Serviços Personalizados
Journal
Artigo
Indicadores
- Citado por SciELO
Links relacionados
- Similares em SciELO
Compartilhar
Epidemiologia e Serviços de Saúde
versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde vol.32 no.1 Brasília 2023 Epub 24-Mar-2023
http://dx.doi.org/10.1590/s2237-96222023000100024
Artigo original
Caracterização e completitude das fichas de notificação de violência contra a pessoa idosa em Niterói-RJ, 2011-2020
1Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de Epidemiologia, Rio de Janeiro, RJ, Brazil
2Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, Brazil Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
3 Universidade Federal de Uberlândia, Faculdade de Medicina, Uberlândia, MG, Brazil
4Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Nutrição, Rio de Janeiro, RJ, Brazil
Objetivo:
analisar o perfil da violência contra a pessoa idosa e o grau de completitude das fichas de notificação do evento em Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.
Métodos:
estudo descritivo, utilizando como fonte de dados as fichas de notificação de violência obtidas do Sistema de Informação de Agravos de Notificação, 2011-2020; a análise da completitude realizou-se segundo critérios propostos pelo Ministério da Saúde.
Resultados:
dos 486 casos registrados, o tipo de violência mais notificada foi a violência física (48,1%), seguida das violências psicológica (22,2%) e autoprovocada (21,4%); os campos com maior grau de incompletitude corresponderam à escolaridade da vítima (32,8%) e à violência de repetição (41,5%).
Conclusão:
apesar do aumento das notificações no período, predominantemente de violência física, alguns campos importantes das fichas persistem com baixa completitude, o que reforça a importância do treinamento dos profissionais visando melhorar o processo de notificação e a qualidade dos dados.
Palavras-chave: Notificação de Doenças; Violência; Abuso de Idosos; Idoso; Epidemiologia Descritiva
Contribuições do estudo
Principais resultados
A violência contra idosos mais notificada em Niterói foi a violência física, seguida da psicológica e da autoprovocada. Campos importantes da ficha de notificação apresentaram completitude abaixo do esperado.
Introdução
O material instrutivo de notificação de violência interpessoal e autoprovocada, publicado pelo Ministério da Saúde em 2016, define como objetos de notificação do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) o “caso suspeito ou confirmado de violência doméstica/intrafamiliar, sexual, autoprovocada, tráfico de pessoas, trabalho escravo, trabalho infantil, tortura, intervenção legal e violências homofóbicas contra mulheres e homens em todas as idades. No caso de violência extrafamiliar/comunitária, somente serão objetos de notificação: as violências contra crianças, adolescentes, mulheres, pessoas idosas, pessoas com deficiência, indígenas e população LGBT”.1 Especificamente sobre a violência contra a pessoa idosa (VCPI), o instrutivo classifica esse tipo de violência, quanto à natureza dos atos violentos, como violência psicológica, física, sexual, patrimonial, negligência, tortura e tráfico de seres humanos.1
A VCPI é um problema de saúde pública em diversas partes do mundo, inclusive o Brasil.2,3 Dados de uma revisão sistemática com meta-análise sobre prevalência de VCPI, considerando 52 artigos publicados entre 1992 e 2015, oriundos de 28 países de localização geográfica diversa (América, Europa, Ásia, Pacífico, Mediterrâneo), mostraram uma prevalência combinada de diferentes manifestações de violência de 15,7%, ou seja, cerca de uma a cada seis pessoas com idade acima de 60 anos já teria sido vítima de violência.3 As mulheres são as principais vítimas de violência nessa faixa etária.2,4
No Brasil, dados de prevalência de VCPI ainda são escassos e de difícil sistematização, por incluírem alguns poucos tipos de violência, serem mensurados de formas distintas entre os diversos estudos e estarem concentrados nas regiões Sul e Sudeste do país.2,4 Na cidade de Niterói, estado do Rio de Janeiro, realizou-se um estudo de base populacional sobre a questão, no ano de 2006, com indivíduos maiores de 60 anos, não institucionalizados e residentes em áreas cobertas pelo então Programa Saúde da Família (PSF), atual Estratégia Saúde da Família. Neste estudo, a prevalência de violência física contra idosos foi 10,1%.5
Com o envelhecimento populacional acelerado nas últimas décadas,6 a partir da implantação do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), no âmbito do Sinan, em 2006, e a inclusão da VCPI no rol de agravos de notificação compulsória, o número de notificações desse agravo vem aumentando no país.7 Entre os anos de 2006 e 2011, o número de notificações cresceu cerca de 261%.7 No primeiro semestre de 2020 (1º ano da pandemia de covid-19), as denúncias de VCPI recebidas pelo Disque 100 também apresentaram incremento: das denúncias de violações contra a pessoa idosa recebidas, 40,3% referiam negligência; 24,6%, violência psicológica; 20,1%, violência patrimonial; e 12,2%, violência física.8
Estudos contemplando a análise do perfil de notificações sobre VCPI no Brasil são, em sua maioria, restritos ao período anterior à pandemia de covid-19. Foram identificados 11 estudos sobre o tema, realizados em diferentes regiões do país: três abordaram as notificações realizadas em todo o Brasil,7,9,10 um foi conduzido nos estados da região Sul,11 dois realizados com dados do Rio Grande do Sul,12,13 um no Espírito Santo,14 dois envolvendo as notificações do município de São Paulo,15,16 um em Campinas17 e outro com dados de Pernambuco.18 A completitude dos campos das fichas de notificação de violência contra a pessoa idosa não foi avaliada nesses estudos.
A pandemia de covid-19 contribuiu para o aumento dos casos de VCPI em função do aumento da vulnerabilidade da pessoa idosa, decorrente do isolamento, abandono de familiares e redução do poder de compra, da rede de apoio, do acesso a serviços de saúde e de proteção social.19 Há carência de pesquisas nacionais que analisem esse tipo de violência durante a pandemia de covid-19.
Estudos que analisem o perfil das notificações de VCPI antes e durante a pandemia, bem como a análise da qualidade desses dados, incluindo a avaliação da completitude dos campos da ficha de notificação, são relevantes e necessários. Considerando-se o tamanho e a diversidade regional do país, a compreensão desse problema no âmbito local pode contribuir para o entendimento de suas características, além de permitir a avaliação da qualidade desse tipo de informação em munícipios com características semelhantes ao município-objeto do presente estudo, cujos resultados seus autores esperam ser de grande valia para a sensibilização de gestores e profissionais de saúde, em todas as Unidades da Federação brasileira, haja vista a importância do registro das notificações na rotina dos serviços. Esta informação, gerada com qualidade, propicia a elaboração e implementação de ações concretas e mais condizentes com o perfil identificado, de modo a garantir a prevenção, o acolhimento de casos e o acompanhamento das situações de VCPI.
