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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.32 no.1 Brasília  2023  Epub 26-Jan-2023

http://dx.doi.org/10.1590/s2237-96222023000100021 

Artigo Original

Influência da desigualdade socioeconômica na distribuição das internações e dos óbitos por covid-19 em municípios brasileiros, 2020: um estudo ecológico

Influencia de la desigualdad socioeconómica en la distribución de hospitalizaciones y muertes por COVID-19 en municipios brasileños, 2020: un estudio ecológico

Gabriela Drummond Marques da Silva (orcid: 0000-0002-1145-3940)1  , Anelise Andrade de Souza (orcid: 0000-0002-2408-7054)2  , Mônica Silva Monteiro de Castro (orcid: 0000-0003-2461-3699)1  , Wanessa Debôrtoli de Miranda (orcid: 0000-0002-0838-9861)3  , Leticia Lemos Jardim (orcid: 0000-0003-3358-0075)1  , Rômulo Paes de Sousa (orcid: 0000-0002-3384-6657)1 

1Fundação Oswaldo Cruz, Instituto René Rachou, Belo Horizonte, MG, Brasil

2Universidade Federal de Ouro Preto, Escola de Nutrição, Ouro Preto, MG, Brasil

3Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Enfermagem, Belo Horizonte, MG, Brasil

Resumo

Objetivo

analisar a influência da desigualdade socioeconômica na distribuição da covid-19 nos maiores municípios brasileiros (> 100 mil habitantes), controlando, pelo efeito da infraestrutura hospitalar, comorbidades e outras variáveis.

Métodos

estudo ecológico sobre internações e óbitos por covid-19 em 2020; dados de desfecho obtidos do Ministério da Saúde; a razão de incidência foi estimada via modelo linear generalizado.

Resultados

identificados 291.073 internações e 139.953 óbitos; encontrou-se maior taxa de mortalidade nos municípios com maior população não branca (IC95% 1,01;1,16) e nos domicílios com mais de duas pessoas por cômodo (IC95% 1,01;1,13); para ambos os desfechos, esgotamento sanitário foi protetivo (internações: IC95% 0,87;0,99 – óbitos: IC95% 0,90;0,99), e população em aglomerados subnormais revelou-se fator de risco (internações: IC95% 1,01;1,16 – óbitos: IC95% 1,09;1,21) com interação, com a proporção de pessoas a receber auxílio emergencial (internações: IC95% 0,88;1,00 – óbitos: IC95% 0,89;0,98).

Conclusão

condições socioeconômicas afetaram o adoecimento e morte por covid-19 no Brasil.

Palavras-Chave: Coronavírus; Internação Hospitalar; Mortalidade; Fatores Socioeconômicos; Estudo Ecológico

Resumen

Objetivo

analizar la influencia de la desigualdad socioeconómica en la distribución de COVID-19 en los mayores municipios brasileños (> 100 mil habitantes), controlando, por la infraestructura hospitalaria, comorbilidades y otras variables.

Métodos

estudio ecológico sobre hospitalizaciones y muertes por COVID-19 en 2020; datos del resultado fueran obtenidos del Ministerio de Salud; razón de incidencia estimada a través del modelo lineal generalizado.

Resultados

291.073 hospitalizaciones y 139.953 muertes; mayor tasa de mortalidad en municipios con mayor proporción de población no blanca (IC95% 1,01;1,16) y con más hogares con más de dos personas por habitación (IC95% 1,01;1,13); el alcantarillado sanitario resultó protector (hospitalizaciones: IC95% 0,87;0,99 – muertes: IC95% 0,90;0,99) y la mayor proporción de población en aglomeraciones subnormales fue un factor de riesgo (hospitalizaciones: IC95% 1,01;1,16 – muertes: IC95% 1,09;1,21), interactuando con proporción de personas con asistencia de emergencia (hospitalizaciones IC95% 0,88;1,00, defunciones IC95% 0,89;0,98).

Conclusión

las condiciones socioeconómicas afectaron la enfermedad y la muerte por COVID-19.

