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Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas

Print version ISSN 1981-8122

Bol. Mus. Para. Emilio Goeldi Cienc. Hum. vol.3 no.1 Belém Apr. 2008

 

"Pequenas pontes submersas"1: interpretações geográficas e antropológicas de literaturas de contrabando

 

"Small underwater bridges": geographical and anthropological interpretations of smuggler's literature

 

 

Adriana Dorfman

Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil (adriana.dorfman@gmail.com)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O estudo das práticas dos contrabandistas requer ferramentas variadas, uma vez que os instrumentos de pesquisa mais convencionais não penetram a natureza sigilosa do objeto em questão. Assim, recorreu-se a interpretações geográficas da literatura e a uma etnografia balizada pela teoria da tradução cultural como metodologias para pesquisar os bagayeros, contrabandistas de pequenos volumes que freqüentam as cidades de Santana do Livramento e Rivera, na fronteira Brasil-Uruguai. Apresentam-se aqui resultados dessa pesquisa: primeiramente, debatem-se os usos da ficção pelas ciências humanas, mais especificamente pela geografia e antropologia. Segue a análise do contrabando através de seis narrativas produzidas e ambientadas na fronteira gaúcha, examinadas em sua lógica interna e em sua relação com textos precursores. As metáforas empregadas particular ou genericamente às fronteiras são exploradas e mapeadas, sendo usadas como indícios para a compreensão dos significados atribuídos a esse objeto geográfico pela população que o experimenta cotidianamente. Finalmente, textos sobre as fronteiras da França são analisados, novamente em busca das metáforas, e os diferentes contextos geohistóricos de produção de fronteiras e dos objetos culturais a elas ligados são comparados, testando a correspondência entre geografia e cultura, em busca de elementos para uma compreensão mais ampla da fronteira como experiência cotidiana.

Palavras-chave: Contrabandistas. Fronteiras. Regionalismo literário. Traduções culturais.


ABSTRACT

The research on smuggling has to employ multiple tools as a result of the secrecy inherent to this practice. This investigation about the bagayeros, i.e., small-scale smugglers in activity at Santana do Livramento and Rivera, cities on the Brazilian- Uruguayan boundary, leans on the geographical interpretation of literature and on an ethnography informed by cultural translation theories. The first part of this article discusses the possible uses of fiction by human sciences, in particular by geography and anthropology; follows the analysis of six stories written and set on the gaucho boundary, examined in aspects such as its internal logics and its relation to its predecessors. Both specific and general border metaphors were collected and mapped, to be employed in the study of the meanings bestowed upon this geographical object by its inhabitants. The following step is to research metaphors employed in border literature from france, and the comparative study of different geo-historical contexts of production of borders and its cultural objects, always testing the correspondence between geography and culture in search of elements for a deeper understanding of the border as a daily experience.

Keywords: Smugglers. Borders. Literary regionalism. Cultural translation.


 

 

Literatura, ciência e tradução

O uso de obras literárias pelas ciências humanas – mais especificamente pela antropologia e pela geografia contemporâneas – desperta questões de método. Ficção e ciência convertem-se em textos e podem compartilhar temas e projetos; entretanto, os textos literários e os científicos circulam por redes de intenção diferentes, os primeiros buscando sua legitimação segundo critérios de beleza e verossimilhança, os últimos curvando-se sob o peso da coerência e da verdade.

O trabalho dos geógrafos e dos antropólogos geralmente deságua num texto final, que pode ser um artigo como este ou um relatório de campo, mas que é apenas parte de um percurso que inclui contatos prolongados com o grupo em estudo na construção – e nas sucessivas erosões – do objeto geográfico e etnográfico. O texto científico é uma tentativa de sedimentação dessa experiência a partir do substrato de teorias já constituídas.

A literatura de ficção tem na linguagem sua matéria e no texto seu objeto. Como quase tudo, em se tratando da experiência humana, seus enredos se encenam no espaço2. A geografia da narrativa literária é necessariamente ficcional, mas dificilmente será completamente descolada das experiências espaciais do autor. Língua, identidade e tradições geralmente ligam-se a determinados recortes espaciais. É esse o sentido da expressão 'cultura espacialmente situada': o lugar – onde nascemos e somos criados, onde habita a comunidade para a qual produzimos nossas obras – influi em nossa visão de mundo, constituindo, a um só tempo, tropo e locus. O espaço geográfico se inscreve nas obras literárias como cenário e como ancoragem da cultura: é a paisagem e abriga um conjunto de práticas culturais estruturadoras do nosso horizonte de possibilidades, entre as quais se destacam a língua e os códigos para compreensão do espaço.