Este estudo teve como objetivo analisar o perfil das notificações de VCPI e o grau de completitude das fichas de notificação desse agravo na população idosa da cidade de Niterói, estado do Rio de Janeiro, Brasil.
Métodos
Trata-se de um estudo descritivo, utilizando-se, como fonte de dados, as fichas de notificação de VCPI no Sinan, no período de janeiro de 2011 a dezembro de 2020.
Niterói localiza-se na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com população estimada em 515.317 habitantes em 2020,20 sendo os idosos 19,5%, segundo dados do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus).21 Em 2018, 29,5% dos domicílios do município fluminense referiam renda mensal de até meio salário mínimo per capita.20 Niterói ocupa a sétima posição no país - a primeira do estado do Rio de Janeiro - na classificação dos municípios com maior índice de desenvolvimento humano (IDH): 0,873.20
Em 2014, o município instituiu o Comitê de Vigilância de Violências, constituído por uma equipe do Setor de Supervisão Metodológica (Desum), vinculado à Vice-Presidência de Atenção Coletiva, Ambulatorial e da Família, da Secretaria Municipal de Saúde. Esse Comitê é composto por profissionais das equipes da Atenção Básica, representantes de instituições escolares, da rede hospitalar e órgãos afins, como o Centro de Referência de Assistência Social e o Conselho Tutelar, entre outros. O Comitê, que se reúne bimestralmente, atua no monitoramento dos casos notificados pelos técnicos da área de atuação em situações de violências e da Coordenadoria de Vigilância municipal. Todos os casos notificados (novos ou em andamento) são enviados às equipes de referência, para esse monitoramento. As notificações são realizadas, em sua maioria, por unidades hospitalares, após atendimentos de urgência e emergência.
Neste estudo, conforme o material instrutivo do sistema VIVA-Sinan, caso suspeito ou confirmado de VCPI foi definido como “violência interpessoal psicológica, física, sexual, patrimonial, tortura, tráfico de pessoas, negligência, bem como violência autoprovocada e/ou tentativa de suicídio, dirigida a um indivíduo com 60 anos ou mais de idade”.1 Foram incluídas no estudo as notificações no VIVA-Sinan de casos envolvendo indivíduos com idade igual ou superior a 60 anos, de ambos os sexos.
Os dados oriundos do Sinan foram fornecidos aos pesquisadores pela Coordenação de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal de Saúde em março de 2021, excluídas as informações que permitissem a identificação pessoal dos registros no sistema. Para avaliação do percentual de preenchimento dos diferentes campos da ficha de notificação, foi analisada a frequência de dados ausentes e dos campos preenchidos como “ignorado”, em cada uma das variáveis consideradas na análise, realizada ano a ano, segundo os padrões recomendados pelo Sinan: completitude boa (categoria 1), mais de 75,0% dos campos preenchidos; completitude regular (categoria 2), entre 50,1% e 75,0%; completitude baixa (categoria 3), de 25,1% a 75,0%; ou completitude muito baixa (categoria 4), igual ou inferior a 25,0% dos campos preenchidos.1
As variáveis sociodemográficas relativas ao perfil das vítimas foram: idade (em anos completos); sexo (masculino; feminino; ignorado); raça/cor da pele (branca; parda; preta; indígena; amarela e ignorada); escolaridade (analfabeto; 1ª a 4ª série incompleta; 4ª série completa do ensino fundamental; 5ª a 8ª série incompleta; ensino fundamental completo; ensino médio incompleto; ensino médio completo; educação superior incompleta; educação superior completa; não se aplica; ignorado); e estado civil (solteiro; casado/união consensual; viúvo; separado; não se aplica; ignorado). Além destas, foi analisada a variável relativa à presença de algum tipo de deficiência ou transtorno (sim; não; ignorado).
As variáveis relativas à caracterização das situações de violência foram: local da ocorrência (residência; habitação coletiva; escola; local de prática esportiva; bar ou similar; via pública; comércio/serviços; indústria/construção; outro; ignorado); recorrência (sim; não; ignorado); e meio de agressão (força corporal/espancamento; enforcamento; objeto contundente; objeto perfurocortante; substância/objeto quente; envenenamento; intoxicação; arma de fogo; ameaça; outro). Os tipos de violência sofrida foram assim categorizados: psicológica; física; sexual; negligência; lesão autoprovocada e/ou tentativa de suicídio e outras (tortura; tráfico de seres humanos e patrimonial). Também foi analisado se houve encaminhamento do caso para outros serviços de referência (sim; não; ignorado).
As variáveis correspondentes ao possível autor da agressão foram: sexo do provável autor da agressão (masculino; feminino; ambos os sexos; ignorado); número de envolvidos (um; dois ou mais; ignorado); vínculo com a vítima (pai; mãe; cônjuge; ex-cônjuge; namorado(a); ex-namorado(a); filho(a); irmão(ã); amigo/conhecido; desconhecido(a); cuidador(a); patrão/chefe; pessoa com relação institucional; a própria pessoa; outro; ignorado); e suspeita de uso de álcool (sim; não; ignorado).
Para a apresentação do perfil dos casos notificados, foram analisados os casos anualmente, de acordo com as variáveis. A descrição do perfil dos casos notificados foi pautada, somente, nos campos da ficha que apresentaram completitude regular e boa.
Os resultados foram apresentados em números absolutos e percentuais. A comparação de cada tipo de violência notificada, segundo as características da vítima e do possível perpetrador, foi analisada por meio do teste qui-quadrado de Pearson (χ2), ao nível de significância de 5%, para a identificação das diferenças estatisticamente significativas.
No sentido de estimar a tendência suavizada do número de notificações ao longo dos anos selecionados, utilizou-se o método moving-average smoothers para a suavização dos dados. Todas as análises foram realizadas com o uso do software Stata, versão 15.
O projeto de pesquisa foi dispensado de aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, conforme Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 466, de 12 de dezembro de 2012,22 por se tratar de um estudo com dados secundários, oriundos de banco de dados de domínio público, cedidos pela Coordenação de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal de Saúde de Niterói. O banco de dados disponibilizado não apresentava informações que permitissem a identificação dos casos.
