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Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Naturais

versão impressa ISSN 1981-8114

Bol. Mus. Para. Emilio Goeldi Cienc. Nat. v.1 n.3 Belém dez. 2006

 

Uso de plantas medicinais pela comunidade de Enfarrusca, Bragança, Pará

 

Use of medicinal plants by the Enfarrusca community in Bragança, Pará

 

 

Jussara Costa de Freitas; Marcus Emanuel Barroncas Fernandes

Universidade Federal do Pará. Campus de Bragança. Instituto de Estudos Costeiros. Laboratório de Ecologia de Manguezal. Bragança, Pará, Brasil (jussarafreittas@yahoo.com.br) (mebf@ufpa.br)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A Etnobotânica enfoca a forma como diferentes grupos humanos interagem com a vegetação. O presente estudo foi realizado na comunidade de Enfarrusca, Bragança, Pará, com o objetivo de documentar a importância da utilização das espécies de plantas medicinais locais. A coleta de dados ocorreu entre novembro de 2004 e junho de 2005. Foram aplicados 47 questionários através da Técnica de 'Listagem Livre' (entrevistas através de questionários estruturados) e da Técnica de Check List (lista de plantas inventariadas). Para todas as espécies de plantas medicinais do inventário previamente realizado pelo Projeto Manejo de Capoeira, foram coletados exemplares para a produção de exsicatas, as quais estão depositadas no herbário da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) Oriental, Belém, Pará. A maioria dos entrevistados nasceu e reside em Enfarrusca e possui como atividade principal a agricultura. As 28 espécies de plantas medicinais utilizadas nessa comunidade parecem ser úteis como método paliativo contra doenças ditas 'leves'. As cascas e folhas das plantas foram as partes mais utilizadas na preparação de remédios caseiros, sendo úteis em diversas técnicas de tratamento, como fricção, emplastro, chá, banho e asseio. O conhecimento sobre essas plantas e seus procedimentos terapêuticos é transmitido em nível familiar, principalmente pelos pais. Tal sistema terapêutico comunitário encontrado em Enfarrusca é basicamente sincrético, misturando elementos da cultura indígena e européia. Uma vez alcançado o conhecimento, ele pode trazer resultados práticos, fornecendo uma base para a implantação de sistemas de saúde mais adaptados à cultura e às condições da região.

Palavras-chave: Etnobotânica. Plantas medicinais. Comunidade de Enfarrusca. Bragança. Pará.


ABSTRACT

The Ethnobotany focalizes the way how different human groups interact with vegetation. The current study was carried out at the community of Enfarrusca, Bragança, Pará, aiming to register the importance of utilization of local medicinal plant species. Data colletcion occurred between November, 2004 and June, 2005. Fourty-seven questionaries were applied by using two different techniques: 'Listagem Livre' (enterview by structured questionaries) and 'Check List' (list of inventoryed plants). For all medicinal plant species from the inventory previously carried out by the project Projeto Manejo de Capoeira speciemens to produce exsicatas were collected, which are deposited at the herbarium of EMBRAPA Oriental, Belém, Pará. Most of interviewees were born and live at Enfarrusca, and has agriculture as the main activity. The 28 species of medicinal plants used by this community seem to be useful as palliative method against diseases called 'not serious'. Barks and leaves were the parts of the plants more used in the preparation of homemade medicines, that are useful in many different treatment techniques, such as: 'fricção', 'emplastro', tea, 'banho' and asseio'. The knowledge on these plants and their therapeutical procedures is transmitted at familiar level, mainly by parents. Such a therapeutical system found at Enfarrusca is basically syncretic, mixing elements from indigenous and European cultures. Once the knowledge is reached, it can bring practical results, giving a basis to implement healthy systems more adapted to the culture and conditions of the region.

Keywords: Ethnobotany. Medicinal plants. Community of Enfarrusca. Bragança. Pará.