Palabras-clave: Coronavirus; Hospitalización; Mortalidad; Factores Socioeconómicos, Estudio Ecológico

INTRODUÇÃO

Os primeiros casos de covid-19 foram registrados na China. Rapidamente, a doença expandiu-se pelo globo, ocasionando uma pandemia, assim declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em março de 2020. Naquele ano, foram confirmados mais de 82,5 milhões de casos e aproximadamente 1,8 milhão de óbitos por covid-19. Desse total, as Américas responderam por 44,5% dos casos e 47,45% das mortes.1

O Brasil foi responsável por 9,2% dos casos confirmados e 10,7% dos óbitos em 2020,2 ocupando o terceiro lugar no mundo em número de casos e o segundo em número de óbitos, atrás apenas dos Estados Unidos.1 A incidência de casos, hospitalizações e óbitos foi heterogênea entre os estados, municípios e grupos populacionais do país.3

Medidas restritivas e de distanciamento social, como o uso de máscaras, restrição à circulação de pessoas e suspensão das atividades não essenciais, embora necessárias e relevantes, mostraram-se insuficientes para conter o crescente número de casos de covid-19 no Brasil.4 Apesar da implementação do auxílio emergencial, benefício destinado a garantir uma renda mínima aos brasileiros em situação de maior vulnerabilidade, os efeitos da queda da atividade econômica agravaram a desigualdade social, já existente, dificultando a essa população aderir à recomendação de restrição de mobilidade4 e contribuindo para o agravamento da pandemia no país.

Contribuições do estudo
Principais resultados Taxa de mortalidade por covid-19 mais elevada em municípios com maior população não branca, em aglomerados subnormais e domicílios com mais de duas pessoas por cômodo, sem esgotamento. Efeito de interação entre aglomerados e auxílio emergencial.
Implicações para os serviços O enfrentamento das desigualdades socioeconômicas demanda políticas inclusivas para a população vulnerável, de modo a favorecer seu acesso a bens e serviços públicos e privados essenciais para a saúde e bem-estar.
Perspectivas É fundamental a superação de intervenções focadas em estratégias únicas, em um contexto no qual sistemas setoriais atuem de forma isolada, investindo em intervenções universais que buscam uma articulação transversal e intersetorial.

Torna-se, portanto, necessário compreender os fatores contributivos para o maior impacto da pandemia em determinadas regiões e grupos populacionais, possibilitando que políticas públicas sejam executadas com maior eficiência no Brasil, na perspectiva da ocorrência de futuras pandemias. O presente estudo teve por objetivo analisar a hipótese de que a desigualdade socioeconômica influenciou a distribuição da covid-19 nos maiores municípios brasileiros, controlando, pelo efeito da infraestrutura hospitalar, comorbidades e outras variáveis.

MÉTODOS

Desenho do estudo

Estudo ecológico de análise das internações e óbitos por covid-19 registrados no período de março de 2020, mês de ocorrência da primeira morte por covid-19 confirmada no país, até dezembro do mesmo ano, nos 326 municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes. A seleção dos municípios onde reside 57,4% da população do país justifica-se por terem sido estes municípios os responsáveis por 71,8% dos 194.949 óbitos por covid-19 registrados no Brasil, em 2020.2

Sistemas de informações utilizados e variáveis analisadas

A partir da revisão de literatura que embasou o modelo teórico adotado, foram selecionadas as variáveis independentes do estudo, agrupadas em variáveis de controle,5 referentes a infraestrutura hospitalar e comorbidades, e variáveis de exposição principais, socioeconômicas10 (Figura 1).

Figura 1 – Mecanismos que vinculam as desigualdades econômicas e sociais com a morbidaded e a mortalidade por covid-19a) Determinantes proximais; b) Determinantes distais; c) Resultado; d) Neste estudo, a morbidade foi estimada com base nas internações por COVID-19.Nota: UTI = unidade de terapia intensiva; APS = Atenção Primária à Saúde. 