Resultados
Foram registradas 486 notificações de VCPI no período de janeiro de 2011 a dezembro de 2020, no município de Niterói. As seguintes informações apresentaram boa completitude: sexo; idade; raça/cor da pele; todos os tipos de violência contra o idoso; e vínculo do agressor com a vítima. Os seguintes campos da ficha apresentaram completitude regular: estado civil; possuir deficiência/transtorno; local de ocorrência; número de envolvidos; e sexo do agressor. Os campos referentes à escolaridade da vítima, recorrência do evento, suspeita de uso de álcool pelo agressor e encaminhamento para outro setor da Saúde tiveram muito baixa/baixa completitude, em todos os anos da série histórica (Tabela 1).
Variáveis | 2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 | 2020 | Total | Completitude |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
(n = 3) | (n = 14) | (n = 9) | (n =6) | (n = 44) | (n = 37) | (n = 79) | (n = 75) | (n = 109) | (n = 110) | (n = 486) | ||
% | % | % | % | % | % | % | % | % | % | % | ||
Notificação individual | ||||||||||||
Sexo | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | Boa |
Idade | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | Boa |
Raça/cor da pele | 100,0 | 92,8 | 88,9 | 83,3 | 75,0 | 67,5 | 91,1 | 81,3 | 69,7 | 70,0 | 76,7 | Boa |
Escolaridade | 100,0 | 14,3 | 55,5 | 50,0 | 27,2 | 13,5 | 11,4 | 23,5 | 11,0 | 21,8 | 32,8 | Muito baixa |
Estado civil | 100,0 | 85,7 | 66,6 | 83,3 | 47,7 | 43,2 | 55,7 | 54,6 | 44,0 | 55,4 | 52,9 | Regular |
Deficiência ou transtorno | 66,6 | 64,3 | 55,5 | 50 | 36,3 | 37,8 | 70,9 | 36 | 66,0 | 66,3 | 57,0 | Regular |
Ocorrência | ||||||||||||
Local de ocorrência | 100,0 | 100,0 | 88,9 | 66,6 | 63,6 | 72,9 | 65,8 | 78,6 | 92,6 | 97,2 | 82,9 | Boa |
Recorrência | 100,0 | 64,3 | 77,8 | 66,6 | 43,2 | 35,1 | 30,4 | 37,3 | 35,8 | 50,9 | 41,5 | Baixa |
Tipo de violência | ||||||||||||
Física | 100,0 | 92,8 | 100,0 | 100,0 | 97,7 | 97,3 | 98,7 | 96 | 98,1 | 95,4 | 97,1 | Boa |
Negligência/abandono | 100,0 | 92,8 | 100,0 | 83,3 | 97,7 | 97,3 | 98,7 | 96 | 99,1 | 98,1 | 97,7 | Boa |
Psicológica | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 83,3 | 90,9 | 97,3 | 97,4 | 89,3 | 96,3 | 92,7 | 94,2 | Boa |
Sexual | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 93,2 | 100,0 | 98,7 | 94,6 | 99,1 | 99,1 | 97,2 | Boa |
Autoprovocada e/ou tentativa de suicídio | 100,0 | 92,8 | 88,9 | 83,3 | 97,7 | 100,0 | 97,4 | 94,6 | 99,1 | 98,2 | 97,3 | Boa |
Outras | 100,0 | 92,8 | 100,0 | 83,3 | 93,2 | 94,6 | 97,4 | 89,3 | 96,3 | 94,5 | 94,4 | Boa |
Provável agressor | ||||||||||||
Número de envolvidos | 100,0 | 64,3 | 100,0 | 100,0 | 43,2 | 32,4 | 59,5 | 64,0 | 84,4 | 87,2 | 70,1 | Regular |
Sexo | 100,0 | 71,4 | 100,0 | 100,0 | 50 | 35,1 | 48,1 | 66,6 | 79,8 | 84,6 | 68,1 | Regular |
Vínculo com a vítima | 100,0 | 92,8 | 88,9 | 100,0 | 54,5 | 51,3 | 70,9 | 76,0 | 92,6 | 92,7 | 80,0 | Boa |
Mau uso de álcool | 33,3 | 42,8 | 44,4 | 66,6 | 15,9 | 37,8 | 45,5 | 37,3 | 37,6 | 56,3 | 41,7 | Baixa |
Encaminhamento | 66,6 | 71,4 | 33,3 | 83,3 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 97,5 | Boa |
A descrição do perfil das vítimas de violência é apresentada na Tabela 2. A maior parte das vítimas era do sexo feminino (54,3%), tinha idade entre 60 e 69 anos (51,2%) e grande parte foi classificada como de raça/cor da pele branca (45,5%). Em relação ao local de ocorrência, 62,3% dos episódios aconteceram no domicílio. Os tipos de violência mais notificados foram violência física (48,1%), negligência/abandono (34,3%) e violência psicológica (22,2%). Cerca de 21% dos casos notificados foram de lesões autoprovocadas ou tentativas de suicídio. Com exceção da violência física e da negligência/abandono, mais presentes entre o sexo masculino, os demais tipos de violências foram mais frequentes no sexo feminino, especialmente a violência sexual, esta, notificada apenas entre o sexo feminino. Uma pequena parte dos casos notificados foi encaminhada a outro serviço de saúde (3,3%), sendo as vítimas do sexo feminino mais referidas nesse encaminhamento.
