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Epidemiologia e Serviços de Saúde

Print version ISSN 1679-4974On-line version ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.32 no.1 Brasília  2023  Epub May 22, 2023

http://dx.doi.org/10.1590/s2237-96222023000100012 

ARTIGO ORIGINAL

Transtornos mentais comuns em profissionais da Atenção Primária à Saúde em um período de pandemia da covid-19: estudo transversal na macrorregião Norte de saúde de Minas Gerais, 2021

Fabrício Emanuel Soares de Oliveira (orcid: 0000-0003-0164-1179)1  , Samuel Trezena (orcid: 0000-0002-4217-1276)1  , Verônica Oliveira Dias (orcid: 0000-0003-1989-7797)1  , Hercílio Martelli Júnior (orcid: 0000-0001-9691-2802)1  , Daniella Reis Barbosa Martelli (orcid: 0000-0002-7497-6052)1 

1Universidade Estadual de Montes Claros, Programa de Pós-Graduação em Cuidado Primário em Saúde, Montes Claros, MG, Brasil

Resumo

Objetivo:

analisar a prevalência de sintomas de transtornos mentais comuns (TMCs) em profissionais de saúde da Atenção Primária à Saúde, no período agosto-outubro/2021.

Métodos:

estudo transversal com profissionais de saúde da macrorregião Norte de saúde de Minas Gerais; amostragem de tipo “bola de neve”; a variável dependente, TMCs, foi avaliada pelo Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20); utilizou-se regressão de Poisson na análise estatística.

Resultados:

participaram 702 profissionais de saúde; a prevalência de TMCs foi de 43,2%, maior naqueles que apresentaram sintomas de transtornos mentais prévios [razão de prevalências (RP) = 2,42 ;IC95% 1,43;4,08] e atuais (RP = 1,54; IC95% 1,25;1,89), trabalho a mais durante a pandemia (RP = 1,42; IC95% 1,16;1,73), sintomas prévios de ansiedade (RP = 1,27; IC95% 1,01;1,61), depressão (RP = 1,27; IC95% 1,06;1,52) e outros transtornos mentais (RP = 1,20; IC95% 1,01;1,43).

Conclusão:

observou-se associação de TMCs com sintomas prévios e atuais de transtornos mentais e sobrecarga de trabalho, durante a pandemia da covid-19.

Palavras-chave: Transtornos Mentais; Pessoal de Saúde; Atenção Primária à Saúde; Covid-19; Estudos Transversais.

Contribuições do estudo
Principais resultados Em 702 profissionais de saúde, a prevalência de transtornos mentais comuns (TMCs) foi de 43,2%; maior prevalência no sexo feminino, nos atuantes na linha de frente, que trabalharam mais e apresentaram sintomas prévios e atuais de transtornos mentais.
Implicações para os serviços A prevalência de TMCs e os fatores associados identificados indicam que os profissionais de saúde necessitam de cuidados e melhoria em suas condições de trabalho.
Perspectivas Observou-se necessidade de apoio à saúde mental dos profissionais de saúde. Sugerem-se intervenções focadas em saúde mental, relacionadas aos novos processos de trabalho e acompanhamento de indivíduos com sintomas de transtornos mentais.

INTRODUÇÃO

Os transtornos mentais comuns (TMCs) são caracterizados por sintomas não psicóticos, abarcando sintomas depressivos, sintomas de ansiedade, irritabilidade, insônia, esquecimento, dificuldade de concentração e sintomas somáticos (sintomas físicos com causa psicológica), e podem causar prejuízo na capacidade funcional, apesar de, frequentemente, não serem classificados segundo um diagnóstico especificado em um manual nosológico.1

A prevalência mundial de TMCs na população geral foi estimada em 29,2% [intervalo de confiança de 95% (IC95%) 25,9;32,6], por uma revisão sistemática que avaliou estudos de 1980 a 2013.2 No Brasil, outra revisão sistemática, publicada em 2022,3 encontrou resultados semelhantes, com prevalência de TMCs de 30,0% (IC95% 27,0;34,0).

O adoecimento mental tem causado um impacto crescente na saúde da humanidade. Em 2013, a iniciativa Global Burden of Disease (Carga Global de Doença) estimou que, em todo o mundo, do total de anos vividos com incapacidade, 21,2% foram causados por transtornos mentais.4 Em 2016, essa estimativa aumentou para 32,4%,4 caraterizada não só como um problema de saúde pública, mas também como reflexo de aspectos sociais e econômicos.4

No Brasil, em 26 de fevereiro de 2020, foi confirmado o primeiro caso da covid-19, e em 11 de março de 2020, a doença foi considerada uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS).5 Estudo que avaliou a capacidade de resposta dos sistemas de saúde de 182 países no contexto da pandemia observou que apenas a metade deles apresentava recursos adequados para lidar com situações emergenciais. Com o avanço da covid-19 e a carência de recursos, os serviços de saúde precisaram reorganizar seus processos de trabalho para atender às novas demandas. impostas pela pandemia, expondo os profissionais de saúde a fatores estressantes.6

No nível da Atenção Primária à Saúde (APS) do Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil, várias atividades de rotina foram suspensas devido à pandemia da covid-19, sendo mantidos os atendimentos prioritários, como a vacinação, o acompanhamento de pessoas com doenças crônicas e prioritárias (e.g.: gestantes) e casos agudos.7 A APS teve um papel fundamental na ampliação da capacidade de resposta à disseminação da covid-19, porque nesse nível de atenção são realizadas ações de vigilância em saúde, campanhas de vacinação, monitoramento de casos e encaminhamento para os demais níveis de atenção.7

Estudos mostram que problemas de saúde mental são frequentes em profissionais de saúde.8),(9 Durante a pandemia ocorreram mudanças significativas na rotina desses profissionais, como o aumento da carga horária de trabalho, o isolamento social e o medo do contágio e de transmissão, fatores que podem estar associados aos sintomas de TMCs.10

Este estudo teve como objetivo analisar a prevalência de sintomas de TMCs e fatores associados em profissionais de saúde da APS em determinado período de pandemia da covid-19, qual seja, entre os meses de agosto e outubro de 2021, na macrorregião Norte de saúde do estado de Minas Gerais, Brasil.