 

 

INTRODUÇÃO

Os estudos etnobotânicos, com ênfase no aspecto medicinal, vêm sendo bastante enfatizados na Amazônia brasileira, pois ressaltam a importância cultural e o significado das plantas medicinais na vida dos povos (RIOS, 2002). Begossi, Hanazaki e Silvano (2002) ressaltam que os estudos etnobotânicos contribuem, em especial, para o desenvolvimento planejado da região onde os dados foram coletados.

As plantas medicinais, na região amazônica, são o principal meio de tratamento de doenças para a maioria das populações pobres devido às influências culturais e ao custo proibitivo dos produtos farmacêuticos. Para um grande número de pessoas pobres da zona rural e urbana nessa região, as plantas medicinais oferecem o único meio de tratamento disponível, tanto para as doenças menos graves quanto para as mais sérias (ELISABETSKY WANNAMACHE, 1993). Embora as plantas medicinais sejam colocadas em evidência pelos meios de comunicação e usadas por milhões de brasileiros, surpreendentemente há poucas pesquisas de campo sobre sua ecologia. Por outro lado, a literatura etnobotânica produzida na região amazônica inclui uma série de estudos botânicos e bioquímicos sobre essas plantas (ALBUQUERQUE, 1989; SCHULTES; RAFFAUF, 1990; BERG, 1993; DUKE; VASQUEZ, 1994), incluindo o trabalho realizado por Coelho-Ferreira (2000) na costa leste do estado do Pará.

Nos últimos anos, numerosas investigações etnobotânicas, que priorizam os inventários de plantas úteis, foram realizadas no intuito de estudar as relações entre as plantas e a cultura, além de promover interpretações sobre o impacto dessas plantas na cosmovisão da sociedade e na sua economia (ESTRELLA; CRESPO, 1993).

Em todos os países e sistemas de saúde, é freqüente o uso de plantas ou de seus princípios ativos na área terapêutica. A identificação do valor curativo dessas plantas acrescenta muitas informações para o saber médico tradicional, que igualmente tem sido a fonte para a investigação fitoquímica por meio da identificação dos princípios ativos e, em alguns casos, do desenvolvimento de novas drogas (ESTRELLA; CRESPO, 1993).

De acordo com Rios (2002), a capoeira ou sucessão secundária, do ponto de vista do uso de recursos vegetais, parecia ser um 'primo pobre' no universo da riqueza dos ecossistemas da Amazônia. A autora ainda enfatiza que a partir da década de 1980, com o incremento da pesquisa em etnobotânica no norte do Brasil, foi constatado o quanto as plantas da capoeira oferecem benefícios às populações rurais, especialmente àquelas que manejam esses ecossistemas para o seu uso. Tal constatação trouxe à luz a necessidade imperiosa de conservação as capoeiras, já que muitos grupos indígenas e comunidades de pequenos agricultores encarregaram-se de conferir-lhe um status de utilidade, até então pouco conhecido pela comunidade científica. Além do mais, existem evidências arqueológicas e ecológicas de que as capoeiras, na Amazônia, têm sido altamente valorizadas, uma vez que essas florestas secundárias são capazes de produzir produtos vegetais que auxiliam na subsistência das populações humanas historicamente residentes na região. Assim, o objetivo do presente trabalho é documentar o uso e a importância das espécies de plantas medicinais oriundas das matas de capoeira pelos moradores da comunidade de Enfarrusca, Bragança, Pará.

 

MATERIAL E MÉTODOS

Área de estudo

O estudo foi realizado na comunidade de Enfarrusca, localizada nas coordenadas geográficas (01o07'37,6" S 46o41'70,4" W), a 13 km do município de Bragança, Pará (Figura 1). O clima da região bragantina é equatorial superúmido, com temperatura média anual de aproximadamente 26oC, umidade relativa do ar variando entre 80 e 91% e pluviosidade anual de 3.000 mm (MARTORANO et al., 1993). Predominam nessa região os seguintes tipos de vegetação: floresta de terra firme, representadas em sua maioria pelas capoeiras; florestas de mangue; e campos naturais (IDESP 1977).