Esse é um processo histórico, pois toda obra literária está arraigada a um sistema lingüístico que tem seu rebatimento espacial estabilizado por processos políticos e culturais ligados ao nacionalismo3. Tal afirmativa é especialmente válida para a teoria romântica, onde "cada língua cristaliza a história interna, a visão de mundo específica do Volk ou nação" (Steiner, 1990, p.15) e o espaço em que essa se materializa. Na concepção romântica, se supunha uma identidade nacional coesa informando uma literatura delimitada pelas fronteiras nacionais. Autores com dupla pertinência lingüística e/ou geográfica eram considerados anômalos – casos de dualismo moderno – e, em situações extremas, como extraterritoriais (Steiner, 1990, p. 23).

Contemporaneamente, emergem reivindicações de identidades híbridas e a estabilidade lingüística local e nacional é eclipsada por outras territorializações; a interpretação de produtos literários fornece pistas para o entendimento dos híbridos na recepção pós-colonial, especialmente pós-Guerra Fria, que lê certas obras literárias – em seu conteúdo ou circulação – como indícios de territorialidades concretas pouco reconhecidas4.

Acreditava-se, romanticamente, que o escritor exercia sua autoria, tendo autonomia na eleição de temas e das formas de tratá-los, obedecendo apenas parcialmente aos ditames do cânone ou da origem. O trabalho do escritor não exige pesquisas e trabalhos de campo sobre identidades ou territorializações, e mesmo que conte com eles, não é por eles condicionado. Como já se disse acima, o compromisso do escritor é, antes de tudo, com a palavra. É nesse sentido que é entendida a originalidade, como a marca pessoal do autor e não como algum vínculo com sua origem.

A discussão sobre o grau de imitação da natureza adequado à criação literária tem oscilado desde a investigação da expressão interna de sentimentos poéticos, libertos da matéria real, até um apelo ao realismo, que busca registrar a natureza e a sociedade com objetivismo exaustivo.

No pólo realista situam-se certos movimentos literários, como o nativismo argentino ou o regionalismo brasileiro e, especificamente, a gauchesca no Rio Grande do Sul. Esses movimentos têm como compromisso documentar paisagens, tipos, costumes, vocabulário, superstições, delineando os modos de vida de uma região, especialmente aqueles de espaços rurais vistos como ameaçados de descaracterização (Chiappini, 1994). Não por coincidência, muitos escritores regionalistas também têm se dedicado à coleção e fixação do folclore. A literatura regionalista pode ser vista como uma construção de intelectuais periféricos em busca da autenticidade popular, de literatos que lapidam a cultura local para expô-la às autoridades culturais nas capitais urbanas nacionais, reiterando a submissão dessa fração do território ao poder político central5.

Freqüentemente, o trânsito entre a oralidade e seu registro literário se inverte, e personagens, histórias e fórmulas literárias entram em circulação na cultura local, num movimento dialógico, bakhtiniano, em que a cultura popular e a erudita influenciam-se e reinterpretam-se, em forma, conteúdo e função (Bakhtin, 1996, p. 49). Assim, se as peculiaridades locais transformam-se em matéria-prima para a literatura, esta se torna uma fonte de diferenciação cultural e geográfica. Modos de vida e tipos regionais cristalizam-se, são chamados a forjar limites para povos e lugares, subsidiam e reforçam identidades e regionalizações, e em alguns casos, são instrumentalizados pelas reivindicações de movimentos políticos secessionistas.

Note-se que o esforço dos literatos em documentar não gera somente 'obras menores' e datadas, saturadas de passadismo eufórico ou melancólico. Ao contrário, certos textos transcendem os limites da ideologia do momento, mantendo ativos, em seu interior, "a tensão constitutiva da história, e dos sujeitos que a vivem, divididos" (Chiappini, 1988, p. 313). Além disso, as tradições não são apenas inventadas, mas também recriadas e questionadas, em narrativas que vão do épico ao cômico, passando freqüentemente pelo irônico.

A literatura pode ser uma fonte para a investigação de culturas espacialmente situadas? Tal interrogação dirige-se à veracidade da representação presente na obra de ficção6. Afinal, o que o lugar deixa como concrescência, nesse discurso em que as práticas culturais locais surgem à luz da subjetividade do autor (sua liberdade de fabular) e de critérios culturais não-locais (e, geralmente, revestidos de maior autoridade, como a gramática, as tradições literárias, a Arte)? O que, das sensibilidades e dos sentidos locais da cultura, fica na expressão do literato e pode ser revelado na leitura do pesquisador? São questões que não possibilitam uma resposta genérica ou taxativa, pois não há realidade objetiva com a qual comparar, contra a qual validar cada representação literária. Duas vertentes podem ser exploradas em busca de respostas para essas questões.