MÉTODOS

Trata-se de estudo observacional, transversal e de abordagem quantitativa. A pesquisa foi realizada com profissionais da macrorregião Norte de saúde de Minas Gerais, composta por 54 municípios da área de abrangência da Superintendência Regional de Saúde (SRS) de Montes Claros, 25 municípios da área de abrangência da Gerência Regional de Saúde (GRS) de Januária e 7 municípios da área de abrangência da GRS de Pirapora, totalizando 86 municípios.11

A macrorregião Norte de saúde de Minas Gerais, com extensão territorial de 103.660,5 km2, possuía 1.676.413 habitantes, de acordo com o Plano Diretor de Regionalização da Saúde de Minas Gerais de 2020. Os 86 municípios que compõem essa região estão organizados em 11 microrregiões.11

Os participantes da pesquisa foram os profissionais de saúde da APS que fazem parte da macrorregião Norte de saúde de Minas Gerais, selecionados tendo por referência o seguinte critério de inclusão: ser profissional de saúde da APS atuando nas cidades que compõem a macrorregião Norte de saúde de Minas Gerais. O critério para exclusão da pesquisa foi estar de férias ou afastado do serviço, por qualquer motivo, durante o período de coleta de dados.

Realizou-se o cálculo amostral por meio da plataforma OpenEpi.12 Verificou-se, em 1o agosto de 2021, no sistema TABNET, desenvolvido pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus), o total de 8.968 profissionais de saúde cadastrados na macrorregião Norte de saúde de Minas Gerais. Foram adotados os parâmetros estatísticos de prevalência estimada de 32%,8 nível de confiança de 95%, margem de erro de 5% e correção pelo efeito do desenho (deff = 2), obtendo-se amostra mínima de 645 profissionais de saúde.

Optou-se, neste estudo, por uma amostragem de tipo “bola de neve”, por meio de um questionário online, dado o isolamento social imposto pela pandemia da covid-19. A amostragem por “bola de neve” é um tipo de amostragem muito utilizada em estudos qualitativos; no entanto, recentemente, tem sido utilizada em estudos quantitativos e de forma virtual, sobretudo durante a pandemia.13)-(15

A SRS de Montes Claros e as GRS de Januária e de Pirapora forneceram os números de telefone e e-mails dos coordenadores da APS dos respectivos municípios em 15 de julho de 2021; então, foi feito contato com as coordenações da APS dos 86 municípios da região e, por e-mail e redes sociais (WhatsApp® e Instagram®), foram enviados os convites para participação na pesquisa. Os(as) coordenadores(as) repassaram os convites - com o link de acesso ao questionário - aos profissionais de saúde de seus respectivos municípios; nesses convites, ademais, solicitava-se que se enviasse o endereço eletrônico para outros profissionais de saúde da APS. Foram feitas três tentativas de contato com as coordenações da APS de cada município.

A coleta de dados ocorreu entre os meses de agosto e outubro de 2021, mediante preenchimento de um questionário online disponibilizado aos participantes pela ferramenta Google Forms®. O questionário foi composto pelas seguintes variáveis independentes e opções de resposta:

  • a) sexo (masculino; feminino);

  • b) idade (resposta aberta, categorizada posteriormente em menor ou igual a 34 anos ou maior ou igual a 35 anos, segundo a distribuição dos resultados);

  • c) estado civil [solteiro(a), casado(a), viúvo(a), divorciado(a), posteriormente classificado como com companheiro(a) ou sem companheiro(a)];

  • d) profissão [agente comunitário de saúde (ACS); assistente social; cirurgiã(o)-dentista; educador(a) físico(a); enfermeiro(a); farmacêutico(a); fisioterapeuta; fonoaudiólogo(a); médico(a); nutricionista; psicólogo(a); técnico(a) de enfermagem; outros (campo de resposta aberta), posteriormente categorizada em nível médio/técnico ou nível superior];

  • e) município de atuação (resposta aberta, posteriormente categorizada conforme as GRS/SRS);

  • f) atuação na linha de frente no enfrentamento da covid-19 (sim; não);

  • g) contágio pela covid-19 (sim; não);

  • h) sintomas prévios de TMCs em algum momento da vida (sim; não);

  • i) sintomas atuais de TMCs (sim; não);

  • j) tipo de transtorno apresentado em algum momento da vida (resposta aberta, posteriormente categorizada em sintomas de ansiedade: sim; não);

  • k) sintomas depressivos (sim; não);

  • l) sintomas de insônia (sim; não);

  • m) outros sintomas de transtornos mentais (sim; não);

  • n) acompanhamento psicológico ou psiquiátrico prévio em algum momento da vida (sim; não);

  • o) acompanhamento psicológico ou psiquiátrico atual (sim; não);

  • p) uso prévio de medicamento psicotrópico em algum momento da vida (sim; não);

  • q) uso atual de medicamento psicotrópico (sim; não);

  • r) tipo de medicamento usado em algum momento da vida (resposta aberta, posteriormente categorizada em: antidepressivos; ansiolíticos; outro medicamento psicotrópico); e

  • s) trabalho durante a pandemia (opções de escolha do profissional participante: “Da mesma forma ou menos do que usualmente”; “Mais que o de costume e me senti sobrecarregado”).