Variáveis | Total | Masculino | Feminino | p-valora | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | ||
486 | 100,0 | 222 | 45,7 | 264 | 54,3 | ||
Idade (anos) | |||||||
60-69 | 249 | 51,2 | 117 | 52,7 | 132 | 50,0 | 0,112 |
70-79 | 134 | 27,6 | 67 | 30,2 | 67 | 25,4 | |
≥ 80 | 103 | 21,2 | 38 | 17,1 | 65 | 24,6 | |
Raça/cor da pele | |||||||
Brancas | 221 | 45,5 | 106 | 47,7 | 115 | 43,9 | 0.698 |
Negras | 152 | 31,3 | 67 | 30,2 | 85 | 32,4 | |
Ignorado/faltante | 113 | 23,2 | 49 | 22,1 | 64 | 23,7 | |
Escolaridade (anos de estudo) | |||||||
< 4 | 20 | 4,1 | 5 | 2,2 | 15 | 5,7 | 0,138 |
4-7 | 16 | 3,3 | 7 | 3,2 | 9 | 3,4 | |
8-10 | 14 | 2,9 | 4 | 1,8 | 10 | 3,8 | |
≥ 11 | 38 | 7,8 | 16 | 7,2 | 22 | 8,3 | |
Ignorado/faltante | 398 | 81,9 | 190 | 85,6 | 208 | 78,8 | |
Estado civil | |||||||
Solteiro | 95 | 19,5 | 48 | 21,6 | 47 | 17,8 | <0,001 |
Casado/união consensual | 69 | 14,2 | 45 | 20,3 | 24 | 9,1 | |
Viúvo | 73 | 15,0 | 12 | 5,4 | 61 | 23,1 | |
Separado | 20 | 4,1 | 9 | 4,1 | 11 | 4,2 | |
Ignorado/faltante | 229 | 47,2 | 108 | 48,6 | 121 | 45,8 | |
Deficiência ou transtorno | |||||||
Sim | 132 | 27,2 | 55 | 24,8 | 77 | 29,2 | 0,034 |
Não | 145 | 29,8 | 57 | 25,7 | 88 | 33,3 | |
Ignorado/faltante | 209 | 43,0 | 110 | 49,5 | 99 | 37,5 | |
Local de ocorrência | |||||||
Residência | 303 | 62,3 | 114 | 51,3 | 189 | 71,6 | <0,001 |
Outros | 100 | 20,6 | 55 | 24,7 | 45 | 17,0 | |
Ignorado/faltante | 83 | 17,1 | 53 | 24,0 | 30 | 11,4 | |
Recorrência | |||||||
Sim | 114 | 23,4 | 30 | 13,5 | 84 | 31,8 | <0,001 |
Não | 88 | 18,2 | 43 | 19,3 | 45 | 17,0 | |
Ignorado/faltante | 284 | 58,4 | 149 | 67,2 | 135 | 51,2 | |
Tipo de violênciab | |||||||
Psicológica | 108 | 22,2 | 41 | 18,4 | 67 | 25,4 | 0,060 |
Física | 234 | 48,1 | 108 | 48,6 | 126 | 47,7 | 0,989 |
Sexual | 12 | 2,4 | 0 | 0,0 | 12 | 4,5 | 0,001 |
Negligência/abandono | 167 | 34,3 | 77 | 34,7 | 90 | 34,1 | 0,947 |
Outrosc | 17 | 3,5 | 7 | 3,1 | 10 | 3,8 | 0,660 |
Lesão autoprovocada e/ou tentativa de suicídio | 104 | 21,4 | 43 | 19,3 | 61 | 23,1 | 0,251 |
Meios de agressão | |||||||
Força corporal | 95 | 37,9 | 44 | 38,6 | 51 | 37,2 | 0,081 |
Objeto perfurocortante | 17 | 6,8 | 9 | 7,9 | 8 | 5,8 | 0,037 |
Ameaça | 14 | 5,6 | 1 | 0,9 | 13 | 9,5 | 0,002 |
Envenenamento | 11 | 4,4 | 5 | 4,4 | 6 | 4,4 | 0,132 |
Objeto contundente | 9 | 3,6 | 6 | 5,3 | 3 | 2,2 | 0,046 |
Arma de fogo | 6 | 2,4 | 4 | 3,5 | 2 | 1,5 | 0,039 |
Substância/objeto quente | 4 | 1,6 | 0 | 0,0 | 4 | 2,9 | 0,019 |
Enforcamento | 1 | 0,4 | 0 | 0,0 | 1 | 0,7 | 0,028 |
Outros | 72 | 28,7 | 32 | 28,1 | 40 | 29,2 | 0,017 |
Encaminhamento | |||||||
Sim | 16 | 3,3 | 2 | 1,0 | 14 | 5,3 | 0,207 |
Não | 458 | 94,2 | 214 | 96,3 | 244 | 92,5 | |
Ignorado/faltante | 12 | 2,5 | 6 | 2,7 | 6 | 2,2 |
a) Teste qui-quadrado de Pearson (χ2) para heterogeneidade; b) As notificações de violência contra a pessoa idosa podem contemplar a suspeita de um ou mais tipos de violência; c) Foram considerados outros tipos de violência (tortura, violência patrimonial e tráfico de seres humanos).
A Tabela 3 apresenta o perfil dos supostos agressores. A maioria dos casos de VPCI tiveram um único autor envolvido (52,1%) e 33,5% desses agressores eram do sexo masculino. Em relação ao possível autor do ato de violência, a própria pessoa (ou seja, violência autoprovocada) foi mais frequente (24,3%), seguindo-se os filhos (22,2%) e indivíduos conhecidos (13,2%).
Variáveis | Total | Masculino | Feminino | |||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | |
Número de envolvidos na agressão | ||||||
Um | 253 | 52,1 | 99 | 44,6 | 154 | 58,3 |
Dois ou mais | 88 | 18,1 | 39 | 17,6 | 49 | 18,6 |
Ignorado/faltante | 145 | 29,8 | 84 | 37,8 | 61 | 23,1 |
Sexo do agressor | ||||||
Masculino | 163 | 33,5 | 90 | 40,5 | 73 | 27,6 |
Feminino | 125 | 25,7 | 24 | 10,8 | 101 | 38,3 |
Ambos | 43 | 8,9 | 20 | 9,0 | 23 | 8,7 |
Ignorado/faltante | 155 | 31,9 | 88 | 39,7 | 67 | 25,4 |
Vínculo do agressor com a vítima | ||||||
Cônjuge/ex-cônjuge | 33 | 6,8 | 13 | 5,9 | 20 | 7,6 |
Filho | 108 | 22,2 | 41 | 18,5 | 67 | 25,4 |
Irmão | 22 | 4,5 | 11 | 5,0 | 11 | 4,2 |
Amigo/conhecido | 64 | 13,2 | 25 | 11,3 | 39 | 14,8 |
Cuidador | 19 | 3,9 | 5 | 2,3 | 14 | 5,3 |
Própria pessoa | 118 | 24,3 | 49 | 22,1 | 69 | 26,1 |
Suspeita de uso de álcool pelo agressor | ||||||
Sim | 52 | 10,7 | 19 | 8,6 | 33 | 12,5 |
Não | 151 | 31,1 | 60 | 27,0 | 91 | 34,5 |
Ignorado/faltante | 283 | 58,2 | 143 | 61,4 | 140 | 53,0 |
A Tabela 4 apresenta as características dos casos notificados segundo o tipo de violência sofrida, de acordo com algumas características sociodemográficas da vítima. A maior parcela das notificações de violência física referiu idosos entre 60 e 69 anos (64,1%), solteiros (40,1%), sem deficiência ou transtorno (75,0%), e teve o domicílio como local de ocorrência predominante (61,2%).
