalho e sem ocupação); jornada de trabalho (até 20 horas semanais; de 21 a 30 horas semanais; de 31 a 40 horas semanais; mais de 40 horas semanais).
Análise estatística
A caracterização da amostra foi descrita com frequências relativas. Os fatores associados ao engajamento em AF, nos diferentes domínios, foram analisados por meio de modelos de regressão logística binária (um modelo para cada domínio), considerando-se participantes não engajados em AF no respectivo domínio como grupo de referência. A análise referente ao domínio do trabalho incluiu apenas os participantes com ocupação no trabalho. A associação entre indicadores sociodemográficos e o tipo de AF mais frequente no lazer foi analisada a partir de regressão logística multinomial, considerando-se participantes não engajados em AF no lazer como grupo de referência. Em todos os modelos, adotou-se entrada simultânea das variáveis sociodemográficas, e os resultados foram expressos em odds ratio (OR) e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%).
Dado que a variável independente referente à jornada de trabalho é condicionada aos participantes na força de trabalho, optou-se por combinar as variáveis “condição de trabalho/ocupação” e “jornada de trabalho” em um único fator para estimação dos indicadores. A variável resultante foi denominada “condição e jornada de trabalho” e incluiu as seguintes categorias: jornada de até 20 horas semanais; jornada de 21 a 30 horas semanais; jornada de 31 a 40 horas semanais; jornada de mais de 40 horas semanais; fora da força de trabalho; na força de trabalho e sem ocupação. A colinearidade foi avaliada por meio da matriz de correlação de Spearman entre as variáveis sociodemográficas e da estimativa do fator de inflação da variância para todos os modelos, a partir dos quais não foram observados casos de multicolinearidade. As análises foram conduzidas com uso do software Stata, versão 16 (StataCorp, College Station, TX, USA), considerando-se a estrutura de amostragem complexa por conglomerado e incorporando-se os pesos amostrais a partir do comando survey.
Resultados
Do total de 94.114 domicílios com moradores de idade ≥ 15 anos, selecionados no âmbito da pesquisa, 90.846 contaram com a realização da entrevista. Destes, 88.500 (53,2%; IC95% 52,6;53,7 do sexo feminino; idade média de 45 ± 17,5 anos) atenderam aos critérios de elegibilidade e foram analisados. Informações sociodemográficas da população podem ser visualizadas na Tabela 1. Verificou-se que 49,6% (IC95% 49,0;50,1) dos participantes relataram deslocar-se a pé ou de bicicleta por pelo menos um dia na semana. A prevalência de engajamento em AFs intensas no contexto doméstico e no trabalho foi observada em 15,8% (IC95% 15,4;16,3) e 48,0% (IC95% 47,2;48,8) dos participantes, respectivamente. No contexto do lazer, 40,5% (IC95% 39,9;41,1) dos participantes relataram praticar AF, destacando-se a caminhada, com 15,4% (IC95% 15,0;15,8), a musculação, com 8,6% (IC95% 8,2;8,9) e os esportes, com 8,2% (IC95% 7,8;8,5), como atividades mais frequentes (Tabela 2).