As variáveis dependentes – internações e óbitos por covid-19 – foram obtidas em junho de 2021. As informações sobre óbitos por covid-19 ocorridos em 2020 foram extraídas do Painel Coronavírus,2 que apresenta as informações sobre a pandemia no Brasil, enquanto as informações sobre as internações hospitalares em 2020 foram obtidas do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS), ambos – Painel Coronavírus e SIH/SUS – mantidos pelo Ministério da Saúde.

As informações relativas às variáveis dependentes foram identificadas segundo município de residência, data de ocorrência da internação e data de confirmação laboratorial ou clínico-epidemiológica dos casos. Para o cálculo das taxas de internações e óbitos por covid-19 nos municípios em 2020, as internações e óbitos pela doença registrados em cada localidade, naquele ano (numerador), foram divididos pelas estimativas populacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para cada município, na mesma data (denominador), e multiplicados por 100 mil.

As variáveis de exposição principais, selecionadas de acordo com a disponibilidade de indicadores socioeconômicos em nível municipal, nas bases de dados do IBGE e dos ministérios do Desenvolvimento Social, da Saúde e do Desenvolvimento Regional, foram:

  1. Do IBGE – (i) a proporção (%) de alfabetizados entre maiores de 15 anos de idade em 2010, (ii) a proporção (%) de pessoas não brancas em 2010, (iii) a proporção (%) de pessoas vivendo em domicílios com mais de duas pessoas por cômodo em 2010, (iv) o índice de Gini da renda per capita em 2010 (que mensura o nível de concentração de renda e varia de 0 a 1: 0 representa ausência de desigualdade, e 1, desigualdade máxima), (v) a proporção (%) de domicílios em aglomerados subnormais a mais de 1 quilômetro de equipamentos de atenção básica à saúde em 2019 e (vi) a proporção (%) de domicílios em aglomerados subnormais em 2019;

  2. Do Ministério do Desenvolvimento Social – (vii) a proporção (%) de pessoas elegíveis para o benefício do auxílio emergencial em 2020;

  3. Do Ministério da Saúde – (viii) a proporção (%) de pessoas com acesso à Atenção Básica de Saúde (ABS) no âmbito do SUS em dezembro de 2018 e (ix) o número de testes rápidos e RT-PCR para covid-19 a cada 100 casos (testes/100 casos) em 2020; e

  4. Do Ministério do Desenvolvimento Regional – (x) a proporção (%) de pessoas com acesso a água tratada e (xi) o esgotamento sanitário (ao menos, básico) em 2018.

As variáveis de controle, obtidas em bases de dados disponibilizadas pelo Ministério da Saúde, também coletadas em nível municipal, foram organizadas em duas dimensões, de acordo com a hipótese do estudo:

  1. Infraestrutura hospitalar – número de leitos clínicos de internação por 100 mil habitantes, disponibilizados pelo SUS (i) no mês de janeiro e (ii) no mês de julho de 2020, e pelo sistema privado, (iii) no mês de janeiro e (iv) no mês de julho do mesmo ano (leitos/100 mil hab.);

  2. Comorbidades – número de internações por 10 mil hab. em 2019, em decorrência (v) do diabetes, (vi) da hipertensão arterial e (vii) das doenças respiratórias crônicas, padronizado por idade (internações/10 mil hab.), e número de óbitos por 100 mil hab. em 2019 (viii) pelas doenças cardiovasculares, (ix) pelo diabetes mellitus, (x) pelos tumores malignos e (xii) pelas doenças crônicas respiratórias, padronizado por idade (óbitos/100 mil hab.).

Para o cálculo do número de leitos clínicos no setor privado, por 100 mil hab., o total de leitos por município – nesse setor – foi dividido pela população beneficiária de planos de saúde em cada município no mês de dezembro de 2019, disponibilizada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). O número de leitos do SUS, por 100 mil hab., foi dividido pelo tamanho da população do município e subtraído do total de beneficiários de planos de saúde.