Os TMCs foram avaliados pela iniciativa Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20). Trata-se de um instrumento desenvolvido pela OMS para verificar a suspeição de TMCs. Composto por 20 itens com respostas do tipo “sim” ou “não”, o SRQ-20 avalia quatro grupos de sintomas: humor depressivo-ansioso; sintomas somáticos; decréscimo de energia vital; e pensamentos depressivos. Para a definição da variável, foi utilizado o ponto de corte 7, que apresenta sensibilidade e especificidade de 86,3% e 89,3%, respectivamente.16 Assim, foram classificados com TMCs os participantes que apresentaram pontuação igual ou maior que 7. Após responderem ao questionário, os participantes tiveram acesso a uma cartilha elaborada pela equipe de pesquisa, com informações sobre cuidados básicos em saúde mental, direcionada a profissionais de saúde. A cartilha pode ser encontrada no seguinte endereço eletrônico: https://drive.google.com/file/d/1hQtTCzNyVMFOI7g9sWiaVsTWlp2cB9Bu/view

Foi construído um banco de dados utilizando-se o programa Statistical Package for the Social Sciences, for Windows, Inc., USA (SPSS®) versão 24.0, para a realização das análises estatísticas. Devido à amostragem não-probabilística impossibilitar o conhecimento sobre os pesos naturais do desenho de amostragem, realizou-se o procedimento de ponderação pós-estratificação para melhorar a representatividade da amostra. A população de referência do estudo (total de profissionais de saúde da APS da macrorregião norte de Minas Gerais) foi estratificada nas categorias profissionais com maior quantidade de trabalhadores (enfermeiro; fisioterapeuta; médico; dentista; psicólogo; técnico de enfermagem; agente comunitário de saúde; outras categorias, agrupadas em único estrato por apresentarem poucos profissionais), conforme informações disponíveis no sistema de informações do SUS (TABNET), e o mesmo procedimento foi feito com a amostra do estudo. Para o cálculo do fator de ponderação (peso), foi aplicada a seguinte fórmula:

P = (Ne/ne)x (n/N)

Sendo:

P = peso

Ne = número de profissionais em cada categoria profissional na população

ne = número de profissionais em cada categoria profissional na amostra

n = número total da amostra

N = número total da população

O método de ponderação adotado foi baseado no estudo de Szwarcwald et al.17 Após o cálculo dos pesos, foi criada no SPSS® a variável peso, realizando as análises com a função ponderar casos pela variável peso.

Com a função “ponderar casos” ativada, realizou-se a análise descritiva com a frequência de todas as variáveis, média e desvio-padrão da variável “idade”, seguida por análises bivariadas por meio da regressão simples de Poisson, para o cálculo da razão de prevalências (RP) com intervalos de confiança. Por fim, realizou-se a regressão múltipla de Poisson com variância robusta, por meio do comando de análise de modelos lineares generalizados, usando os pesos como variável de ponderação da escala, na qual foram incluídas as variáveis que apresentaram nível de significância de até 0,20 na análise bivariada, permanecendo no modelo final aquelas que tiveram associação no nível de 5% (p-valor ≤ 0,05). A qualidade de ajuste do modelo foi avaliada pelo teste do desvio (deviance); e a multicolinearidade, pelo variance inflation factor (VIF) e tolerância.

O estudo seguiu as orientações da Resolução do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde: CNS no 466, de 12 de dezembro de 2012. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o convite para participação e a forma de contato com os participantes seguiram as orientações da Carta Circular nº 1/2021 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), que fornece orientações para pesquisas em ambiente virtual. O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros (CEP/Unimontes) em 9 de julho de 2021: Parecer no 4.838.846, mediante Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) no 47795821.7.0000.5146. Todos os participantes assinaram o TCLE antes de terem acesso ao questionário.

RESULTADOS

A etapa de coleta de dados resultou na amostra final de 702 profissionais de saúde, atuantes em 61 entre os 86 municípios da macrorregião Norte de saúde de Minas Gerais. Não houve respostas, após as três tentativas de contato, com profissionais de 25 municípios.

Em relação às variáveis sociodemográficas, observou-se que a maioria dos participantes era do sexo feminino (84,6%), 50,4% estavam na faixa etária de até 34 anos, a média de idade foi de 35,3 anos e mais da metade (55,3%) eram casados. Quanto às características relacionadas à atuação profissional, mais da metade dos profissionais relatou atuar na região da SRS de Montes Claros (63,3%), bem como em cargo de nível médio ou técnico (59,3%) (Tabela 1).

