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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.32 no.1 Brasília  2023  Epub 08-Fev-2023

http://dx.doi.org/10.1590/s2237-96222023000100008 

RESEARCH NOTE

Procedimentos odontopediátricos realizados pelo Sistema Único de Saúde no Rio Grande do Sul, antes e durante a pandemia de covid-19: diferença entre os anos de 2018 e 2021

Hellen Monique da Motta (orcid: 0000-0003-1016-2591)1  , Lara Emmile Evangelista Valença (orcid: 0000-0002-8767-4969)1  , Luiza Helena de Souza Fernandes (orcid: 0000-0003-3778-6767)1  , Rafaela Corrêa Martins (orcid: 0000-0002-1552-3635)1  , Letícia Regina Morello Sartori (orcid: 0000-0002-1082-0534)2  , Sarah Arangurem Karam (orcid: 0000-0002-3921-0182)2 

1Universidade Federal de Pelotas, Faculdade de Odontologia, Pelotas, RS, Brasil

2Universidade Federal de Pelotas, Programa de Pós-Graduação em Odontologia, Pelotas, RS, Brasil

Resumo

Objetivo:

analisar a diferença no número de procedimentos odontológicos na dentição decídua, realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no estado do Rio Grande do Sul, Brasil, antes e durante a pandemia de covid-19.

Métodos:

estudo ecológico descritivo, utilizando-se dados secundários do Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS (SIA/SUS), de 2018 a 2021, no estado e em suas sete macrorregiões de saúde; foram calculadas as frequências relativas e absolutas, e a diferença percentual dos procedimentos odontológicos realizados.

Resultados:

foram registrados 94.443 e 36.151 procedimentos odontológicos antes e durante a pandemia, respectivamente, correspondendo a uma redução de 61,7%; reduções percentuais relevantes foram observadas nos procedimentos restauradores, atingindo 20 pontos percentuais na região Sul do estado; observou-se aumento no percentual de procedimentos exodônticos e endodônticos.

Conclusão:

os resultados sugerem que a pandemia de covid-19 teve repercussões negativas sobre a realização dos procedimentos odontológicos na dentição decídua, no estado.

Palavras-chave: Epidemiologia Descritiva; Dente Decíduo; Assistência Odontológica; Covid-19; Sistema Único de Saúde; Estudos Ecológicos

Contribuições do estudo

Principais resultados

Verificou-se redução no número de atendimentos odontopediátricos realizados pelo SUS durante o período pandêmico analisado (janeiro-junho, de 2020 e 2021), quando comparados aos mesmos meses dos anos anteriores à pandemia (2019 e 2018).

Implicações para os serviços

Com a limitação aos atendimentos e a suspensão de ações de promoção da saúde bucal infantil, há necessidade de planejamento específico para a normalização dos atendimentos odontopediátricos pelo SUS.

Perspectivas

Recomendam-se mais estudos para monitoramento de atendimentos odontopediátricos no SUS pós-pandemia e avaliação de prejuízos. É mister dimensionar o impacto à saúde bucal infantil que a redução nos atendimentos do período pandêmico possa ter causado.

INTRODUÇÃO

O Sistema Único de Saúde (SUS) fornece atendimento odontológico gratuito em diferentes níveis de complexidade, abrangendo diversas especialidades e procedimentos, incluindo procedimentos relacionados à atenção odontopediátrica.1 Considerando-se o cenário imposto pela doença por coronavírus 2019 (coronavirus disease-2019, ou covid-19) no Brasil, principalmente durante os anos de 2020 e 2021, e a necessidade da implementação de medidas restritivas em relação ao contato físico interpessoal,2 grande parte dos consultórios odontológicos manteve apenas tratamentos de urgências, adiando os tratamentos odontológicos eletivos.3 Nessa perspectiva, estudo realizado com dados do SUS demonstrou uma redução relevante no número de atendimentos odontológicos gerais no Brasil, variando de 55%, no primeiro mês de pandemia, a mais de 88% nos meses seguintes de 2020.4

A pandemia de covid-19 pode ter impactado substancialmente a saúde bucal de crianças. Em decorrência das medidas restritivas, as aulas presenciais foram suspensas,5 fator que impediu a realização de ações de promoção e prevenção da saúde bucal infantil no ambiente escolar.6 Em 2014, 80,9% das equipes de saúde bucal do SUS relataram realizar atendimento de crianças com até 5 anos de idade.7 Recentemente, um estudo demonstrou que o Sul do Brasil é a região onde as crianças mais se consultam com o dentista.8

O objetivo deste estudo foi analisar a diferença no número de procedimentos odontológicos na dentição decídua, antes e durante a pandemia de covid-19, realizados pelo SUS no estado do Rio Grande do Sul, Brasil.