Variáveis | Física | Negligência/abandono | Psicológica | Sexual | Autoprovocada | Outrasa | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n (%) | p-valorb | n (%) | p-valorb | n (%) | p-valorb | n (%) | p-valorb | n (%) | p-valorb | n (%) | p-valorb | |
Sexo | 0,989 | 0,947 | 0,060 | 0,001 | 0,251 | 0,660 | ||||||
Masculino | 108 (46,2) | 77 (53,9) | 41 (38,0) | 0 (0,0) | 43 (58,6) | 7 (58,8) | ||||||
Feminino | 126 (53,8) | 90 (46,1) | 67 (62,0) | 12 (100,0) | 61 (41,4) | 10 (41,2) | ||||||
Idade (anos) | < 0,001 | < 0,001 | 0,233 | 0,449 | 0,331 | 0,344 | ||||||
60-69 | 150 (64,1) | 46 (27,5) | 64 (59,2) | 8 (66,7) | 59 (56,7) | 6 (35,3) | ||||||
70-79 | 61 (26,1) | 50 (30,0) | 26 (24,1) | 3 (25,0) | 28 (27,0) | 6 (35,3) | ||||||
≥ 80 | 23 (9,8) | 71 (42,5) | 18 (16,7) | 1 (8,3) | 17 (16,3) | 5 (29,4) | ||||||
Raça/cor da pele | 0,393 | 0,961 | 0,370 | 0,754 | 0,272 | 0,994 | ||||||
Brancas | 113 (56,7) | 89 (58,9) | 49 (54,5) | 7 (63,6) | 34 (66,7) | 10 (58,8) | ||||||
Negras | 86 (43,3) | 61 (41,1) | 41 (45,5) | 4 (36,3) | 17 (33,3) | 7 (41,2) | ||||||
Escolaridade (anos de estudo) | 0,835 | 0,254 | 0,523 | 0,657 | 0,291 | 0,416 | ||||||
< 4 | 13 (23,6) | 7 (35,0) | 6 (25,0) | 1 (33,3) | 2 (12,5) | 2 (50,0) | ||||||
4-7 | 9 (16,4) | 4 (20,0) | 4 (16,7) | 0 (0,0) | 3 (18,8) | 0 (0,0) | ||||||
8-10 | 10 (18,2) | 4 (20,0) | 6 (25,0) | 0 (0,0) | 1 (6,2) | 0 (0,0) | ||||||
≥ 11 | 23 (41,8) | 5 (25,0) | 8 (33,3) | 2 (66,7) | 10 (62,5) | 2 (50,0) | ||||||
Estado civil | 0,001 | 0,003 | 0,157 | 0,128 | 0,724 | 0,368 | ||||||
Solteiro | 53 (40,1) | 37 (36,6) | 22 (34,9) | 4 (44,4) | 10 (30,3) | 3 (30,0) | ||||||
Casado/união consensual | 41 (31,1) | 22 (21,8) | 23 (36,6) | 0 (0,0) | 11 (33,3) | 5 (50,0) | ||||||
Viúvo | 23 (17,4) | 39 (38,6) | 13 (20,6) | 5 (55,6) | 10 (30,3) | 2 (20,0) | ||||||
Separado | 15 (11,4) | 3 (3,0) | 5 (7,9) | 0 (0,0) | 2 (6,1) | 0 (0,0) | ||||||
Deficiência ou transtorno | < 0,001 | < 0,001 | 0,022 | 0,121 | < 0,001 | 0,233 | ||||||
Sim | 33 (25,0) | 66 (61,1) | 19 (33,9) | 2 (22,2) | 43 (76,8) | 6 (66,7) | ||||||
Não | 99 (75,0) | 42 (38,9) | 37 (66,1) | 7 (77,8) | 13 (23,2) | 3 (33,3) | ||||||
Local de ocorrência | < 0,001 | 0,184 | 0,603 | 0,058 | 0,001 | 0,762 | ||||||
Residência | 98 (61,2) | 119 (78,8) | 58 (73,4) | 5 (50,0) | 88 (87,1) | 10 (71,4) | ||||||
Outros | 62 (38,8) | 32 (21,2) | 21 (26,6) | 5 (50,0) | 13 (12,9) | 4 (28,6) | ||||||
Recorrência | 0,439 | 0,008 | 0,014 | 0,001 | 0,485 | 0,173 | ||||||
Sim | 55 (53,9) | 46 (69,7) | 37 (71,1) | 0 (0,0) | 22 (51,2) | 5 (83,3) | ||||||
Não | 47 (46,1) | 20 (30,3) | 15 (28,9) | 8 (100,0) | 21 (48,8) | 1 (16,7) |
a) Foram considerados outros tipos de violência (tortura, violência patrimonial e tráfico de seres humanos); b) Utilizou-se o teste qui-quadrado de Pearson (χ2) para heterogeneidade, ao nível de significância de 5%, para identificação das diferenças estatisticamente significativas.
As notificações de negligência/abandono referiram proporcionalmente mais idosos do sexo masculino (53,9%), com 80 anos ou mais (42,5%), solteiros ou viúvos (75,2%), com deficiência física ou transtorno (61,1%) e histórico de vitimização pregressa (69,7%). Os casos de violência sexual notificados foram exclusivamente contra o sexo feminino, sem registro de recorrência, enquanto a maioria dos registros de violência autoprovocada foi de idosos com algum tipo de deficiência ou transtorno (76,8%). Violência psicológica e outros tipos de violência (patrimonial, tortura e tráfico de seres humanos) não apresentaram diferenças estatisticamente significativas, segundo as características estudadas (Tabela 4).
A Figura 1 mostra a tendência suavizada das notificações de violência no período avaliado. Observou-se uma tendência de aumento nas notificações de violência autoprovocada, violência sexual, negligência/abandono e outros tipos de violência (tortura, violência patrimonial e tráfico de seres humanos). Em 2020 (1º ano da pandemia de covid-19) a maioria dos tipos de violência aumentou, à exceção das violências físicas e psicológica.