Tabela 1 Caracterização dos participantes e resultado da análise bivariada entre transtornos mentais comuns segundo o Self-Reporting Questionaire (SRQ-20) e variáveis estudadas, em profissionais de saúde (n = 702) da macrorregião norte de Minas Gerais, 2021 

Variáveis Total Ausência de TMCb Presença de TMCb RPc (IC95%)a p-valor
% (IC95%)a % (IC95%)a % (IC95%)a
Sexo
Masculino 15,4 (12,9;18,2) 72,2 (63,1;79,8) 27,8 (20,2;36,9) 1,00
Feminino 84,6 (81,7;87,1) 54,0 (50,0;58,0) 46,0 (41,2;50,0) 1,63 (1,13;2,36) 0,008
Idade (em anos)
≥ 35 49,6 (45,9;53,2) 58,0 (52,8;63,1) 42,0 (36,9;47,2) 1,00
≤ 34 anos 50,4 (46,7;54,1) 55,4 (50,1;60,4) 44,6 (39,5;49,8) 1,06 (0,87;1,28) 0,533
Estado civil
Solteiro(a)/viúvo(a)/divorciado(a) 44,7 (41,0;48,4) 56,4 (50,8;61,8) 43,6 (38,2;49,1) 1,03 (0,85;1,25)
Casado(a) 55,3 (51,6;58,9) 57,8 (52,8;62,6) 42,2 (37,4;47,2) 1,00 0,729
Nível de atuação
Nível médio/técnico 59,3 (55,5;62,8) 60,6 (55,8;65,1) 39,4 (34,8;44,2) 1,00
Nível superior 40,7 (37,1;44,4) 51,4 (45,6;57,1) 48,6 (42,8;54,3) 1,23 (1,01;1,48) 0,031
Região
GRSd Januária/GRSd Pirapora 36,7 (33,2;40,3) 61,3 (55,2;67,1) 38,7 (32,9;44,7) 1,00
SRSe Montes Claros 63,3 (59,6;66,7) 54,2 (49,5;58,8) 45,8 (41,2;50,4) 1,18 (0,95;1,46) 0,118
Prevalência geral - 56,8 (53,1;60,4) 43,2 (39,5;46,8) - -

a) IC95%: Intervalo de confiança de 95%; b) TMC: Transtornos mentais comuns; c) RP: Razão de prevalência; d) GRS: Gerência Regional de Saúde; e) SRS: Superintendência Regional de Saúde.

A maioria relatou atuação na linha de frente no enfrentamento da covid-19 (74,4%) e ter trabalhado mais durante a pandemia (51,8%). Ademais, quase um quarto dos participantes (22,9%) relatou já ter sido diagnosticado com covid-19. Presença de sintomas de transtornos mentais prévios foi relatada por 67,3% da amostra; os sintomas de ansiedade foram os referidos mais frequentemente (55,9%). Cerca de um terço (35,7%) dos participantes relatou ter realizado acompanhamento psicológico ou psiquiátrico em algum momento da vida. O relato de uso atual de medicamentos psicotrópicos foi menor do que o uso prévio (22,4% versus 37,3%, respectivamente). Já em relação ao uso de medicamentos psicotrópicos, os antidepressivos foram relatados como mais utilizados (21,7%) (Tabela 2).

Tabela 2 Caracterização dos participantes em relação a covid-19, trabalho, situação de saúde mental e resultado da análise bivariada entre transtornos mentais comuns segundo o Self-Reporting Questionaire, em profissionais de saúde (n = 702) da macrorregião Norte de saúde de Minas Gerais, 2021 