 

 

A comunidade de Enfarrusca

De acordo com os informantes Sr. Antônio Assunção e Sr. Henrique Assunção, Enfarrusca é uma das comunidades mais antigas de Bragança e teve como seu primeiro habitante, em 1905, um agricultor chamado Antonio Regino de Assunção que, juntamente com sua família, vivia da agricultura de subsistência. Hoje, essa comunidade possui um total de 60 unidades domésticas, ocupadas por famílias cuja economia baseia-se principalmente no cultivo de milho, mandioca e feijão, sendo os dois últimos produtos o objetivo da associação dos agricultores em promover uma produção rentável às famílias locais. Em termos de desenvolvimento, Enfarrusca possui uma escola de ensino fundamental (Escola Municipal Camila Assunção), uma igreja católica, luz elétrica, água encanada e um campo de futebol, embora não exista posto de saúde.

Levantamento etnobotânico

O trabalho de campo foi realizado entre os meses de novembro de 2004 e junho de 2005 e baseou-se em informações sobre o uso de plantas medicinais e a produção de exsicatas, de acordo com o método descrito por Amoroso (1993).

As informações etnobotânicas foram coletadas a partir da utilização de um questionário-estruturado (Técnica de 'Listagem Livre'), consistindo de uma lista de questões fixas formuladas de acordo com a finalidade da pesquisa (ALEXIADES, 1996). Foram utilizados dois questionários: um com dados sobre os informantes e outro com dados relativos às espécies vegetais.

A Técnica de Check List, segundo Alexiades (1996), foi aplicada para verificar quais as espécies vegetais eram utilizadas para uso medicinal. A lista de espécies vegetais, usada no presente trabalho, foi produzida pelo projeto Manejo de Capoeira, realizado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), Center for International Foresty Research (CIFOR) e Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) (Anexo 1).

Exsicatas foram produzidas a partir de três exemplares de cada espécie botânica coletada nas capoeiras de entorno à comunidade de Enfarrusca, utilizando o método descrito por Ming (1996). As plantas coletadas foram herborizadas e identificadas, sendo posteriormente depositadas no Herbário da Universidade Federal do Pará (UFPA), Campus de Bragança.

Análise de dados

O teste do Qui-Quadrado de Partição (LxC) foi utilizado para averiguar a diferença quanto à origem e à classe etária dos homens e mulheres residentes na comunidade. A análise comparativa considerando o número de homens e mulheres de toda a comunidade (incluindo os imigrantes), bem como a análise incluindo apenas os informantes nascidos em Enfarrusca foram realizadas através do teste do Qui-Quadrado (uma amostra de proporções esperadas iguais). Este teste também foi utilizado para analisar os dados referentes ao tempo de vivência dos moradores na comunidade, à profissão desses informantes, à transmissão do conhecimento sobre as plantas medicinais, ao número de plantas medicinais usadas e à parte da planta mais utilizada, à via de administração dos remédios caseiros e ao grau de conhecimento sobre as plantas medicinais entre homens e mulheres da comunidade. As análises foram realizadas no pacote estatístico BioEstat 3.0 (AYRES et al., 2003).

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Dos informantes

Do universo amostral de 47 unidades domésticas, que representou quase 80% das residências dessa comunidade, em cada domicílio apenas o responsável presente foi entrevistado, correspondendo o número de unidades amostrado ao número de pessoas entrevistadas.

A Tabela 1 mostra que 34 (72,34%) dos moradores entrevistados são nativos de Enfarrusca e apenas 13 (27,66%) são provenientes de outras localidades. Os motivos pelos quais as pessoas passaram a adotar Enfarrusca como seu novo endereço são, em boa parte, devido a algum membro da família já residir nessa comunidade. As justificativas mais comuns registradas nas entrevistas são a qualidade da terra para o plantio, a existência de luz elétrica, água encanada, igarapés, ausência de poluição e a proximidade à cidade de Bragança. Os dados foram obtidos com os informantes nativos, pois estes detêm maior conhecimento sobre as plantas medicinais do que os informantes oriundos de outras localidades.