Em primeiro lugar está o trabalho sobre o texto literário em si, o exame da narrativa apresentada, dos personagens que a animam, da linguagem empregada, das metáforas sugeridas, de forma a evidenciar sobreposições e afastamentos existentes entre as figuras criadas pela literatura e pela ciência, a fim de revelar outros ângulos sobre o fenômeno em questão7. A ficção constrói personagens, gira em torno deles como representativos de um coletivo. De forma semelhante, etnógrafos e geógrafos trabalham com o indivíduo, considerando que o mesmo é também a manifestação das possibilidades de um tempo e espaço social compartilhado, apreciando-o como elemento de um grupo com o qual tem identidade.

Em segundo lugar, podemos nos interrogar sobre o compromisso do autor com os lugares que retrata e sobre sua capacidade de reformular as práticas e sensibilidades locais, apresentando-as na forma escrita. Trata-se de contextualizar o autor e as concepções literárias que o informam. Em outras palavras, não teremos certezas sobre a qualidade da tradução da cultura espacialmente situada presente num texto, mas podemos investigar o projeto de cada autor ao fazê-lo8.

Há muitas modalidades de tradução (entre língua-fonte e língua-alvo; entre gêneros literários; entre cultura oral e cultura escrita; entre culturas diferenciadas espacial ou socialmente) e esse processo geralmente atinge mais de um entre os sistemas lingüísticos supracitados9. Mesmo a tradução literária superou o paradigma lingüístico, enfatizando que cada texto traz dentro de si a cultura que o gerou (Trivedi, 2005).

Uma tradução culturalmente atenta propõe-se uma ética de respeito às diferentes formas de pensar o mundo, reconhecendo a incomensurabilidade de certos conceitos, em sua passagem entre registros. A tradução cultural é concebida também como uma relação política, na medida em que as línguas estão diferentemente posicionadas, sendo meios de expressão de grupos em desigualdade política e, por isso, dispondo de instrumentos mais ou menos correntes na linguagem científica. Como metodologia de pesquisa etnográfica, Talal Asad propõe a busca de contato e a tentativa de compreensão e transmissão de sentido, sem perda de sutileza nos significados culturais, de forma que a problemática relação de forças que há entre pesquisador e pesquisado seja balizada pela vontade de diálogo (Asad, 1986).

O termo 'tradução' perde especificidade se for acionado apenas como um equivalente de 'interpretação'. Esse tipo específico de prática interpretativa analisa as adequações da linguagem que apontam para conteúdos locais, constituindo um jargão, um dialeto ou código que expressa entendimentos sobre as práticas localmente legítimas. Além disso, a tradução cultural foca no contexto, privilegiando os significados localmente pertinentes na interpretação de palavras de uso geral. Termos êmicos explicitam usos locais, novos e ignorados pelo pesquisador; diferentes conteúdos atribuídos a palavras conhecidas também oferecem vislumbres sobre o sentido local das práticas; a toponímia pode revelar valores locais presentes ou pretéritos.

Assim, podemos nos perguntar: o literato é um bom tradutor da vida das pessoas que representa através de seus personagens? Como o regionalismo literário e a etnografia se relacionam? Podemos fundir os dois gêneros textuais sem deturpar os propósitos de cada um deles? A que ponto o projeto de registro e criação dos regionalistas (quando porta-vozes de sua própria cultura) pode ser assimilado à prática etnográfica, seja esta o resgate de culturas em desaparecimento, como problematiza Renato Rosaldo (1986); a tradução da cultura alheia e geralmente subalterna, como trabalha Talal Asad (1986); ou a criação de alegorias morais, como constrói James Clifford (1986)? Invertendo a fórmula de Clifford Geertz (2002a; 2002b), devemos tratar o autor como antropólogo? Ou, quem sabe, devamos considerar as obras regionalistas – especialmente aquelas escritas por autores identificados com seus personagens – como textos de uma cultura letrada, como textualizações da cultura local?