Variáveis | % (IC95%)a |
---|---|
Situação censitária | |
Urbano | 86,2 (86,0;86,4) |
Rural | 13,8 (13,7;14,0) |
Rendimento per capita (salários mínimos) | |
Até 1/2 | 22,0 (21,6;22,5) |
> 1/2 a 1 | 29,2 (28,7;29,7) |
> 1 a 2 | 28,2 (27,6;28,7) |
> 2 a 3 | 9,1 (8,7;9,4) |
> 3 a 5 | 6,4 (6,1;6,6) |
> 5 | 5,2 (4,9;5,4) |
Escolaridade | |
Fundamental incompleto | 34,8 (34,2;35,3) |
Fundamental completo | 14,5 (14,1;14,9) |
Médio completo | 34,9 (34,4;35,5) |
Superior completo | 15,8 (15,4;16,2) |
Sexo | |
Masculino | 46,9 (46,3;47,4) |
Feminino | 53,2 (52,6;53,7) |
Faixa etária (anos) | |
18 a 24 | 13,9 (13,4;14,4) |
25 a 39 | 29,2 (28,7;29,8) |
40 a 59 | 35,3 (34,7;35,9) |
≥ 60 | 21,6 (21,2;22,1) |
Raça/cor da pele | |
Branca | 43,3 (42,7;43,8) |
Preta | 11,5 (11,1;11,8) |
Parda | 43,8 (43,2;44,4) |
Mora com cônjuge | |
Não | 38,6 (38,0;39,2) |
Sim | 61,4 (60,8,0;62) |
Condição de trabalho e ocupação | |
Na força de trabalho e com ocupação | 61,3 (60,7;61,8) |
Na força de trabalho e sem ocupação | 5,3 (5,0;5,6) |
Fora da força de trabalho | 33,5 (32,9;34,0) |
Jornada de trabalhob(horas semanais) | |
Até 20 | 12,9 (12,4;13,4) |
21 a 30 | 10,5 (10,1;10,9) |
31 a 40 | 33,1 (32,4;33,8) |
> 40 | 43,5 (42,8;44,3) |
a) IC95%: Intervalo de confiança de 95%; b) Dado estimado em adultos com ocupação na semana de referência (n = 52.447).
Variáveis | % (IC95%)a |
---|---|
Doméstica | |
Não | 84,2 (83,8;84,6) |
Sim | 15,8 (15,4;16,3) |
Trabalhob | |
Não | 52,0 (51,2;52,8) |
Sim | 48,0 (47,2;48,8) |
Deslocamento | |
Não | 50,4 (49,9;51,0) |
Sim | 49,6 (49,0;50,1) |
Lazer | |
Não | 59,5 (58,9;60,1) |
Sim | 40,5 (39,9;41,1) |
Atividade mais frequente no lazer | |
Não pratica | 59,5 (58,9;60,1) |
Caminhada | 15,4 (15,0;15,8) |
Corrida | 2,2 (2,1;2,4) |
Ciclismo | 2,0 (1,8;2,2) |
Musculação/fortalecimento | 8,6 (8,2;8,9) |
Ginástica aeróbia/de academia | 3,2 (3,0;3,4) |
Esportes | 8,2 (7,8;8,5) |
a) IC95%: Intervalo de confiança de 95%; b) Dado estimado em adultos com ocupação na semana de referência (n = 52.447).
Os participantes que residiam em região rural foram menos propensos a se engajar em AF no deslocamento (OR = 0,67; IC95% 0,63;0,71) e no lazer (OR = 0,79; IC95% 0,75;0,85), e mais propensos a realizar AFs intensas no trabalho (OR = 1,61; IC95% 1,49;1,74). Participantes com maiores rendimentos foram mais propensos a praticar AF no lazer, e menos propensos a se engajarem em AF no deslocamento ou no trabalho. Em comparação ao sexo masculino, o feminino se envolveu mais em AF doméstica (OR = 2,85; IC95% 2,63;3,08) e no deslocamento (OR = 1,21; IC95%; 1,15;1,27), e menos no lazer (OR = 0,67; IC95% 0,63;0,71) e no trabalho (OR = 0,66; IC95% 0,62;0,71). Os participantes de raça/cor da pele preta foram mais propensos a se engajarem em AF doméstica (OR = 1,15; IC95% 1,02;1,28), no deslocamento (OR = 1,36; IC95% 1,25;1,47) e no trabalho (OR = 1,19; IC95% 1,07;1,32) em relação aos de cor da pele branca. Verificou-se que jornadas de trabalho mais longas (> 40 horas semanais) foram associadas a menores chances de engajamento em AF doméstica (OR = 0,71; IC95% 0,62;0,80), no deslocamento (OR = 0,70; IC95% 0,63;0,77) e no lazer (OR = 0,74; IC95% 0,66;0,82), e a maiores chances de engajamento em AF intensa no trabalho (OR = 1,71; IC95% 1,53;1,91) (Tabela 3).