Variáveis Total Ausência de TMCb Presença de TMCb RPc (IC95%)a p-valor
% (IC95%)a % (IC95%)a % (IC95%)a
Atuação na linha de frente no enfrentamento da covid-19
Não 25,6 (22,5;29,0) 64,6 (57,2;71,2) 35,4 (28,7;42,7) 1,00
Sim 74,4 (70,9;77,5) 53,3 (49,0;57,6) 46,7 (42,3;51,0) 1,31 (1,01;1,69) 0,035
Diagnóstico prévio de covid-19
Não 77,1 (73,8;80,0) 59,3 (55,1;63,4) 40,7 (36,6;44,8) 1,00
Sim 22,9 (19,9;26,2) 48,4 (40,8;56,1) 51,6 (43,9;59,1) 1,27 (1,03;1,55) 0,019
Presença de sintomas de transtornos mentais previamente
Não 32,7 (29,2;36,2) 88,9 (84,1;92,4) 11,1 (7,6;15,8) 1,00
Sim 67,3 (63,7;70,7) 40,8 (36,4;45,3) 59,2 (54,7;63,6) 5,33 (3,48;8,14) < 0,001
Presença de sintomas de transtornos mentais atualmente
Não 64,4 (60,7;67,8) 74,3 (70,0;78,1) 25,7 (21,8;30,0) 1,00
Sim 35,6 (32,1;39,2) 25,7 (20,6;31,5) 74,3 (68,4;79,3) 2,88 (2,36;3,52) < 0,001
Acompanhamento psicológico ou psiquiátrico prévio
Não 64,3 (60,6;67,7) 64,3 (59,7;68,5) 35,7 (31,4;40,2) 1,00
Sim 35,7 (32,2;39,3) 43,0 (36,7;49,1) 57,0 (50,8;63,0) 1,59 (1,32;1,91) < 0,001
Acompanhamento psicológico ou psiquiátrico atualmente
Não 86,6 (83,9;88,9) 59,8 (55,8;63,6) 40,2 (36,3;44,1) 1,00
Sim 13,4 (11,0;16,1) 36,6 (27,5;46,7) 63,4 (53,3;72,5) 1,57 (1,28;1,93) < 0,001
Uso prévio de medicamento psicotrópico
Não 62,7 (59,0;66,1) 69,6 (65,1;73,7) 30,4 (26,2;34,8) 1,00
Sim 37,3 (33,8;40,9) 34,9 (29,3;40,8) 65,1 (59,1;70,6) 2,14 (1,77;2,59) < 0,001
Uso atual de medicamento psicotrópico
Não 77,6 (74,3;80,5) 64,3 (60,1;68,3) 35,7 (31,7;39,8) 1,00
Sim 22,4 (19,4;25,6) 30,7 (23,9;38,4) 69,3 (61,5;76,0) 1,94 (1,62;2,32) < 0,001
Trabalho durante a pandemia
Trabalhei da mesma forma ou menos do que usualmente 48,2 (44,4;51,9) 67,9 (62,6;72,7) 32,1 (27,2;37,4) 1,00
Trabalhei mais que o de costume e me senti sobrecarregado 51,8 (48,0;55,5) 43,8 (38,6;49,0) 56,2 (50,9;61,3) 1,75 (1,42;2,16) < 0,001
Sintomas de ansiedade prévios autorreferidos
Não 44,1 (40,4;47,8) 79,7 (74,8;83,8) 20,3 (16,2;25,2) 1,00
Sim 55,9 (52,1;59,5) 38,3 (33,6;43,3) 61,7 (56,7;66,3) 3,02 (2,33;3,92) < 0,001
Sintomas de insônia prévios autorreferidos
Não 77,3 (74,0;80,2) 62,7 (58,5;66,7) 37,3 (33,2;41,4) 1,00
Sim 22,7 (19,7;26,0) 35,7 (28,6;43,4) 64,3 (56,5;71,4) 1,72 (1,44;2,06) < 0,001
Sintomas depressivos prévios autorreferidos
Não 87,8 (85,2;90,0) 61,6 (57,7;65,4) 38,4 (34,6;42,3) 1,00
Sim 12,2 (9,9;14,8) 20,2 (13,0;30,0) 79,8 (69,9;86,7) 2,07 (1,74;2,45) < 0,001
Outros sintomas prévios autorreferidos
Não 90,4 (88,0;92,4) 60,6 (56,7;64,4) 39,4 (35,6;43,2) 1,00
Sim 9,6 (7,5;11,9) 18,2 (10,7;29,1) 81,8 (70,8;89,2) 2,09 (1,78;2,45) < 0,001
Uso de antidepressivo prévio autorreferido
Não 78,3 (75,1;81,2) 63,3 (59,1;67,2) 36,7 (32,8;40,8) 1,00
Sim 21,7 (18,7;24,8) 33,6 (26,5;41,3) 66,4 (58,6;73,4) 1,80 (1,51;2,16) < 0,001
Ansiolítico prévio autorreferido
Não 79,2 (76,0;82,0) 63,4 (59,3;67,3) 36,6 (32,6;40,6) 1,00
Sim 20,8 (17,9;24,0) 31,5 (24,5;39,4) 68,5 (60,5;75,4) 1,87 (1,56;2,23) < 0,001
Uso prévio de outro medicamento psicotrópico autorreferido
Não 92,0 (88,7;93,8) 59,1 (55,2;62,8) 40,9 (37,2;44,7) 1,00
Sim 8,0 (6,2;10,2) 30,4 (19,9;43,3) 69,6 (56,6;80,1) 1,69 (1,35;2,12) < 0,001

a) IC95%: Intervalo de confiança de 95%; b) TMC: Transtornos mentais comuns; c) RP: Razão de prevalência.

A prevalência geral de TMCs foi de 43,2%. As Tabelas 1 e 2 também apresentam a prevalência de TMCs e a RP por variável. Foram consideradas para o modelo múltiplo (p-valor ≤ 0,20) as seguintes variáveis: sexo; renda; nível de atuação; região de residência; atuação na linha de frente, no enfrentamento da covid-19; diagnóstico prévio de covid-19; presença de sintomas de transtornos mentais prévios e atuais; acompanhamento psicológico/psiquiátrico prévio e atual; uso de psicotrópico prévio e atual; trabalho durante a pandemia; sintomas de ansiedade prévios autorreferidos; sintomas de insônia prévios autorreferidos; sintomas depressivos prévios autorreferidos; outros sintomas prévios autorreferidos; uso de antidepressivo prévio autorreferido; uso de ansiolítico prévio autorreferido; e uso prévio de outro medicamento psicotrópico autorreferido. Estas variáveis foram incluídas no modelo final da análise múltipla.

Em relação às profissões dos participantes, foram identificadas 18 categorias profissionais de nível médio, técnico e superior, com maior participação de ACS (31,6%), seguindo-se enfermeiros(as) (23,9%), cirurgiãos(ãs)-dentistas (13,0%) e técnicos(as) de enfermagem (11,0%) (Tabela 3).

Tabela 3 Caracterização dos participantes (n = 702) por profissão, macrorregião Norte de saúde de Minas Gerais, 2021 

Variáveis N % (IC95%)a
Agente comunitário de saúde (ACS) 222 31.6 (28.3;35.1)
Auxiliar e técnico de saúde bucal 14 2.0 (1.2;3.3)
Cirurgiã(o) dentista 91 13.0 (10.6;15.6)
Enfermeiro(a) 168 23.9 (20.9;27.2)
Fisioterapeuta 27 3.8 (2.6;5.5)
Médico(a) 19 2.7 (1.7;4.1)
Nutricionista 11 1.6 (0.8;2.7)
Psicólogo(a) 36 5.1 (3.7;7.0)
Técnico(a) de enfermagem 77 11.0 (8.8;13.5)
Outros 37 5.3 (3.8;7.1)

a) IC95%: Intervalo de confiança de 95%.