 

 

O teste do Qui-Quadrado mostrou que não houve diferença significativa (χ2=5,81; gl = 7; p>0,05) entre os informantes do sexo masculino e feminino com respeito à sua origem, ou seja, o número de homens e mulheres que migraram para Enfarrusca a partir de outras localidades é equivalente, bem como não houve um lugar especial de onde esses moradores tivessem imigrado. Por outro lado, o número de mulheres foi significativamente maior do que o de homens (χ2=7,68; gl=1; p<0,01) na população entrevistada (n = 47), quando não se considera a origem dessa população. Da mesma forma, foi constatada uma diferença muito significativa (χ2=7,52; gl=1; p<0,01) quando a proporção sexual entre os moradores nascidos em Enfarrusca foi comparada.

De acordo com as entrevistas, as mulheres têm maior conhecimento das espécies vegetais da capoeira devido a estarem, freqüentemente, fabricando vários tipos de remédios caseiros. O maior número de informantes do sexo feminino deve-se ao fato de que as entrevistas foram realizadas, em sua maioria, pela manhã, coincidindo com o período em que as mulheres encontram-se na unidade doméstica, enquanto os homens trabalham na roça.

A Figura 2 apresenta o percentual de todas as categorias referentes às atividades exercidas pelos informantes. A categoria Agricultor representa desse universo amostral 64%, ao passo que Professor é a categoria que teve menos representantes.

 

 

A maioria desses entrevistados (n = 30) trabalha na agricultura (75%), sendo que 57% são mulheres e 43% são homens. A razão pela qual muitas mulheres responderam que são agricultoras deve-se ao fato de que muitas vezes elas ajudam seus maridos no trabalho agrícola, não significando, no entanto, que elas tenham a mesma carga de trabalho no campo. O restante dos entrevistados (n=17) está dividido nas seguintes categorias: Domésticas (52,9%), Aposentados (23,5%), Estudantes (17,7%) e Professores (5,9%). A análise estatística mostrou que a diferença entre o número de entrevistados para cada atividade exercida na comunidade foi bastante significativa (χ2=25,12; gl=5; p<0,001). Considerando todas as categorias, poucos foram os professores e estudantes entrevistados. Os primeiros contam apenas em número de dois em toda a comunidade. Os estudantes, por sua vez, têm necessidade de ajudar os pais no trabalho agrícola, ausentando-se do centro da comunidade no horário em que as entrevistas foram realizadas. As donas de casa e os aposentados formam as maiores categorias de informantes, sendo que as mulheres, além de serem maioria no conjunto dos agricultores, também somam alto valor dentre o restante dos entrevistados. De fato, as mulheres parecem ter um importante papel tanto na agricultura quanto nos afazeres domésticos. Tal resultado é similar ao encontrado por Amorozo e Gély (1988) em duas vilas de pequenos agricultores no município de Barcarena, Pará e por Roman (2001) que trabalhou com famílias de pescadores de Algodoal, no município de Maracanã, Pará.

Na Tabela 2 estão indicadas as faixas etárias dos entrevistados com suas respectivas porcentagens. O teste do Qui-Quadrado mostrou que a diferença entre as faixas etárias dos informantes, em geral é muito significativa (χ2=19,33; gl=7; p<0,01), mas quando a análise é realizada com a separação dos informantes por sexo, os resultados não são significativos (χ2=6,30; gl = 6; p>0,05). A faixa etária mais freqüente foi a de 37 a 47 anos (23,4%), seguida pela faixa de 14 a 25 anos (21,3%). Estes resultados indicam que, embora a maioria dos informantes possua idade madura, outro segmento jovem também compõe boa parte desse universo amostral. Neste caso não há muita evidência de que os jovens estejam deixando a comunidade em detrimento de outra atividade, como estudar em um centro urbano próximo, fato este descrito por Roman (2001) para as famílias de pescadores de Algodoal, no município de Maracanã, Pará. Embora a comunidade de Enfarrusca ofereça apenas a formação escolar básica, os mais jovens não precisam deixar esta comunidade para cursar o nível fundamental, pois fica apenas a 13 km da cidade de Bragança e o acesso é facilitado pela oferta de condução gratuita pela prefeitura municipal.