Variáveis | Domínios da AF | |||
---|---|---|---|---|
Doméstico | Deslocamento | Lazer | Trabalhoa | |
ORb (IC95%)c | OR (IC95%)c | OR (IC95%)c | OR (IC95%)c | |
Situação censitária | ||||
Urbano | 1;00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
Rural | 1,06 (0,97;1,14) | 0,67 (0,63;0,71) | 0,79 (0,75;0,85) | 1,61 (1,49;1,74) |
Rendimento per capita (salários mínimos) | ||||
Até 1/2 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
> 1/2 a 1 | 0,95 (0,86;1,04) | 0,77 (0,72;0,83) | 1,24 (1,15;1,34) | 0,85 (0,78;0,94) |
> 1 a 2 | 1,03 (0,92;1,14) | 0,61 (0,57;0,66) | 1,58 (1,45;1,71) | 0,79 (0,72;0,88) |
> 2 a 3 | 0,99 (0,85;1,15) | 0,54 (0,49;0,60) | 2,09 (1,87;2,33) | 0,71 (0,62;0,81) |
> 3 a 5 | 0,94 (0,79;1,13) | 0,54 (0,48;0,61) | 2,39 (2,11;2,70) | 0,61 (0,52;0,71) |
> 5 | 0,67 (0,55;0,81) | 0,51 (0,45;0,58) | 3,20 (2,79;3,67) | 0,54 (0,45;0,63) |
Escolaridade | ||||
Fundamental incompleto | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
Fundamental completo | 1,31 (1,18;1,46) | 0,99 (0,92;1,07) | 1,40 (1,28;1,52) | 0,86 (0,77;0,95) |
Médio completo | 1,32 (1,21;1,45) | 1,01 (0,94;1,07) | 1,95 (1,82;2,09) | 0,62 (0,56;0,67) |
Superior completo | 1,21 (1,07;1,38) | 0,84 (0,76;0,92) | 3,01 (2,74;3,32) | 0,38 (0,33;0,42) |
Sexo | ||||
Masculino | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
Feminino | 2,85 (2,63;3,08) | 1,21 (1,15;1,27) | 0,67 (0,63;0,71) | 0,66 (0,62;0,71) |
Faixa etária (anos) | ||||
18 a 24 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
25 a 39 | 1,51 (1,32;1,71) | 0,88 (0,80;0,96) | 0,73 (0,67;0,80) | 1,09 (0,97;1,24) |
40 a 59 | 1,57 (1,38;1,78) | 0,96 (0,87;1,05) | 0,61 (0,56;0,67) | 1,10 (0,97;1,24) |
≥ 60 | 0,88 (0,76;1,02) | 0,90 (0,82;1,00) | 0,43 (0,39;0,48) | 0,89 (0,76;1,04) |
Raça/cor da pele | ||||
Branca | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
Preta | 1,15 (1,02;1,28) | 1,36 (1,25;1,47) | 0,99 (0,91;1,08) | 1,19 (1,07;1,32) |
Parda | 0,99 (0,92;1,07) | 1,11 (1,05;1,17) | 1,01 (0,96;1,07) | 1,04 (0,96;1,12) |
Mora com cônjuge | ||||
Não | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
Sim | 1,34 (1,25;1,44) | 0,79 (0,75;0,83) | 0,91 (0,86;0,96) | 1,01 (0,95;1,09) |
Condição e jornada de trabalho (horas semanais) | ||||
Até 20 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
21 a 30 | 0,82 (0,70;0,96) | 0,90 (0,80;1,02) | 0,95 (0,84;1,08) | 1,34 (1,17;1,52) |
31 a 40 | 0,72 (0,63;0,82) | 0,72 (0,65;0,80) | 0,82 (0,74;0,91) | 1,41 (1,26;1,58) |
> 40 | 0,71 (0,62;0,80) | 0,70 (0,63;0,77) | 0,74 (0,66;0,82) | 1,71 (1,53;1,91) |
Fora da força de trabalho | 0,73 (0,65;0,82) | 0,44 (0,40;0,49) | 0,87 (0,79;0,97) | - |
Na força de trabalho e sem ocupação | 1,26 (1,06;1,49) | 0,70 (0,60;0,80] | 0,97 (0,83;1,12) | - |
a) Análise restrita a adultos com ocupação na semana de referência (n = 52.477); b) OR: Odds ratio obtida da regressão logística binária ajustada simultaneamente para todas as variáveis apresentadas na tabela, com referência de não engajado em atividade física (AF) no domínio em questão; c) IC95%: Intervalo de confiança de 95%.