As variáveis de controle sobre comorbidades foram padronizadas por idade, em estratos de cinco anos, utilizando-se o método direto. As variáveis dependentes foram padronizadas pelo método indireto, por idade e sexo, multiplicando- -se os indicadores não padronizados de internações e óbitos por covid-19 por um fator de correção (FC). Este fator foi calculado a partir dos dados de internações e óbitos por síndrome respiratória aguda grave (SRAG) associada à covid-19 em 2020, divulgados via Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe). O FC foi igual à razão da taxa de internações e óbitos por SRAG em 2020, padronizada por idade e sexo, dividida pela taxa sem padronização. A população utilizada na padronização, segundo grupos etários de cinco anos e sexo, foi obtida das estimativas populacionais do Ministério da Saúde.13

Métodos de análise estatística

Inicialmente, foi feita a imputação múltipla de informações naquelas variáveis que possuíam dados faltantes, utilizando-se o método denominado Preditive Mean Matching (PMM). Em seguida, promoveu-se a padronização de todas as variáveis independentes segundo a medida Z-escore. Posteriormente, a associação das variáveis independentes com as taxas de internações e de óbitos por covid-19 foi determinada utilizando-se o modelo de regressão linear generalizado, assumindo-se a distribuição binomial negativa e reportada pela razão das taxas de incidência (RTI) e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%).

A seleção de variáveis independentes foi feita adotando-se o método hierárquico, em duas etapas: (i) a inclusão no modelo linear generalizado das variáveis de controle e logo, (ii) a adição das variáveis de exposição principais. Em ambas etapas, foram realizadas a análise univariada (única variável independente) (p-valor < 0,20) e a análise multivariével (múltiplas variáveis independentes) (p-valor < 0,05). O método backward e o critério de informação de Akaike (AIC) foram utilizados como estratégia de seleção do melhor modelo. No modelo multivariável, fixou-se ao menos uma variável de controle de infraestrutura e de comorbidades, mesmo que com p-valor > 0,05, para avaliação da hipótese do estudo. Após a seleção das variáveis, foi testada a interação multiplicativa de ordem 2 das variáveis de exposição principais que permaneceram no modelo junto ao auxílio emergencial.

O modelo final foi ajustado com e sem imputação, para identificar mudanças na significância estatística da associação das variáveis independentes selecionadas com o desfecho. A multicolinearidade dos modelos foi avaliada utilizando-se o fator de inflação da variância (VIF < 5). A qualidade do ajuste dos modelos foi verificada aplicando-se o teste deviance. A análise de resíduos foi realizada mediante avaliação gráfica da aproximação dos resíduos na distribuição normal e no gráfico da distribuição desses resíduos, em função do logaritmo dos valores ajustados. Possíveis pontos influentes foram avaliados com o uso da distância de Cook.

A proporção da variabilidade explicada pelos modelos finais foi estimada por meio da estatística D2, uma versão ajustada do R2, que calcula a proporção da deviance explicada por modelos lineares generalizados. As análises foram realizadas utilizando-se o software R, por meio dos pacotes mice, MASS, car, boot e modEvA.

Este trabalho adotou os preceitos éticos descritos na Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Por utilizar apenas dados secundários, de acesso público e sem identificação nominal dos sujeitos, não foi necessário submissão do projeto do estudo a um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).

RESULTADOS

Foram analisados dados de 326 municípios, dos quais 154 (47,2%) na região Sudeste, 64 (19,6%) na região Nordeste, 53 (16,3%) na região Sul, 31 (9,5%) da região Norte e 24 (7,4%) na região Centro-Oeste do país. Em 2020, foram notificados 291.073 internações e 139.953 óbitos por covid-19 nesses municípios, equivalentes a uma taxa de 238,6 internações/100 mil hab. e de 114,7 óbitos/100 mil hab. causados pela doença. As taxas de internação e de mortalidade, padronizadas por idade e sexo, foram de 250,6 casos/100 mil hab. e 122,3 óbitos/100 mil hab., respectivamente.

A maioria dos municípios com maior taxa de mortalidade também apresentaram maior taxa de internação por covid-19 (Figura 2). A taxa de internação não apresentou variação significativa segundo o porte dos municípios; comportamento diferente foi observado nas taxas de mortalidade, principalmente dos municípios com mais de 500 mil habitantes, que apresentaram maior variação (Figura 3).