 

 

De acordo com as informações das entrevistas, a classe etária de 37 a 47 anos possui um conhecimento bem maior sobre as plantas medicinais do que as outras classes, sendo que o número de citações de espécies vegetais foi aproximado ao número citado pelos idosos (a partir de 60 anos).

Tempo de vivência na comunidade

A partir da variação do tempo em que os informantes vivem na comunidade foram criadas oito classes de tempo de vivência, com base no trabalho de Roman (2001). Os resultados mostraram que o tempo de vivência dos entrevistados em Enfarrusca varia entre 6 e 93 anos (Tabela 3). A análise comparativa dessas classes de tempo foi bastante significativa (χ2=20,57; gl=7; p<0,01) para os entrevistados em geral, mesmo com distinção sexual (χ2=2,82; gl=7; p>0,05), demonstrando que a maioria está incluída na classe de 17 a 27 anos. É importante ressaltar que alguns informantes moram na comunidade desde que nasceram, outros se instalaram depois de passar uma temporada em diferentes cidades ou comunidades. No entanto, a maioria desses indivíduos (n = 39) mora a pelo menos 17 anos em Enfarrusca, o que sugere uma comunidade antiga e com pouco fluxo de moradores. Isto também é corroborado pelo fato de que a comunidade é composta de um grupo familiar pequeno, com apenas três famílias principais (Assunção, Quadros e Borges), representantes da maior parte das residências entrevistadas.

 

 

Doenças mais comuns

Segundo o agente comunitário de saúde que atende a comunidade de Enfarrusca, Sr. Valdemar de Brito Quadros, as doenças mais freqüentes, ditas como 'graves' e que precisam de acompanhamento médico, são diabetes, gripe, malária, hipertensão e parasitoses. Essas mesmas doenças foram registradas nas entrevistas, sendo parasitoses e diarréia as mais freqüentes, com 27% e 23%, respectivamente (Figura 3).

 

 

Embora haja acompanhamento mensal pelo agente comunitário, essas doenças são oriundas do descuido dos pais em relação aos filhos, pois a comunidade de Enfarrusca não dispõe de água tratada e tratamento de esgoto. O Anexo 2 apresenta a lista das doenças mais citadas pelos informantes.

Através das entrevistas pode-se verificar que, nos casos de doenças menos complexas, o uso de remédios caseiros e a procura ao posto de saúde são as providências imediatas mais adotadas. No entanto, quando esses casos não são passíveis de solução por esses meios, os moradores de Enfarrusca recorrem à assistência médica dos centros urbanos mais próximos, como Bragança e Belém. De fato, na zona rural da cidade de Bragança há carência de atendimento médico, ou seja, não existe posto de saúde que atenda às comunidades mais afastadas. Por essa razão, o emprego de plantas medicinais torna-se tão necessário, agindo como um paliativo no tratamento de doenças ditas leves como febre, dor de barriga, dor no estômago, dor de dente, enjôo, torções, inflamações, diarréia etc. Da mesma forma, Roman (2001) encontrou os mesmos resultados durante o seu estudo no litoral paraense.

As plantas medicinais

O estudo de Rios (2002), realizado na comunidade de Benjamin Constant, município de Bragança, revelou um número bastante expressivo de espécies botânicas da capoeira úteis para esta comunidade. Das 135 plantas úteis inventariadas por esta autora, 39 são medicinais. No presente trabalho foram identificadas 28 espécies de plantas medicinais para a comunidade de Enfarrusca, Bragança, Pará.

A partir dos questionários aplicados, obteve-se o nome das espécies de plantas mais citadas pelos moradores, registradas na Tabela 4. O teste do Qui-Quadrado mostrou que a diferença entre as citações efetuadas pelos moradores de Enfarrusca sobre as plantas mais usadas foi bastante significativa (χ2=29,26; gl=9; p<0,001). Grande parte dos entrevistados afirmou que poucas plantas medicinais contidas nessa lista podem ser encontradas tanto na capoeira quanto no igapó.