Na Tabela 4 estão descritas as prevalências dos sintomas referentes a cada item do SRQ-20. Mais da metade (65,8%) dos(das) participantes relatou sentir-se nervoso(a), tenso(a) ou preocupado(a), e 45,7% reportaram problemas relacionados ao sono.

Tabela 4 Prevalência de sintomas por grupos de sintomas (SRQ-20) em profissionais de saúde (n = 702) da macrorregião Norte de saúde de Minas Gerais, 2021 

Grupos de sintomas Sim % (IC95%)a Não % (IC95%)a
Sintomas somáticos
Você tem dores de cabeça frequentes? 46,3 (42,7;50,0) 53,7 (49,9;57,3)
Tem falta de apetite? 17,2 (14,5;20,1) 82,8 (79,9;85,4)
Dorme mal? 45,7 (42,2;49,5) 53,9 (50,4;57,8)
Tem tremores nas mãos? 15,1 (12,5;17,9) 84,9 (82,1;87,4)
Tem má digestão? 31,3 (28,1;34,9) 68,6 (65,0;71,9)
Tem sensações desagradáveis no estômago? 30,1 (26,8;33,6) 69,9 (66,4;73,2)
Humor depressivo/ansioso
Assusta-se com facilidade? 45,4 (41,7;49,0) 54,6 (50,9;58,3)
Sente-se nervoso(a), tenso(a) ou preocupado(a)? 65,8 (62,2;69,2) 34,2 (30,7;37,8)
Tem se sentido triste atualmente? 41,5 (37,8;4,1) 58,5 (54,8;62,1)
Tem chorado mais do que de costume? 23,2 (20,1;26,4) 76,8 (73,5;79,8)
Decréscimo de energia vital
Tem dificuldade para pensar com clareza? 31,1 (27,7;34,6) 68,9 (65,3;72,2)
Encontra dificuldade para realizar com satisfação suas atividades diárias? 35,0 (31,8;38,9) 64,7 (61,0;68,1)
Tem dificuldade para tomar decisões? 36,4 (32,9;40,0) 63,6 (60,0;67,1)
Tem dificuldades no serviço (seu trabalho é penoso, lhe causa sofrimento?) 18,4 (15,6;21,5) 81,6 (78,5;84,3)
Sente-se cansado(a) o tempo todo? 37,7 (34,1;41,3) 62,3 (58,7;65,9)
Você se cansa com facilidade? 45,4 (41,7;49,0) 54,6 (50,9;58,3)
Pensamentos depressivos
Sente-se incapaz de desempenhar um papel útil em sua vida? 15,1 (12,6;17,7) 84,9 (82,0;87,3)
Tem perdido o interesse pelas coisas? 28,7 (25,4;32,1) 71,3 (67,9;74,6)
Você se sente uma pessoa inútil, sem préstimo? 9,4 (7,4;11,8) 90,6 (88,2;92,5)
Tem tido a ideia de acabar com a vida? 3,6 (2,5;5,3) 96,4 (94,6;97,5)

a) IC95%: intervalo de confiança de 95%.

No modelo final da análise múltipla, permaneceram as seguintes variáveis com significância estatística (p-valor ≤ 0,05): sintomas de transtornos mentais prévios (RP = 2,42; IC95% 1,43;4,08) e atuais (RP = 1,54; IC95% 1,25;1,89); trabalho a mais durante a pandemia (RP = 1,42; IC95% 1,16;1,73); sintomas prévios de ansiedade (RP = 1,27; IC95% 1,01;1,61); depressão (RP = 1,27; IC95% 1,06;1,52); e outros sintomas prévios de transtornos mentais (RP = 1,20; IC95% 1,01;1,43) (Tabela 5). Os valores de (VIF) abaixo de 10 e as tolerâncias acima de 0,20, para cada variável, indicaram a ausência de multicolinearidade.

Tabela 5 Resultado da análise múltipla da regressão de Poisson com variância robusta entre transtornos mentais comuns e variáveis estudadas em profissionais de saúde (n = 702) da macrorregião Norte de saúde de Minas Gerais, 2021 

Variáveisa RP (IC95%)b p-valor
Já apresentou sintomas de transtornos mentais
Não 1,00
Sim 2,42 (1,43;4,08) 0,001
Está apresentando sintomas de transtornos mentais atualmente
Não 1,00
Sim 1,54 (1,25;1,89) < 0,001
Trabalho durante a pandemia
Trabalhei da mesma forma ou menos do que usualmente 1,00
Trabalhei mais que o de costume e me senti sobrecarregado 1,42 (1,16;1,73) < 0,001
Sintomas de ansiedade prévios autoreferidos
Não 1,00
Sim 1,27 (1,01;1,61) 0,049
Sintomas depressivos prévios autoreferidos
Não 1,00
Sim 1,27 (1,06;1,52) 0,007
Outros sintomas prévios autoreferidos
Não 1,00
Sim 1,20 (1,01;1,43) 0,031

a) Variáveis que permaneceram no modelo final, com p-valor ≤ 0,05; b) RP (IC95%): Razão de prevalências (intervalo de confiança de 95%).

DISCUSSÃO

Os TMCs foram prevalentes em cerca de quatro a cada dez profissionais de saúde da amostra consultada. No modelo final, os fatores associados à presença de TMCs nos profissionais estudados foram sintomas prévios e atuais de transtornos mentais, sobrecarga de trabalho durante a pandemia da covid-19, sintomas prévios de ansiedade, depressão e outros sintomas prévios de transtorno mental.