MÉTODOS

Este estudo possui delineamento ecológico descritivo e utilizou dados secundários relacionados à produção ambulatorial odontológica do estado do Rio Grande do Sul, mediante acesso ao Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA/SUS) do Departamento de Informática do SUS (Datasus) (http://datasus.saude.gov.br). As informações sobre os procedimentos odontológicos realizados no Rio Grande do Sul e em suas sete macrorregiões de saúde podem ser obtidas no sítio eletrônico do Datasus, item “informações de saúde”, subitem “produção ambulatorial”, tabuladas por meio do software TabWin, versão 3.52. Esses dados são registrados mensalmente, para os 497 municípios que constituem o estado.9,10,11 Todos os dados foram coletados e exportados da plataforma online em outubro de 2021, por quatro revisoras previamente treinadas.

No Datasus, foram coletados dados absolutos referentes aos procedimentos odontológicos realizados na dentição decídua, sendo considerados os seguintes códigos de procedimentos odontológicos: (i) a restauração de dente decíduo (0307010023); (ii) a restauração de dente decíduo posterior com resina composta (0307010082); (iii) a restauração de dente decíduo posterior com amálgama (0307010090); (iv) a restauração de dente decíduo posterior com ionômero de vidro (0307010104); (v) a restauração de dente decíduo anterior com resina composta (0307010112); (vi) o tratamento endodôntico em dente decíduo (0307020037); e (vii) a exodontia de dente decíduo (0414020120).12,13

O período de estudo definido foi o primeiro semestre (1o de janeiro a 30 de junho) dos anos de 2018, 2019, 2020 e 2021, para padronização do tempo, uma vez que o ano de 2021 apresentava incompletude das informações no momento da extração dos dados. A coleta do número absoluto de procedimentos foi realizada com o uso de códigos de procedimentos e estratificações por ano e local de realização do procedimento (macrorregiões de saúde/Rio Grande do Sul), em campos específicos da plataforma Datasus.

Definiu-se a variável “tipo de procedimento odontológico” de acordo com os códigos inicialmente coletados, sendo categorizada como “procedimento restaurador” (0307010023, 0307010082, 0307010090, 0307010104 e 0307010112), “procedimento endodôntico” (0307020037) e “exodontia” (0414020120).

Categorizou-se o ano de realização do atendimento odontológico no período de 2018 a 2021, como período pré-pandêmico, e o período pandêmico de 2020 e 2021. Adicionalmente, a variável “macrorregiões de saúde” do Rio Grande do Sul seguiu a categorização das sete macrorregiões de saúde do estado: Vales, Sul, Serra, Norte, Missioneira, Metropolitana e Centro-Oeste.14

Os dados foram exportados e organizados em um banco de dados, utilizando-se o software Microsoft Excel 2016 (Microsoft, Redmond, Washington, USA). Com o uso do mesmo software, foi realizada análise descritiva, considerando-se os números absolutos e relativos da variável “tipo de procedimento odontológico”, segundo período e macrorregião de saúde. Posteriormente, foi calculada a diferença percentual do número de procedimentos odontológicos realizados entre os períodos estudados, para cada tipo de procedimento.

A aprovação ética não foi requerida para a realização deste estudo devido à utilização de dados secundários, de acesso público e anônimos.

RESULTADOS

No período avaliado, foram realizados um total de 130.594 procedimentos, 94.443 no período pré-pandêmico e 36.151 durante a pandemia. Houve redução no número absoluto e relativo de procedimentos odontológicos realizados na dentição decídua, em todas as regiões (Figura 1) e no estado do Rio Grande do Sul em sua totalidade (Tabela 1).