 

 

Partes das plantas mais usadas

A Figura 4 mostra que algumas partes das plantas são empregadas no preparo dos remédios, como flor, folha, caule, casca, raiz, seiva, semente e fruto. Casca, folha e raiz foram as partes mais utilizadas (29,1, 28 e 17%, respectivamente). O Teste do Qui-Quadrado mostrou que a diferença entre o número de citações das partes da planta é bastante significativa (χ2=484.54; gl=10; p<0,001). Estes dados são semelhantes aos encontrados por Amorozo e Gély (1988) em duas comunidades caboclas de Barcarena, Pará, nas quais as principais partes das plantas utilizadas foram folhas (49%), raízes (15%) e casca (13%).

 

 

Na comunidade de Enfarrusca não existe sinais de corte seletivo de madeira para comércio de espécies vegetais, existindo apenas a prática da queimada para o replantio de feijão, mandioca e milho. Nessa comunidade já haviam sido proferidas várias palestras sobre conscientização, manejo e preservação de produtos naturais oriundos da vegetação secundária. Portanto, é importante ressaltar que os moradores de Enfarrusca apresentam hábitos de exploração racional dos recursos vegetais úteis da capoeira.

Uso das plantas medicinais

As observações registradas sobre os moradores da comunidade de Enfarrusca demonstraram que eles têm uma grande convivência com o mundo vegetal, o que certamente promoveu o uso da experimentação e investigação constante das propriedades terapêuticas das plantas. De fato, os informantes, ao longo das entrevistas, mostraram grande conhecimento sobre o estado de maturação das espécies vegetais, o preparo e a conservação dos remédios. Para conservar as propriedades do 'leite de Amapá' (Brosimum parinarioides Ducke.), por exemplo, deve-se fervê-lo com água e depois coado, ou, então, deve ser ingerido puro ou misturado com leite condensado. De acordo com os informantes, "não se pode consumir o leite do Amapá (Brosimum parinarioides Ducke) quando a árvore ainda estiver dando fruto, pois é venenoso". A casca da verônica (Dalbergia monetária L. f.) e da sucuba (Himatanthus sucuuba (Spruce) Woodson.), por exemplo, só devem ser empregadas bem secas, senão "fazem mal".

De acordo com os relatos dos informantes, outro uso interessante é o da planta medicinal Capitiú (Siparuna decipiens (Tul.) A. D.), preparada como um banho, podendo trazer benefícios, como 'limpeza da alma' e retirada de 'mal olhado'. Já a Vassourinha-de-botão (Borreria verticillata (L.) G. Mey.), erva medicinal muito encontrada à beira de caminhos e estradas, é usada pelas 'benzedeiras' na prática da 'benzedura' de crianças contra muitos males. Por fim, as plantas medicinais podem também exercer outra função, como é o caso do banho da casca de Marapuama (Clavija lancifolia Desfontaines), que, segundo os informantes, "tem efeito sobre feitiço". Tais resultados também são encontrados no trabalho de Amorozo (1993), onde a 'puxação' e a 'benzeção' são os dois procedimentos mais utilizados para o tratamento de vários males entre os habitantes de Itupanema e Vila Nova, município de Barcarena, Pará.

Outras utilidades das plantas medicinais também foram registradas, como madeira para construção de casas e móveis, lenha, aromatizante e ornamental.

Procedimentos terapêuticos

Considerando que a terapêutica estuda e põe em prática os meios adequados para aliviar ou curar os doentes, alguns procedimentos práticos foram registrados em Enfarrusca para o tratamento de diferentes doenças, como o uso de fricção, aplicação de emplastros, uso de chá via oral, aplicação de banhos e asseios.

O modo de preparo dos remédios utilizados nos procedimentos terapêuticos também apresenta o uso combinado de plantas nesses tratamentos, sendo utilizados outros ingredientes, como o mel e o leite condensado.

Os tipos de tratamento registrados para a comunidade de Enfarrusca não são limitados ao ser humano, pois cães domésticos também são passíveis de serem assistidos. A planta Jaborandi-da-mata (Piper ottonoides Yuncker), por exemplo, quando macerada por completo, é colocada no focinho dos cães para facilitar a retirada de secreções, restabelecendo o faro do animal.