Discussão
O presente estudo observou campos da ficha de notificação com maior grau de incompletitude, quais sejam: violência de repetição, suspeita de uso de álcool pelo agressor, escolaridade da vítima e encaminhamento para outro setor da Saúde. O tipo de violência mais notificada foi a violência física, seguida da psicológica e da autoprovocada. Para a maioria dos tipos de violência analisados, verificou-se um aumento dos casos notificados durante todo o período avaliado, incluído o ano pandêmico de 2020.
Estudos com dados oriundos do Sinan podem ser úteis para a compreensão geral da qualidade dos sistemas de vigilância, da completitude no preenchimento das fichas, além de possibilitar a identificação de fragilidades nesses sistemas.23 No presente estudo, a completitude das notificações apresentou variação no padrão de preenchimento em relação às variáveis obrigatórias e essenciais; somente os campos-chave apresentaram boa completitude. Esta avaliação dos campos-chave, entretanto, não deve ser analisada como fator positivo do processo de notificação, uma vez que sem esse registro não é possível realizar a inserção da ficha de notificação na base de dados do sistema VIVA.
O uso de álcool, campo de preenchimento obrigatório, apresentou baixa completitude, o que remete à discussão sobre as possíveis dificuldades para identificação e notificação dessa característica, como também sobre a importância do preenchimento desse campo para o entendimento do problema e elaboração de estratégias de intervenção.24 Embora a literatura aponte o uso de álcool como importante fator de risco para a ocorrência de todos os tipos de violência, inclusive contra o idoso,24 a baixa completitude dessas notificações não permite avaliar se isso ocorre em Niterói e, por isso, compromete um planejamento assertivo de ações de saúde que abordem o uso de álcool na perspectiva da VCPI no município.
Sobre o preenchimento das variáveis identificadas como essenciais, destaca-se a classificação de muito baixa completitude para o campo relativo à escolaridade, cuja frequência de “ignorados” encontrada foi de 81,9%, alta em comparação com o achado nos estudos realizados na região Sul do Brasil 12 e em Recife18, que apresentaram frequências de 30,5% e 52,4% respectivamente. Ressalta-se que aspectos importantes para a compreensão do perfil da vítima e do episódio de violência apresentaram completitude regular a muito baixa, a saber: escolaridade, estado civil, presença de transtorno/deficiência e violência de repetição. A falta dessas informações impossibilita compreender melhor o perfil da violência e suas vítimas.
Outro aspecto a ser destacado, relacionado ao baixo preenchimento de alguns campos das fichas, é que essa informação não se refere apenas ao ano de 2020, início da covid-19. Os achados deste estudo mostram que o baixo preenchimento constitui um problema de longa data, observado nos anos anteriores à pandemia. A melhoria na completitude dos campos da ficha deve ser incentivada, dada sua importância para a identificação dos casos e, consequentemente, elaboração de políticas mais condizentes com o perfil mais vulnerável a esse tipo de violência.12,18,23
Ao se analisar o perfil dos casos notificados, verificou-se maior número de notificações de violência contra o sexo feminino, além de as principais vítimas de VCPI terem idade entre 60 e 69 anos. Os achados do estudo relativos ao sexo da vítima de VCPI são semelhantes aos obtidos em grande parte dos estudos sobre o tema, em nível nacional e local, nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e nas cidades de São Paulo e Recife.7,9,12,13,16,18
Mais de 20% dos casos notificados foram por violência autoprovocada. A tentativa de suicídio e o suicídio entre pessoas idosas são importantes problemas de saúde pública em diversas partes do mundo, incluindo o Brasil.24,25 Analisando-se as taxas de mortalidade por suicídio no país, no período de 1980 a 2008, foram encontrados índices mais altos na faixa etária de 70 anos ou mais. Segundo os autores, esse indicador cresceu 29,5% em 26 anos, embora seja menor quando comparado às estimativas mundiais.
É grande a diferença existente entre os tipos de VCPI mais frequentes nas notificações e os encontrados nos estudos de base populacional. Um estudo investigou a magnitude da VCPI no bairro da Ilha da Conceição, Niterói, no ano de 2006, e constatou ser a violência psicológica (43,2%) o tipo de violência mais prevalente, seguida da violência física (15,7%),26 diferentemente do encontrado no presente estudo. Essa diferença reforça o fato de as notificações serem “a ponta do iceberg”, uma vez que a maioria delas refere situações de violência mais graves, mais visíveis e/ou menos toleradas socialmente, tais como, por exemplo, a violência física e a sexual. A violência física é mais frequentemente notificada devido a seu meio de agressão ser o uso de força corporal, portanto, de mais fácil identificação quando comparada com outros tipos de violência - psicológica, financeira e negligência/abandono.27
As situações de violência podem-se potencializar na velhice, devido ao aumento da dependência de cuidados para o desenvolvimento e realização de atividades cotidianas e, em alguns casos, financeiras.19,28 Nesse sentido, compreender a dinâmica intrafamiliar favorece a identificação de possíveis situações de violência intradomicílio. O presente estudo observou que o perpetrador de VCPI é principalmente um indivíduo do convívio familiar, próximo à vítima. Este resultado é coerente com a literatura, segundo a qual a maior parte da violência física contra o idoso é perpretada por pessoas próximas, tais como filhos, cônjuges, ex-cônjuges, netos e/ou cuidadores.8,29 Desse modo, destaca-se a importância de se conhecer a dinâmica familiar,15 no que a ESF pode exercer um papel fundamental. O reconhecimento da participação de familiares nessas ocorrências aumenta o potencial de identificação dessas situações e, consequentemente, possibilita a realização de intervenções no sentido da interrupção do ciclo da violência, promovendo a diminuição/eliminação da recorrência de VCPI.18 Ressalta-se que variáveis importantes para a identificação e compreensão do perfil do agressor tiveram completitude de regular a baixa, o que pode dificultar o desenho de um retrato mais detalhado do(s) possível(is) autor(es) da violência, reforçando a importância da capacitação dos profissionais dos serviços de saúde, responsáveis pelo preenchimento da ficha de notificação.