Tabela 1 - Frequências absolutas (n) e relativas (%) do tipo de procedimento odontológico realizado na dentição decídua e total de procedimentos durante os períodos pré-pandêmico (2018-2019) e pandêmico (2020-2021), Rio Grande do Sul e suas macrorregiões de saúde, Brasil, 2018-2021 

Macrorregião de saúde/ Rio Grande do Sul Período pré-pandêmico n (%)
Procedimento restaurador Procedimento endodôntico Procedimento exodôntico Total de procedimentos
Região Vales 12.240 (69,1%) 421 (2,4%) 5.045 (28,5%) 17.706 (18,7%)
Região Sul 1.976 (57,1%) 237 (6,8%) 1.250 (36,1%) 3.463 (3,7%)
Região Serra 7.280 (68,3%) 78 (0,7%) 3.307 (31,0%) 10.665 (11,3%)
Região Norte 7.872 (69,9%) 87 (0,8%) 3.288 (29,2%) 11.247 (11,9%)
Região Missioneira 3.912 (66,8%) 33 (0,6%) 1.910 (32,6%) 5.855 (6,2%)
Região Metropolitana 22.391 (55,4%) 6.363 (15,7%) 11.661 (28,8%) 40.415 (42,8%)
Região Centro-Oeste 3.428 (67,3%) 59 (1,2%) 1.605 (31,5%) 5.092 (5,4%)
Rio Grande do Sul 59.099 (62,6%) 7.278 (7,7%) 28.066 (29,7%) 94.443 (100%)
Macrorregião de saúde/ Rio Grande do Sul Período pandêmico n (%)
Região Vales 2.524 (54,4%) 220 (4,7%) 1.894 (40,8%) 4.638 (12,8%)
Região Sul 504 (37,1%) 25 (1,8%) 828 (61,0%) 1.357 (3,7%)
Região Serra 1.973 (60,9%) 38 (1,2%) 1.228 (37,9%) 3.239 (8,9%)
Região Norte 2.325 (62,6%) 89 (2,4%) 1.302 (35,0%) 3.716 (10,3%)
Região Missioneira 1.607 (60,6%) 15 (0,6%) 1.030 (38,8%) 2.652 (7,3%)
Região Metropolitana 7.840 (41,3%) 6.050 (31,8%) 5.105 (26,8%) 18.995 (52,5%)
Região Centro-Oeste 871 (56,0%) 40 (2,6%) 643 (41,4%) 1.554 (4,3%)
Rio Grande do Sul 17.644 (48,8%) 6.477 (17,9%) 12.030 (33,3%) 36.151(100%)

A (Tabela 1) apresenta a frequência dos tipos de procedimentos por região do estado, durante os períodos pré-pandêmico e pandêmico. Em ambos os períodos, a região Metropolitana realizou o maior número de procedimentos, independentemente do tipo. No período pré-pandêmico, o procedimento restaurador foi o mais prevalente em todas as regiões do estado. Considerando-se somente o período pandêmico, as regiões Sul, Missioneira e Centro-Oeste registraram os números mais baixos nos três tipos de procedimentos avaliados. Ainda no período pandêmico, o tipo de procedimento na dentição decídua mais prevalente foi o restaurador, em quase todas as regiões: a exceção coube ao Sul do estado, que apresentou a exodontia como o procedimento mais frequente (Tabela 1).

Comparando-se as proporções dos procedimentos nos dois períodos avaliados, conforme ilustrado na (Figura 2), observou-se um decréscimo de mais de 50% em todas as regiões analisadas. O estado totalizou uma redução de 61,7%, destacando-se a região dos Vales com a maior redução percentual. Ainda, ao se considerar tipos de procedimentos realizados durante os dois períodos (2018-2019 e 2020-2021), identificou-se redução de 20 pontos percentuais (p.p) em procedimentos restauradores na região Sul (57,1% versus 37,1%, respectivamente) e de 14,7 p.p na região dos Vales (69,1% versus 54,4%, respectivamente) (Tabela 1).

Figura 1 - Total de procedimentos odontológicos realizados na dentição decídua e respectivos percentuais, nos períodos pré-pandêmico (2018-2019) e pandêmico (2020-2021), macrorregiões de saúde do Rio Grande do Sul, 2018-2021 

Figura 2 - Percentual da redução no número de procedimentos odontológicos na dentição decídua entre os períodos pré-pandêmico (2018-2019) e pandêmico (2020-2021), Rio Grande do Sul e suas macrorregiões de saúde, 2018-2021 

DISCUSSÃO

O presente estudo identificou uma redução de aproximadamente 62% na realização de procedimentos curativos odontológicos na dentição decídua, no estado do Rio Grande do Sul, durante o primeiro semestre dos anos de 2020 e 2021, na comparação com os mesmos meses de 2018 e 2019. Focando-se os tipos de procedimentos, destacou-se o procedimento restaurador com a maior redução percentual entre todas as regiões do estado.