Possivelmente, a resposta esteja no intervalo entre essas posturas: nem etnografia nem texto nativo. Alguns escritores regionalistas interpretam sua cultura, aquela de sua região, tendo como propósito resgatá-la, documentá-la e traduzi-la, como um etnógrafo nativo carente (ou livre?) do método. Vale aqui a reflexão de Ieda Gutfreind (1999), ao comparar a interpretação da fronteira gaúcha pelos historiadores oficiais com aquela produzida por certos historiadores locais. Os primeiros, apesar de legitimados pelo método, oferecem uma história comprometida com a ideologia nacionalista, enquanto os últimos, considerados amadores, têm a liberdade de abordar as trocas fronteiriças em vários campos.

O esforço metodológico acima se justifica como etapa da pesquisa "Contrabandistas na fronteira gaúcha". Digamos que, diante da escassez de teoria, de etnografias ou de história sobre o contrabando; e da abundância de textos literários dotados de eloqüência identitária, em circulação, senão pelo conjunto da população local, ao menos entre parte desta, tal recurso se apresentou incontornável. Essa pesquisa, para a redação de uma tese de geografia, tem como objeto as práticas dos bagayeros (contrabandistas de pequenos volumes) que freqüentam a fronteira Brasil-Uruguai nas cidades de Santana do Livramento e Rivera, e suas relações com diferentes segmentos da população desse conjunto urbano, especialmente com pessoas envolvidas com a lei (aduaneiros, policiais e advogados), sublinhando as tensões e acomodações entre o legal nacional institucional e o legítimo local cotidiano10.

Os resultados apresentados na próxima sessão balizaram, como hipóteses iniciais, a realização de trabalhos de campo. Na seqüência, destaco termos que emergiram do esforço de tradução e diálogo com o grupo em estudo – uma discussão mais extensa da etnografia encontra-se em Dorfman (2007a) e na tese em redação. Passo à apresentação e análise de fenômenos ligados à fronteira e ao contrabando, à sua transformação em lugar de memória e em objeto de folclore, respectivamente. Encerro o texto com algumas considerações finais.

Interpretação geográfica dos contos gaúchos de contrabando

No caso do Rio Grande do Sul, a centralidade da fronteira na produção literária opera através da ampliação do alcance cultural e simbólico de um objeto geográfico: a fronteira é simbolicamente extrapolada para uma região – a Campanha – e mesmo para todo o estado do Rio Grande do Sul. Essa operação ampara-se na história e, contemporaneamente, aumenta o poder de fogo do regionalismo político, tanto pela assunção e denúncia da posição periférica do estado em relação ao Estado-Nação, quanto pelo compartilhamento de mitos e linguagem com populações além-fronteira.

A literatura de fronteira11 pode ser reconhecida como um gênero considerando-se vários índices, principalmente a origem geográfica de seus autores, a tematização da fronteira e a interpolação do português, do espanhol e de termos locais, gauchescos, em sua maioria oriundos das línguas indígenas, por vezes assumindo-se como portuñol12. Para a constituição do gênero, contribuem ainda as referências recíprocas entre os autores, sejam eles contemporâneos ou precursores, e a existência de editoras e de público-leitor.

Freqüentemente, incluem-se glossários nas obras regionalistas editadas nos centros culturais da nação, posicionando os termos ditos regionais nos marginalia da página e restabelecendo a posição periférica, a condição desviante, deste produto cultural. Por outro lado, o conteúdo dos marginalia é compartilhado entre as obras publicadas em outros países do Prata. Há, portanto, uma linguagem da margem, incompreensível no centro, mas comunicando trans-fronteira.

Desse gênero prolífico, selecionei cinco contos e uma novela, escritos por autores nascidos na fronteira do Brasil com o Uruguai e com a Argentina. As narrativas se distribuem entre 1912 e 1996, e algumas se desenvolvem num tempo anterior ao da escrita. Esses contos de contrabando foram escolhidos por uma série de razões, desde referências mútuas – intertextualidades mais ou menos explícitas – até o reconhecimento, por parte da crítica, de seu valor literário, aliadas à inevitável aleatoriedade (figura 1).

 

 

A interpretação geográfica dos contos examina o significado atribuído ao contrabando, não como fim em si, mas como chave analítica, entrada para as práticas cotidianas da população fronteiriça. A leitura volta-se para cada texto e, posteriormente, para as recorrências entre os mesmos, em busca mais da verdade-desvelamento (interpretação) que da verdade-adequação (fatos) (Todorov, 1989).