A prevalência global de TMCs encontrada em profissionais de saúde da APS de Montes Claros foi semelhante à resultante de uma pesquisa realizada em 2013, com ACS de Montes Claros;18 e com porcentagem superior à encontrada em pesquisa realizada no ano de 2017, com profissionais da Atenção Básica em saúde do município de Diamantina, também de Minas Gerais;19 e ainda, à de um estudo de 2005, com trabalhadores da APS de 41 municípios das regiões Sul e Nordeste do país.9

Não foram identificados estudos realizados no Brasil que avaliassem a prevalência de TMCs em profissionais de saúde da APS no período de pandemia da covid-19 selecionado para este trabalho; porém, há achados semelhantes à temática em tela, noutras pesquisas internacionais.

Estudo transversal, proveniente de uma coorte com pouco mais de 4 mil profissionais de saúde no Reino Unido,20 encontrou prevalência de 58,9% de TMCs. Um estudo realizado nos Estados Unidos observou sintomas de depressão e ansiedade presentes em 24,0% da amostra, e estresse pós-traumático em 30%.21 No entanto, o instrumento utilizado para aferir essa variável, em ambas as pesquisas, não foi o SRQ-20, e sim o General Health Questionnaire (GHQ-12), além de nem todos os profissionais investigados atuarem na APS.

Apesar de não se encontrar estudo realizado no Brasil sobre a prevalência de TMCs em profissionais da APS, foram identificadas duas pesquisas que avaliaram sintomas de ansiedade e de depressão em enfermeiros,14,22,23 ambas realizadas em hospitais, apresentando prevalências que variaram de 39,5% a 48,9% para sintomas de ansiedade, e de 22,0% a 38,0% para sintomas depressivos.

A análise da prevalência por grupos de sintomas do SRQ-20 apontou maior número de participantes com sintomas da categoria “humor depressivo/ansioso”, sendo que “sentir-se nervoso(a), tenso(a) ou preocupado(a)” destacou-se com prevalência elevada. Outros estudos, utilizando-se do mesmo instrumento de avaliação, também apresentaram maior frequência de sintomas nessa categoria.9,24

Entre as participantes do sexo feminino, quase a metade apresentou sintomas de TMCs, com prevalência superior à do sexo masculino. Uma revisão sistemática com metanálise, tendo como foco profissionais de saúde durante a pandemia da covid-19 na Ásia,25 mostrou que o sexo feminino referiu maior chance de apresentar sintomas de TMCs como ansiedade, depressão, insônia e estresse pós-traumático. Esses resultados vão ao encontro de outros estudos que avaliaram profissionais atuantes na APS,8,9,18,19 embora com RPs superiores à encontrada na presente pesquisa. Uma das possíveis explicações para a associação da variável “sexo” com os TMCs, em muitos trabalhos realizados, provém de características sociais em que, na maioria das vezes, o sexo feminino é o responsável pela execução de atividades domésticas; em muitos casos, inclusive, a profissional mulher é a única responsável pelas tarefas do lar e pela família, além de sofrer com a desigualdade de gênero e a falta de equidade frente aos homens, no mercado de trabalho, sofrendo maior sobrecarga e estando, por conseguinte, em condição mais suscetível ao risco de desenvolver sintomas de TMCs.26

Neste estudo, os profissionais que atuavam na linha de frente da pandemia apresentaram maior prevalência de TMCs na análise bivariada. Em profissionais da linha de frente da APS na Austrália,27 apenas o diagnóstico de burnout foi associado a esses indivíduos; e em um estudo de caso-controle com profissionais de saúde da China,28 estar na linha de frente correspondeu a uma odds ratio (razão de chances) de 2,15 para a manifestação de algum problema mental.

Participantes que tiveram covid-19 apresentaram maior prevalência de TMCs. Existem evidências na literatura científica sobre uma associação entre a infecção pelo vírus da covid-19 e a manifestação de sintomas de TMCs.10,28 Em uma coorte que avaliou mais de 60 mil pessoas, indivíduos sem histórico prévio de problemas mentais e diagnosticados com covid-19 apresentaram maior incidência de transtornos psiquiátricos no período de 14 a 90 dias pós-infecção.10 Pesquisa que analisou sete coortes prospectivas em seis países (Dinamarca, Estônia, Islândia, Noruega, Suécia e Reino Unido), com quase 250 mil participantes, mostrou que indivíduos que tiveram covid-19 apresentaram maiores prevalências de sintomas depressivos (RP = 1,18; IC95% 1,03;1,36) e piora na qualidade do sono (RP = 1,13; IC95% 1,03;1,24), e os que ficaram acamados por mais de sete dias, maior risco de sintomas depressivos (RP = 1,61; IC95% 1,27;2,05) e de ansiedade (RP = 1,43; IC95% 1,26;1,63).29

Sintomas autorreferidos prévios e atuais de transtornos mentais mostraram associação com a presença de TMCs, tanto na análise bivariada como na análise múltipla. O estudo da Austrália, já citado,27 revelou 30,4% dos profissionais de saúde investigados com preexistência de algum sintoma psicológico ou psiquiátrico, anteriormente à pandemia. Trata-se de um achado cujo valor está abaixo do apresentado nesta pesquisa de Montes Claros, onde 69,3% apresentaram sintomas de transtornos mentais prévios.