Figura 2 – Distribuição espacial (A) das taxas de internação (por 100 mil hab.) e (B) da mortalidade (por 100 mil hab.) por covid-19, padronizadas indiretamente por idade e sexo, nos municípios com mais de 100 mil habitantes, Brasil, 2020 

Figura 3 – Distribuição das taxas de mortalidade (por 100 mil hab.) e de internação (por 100 mil hab.) por covid-19, padronizadas indiretamente por idade e sexo, nos municípios com mais de 100 mil habitantes, Brasil, 2020 

a) Histograma da taxa de mortalidade (por 100 mil hab.); b) Diagrama de dispersão das taxas de internação (por 100 mil hab.) e de mortalidade (por 100 mil hab.); c) Histograma da taxa de internação (por 100 mil hab.)

As variáveis socioeconômicas, quais sejam, (i) a distância da unidade básica de saúde (UBS), (ii) a presença de aglomerados subnormais, (iii) a presença nos domicílios com mais de duas pessoas por cômodo, (iv) a raça/cor da pele não branca, (v) o índice de Gini e (vi) o recebimento de auxílio emergencial apresentaram associação positiva com a taxa de internação, enquanto (i) a taxa de alfabetização da população com 15 anos de idade ou mais, (ii) o acesso a água e (iii) o acesso a esgotamento sanitário apresentaram associação negativa com esse desfecho (Tabela 1).

Tabela 1 – Análise univariada da associação dos desfechos (taxas de internação e de mortalidade por covid-19) com as variáveis de controle e de exposição principais, segundo modelo linear generalizado (MLG), nos municípios com mais de 100 mil habitantes, Brasil, 2020 

Grupo Variáveis Internação Óbitos
RTIa IC95%b p-valor RTIa IC95%b p-valor
Variáveis de controle Taxa de internação por diabetes mellitus 1,18 1,11;1,25 < 0,001 1,07 1,01;1,12 0,011
Taxa de internação por doenças respiratórias 1,14 1,08;1,21 < 0,001 1,01 0,96;1,07 0,627
Taxa de internação por hipertensão arterial 1,13 1,06;1,22 < 0,001 1,04 0,99;1,10 0,103
Taxa de mortalidade por doenças cardiovasculares 1,17 1,10;1,24 < 0,001 1,19 1,13;1,24 < 0,001
Taxa de mortalidade por diabetes mellitus 1,14 1,07;1,21 < 0,001 1,10 1,05;1,16 < 0,001
Taxa de mortalidade por doenças respiratórias 1,02 0,96;1,08 0,552 1,08 1,03;1,13 0,003
Taxa de mortalidade por câncer 0,98 0,92;1,03 0,410 1,04 0,99;1,10 0,107
Leitos clínicos disponíveis-SUS/100 mil hab. (janeiro de 2020) 1,03 0,98;1,09 0,358 1,00 0,95;1,04 0,878
Leitos clínicos disponíveis/sistema privado/100 mil hab. (janeiro de 2020) 1,06 1,00;1,14 0,047 0,98 0,94;1,05 0,555
Leitos clínicos disponíveis-SUS/100 mil hab. (julho de 2020) 1,09 1,03;1,15 0,007 1,02 0,98;1,08 0,343
Leitos clínicos disponíveis-sistema privado/100 mil hab. (julho de 2020) 1,06 1,00;1,14 0,059 0,98 0,94;1,04 0,523
Variáveis de exposição principaisc Cobertura da Atenção Básica de Saúde 1,01 0,96;1,07 0,700 0,97 0,93;1,02 0,260
Testagem ambulatorial por caso 0,98 0,93;1,03 0,401 0,98 0,93;1,03 0,318
Distância da unidade básica de saúde 1,07 1,02;1,14 0,010 1,06 1,01;1,11 0,014
Aglomerados subnormais 1,09 1,02;1,16 0,003 1,17 1,12;1,22 < 0,001
Pessoas por cômodo (> 2) 1,22 1,15;1,30 < 0,001 1,17 1,11;1,23 < 0,001
Proporção de não brancos 1,15 1,08;1,22 < 0,001 1,19 1,13;1,25 < 0,001
Taxa de alfabetização da população com 15 anos de idade ou mais 0,93 0,87;0,98 0,013 1,02 0,97;1,07 0,437
Acesso a água (ao menos básico) 0,87 0,83;0,92 < 0,001 0,92 0,87;0,96 < 0,001
Acesso a esgoto (ao menos básico) 0,89 0,84;0,95 < 0,001 0,88 0,84;0,93 < 0,001
Índice de Gini 1,03 0,97;1,09 0,395 1,11 1,06;1,16 < 0,001
Auxílio emergencial 1,14 1,07;1,21 < 0,001 1,16 1,09;1,22 < 0,001