Os achados deste estudo vão ao encontro de dados relacionados ao atendimento odontológico infantil durante a pandemia em nível nacional.4,5

A redução considerável no número de procedimentos odontológicos realizados pode resultar em falta de tratamentos curativos/preventivos na dentição decídua.15 A não realização de procedimentos minimamente invasivos, ou restauradores, pode contribuir para a posterior evolução de lesões de cárie dentária, gerando dor dentária, alterações funcionais e estéticas que, por sua vez, podem levar a pior qualidade de vida da criança e aumento do estresse do cuidador.16

Segundo recomendações do Ministério da Saúde,17,18 deve-se fazer todo esforço no sentido de reduzir a emissão de aerossóis durante os procedimentos odontológicos. O aumento no número de exodontias em seis das sete regiões analisadas pode estar relacionado com essa tentativa de redução na emissão de aerossóis, vinculados principalmente aos tratamentos endodônticos.19,20 Entretanto, o aumento de exodontias pode também ser reflexo da piora das condições de saúde bucal, quando há necessidade de procedimentos mais invasivos, ou ainda, busca-se um tratamento “definitivo” para a dor, dentro de uma perspectiva de odontologia mutiladora e assistência odontológica tradicional.3

O principal resultado deste estudo consiste na redução da realização de procedimentos odontológicos que, provavelmente, não está vinculada à diminuição da necessidade de tratamento ou à diminuição da carga de doenças na população infantil. Aqui, foram avaliados somente procedimentos odontológicos curativos, ou seja, em que havia necessidade de intervenção para o tratamento de doença já estabelecida; entretanto, devido à pandemia, o atendimento odontológico, em muitas localidades, foi limitado a atendimentos de urgência.3 Esses resultados permitem uma reflexão sobre a atenção à saúde bucal ofertada a crianças, período da vida em que, muitas vezes, estabelecem-se hábitos saudáveis, sendo a Atenção Primária à Saúde o campo ideal para a prevenção e promoção da saúde bucal.21

Como fortaleza desta pesquisa, é importante ressaltar a sistematização dos dados coletados: os mesmos meses foram analisados tanto antes quanto durante a pandemia. Os resultados apresentados ainda podem auxiliar o monitoramento de tratamentos curativos na dentição decídua no período pós-pandemia. Em relação a possíveis limitações, o estudo em tela utiliza dados secundários públicos, que podem apresentar subnotificações. Ademais, não foi possível estimar o total da população com dentição decídua que poderia ser assistida durante os períodos avaliados, perdendo-se o denominador para cálculos de incidência. Devido à natureza dos dados agregados, não foi viável realizar uma análise em nível individual, avaliar efeito causal ou associação com características das crianças e/ou de seu ambiente familiar. Não foi possível, tampouco, realizar uma comparação com ações preventivas nas crianças, pois esse tipo de procedimento não possui a mesma subclassificação no sistema de informações utilizado para coleta de dados; com isso, torna-se inviável estimar uma redução no atendimento odontológico infantil de maneira geral.

Com base no exposto, conclui-se que ocorreu uma redução no número de procedimentos odontológicos na dentição decídua, no período estudado, em todas as macrorregiões de saúde que compõem o estado do Rio Grande do Sul. Esses resultados podem subsidiar o planejamento da atenção à saúde bucal nessa população, considerando-se ações relacionadas à promoção de saúde bucal infantil e o reestabelecimento de condições favoráveis de saúde bucal.

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TRABALHO ACADÊMICO ASSOCIADO O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001. As autoras Sartori, LRM e Karam, SA receberam bolsas Capes de doutorado.

Recebido: 18 de Março de 2022; Aceito: 21 de Novembro de 2022

Correspondência: Sarah Arangurem Karam. E-mail: sarahkaram_7@hotmail.com

CONFLITOS DE INTERESSE

Os autores declararam não haver conflitos de interesse.

Editora associada:

Maryane Oliveira Campos - https://orcid.org/0000-0002-7481-7465

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