Em relação ao acompanhamento psicológico ou psiquiátrico prévio e atual, ambos os estudos, este e o australiano, apontaram associação dessas condições com TMCs apenas na análise bivariada. Entre os participantes do presente estudo com escores indicativos da presença de TMCs, 40,2% não faziam acompanhamento atual e 35,7% não faziam uso de medicamentos psicotrópicos. Estes resultados mostram que mais de um terço dos profissionais com TMCs não se encontrava sob algum tipo de tratamento profissional, o que pode contribuir para uma piora dos sintomas.

O uso de medicamentos psicotrópicos obteve associação com a presença de TMCs na análise bivariada, não na análise múltipla, diferentemente da outra pesquisa com ACS da cidade Montes Claros, trabalho já citado,18 segundo o qual o uso de calmantes, tranquilizantes ou antidepressivos no último ano obteve 1,45 vez mais chance na presença de TMCs (p-valor < 0,001).

Profissionais da APS que trabalharam mais do que o de costume, no período da pandemia, apresentaram maior razão de prevalências em relação aos que trabalharam menos ou da mesma forma que o usual, na análise bivariada e na análise múltipla. Um estudo realizado em Omã, país situado na Península Arábica, no pico da primeira onda da pandemia, mostrou que profissionais da linha de frente, ou que não deixaram de trabalhar durante a pandemia, apresentaram 1,5 vez mais chance de desenvolver sintomas de ansiedade, estresse e insônia.30

Mais da metade dos participantes deste estudo relatou que, em algum momento da vida, apresentou sintomas de ansiedade, seguindo-se insônia e sintomas depressivos. Sintomas de ansiedade, insônia e depressão são frequentes e estão dentro da categoria de sintomas que caracterizam os TMCs.1

A prevalência de TMCs em profissionais de saúde da APS da macrorregião Norte de saúde de Minas Gerais foi superior à de outros estudos feitos na APS de outros locais do Brasil antes da pandemia.

Este é um dos primeiros estudos realizados no Brasil com o propósito de investigar a prevalência de TMCs entre profissionais de saúde atuantes na APS. Cumpre aqui mencionar as limitações ao desenvolvimento deste estudo: (i) o delineamento transversal, que não oferece a possibilidade de inferir uma relação de causa e efeito entre a pandemia da covid-19 e os sintomas de TMCs; (ii) a coleta de dados de forma remota e a amostragem de tipo “bola de neve”, duas estratégias que têm sido bastante utilizadas em pesquisas, inclusive no Brasil, no contexto da pandemia;13-15 (iii) a amostragem não probabilística, que torna a amostra não representativa da população estudada, limitando as inferências para o conjunto de profissionais de saúde da macrorregião Norte de saúde de Minas Gerais, embora tenha-se utilizado a estratégia de ponderação da amostra para reduzir essa limitação; como se trata de um estudo exploratório, (iv) a análise dos fatores associados, que não partiu de um modelo teórico bem definido, embora tenham sido consideradas diversas variáveis já exploradas na literatura e com potencial de associação com o desfecho investigado; e (v) o efeito do trabalhador sadio, tipo de viés que pode subestimar a prevalência de doenças estudadas, dado que os trabalhadores em atividade seriam mais saudáveis, enquanto aqueles com alguma limitação de saúde estariam afastados do trabalho.

Apesar de a limitação (iii) da amostra, especialmente, obstar a generalização dos resultados, os achados deste estudo reiteram a necessidade de estratégias eficientes para dar suporte à saúde mental de profissionais que atuam na APS. Os impactos causados pela pandemia estão a ser vivenciados, todavia, e podem afetar a saúde mental das populações, sobretudo dos profissionais de saúde. Nessa perspectiva, sugerem-se ações de educação em saúde sobre saúde mental, o uso de instrumentos para detecção e monitoramento de sintomas de transtornos mentais, suporte psicológico e psiquiátrico aos profissionais, identificação de casos de sobrecarga de trabalho, elaboração de ações focadas em saúde mental no fim da pandemia, além de estratégias de prevenção e preparo desses profissionais na abordagem de possíveis casos de crise sanitária. É igualmente importante avaliar as condições de trabalho dos profissionais de saúde da APS, para identificar e modificar fatores relacionados ao trabalho capazes de favorecer o surgimento de sintomas de TMCs, como a falta de recursos, a desvalorização do profissional de saúde, jornadas de trabalho exaustivas, falhas nos processos de gestão e cobranças excessivas.

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TRABALHO ACADÊMICO ASSOCIADO Artigo derivado de dissertação de mestrado intitulada Prevalência de transtornos mentais comuns em profissionais da atenção primária à saúde da macrorregião norte de Minas Gerais-MG no período de pandemia da COVID-19, defendida em dezembro de 2022, por Fabrício Emanuel Soares de Oliveira, no Programa de Pós-Graduação em Cuidado Primário em Saúde, da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).

Recebido: 15 de Junho de 2022; Aceito: 25 de Janeiro de 2023

Correspondência: Fabrício Emanuel Soares de Oliveira. E-mail: fabricioemanuel1@hotmail.com

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Oliveira FES e Trezena S contribuíram na concepção e desenho do estudo, análise e interpretação dos dados e elaboração do artigo. Dias VO, Martelli Junior H e Martelli DRB contribuíram na concepção e desenho do estudo, interpretação dos dados e revisão crítica do artigo. Todos os autores aprovaram a versão final do manuscrito e são responsáveis por todos os aspectos do trabalho, incluindo a garantia de sua precisão e integridade.

CONFLITOS DE INTERESSE

Os autores declararam não possuir conflitos de interesse.

Editora associada:

Carolina Fausto de Souza Coutinho - http://orcid.org/0000-0002-9005-8171

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