a) RTI: Razão das taxas de incidência; b) IC95%: Intervalo de confiança de 95%; c) Coeficientes obtidos com as variáveis de controle fixadas nos modelos, para as internações (taxa de internação por diabetes mellitus, taxa de internação por doenças respiratórias, taxa de mortalidade por doenças cardiovasculares e leitos clínicos disponíveis/SUS por 100 mil hab. [julho de 2020]) e para a mortalidade (taxa de mortalidade por diabetes mellitus, taxa de mortalidade por doenças respiratórias, taxa de mortalidade por doenças cardiovasculares e leitos clínicos disponíveis/sistema privado por 100 mil hab. (julho de 2020).

Os modelos multivariáveis com melhor ajuste são apresentados na Figura 4. Foram observadas maiores taxas de internação por covid-19 nos municípios com maior proporção da população beneficiada pelo auxílio emergencial (RTI = 1,08; IC95% 1,01;1,16) e vivendo em aglomerados subnormais (RTI = 1,08; IC95% 1,01;1,16). A proporção de pessoas com acesso a esgotamento sanitário teve efeito protetor nas taxas de internação pela doença (RTI = 0,93; IC95% 0,87;0,99). Observou-se, também, maior taxa de internação nos municípios com maior taxa de internação por doenças respiratórias (RTI = 1,08: IC95% 1,02;1,15) e diabetes mellitus (RTI = 1,07; IC95% 1,01;1,14), maior taxa de mortalidade por doenças cardiovasculares (RTI = 1,08; IC95% 1,01;1,14) e maior número de leitos/SUS por 100 mil hab. em julho de 2020 (RTI = 1,10; IC95% 1,05;1,16) (Figura 4a).

Figura 4 – Razão das taxas de incidência estimadas segundo modelo linear generalizado (MLG) multivariável para (A) internação e (B) óbito por covid-19, com os respectivos intervalos de confiança, nos municípios com mais de 100 mil habitantes, Brasil, 2020 

Em relação à taxa de mortalidade por covid-19, observou-se associação positiva com municípios onde havia maior proporção de população não branca (RTI = 1,08; IC95% 1,01;1,16), maior proporção de domicílios em aglomerados subnormais (RTI = 1,15; IC95% 1,09;1,21) e mais de duas pessoas convivendo no mesmo cômodo do domicílio (RTI = 1,07; IC95% 1,01;1,13). A proporção de pessoas com acesso a esgotamento sanitário teve efeito protetor na mortalidade por covid-19 (RTI = 0,94; IC95% 0,90;0,99). Houve maior taxa de internação por covid-19 nos municípios com maior mortalidade por doenças respiratórias (RTI = 1,05; IC95% 1,00;1,09) e cardiovasculares (RTI = 1,08; IC95% 1,03;1,13) (Figura 4b).

Em ambos os modelos – univariado e multivariável –, a interação entre a proporção de domicílios situados em aglomerados subnormais e a proporção da população que recebeu o auxílio emergencial diminuiu o efeito da proporção de aglomerados subnormais (internações: RTI = 0,94; IC95% 0,88;1,00 – óbitos: RTI = 0,94; IC95% 0,89;0,98). Os dois modelos explicaram, respectivamente, 17,0% e 14,9% da variação da distribuição de internações e óbitos sem as variáveis socioeconômicas, e 23,7% e 34,7% quando as variações socioeconômicas foram consideradas.