As associações entre indicadores sociodemográficos e os tipos de AF de lazer mais frequentes são apresentados na Tabela 4. Os participantes que residiam em áreas rurais foram mais propensos a praticar esportes (OR = 1,24; IC95% 1,10;1,38) e menos propensos a optar pelas demais atividades. Maiores níveis de renda foram associados ao maior engajamento em todas as AFs, com maior magnitude para musculação (OR = 8,65; IC95% 6,93;10,79), ginástica (OR = 4,54; IC95% 3,21;6,42) e corrida (OR = 5,22; IC95% 3,59;7,58). Pessoas do sexo feminino optavam mais por caminhada (OR = 1,12; IC95% 1,04;1,21) e ginástica aeróbia (OR = 3,90; IC95% 3,08;4,95), e menos por corrida (OR = 0,29; IC95% 0,24;0,35), ciclismo (OR = 0,30; IC95% 0,24;0,37) e esportes (OR = 0,08; IC95% 0,06;0,09).
Variáveis | Caminhada | Corrida | Ciclismo | Muscul./Fortal. | Ginástica aeróbia | Esportes |
---|---|---|---|---|---|---|
ORa (IC95%)b | OR (IC95%)b | OR (IC95%)b | OR (IC95%)b | OR (IC95%)b | OR (IC95%)b | |
Situação censitária | ||||||
Urbano | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
Rural | 0,82 (0,76;0,90) | 0,41 (0,30;0,55) | 0,49 (0,36;0,68) | 0,46 (0,39;0,55) | 0,37 (0,29;0,47) | 1,24 (1,10;1,38) |
Rendimento per capita (salários mínimos) | ||||||
Até 1/2 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
> 1/2 a 1 | 1,29 (1,17;1,42) | 1,20 (0,90;1,60) | 1,31 (0,82;2,08) | 1,66 (1,40;1,97) | 1,33 (1,05;1,68) | 0,88 (0,77;1,01) |
> 1 a 2 | 1,54 (1,39;1,72) | 1,81 (1,37;2,38) | 1,42 (0,88;2,29) | 2,67 (2,25;3,17) | 2,02 (1,59;2,56) | 0,94 (0,80;1,10) |
> 2 a 3 | 1,85 (1,60;2,13) | 2,46 (1,78;3,40) | 1,52 (0,88;2,63) | 4,26 (3,48;5,21) | 3,43 (2,38;4,93) | 1,03 (0,83;1,29) |
> 3 a 5 | 2,05 (1,74;2,41) | 3,12 (2,14;4,55) | 1,91 (1,03;3,54) | 5,07 (4,10;6,27) | 3,55 (2,54;4,96) | 1,16 (0,88;1,53) |
> 5 | 2,11 (1,74;2,56) | 5,22 (3,59;7,58) | 2,39 (1,30;4,39) | 8,65 (6,93;10,79) | 4,54 (3,21;6,42) | 1,54 (1,16;2,04) |
Escolaridade | ||||||
Fundamental incompleto | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
Fundamental completo | 1,20 (1,07;1,34) | 2,09 (1,45;3,01) | 1,48 (1,13;1,94) | 1,73 (1,41;2,11) | 1,20 (0,91;1,60) | 1,81 (1,55;2,11) |
Médio completo | 1,71 (1,56;1,87) | 4,53 (3,39;6,07) | 1,81 (1,36;2,41) | 3,32 (2,84;3,87) | 1,83 (1,43;2,34) | 2,13 (1,85;2,45) |
Superior completo | 2,24 (1,98;2,55) | 8,75 (6,35;12,05) | 2,29 (1,64;3,19) | 6,04 (5,07;7,20) | 2,73 (2,06;3,62) | 2,93 (2,40;3,59) |
Sexo | ||||||
Masculino | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
Feminino | 1,12 (1,04;1,21) | 0,29 (0,24;0,35) | 0,30 (0,24;0,37) | 1,01 (0,91;1,12) | 3,90 (3,08;4,95) | 0,08 (0,06;0,09) |