Neste estudo, o encaminhamento das vítimas a outros setores da Saúde foi registrado como não realizado na maior parte das notificações (94,2%). Isto sugere uma fragilidade das instituições de proteção no município, uma vez que o encaminhamento adequado dos casos a setores de referência favorece a formação de uma rede de apoio e garantia de direitos, contribuindo para a interrupção do ciclo de violência.19 Vale pontuar que a pandemia de covid-19 reduziu ainda mais as ações governamentais voltadas ao bem-estar dos idosos e à rede de suporte social.19 É importante pontuar que o número de encaminhamentos realizados em Niterói, no ano de 2020, foi semelhante ao de 2019; entretanto, esses percentuais estão abaixo do esperado (dado não apresentado em tabela).
O presente estudo observou uma tendência de aumento do número de casos notificados de VCPI em Niterói, no período de 2011 a 2020. Este crescimento pode estar relacionado ao maior acesso, tanto de gestores como de profissionais de saúde, à informação sobre a importância da identificação e notificação dos casos suspeitos, difundida entre eles via cartilhas, documentos e cursos de capacitação realizados no munícipio. Destaca-se que os resultados deste estudo são semelhantes aos encontrados em outras pesquisas nacionais.9,12,13
A maioria dos tipos de violência analisados aumentou em 2020. Esse resultado foi oposto ao observado por outro estudo, este com enfoque nas notificações de violência contra crianças e adolescentes no estado de Santa Catarina, também durante a pandemia.30 Uma hipótese para a manutenção das notificações em Niterói, no período aqui abordado, pode estar relacionada à organização da Secretaria Municipal de Saúde, mais precisamente ao trabalho do Comitê de Vigilância de Violências do munícipio. Este Comitê manteve reuniões periódicas com o propósito de reforçar a importância de se notificar a suspeição de casos de violência durante o período de isolamento social da pandemia. A realização (i) do acompanhamento contínuo pelas equipes da ESF no território, mediante visitas domiciliares, (ii) a priorização de atendimentos nos serviços voltados a grupos prioritários, mesmo durante o lockdown, (iii) as campanhas publicitárias de estímulo à denúncia de violência e (iv) as articulações intersetoriais são iniciativas que, certamente, contribuem para a notificação dos casos de violência.19
Este estudo deve ser analisado à luz de suas limitações e pontos fortes. A primeira limitação refere-se ao fato de ele ter-se realizado em um munícipio de porte médio, da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com altos indicadores socioeconômicos e de qualidade de vida, não sendo, portanto, representativo da maioria dos munícipios brasileiros, o que limita a generalização dos achados para outras localidades do país. Outra possível limitação, relacionada à utilização de dados secundários oriundos de sistemas de informações, consiste na possível subnotificação e erros de registro, induzindo o estudo a estimativas aquém da realidade desse tipo de ocorrências. A capacitação e qualificação dos profissionais de saúde envolvidos no processo de notificação dos casos suspeitos de VCPI é fundamental nesse sentido, para minimizar o problema em situações similares futuras.
Entre os pontos fortes do estudo, destaca-se a análise da completitude oriundas das fichas de notificação, permitindo a identificação de campos que são importantes para a compreensão dos casos, além daqueles que necessitam de reforço e capacitação no preenchimento. Outro ponto forte do trabalho refere-se à inclusão dos dados de 2020, ano de início da pandemia de covid-19. Embora haja publicações disponíveis dedicadas ao tema da VCPI no contexto da pandemia de covid-19, trata-se de um primeiro estudo com dados empíricos que inclui esse período, no Brasil.
As notificações de casos suspeitos de VCPI no município de Niterói foram, em sua maioria, de violência física. Analisando-se a série histórica, pode-se observar uma tendência de crescimento das notificações, incluindo o período inicial da pandemia de covid-19 (2020), para a maioria dos tipos de violência analisados. Campos importantes para o entendimento do problema, como escolaridade da vítima, violência de repetição e suspeita de uso de álcool pelo agressor, fundamentais para a tomada de decisão pela garantia da proteção do idoso e prevenção da VCPI, permanecem com completitude abaixo da esperada. A qualificação do processo de vigilância e a valorização da qualidade da informação são elementos-chave para a formulação de políticas públicas de prevenção e controle mais condizentes com o perfil de Niterói.
Como conclusão, destaca-se a importância da realização de estudos epidemiológicos de base populacional com o objetivo de identificar a real magnitude do problema, em nível local e nacional. Estudos descritivos, com enfoque no conhecimento do perfil e da qualidade das notificações de VPCI, sobre dados do Sinan, em outras localidades e no Brasil como um todo, mostram-se necessários.
REFERÊNCIAS
1. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Viva: instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2016 [citado 2022 Abr 06]. 92 p. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/viva_instrutivo_violencia_interpessoal_autoprovocada_2ed.pdf [ Links ]
2. Santana IO, Vasconcelos DC, Coutinho MPL. Prevalência da violência contra o idoso no Brasil: revisão analítica. Arq. bras. psicol. 2016; 68(1):126-139. Disponivel em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo/pid=S1809-52672016000100011 [ Links ]
3. Yon Y, Mikton CR, Gassoumis ZD, Wilber KH. Elder abuse prevalence in community settings: a systematic review and meta-analysis. Lancet Global health. 2017;5(2):e147-e56. doi: 10.1016/s2214-109x(17)30006-2 [ Links ]
4. Espíndola CR, Blay SL. Prevalência de maus-tratos na terceira idade: revisão sistemática. Rev Saude Publica. 2007;41(2);301-6. doi: 10.1590/S0034-89102007000200020 [ Links ]
5. Moraes CL, Apratto Júnior PC, Reichenheim ME. Rompendo o silêncio e suas barreiras: um inquérito domiciliar sobre a violência doméstica contra idosos em área de abrangência do Programa Médico de Família de Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica. 2008;24(10):2289-2300. doi: 10.1590/S0102-311X2008001000010 [ Links ]
6. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Projeção da população do Brasil por sexo e idade para o período 2000/2060. Projeção da população das unidades da federação por sexo e idade para o período 2000/2030 [Internet]. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2013 [citado 2022 Abr 06]. 21 p. Disponível em: https://ftp.ibge.gov.br/nota_metodologica_2013.pdf [ Links ]