Os modelos multivariáveis não apresentaram evidência de multicolinearidade e foram considerados bem ajustados, segundo o teste deviance, a análise de resíduos e a distância de Cook. A variável com maior quantidade de dados faltantes foi o acesso a esgotamento sanitário (6,4%) e as variáveis socioeconômicas continuaram significativas no modelo, mesmo após ajuste dos dados sem imputação.

DISCUSSÃO

Os resultados deste estudo sugerem que as consequências da pandemia de covid-19 foram mais graves na população em pior condição socioeconômica, confirmando a hipótese do estudo, de que a infraestrutura hospitalar, a distribuição por sexo e por faixa etária, e a presença de comorbidades não são suficientes para explicar a ocorrência e a distribuição, tanto de internações como de óbitos por covid-19, no Brasil.

A relação encontrada entre maior proporção de domicílios situados em aglomerados subnormais e maior proporção de indivíduos vivendo em domicílios com mais de duas pessoas por cômodo e o aumento de internações e mortes por covid-19 corrobora os achados de que habitar em domicílios localizados nesses aglomerados ou com mais de duas pessoas/cômodo são fatores de risco para a doença.11

Os municípios com maiores taxas de internação por doenças respiratórias e diabetes mellitus e maiores taxas de mortalidade por doenças cardiovasculares e respiratórias, no período anterior à pandemia, apresentaram maiores taxas de internação e de mortalidade por covid-19, sugerindo o efeito das doenças crônicas na morbimortalidade pela infecção objeto desta análise.6

O tipo de estudo utilizado, de desenho ecológico, não permite a comparação dos riscos individuais de adoecimento e morte por covid-19, permitindo apenas comparações populacionais. Outra limitação do presente trabalho refere-se à seleção de municípios com diferentes portes populacionais, o que ocasionou diferentes variabilidades na obtenção de estimativas. Para minimizar essa potencial fonte de viés, municípios com menos de 100 mil habitantes foram excluídos da análise, por apresentarem maior variabilidade nas pequenas áreas.

Possivelmente, existem outros fatores, todavia não elucidados, associados a um maior risco de adoecimento e morte por covid-19, não considerados aqui.

A estratégia de operacionalização das variáveis, construídas a partir dos dados secundários disponíveis, também pode ter influenciado os resultados. Para minimizar os efeitos dessa limitação, métodos de padronização direta e indireta foram utilizados no cálculo das taxas de internação e de mortalidade, e utilizou-se imputação múltipla para estimação de dados faltantes.

Estudos realizados em diferentes países mostraram que a pandemia por covid-19 contribuiu para, além das mortes pela doença, aumento das mortes por outras causas, especialmente em populações carentes.15

A alta transmissibilidade do vírus SARS-CoV-2 e as características demográficas locais influenciam, mesmo que parcialmente, a magnitude da transmissão e variações no avanço da pandemia em diferentes países.16 Além do que, há evidências de disparidades sociais e étnicas estarem fortemente relacionadas ao curso da pandemia.17

O tipo de ocupação e as baixas condições socioeconômicas podem contribuir para maior exposição ao vírus. Apesar das evidências de o teletrabalho estar associado ao menor risco de infecção pelo SARS-CoV-2,19 determinados tipos de ocupação não permitem o trabalho caracterizado como home-office, contribuindo para o maior risco de exposição desses trabalhadores.20 Ademais, no Brasil, indivíduos socialmente desfavorecidos são mais propensos a utilizar o transporte público, fator de risco significativo para a propagação viral: as fragilidades apresentadas nesse tipo de transporte, especialmente as condições de acomodação dos veículos e sua quantidade insuficiente, dada a baixa disponibilidade de horários para cada linha de trajeto, favorecem a aglomeração de pessoas.21

Como estratégia para minimizar o impacto da pandemia na vida das pessoas e na economia, apenas durante o ano 2020, o governo federal investiu cerca de R$ 300 bilhões em auxílio emergencial, pago em parcelas mensais, à população econômica e socialmente vulnerável.22 A análise demonstrou que a proporção da população que recebeu o auxílio emergencial esteve relacionada à diminuição do efeito da proporção de aglomerados subnormais no aumento das taxas de internação e de mortalidade pela doença. Tal resultado reforça que o auxílio contribuiu para minimizar os impactos da covid-19 na população.