Faixa etária (anos) | ||||||
18 a 24 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
25 a 39 | 1,19 (1,00;1,42) | 0,72 (0,56;0,94) | 0,83 (0,58;1,20) | 0,75 (0,64;0,87) | 0,81 (0,64;1,04) | 0,44 (0,38;0,51) |
40 a 59 | 1,86 (1,57;2,21) | 0,45 (0,34;0,58) | 0,70 (0,51;0,97) | 0,41 (0,35;0,48) | 0,81 (0,63;1,04) | 0,17 (0,14;0,20) |
≥ 60 | 1,44 (1,20;1,73) | 0,14 (0,09;0,22) | 0,65 (0,43;0,97) | 0,25 (0,21;0,30) | 0,68 (0,50;0,92) | 0,04 (0,03;0,05) |
Raça/cor da pele | ||||||
Branca | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
Preta | 0,94 (0,83;1,05) | 1,00 (0,77;1,29) | 0,67 (0,48;0,93) | 0,96 (0,81;1,12) | 1,04 (0,81;1,33) | 1,33 (1,14;1,55) |
Parda | 1,04 (0,97;1,13) | 1,06 (0,89;1,27) | 0,66 (0,51;0,84) | 0,95 (0,86;1,06) | 1,11 (0,94;1,31) | 1,14 (1,02;1,29) |
Mora com cônjuge | ||||||
Não | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
Sim | 1,06 (0,99;1,14) | 0,98 (0,82;1,18) | 1,23 (1,00;1,51) | 0,70 (0,64;0,77) | 1,02 (0,89;1,17) | 0,94 (0,84;1,05) |
Condição e jornada de trabalho (horas semanais) | ||||||
Até 20 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 | 1,00 |
21 a 30 | 0,90 (0,76;1,06) | 1,15 (0,78;1,69) | 0,74 (0,49;1,13) | 1,06 (0,85;1,32) | 1,05 (0,74;1,50) | 0,83 (0,62;1,09) |
31 a 40 | 0,67 (0,59;0,77) | 1,17 (0,85;1,61) | 0,83 (0,57;1,21) | 0,94 (0,78;1,13) | 0,89 (0,67;1,18) | 0,81 (0,64;1,02) |
> 40 | 0,65 (0,57;0,75) | 0,98 (0,72;1,33) | 0,66 (0,48;0,92) | 0,85 (0,71;1,02) | 0,76 (0,56;1,04) | 0,70 (0,55;0,88) |
Fora da força de trabalho | 0,95 (0,84;1,07) | 0,94 (0,67;1,31) | 0,60 (0,40;0,90) | 0,87 (0,72;1,04) | 1,03 (0,78;1,37) | 0,62 (0,48;0,80) |
Na força de trabalho e sem ocupação | 1,12 (0,92;1,35) | 1,25 (0,82;1,90) | 0,43 (0,27;0,68) | 1,09 (0,84;1,41) | 1,03 (0,65;1,63) | 0,74 (0,55;0,99) |
a) OR: Odds ratio obtida da regressão logística binária ajustada simultaneamente para todas as variáveis apresentadas na tabela, com referência de não engajado em atividade física (AF) no domínio em questão; b) IC95%: Intervalo de confiança de 95%.
Discussão
É possível identificar múltiplos correlatos sociodemográficos para o engajamento e a tipologia da AF nos subgrupos investigados, quando considerados os domínios de prática. Jornadas de trabalho mais longas, raça/cor da pele preta, sexo feminino, menor renda per capita e nível de escolaridade foram associados a menores chances de engajamento em AF no lazer. Interessa, porém, discutir neste artigo os processos críticos que se expressam na associação entre indicadores sociodemográficos e do perfil de prática da AF na população brasileira.