7. Mascarenhas MDM, Andrade SSCA, Neves ACM, Pedrosa AAG, Silva MMA, Malta DC, et al. Violência contra a pessoa idosa: análise das notificações realizadas no setor saúde - Brasil, 2010. Cienc Saude Colet. 2012;17(9):2331-41. doi: 10.1590/S1413-81232012000900014 [ Links ]
8. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (BR). Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa. Violência contra a pessoa idosa: vamos falar sobre isso? [Internet]. Brasília: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; 2020 [citado 2022 Abr 07]. 46 p. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/junho/cartilhacombateviolenciapessoaidosa.pdf [ Links ]
9. Miziara CSMG, Braga MV, Carvalho FI, Teixeira TV, Miziara ID, Muñoz DR, et al. Vítima silenciosa: violência doméstica contra o idoso no Brasil. Saude Etica Justiça. 2015;20(1):1-8. doi: 10.11606/issn.2317-2770.v20i1p1-8 [ Links ]
10. Souza TA, Gomes SM, Barbosa IR, Lima KC. Action plan for tackling violence against older adults in Brazil: analysis of indicators by states. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2020;23(6):e200106. doi: 10.1590/1981-22562020023.200106 [ Links ]
11. Lange FC, Bolsoni CC, Lindner SR. Caracterização das violências autoprovocadas cometidas pelas pessoas idosas na Região Sul do Brasil de 2009 a 2016. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2021;24(6):e210109. doi:10.1590/1981-22562020024.210109 [ Links ]
12. Hohendorff JV, Paz AP, Freitas CPP, Lawrenz P, Habigzang LF. Caracterização da violência contra idosos a partir de casos notificados por profissionais da saúde. Rev SPAGESP. 2018;19(2):64-80. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo/pid=S1677-29702018000200006&lng=es [ Links ]
13. Arruda GT, Kocourek S, Oliveira JL. Violência contra o idoso no Rio Grande do Sul, Brasil: análise das notificações de 2009 a 2016. Revista Kairós: Gerontologia. 2018;21(3):181-92. doi:10.23925/2176-901X.2018v21i3p181-192 [ Links ]
14. Pampolim G, Leite FMC. Neglect and psychological abuse of older adults in a Brazilian state: analysis of reports between 2011 and 2018. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2020;23(6): e190272. doi: 10.1590/1981-22562020023.190272 [ Links ]
15. Rodrigues CL, Armond JE, Gorios C. Physical and sexual aggression against elderly persons reported in the city of São Paulo. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2015;18(4):755-60. doi: 10.1590/1809-9823.2015.14177 [ Links ]
16. Guimarães APS, Górios C, Rodrigues CL, Armond JE. Notification of intrafamily violence against elderly women in the city of São Paulo. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2018;21(1):88-94. doi: 10.1590/1981-22562018021.160213 [ Links ]
17. Lopes EDS, D´Elboux MJ. Violência contra a pessoa idosa no município de Campinas, São Paulo, nos últimos 11 anos: uma análise temporal. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2021;24(6):e200320. doi:10.1590/1981-22562020023.200320 [ Links ]
18. Paraíba PMF, Silva MCM. Perfil da violência contra a pessoa idosa na cidade do Recife-PE. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2015;18(2):295-306. doi: 10.1590/1809-9823.2015.14047 [ Links ]
19. Moraes CL, Marques ES, Ribeiro AP, Souza ER. Violência contra idosos durante a pandemia de Covid-19 no Brasil: contribuições para seu enfrentamento. Cienc Saude Colet. 2020;25(Supl 2):4177-84. doi: 10.1590/1413-812320202510.2.27662020 [ Links ]
20. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Estimativas da população residente com data de referência 1º de julho de 2020 [Internet]. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020 [citado 2022 Abr 15]. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/releases/28668 [ Links ]
21. Fundação Getúlio Vargas (BR). Onde estão os idosos? Conhecimento contra o Covid-19 [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas; 2020 [citado 2022 Abr 15]. Disponível em: https://cps.fgv.br/covid-Idosos [ Links ]
22. Brasil. Ministério da Saúde. Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos [Internet]. Diário Oficial da União, Brasília (DF), 2012 Dez 12 [citado 2013 Jun 14], Seção 1:59. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2013/06_jun_14_publicada_resolucao.html [ Links ]
23. Ribeiro NM. Análise dos Sistemas de Informação em Saúde SIM e SINAN em Relação ao Suicídio na Cidade de Uberaba/MG. [dissertação]. Uberaba: Universidade Federal do Triângulo Mineiro; 2016. 94 p. [ Links ]
24. Santos MAB, Moreira RS, Faccio PF, Gomes GC, Silva VL. Fatores associados à violência contra o idoso: uma revisão sistemática da literatura. Cienc Saude Colet. 2020;25(6):2153-75. doi: 10.1590/1413-81232020256.25112018 [ Links ]
25. Minayo MCS, Cavalcante FG. Suicídio entre pessoas idosas: revisão da literatura. Rev Saude Publica. 2010;44(4):750-7. doi: 10.1590/S0034-89102010000400020 [ Links ]
26. Apratto Júnior PC. A violência doméstica contra idosos nas áreas de abrangência do Programa Saúde da Família de Niterói (RJ, Brasil). Cienc Saude Colet. 2010;15(6):2983-95. doi: 10.1590/S1413-81232010000600037 [ Links ]
27. Wanderbroocke ACNS, Moré CLOO. Abordagem profissional da violência familiar contra o idoso em uma unidade básica de saúde. Cad Saude Publica. 2013;29(12):2513-22. doi: 10.1590/0102-311X00174112 [ Links ]
28. Alves-Silva JD, Scorsolini-Comin F, Santos MA. Idosos em instituições de longa permanência: desenvolvimento, condições de vida e saúde. Psicol Reflex Crit. 2013;26(4):820-30. doi: 10.1590/S0102-79722013000400023 [ Links ]
29. Minayo MCS. Violência contra idosos: o avesso de respeito à experiência e à sabedoria. 2. ed. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos; 2005. 48 p. [ Links ]
30. Platt VB, Guedert JM, Coelho EBS. Violence against children and adolescents: notification and alert in times of pandemic. Rev Paul Pediatr. 2021;39:e2020267. doi: 10.1590/1984-0462/2021/39/2020267 [ Links ]
Trabalho acadêmico associado Artigo derivado da dissertação de mestrado acadêmico intitulada Vigilância das violências contra o idoso no município de Niterói, RJ: análise das fichas de notificação do Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan, 2011-2020, apresentada por Vinicius Mendes da Fonseca Lima no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2021.
Recebido: 04 de Julho de 2022; Aceito: 07 de Novembro de 2022