Cerca de 80% da população brasileira depende exclusivamente do SUS para qualquer atendimento.23 Assim, a pandemia de covid-19 representou um dos maiores desafios para o sistema de saúde pública, desde sua criação, frente à necessidade de superar as desigualdades locais e regionais na prestação da assistência aos casos, criação de leitos, aquisição de equipamentos e insumos em tempo recorde, além da necessidade de estratégias de promoção da articulação da rede de serviços públicos e privados, com vistas ao acesso e qualidade da assistência prestada à população. A concentração de unidades especializadas nas cidades de médio porte e capitais impactou na organização logística dos recursos e na composição das equipes médicas, demandando o transporte dos indivíduos graves a esses centros e, consequentemente, afetando a assistência.24

Corroborando dados de estudo anterior, esta análise mostrou que populações residentes em áreas distantes da rede de ABS apresentaram maior risco de internação. Estudo de coorte, conduzido na Escócia, demonstrou que indivíduos residentes nas áreas socioeconômicas desfavorecidas tiveram menor frequência da taxa de internação e pior evolução após os cuidados intensivos. Este estudo, igualmente, mostrou que as unidades de saúde localizadas nas áreas mais desfavorecidas, economicamente, apresentaram demanda superior à capacidade de leitos disponível.25

No presente estudo, municípios que apresentavam maior proporção de população não branca e/ou de população vivendo em aglomerados subnormais, e aqueles com maior proporção de domicílios com mais de duas pessoas por cômodo, apresentaram maior taxa de mortalidade por covid-19. Estes achados corroboram dados da literatura indicativos de discrepâncias étnicas, raciais e socioeconômicas na mortalidade por covid-19.26

A proporção de acesso a esgotamento sanitário constituiu um fator de proteção para a mortalidade pela doença. A escassez do esgotamento sanitário está associada à pobreza, afetando as condições de saúde da população, além de outros fatores como a subnutrição e a higiene inadequada.29

Assim como neste estudo, Li et al.30 encontraram que a população não branca apresentou maior risco de morte por covid-19 em São Paulo, Brasil. Diversos fatores contribuíram para os riscos aumentados em não brancos, entre eles: maior risco de exposição ao vírus; maior risco de infecção após exposição; pior condição de saúde e maior suscetibilidade a doenças graves; comportamento insuficiente/inadequado na busca de cuidados em saúde; e pior qualidade nos cuidados de saúde recebidos.28 Inegavelmente, as desigualdades raciais e socioeconômicas mantêm associações persistentes, significativas e multifacetadas com problemas de saúde, replicando padrões históricos.

Este estudo mostrou que a desigualdade socioeconômica influenciou a distribuição da covid-19 nos maiores municípios do país. Apesar da importância de indicadores como a infraestrutura hospitalar e a prevalência de comorbidades, o local e as condições em que as pessoas vivem, sua etnia e seu acesso à assistência à saúde e às políticas sociais, especialmente em tempos de crise, tiveram impacto importante no curso da pandemia no Brasil.

Finalmente, recomenda-se a realização de mais estudos sobre os determinantes sociais da covid-19 no país, com foco especial no papel dos programas de redistribuição de renda. A maior compreensão do fenômeno será importante para embasar o planejamento de programas sociais futuros, inclusive em contextos de calamidade social, como aconteceu no transcurso da pandemia de covid-19.

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Recebido: 11 de Maio de 2022; Aceito: 10 de Outubro de 2022

Correspondência: Gabriela Drummond Marques da Silva. E-mail:gabriela.marques@fiocruz.br

Editora associada: Elisângela Aparecida da Silva Lizzi - orcid.org/0000-0001-7064-263X

CONFLITOS DE INTERESSE

Os autores declararam não haver conflitos de interesse.

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