Nesse sentido, observa-se que o engajamento com AF no Brasil é marcado por iniquidades socioeconômicas, a partir das quais alguns grupos se envolvem menos em AF no lazer e mais em atividades nos domínios do trabalho, do deslocamento e/ou doméstico, confirmando um padrão de iniquidade que se reproduz socialmente, indo na contramão do que o Plano de Ação Global sobre AF preconiza.2
É necessário apontar que algumas formas de trabalhar e viver a vida são mais nocivas que outras12 e que as determinações da saúde podem ser exteriores ao sistema de tratamento e cuidado em saúde. Isto é, iniquidades sociais geram iniquidades em saúde.13 Essa compreensão é necessária para uma epidemiologia crítica com potencial para ser uma ferramenta importante para monitorização, construção de consciência sanitária e planejamento de ações públicas que visem à defesa da saúde da população. Para isso, é fundamental desconstruir obstáculos inférteis entre diferentes correntes do pensamento epidemiológico, em especial aquelas erguidas entre as tradições da epidemiologia clássica e epidemiologia social.14
Determinações estruturais ligadas ao conflito entre capital e trabalho reverberam na dimensão singular do envolvimento com a prática de AF. Neste sentido, a discussão sobre a promoção da AF deve levar em conta a tendência à expropriação do tempo e reconhecer que, na sociedade capitalista, a atividade humana sempre estará diante de uma disputa acirrada e desigual pelo tempo disponível dos sujeitos.15 Por isso, essa reflexão não pode ser desvinculada do direito ao lazer, à saúde, ao trabalho não degradante e às condições objetivas de vida que possibilitam escolhas favoráveis à saúde.
O estudo identificou uma associação reveladora deste conflito entre capital e trabalho. Indivíduos inseridos na condição de trabalho e sujeitos a maiores jornadas se envolvem menos com a prática de AF no lazer. Isso se deve à absorção de parte do tempo e energia do trabalhador pela atividade laboral.16 Os achados também associam baixa prevalência de prática de AF no lazer e alta prevalência no domínio do trabalho em residentes da zona rural. Esses resultados não são aleatórios e podem ser atribuídos às grandes jornadas de trabalho, à ausência de incentivo (apoio da família, vizinhança) e de espaço apropriado para a prática de AF.17,18
Uma interessante questão descortinada pelo estudo, com potencial para encaminhar futuras pesquisas, é o significativo volume de prática intensa de AF no domínio do trabalho na população adulta brasileira. A população rural possui maior chance de ter esse volume concentrado no trabalho, o que caracterizaria um desequilíbrio com impactos comprovadamente negativos à saúde.19 De fato, pesquisadores têm observado que, enquanto a AF no lazer é uma escolha que inclui durações curtas de atividades dinâmicas, com tempo de repouso adequado e benefícios consolidados à saúde, observa-se o oposto para a AF ocupacional.20
Esse contexto exige medidas que busquem uma consciência sanitária coletiva sobre o impacto da prática de AF nos diferentes domínios sobre a saúde no campo e, ao mesmo tempo, instrumentalize formuladores de políticas para promover a prática de AF no lazer. Para tanto, é necessário fortalecer discussões e justas reivindicações, como redução do tempo de trabalho para aposentadoria, redução da jornada de trabalho sem redução de salário e aumento do tempo de descanso, adequações ergonômicas no ambiente e nos processos de produção, além de programas que promovam a divulgação e o acesso a espaços para a prática de AF na zona rural.
As iniquidades em saúde não estão restritas ao processo saúde-doença, senão integram outras iniquidades de acesso e uso de serviços de saúde. Corrobora esse entendimento estudo transversal com dados da PNS 2013,21 que demonstrou que o conhecimento de programas públicos de AF aumentou conforme a renda, mas os indivíduos de menores rendas participam mais dos programas públicos de AF.
No entanto, algumas formas vigentes de promoção de AF reproduzem desigualdades, ao favorecerem grupos privilegiados social e economicamente.22 Nos últimos anos, o campo da saúde pública tem mostrado maior interesse em reflexões e estudos sobre a diferenciação e a iniquidade social. Esse interesse fica expresso nas políticas públicas de saúde, como é o caso da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS).23 Assim, para corroborar a compreensão do processo saúde-doença em grupos sociais até então invisíveis, sobressaem temáticas, como classe, gênero, sexualidade e etnicidade, de forma interseccional.