De acordo com Amorozo e Gély (1988), as razões apresentadas para o uso de uma determinada planta estão de acordo com o sistema de pensamento dos informantes, com concepções de causa e efeito próprias. Embora diferenciem-se de uma explicação causal científica, elas não excluem a possibilidade de uma ação farmacológica da planta. Um estudo mais detalhado sobre os procedimentos de administração e das razões pelas quais os informantes ministram determinadas preparações para certos fins, além de fornecer pistas para as pesquisas farmacológicas sobre os princípios ativos dessas plantas, seria muito útil para a compreensão do sistema de saúde dos colonos e para a implantação de programas de saúde mais eficientes.

O Anexo 3 apresenta os usos das espécies medicinais encontradas no presente estudo. O termo 'medicinal' designa aqui todas as espécies que têm um valor curativo para os moradores de Enfarrusca. De acordo com Maués (1977), as doenças dividem-se em dois grupos: 'doenças naturais' e 'doenças não-naturais', conforme os conceitos nativos de causalidade.

No entanto, a análise destes conceitos é fundamental para entender o funcionamento do sistema terapêutico e da sua complexidade, o qual necessitaria de estudos mais aprofundados. O Anexo 3 mostra, ainda, as partes das plantas que são empregadas no preparo dos remédios caseiros. Os resultados apresentados nesse anexo comprovam a importância de considerar os dados etnobotânicos em pesquisas farmacológicas. Várias espécies de plantas medicinais citadas nessa lista já tiveram ação farmacológica comprovada em estudos de laboratórios, como a vassourinha (Scoparia dulcis Linnaeus), verônica (Dalbergia monetaria Linnaeus f.) e canela (Aniba canelilla (Kunth) Mez) (UNESCO, 1984).

A via oral foi a mais mencionada como via administrativa para o tratamento terapêutico de muitos males (244 citações, 64%), seguida pela via tópica (136 citações, 34%), sendo este um resultado bastante significativo (χ2=30,69; gl=1; p<0,001), além de corroborar com os achados de Amorozo (1993), nos quais a via externa representou 79% das receitas caseiras, enquanto a via tópica apenas 21%.

Transmissão do conhecimento

O teste do Qui-Quadrado mostrou que houve diferença significativa (χ2=14,02; gl=3; p<0.01) entre os diversos responsáveis pela transmissão do conhecimento na comunidade. Os conhecimentos sobre o uso de plantas como remédios foram transmitidos, principalmente, através dos pais (44%) (Figura 5).

 

 

Todos os informantes afirmaram que costumam transmitir seus conhecimentos para os filhos, vizinhos, amigos e a quem necessite do medicamento tradicional. Na comunidade não existe a prática da venda de preparados medicinais 'garrafadas', pois eles não constituem uma fonte de renda alternativa para os informantes em função de não serem produzidos com muita freqüência. A maioria dos preparos caseiros é trazida de outras comunidades próximas. Esta prática parece ser muito comum em outras comunidades, como já registrado por Roman (2001), na ilha de Algodoal, município de Maracanã, Pará.

A maioria dos informantes afirmou que nunca tentou plantar as espécies medicinais da capoeira, devido ao fácil acesso em consegui-las.

 

CONCLUSÃO

A maneira como os moradores da comunidade de Enfarrusca utilizam as plantas e outros produtos na sua medicina tradicional está subordinada não apenas à procura de uma eficácia consagrada pela experiência de uso, mas também como eles percebem a etiologia das doenças e a terapêutica dos remédios.

Pode-se salientar que a rede familiar de transmissão de conhecimento é relevante nessa comunidade, mesmo sendo esta uma comunidade jovem e bem estabelecida próximo a Bragança e outros povoados. O sistema terapêutico comunitário encontrado em Enfarrusca é basicamente sincrético, com a presença de elementos da cultura indígena e européia. O conhecimento, uma vez alcançado, além do interesse puramente acadêmico, poderia trazer resultados práticos ao fornecer uma base em que se alicerçasse a implantação de sistemas de saúde mais adaptados à cultura e às condições da região.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 05/12/2005
Aprovado: 15/03/2006