O maior engajamento de mulheres em atividades físicas voltadas ao contexto doméstico é representativo do papel social conformado pela divisão sexual do trabalho, ancorado no capitalismo patriarcal.24 Ademais, a construção da feminilidade perpassa a hierarquização social através de aspectos biológicos e da função reprodutiva, que geram, por meio das relações de trabalho, processos de dominação e exploração.25
Esse processo de diferenciação foi ressaltado pelo tipo de AF de lazer escolhida. As mulheres tendem a realizar caminhada e ginástica aeróbia, enquanto os homens engajam-se em atividades do tipo musculação e esportivas. Esses achados corroboram a análise realizada da PNS 2013,26 para a qual a prática esportiva foi menos frequente entre o sexo feminino. Outro ponto identificado na PNS 2013, e reforçado nos achados do presente estudo, foi a permanência do maior engajamento do sexo feminino (18,4% em 2013 e 21,8% em 2019) em relação ao masculino (5,4% em 2013 e 9,1% em 2019) nas atividades físicas de domínio doméstico.27
Os modos de agir e de se comportar perpassam relações de poder e dominação, logo a construção dos corpos deve ser considerada enquanto uma construção política28 e se reflete na forma de compreensão e reprodução da masculinidade e da feminilidade. As práticas esportivas são desenvolvidas reproduzindo comportamentos aceitáveis e considerados adequados para homens e para mulheres, tais como agressividade, passividade, dominação, submissão, virilidade e fragilidade.29
Apesar dos avanços inquestionáveis na organização de uma rede de programas de AF, a abordagem linear e pragmática do campo ainda aponta hegemonicamente para uma lógica físico-sanitária, reguladora, assistencial e medicalizante. A AF é assumida como um remédio necessário para a prevenção de agravos e sofrimentos que se reproduzem socialmente, e traz em seu bojo um entendimento que reforça o processo individualizante e culpabilizador, o que gera, por vezes, ações e estratégias isoladas, episódicas e desarticuladas da realidade dos territórios e de suas populações.
A noção de cuidado está imbricada nas relações de poder entre sujeitos, o que normatiza e regula o uso dos corpos.30 Por isso, a manutenção de uma lógica hierarquizada e verticalizada, desde o planejamento, gestão e execução dos programas, projetos e ações focadas na AF, corrobora uma dinâmica social discriminatória e excludente. Urge, portanto, uma visão mais ampla do conceito de benefícios da AF, para além das justificativas dominantes restritas ao manejo de doenças e objetivos tradicionais de saúde física.
Quanto às limitações do estudo, destacamos que domicílios localizados em setores censitários especiais ou de escassa população, como acampamentos indígenas e quilombolas, presídios e embarcações, foram excluídos da amostra da pesquisa. Consequentemente, subgrupos relevantes para a compreensão das iniquidades em saúde não foram representados. Apesar desta reunião de pesquisadores de diferentes matizes teóricos, a abordagem realizada não permite uma análise dialética que explique a origem de cada iniquidade revelada; mesmo assim, foi possível identificar, quantificar e discutir uma série de processos de iniquidade em saúde que merecem estudos específicos.
A pesquisa analisou os indicadores sociodemográficos associados ao engajamento em AF nos diferentes domínios, evidenciando iniquidades socioeconômicas para os domínios de prática de AF, a partir das quais alguns grupos se envolvem menos em AF no lazer e mais em AF ocupacional, do deslocamento e/ou doméstico, o que confirma um padrão de iniquidade que se reproduz socialmente, pois evidenciam-se desigualdades advindas de relações sociais injustas e evitáveis, acarretando prejuízos na saúde e na vida.
Esse padrão de iniquidade no perfil de prática de AF foi demonstrado nos subgrupos com rendimento per capita menor, pessoas com maiores jornadas de trabalho, moradores de área rural, bem como indivíduos do sexo feminino e com raça/cor da pele preta.
Nesse sentido, a construção de políticas públicas, programas e ações intersetoriais e interinstitucionais, em especial aquelas voltadas à promoção da AF, amparadas nos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), de maneira universalista, equitativa, participativa e com enfoque na justiça social, precisam considerar aspectos de diferenciação social e de sexo, compreendendo que os espaços voltados ao fomento de AF são lugares generificados e hierarquizados socialmente.