"Contrabandista", de João Simões Lopes Neto (1912)

O conto mais antigo e conhecido aqui analisado é "Contrabandista". É provável que João Simões Lopes Neto (Pelotas - RS, 1865-1916) seja o pai dos contos de contrabando no Rio Grande do Sul. Em sua produção há também coleções de canções, provérbios e lendas, mostrando uma preocupação com o registro do folclore regional. Segundo Lígia Chiappini, esse autor se destaca entre os regionalistas por realizar "um trabalho profundo com a própria experiência para, através dela, atingir e compreender o outro (...) um trabalho profundamente negativo com a própria linguagem e a cultura letrada" (1988, p. 345). Essa vontade de tradução resolve-se formalmente pela criação de Blau Nunes, o narrador nativo: na primeira pessoa, as histórias surgem como contos-causos13.

O título do conto refere-se a Jango Jorge, descrito como um homem de muito valor e habilidade, fortemente arraigado no pago, que se notabilizava pelo conhecimento da região, que "nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada", localizando-se pelo faro, pelo ouvido e até pelo gosto característico a cada lugar (Simões Lopes Neto, 1998, p. 91). A história se passa em meados do século XIX, mas remete também ao tempo passado: já velho e afamilhado, Jango Jorge ia casar sua filha. Saíra na véspera da boda para buscar o enxoval do outro lado do rio – e da fronteira. Todos os preparativos estavam concluídos, mas a noiva não podia aparecer na festa enquanto o pai não chegasse com seus atavios. Depois de tensa espera, um movimento no terreiro anuncia Jango Jorge: deixando sua experiência de lado, insistira em enfrentar a guarda de fronteira e fora morto.

Além da rica informação factual deliberadamente incluída nessa obra – o desejo de registro é tão explícito que se pode afirmar tratar-se de um conto a serviço do documento – aprende-se que o contrabando é uma prática tradicional na região, e que desde sua origem, anterior a 1800, organizava-se em bandos ou 'malocas', atuando nos banhados do rio Ibirocaí, com qualquer tempo e a qualquer hora do dia (Simões Lopes Neto, 1998, p. 91). Segundo o autor, o contrabando teria nascido porque os estancieiros iam ou mandavam buscar artigos para seu abastecimento do outro lado do limite ainda mal-definido.

É evidente sua intenção em registrar a gênese e a organização do contrabando, apresentando-o como estratégia de sobrevivência diante da dinâmica histórica desterritorializante – de demarcação de fronteiras e fixação de cercas, limitando as práticas transumantes da população aí instalada –, e não como crime ou contravenção. Jango Jorge surge com muita humanidade, como um pai dedicado, generoso e conhecedor da terra, e a ele opõem-se os ordinários guardas da fronteira. O contrabando que leva à morte de Jango Jorge não são armas nem drogas, mas um enxoval, a proteção e a delicadeza legada por um pai a sua filha. Ao longo do conto, o casamento vira funeral, o dia vira noite, por causa do combate entre o capitão-contrabandista-pai da noiva, próximo e familiar, e os defensores da lei do Estado.

"Contrabando", de Darcy Azambuja (1925)

O conto de Darcy Azambuja (Encruzilhada do Sul - RS, 1901 – Porto Alegre - RS, 1970), escritor com lugar de destaque no panteão do movimento tradicionalista rio-grandense, reforça a idéia das reencarnações do personagem contrabandista, já que o autor reivindica-se como "leitor-herdeiro que lê e reescreve Simões Lopes" (Chiappini, 1988, p. 66).

Essa história se passa numa madrugada nebulosa, quando uma expedição campeira, a meio caminho entre Jaguarão e Aceguá, acaba custando a vida do jovem e leal batedor Chirú. Mais uma vez, distingüem-se e opõem-se contrabandistas e guardas, representando o embate entre uma prática honrada pelo pertencimento ao lugar e o exercício de uma tarefa estranha à organicidade local.

Aqui a fronteira encontra-se na origem do contrabando menos por representar uma alternativa de sobrevivência ou negócios fáceis do que por ter levado ao surgimento de uma índole combativa em seus habitantes, habituando-os à condição fronteiriça. Os contrabandistas são, antes de tudo, gaúchos, guerreiros, cavaleiros. Os membros da facção são nomeados a partir de sua variedade étnica (prática ainda em vigor na região), sendo um negro, um índio, um castelhano etc., unidos na fidelidade ao bando (Azambuja, 1944).

"Os contrabandistas", de Mario Arregui (1960)

O contista uruguaio Mario Arregui (Trinidad - UY, 1917-1970) apresenta a tentativa frustrada de travessia do "fronteiriço Jaguarão" por "cinco homens, uma trintena de cavalos soltos e uma mula velha e cega", levando contrabando para o Brasil. Rulfo Alves lidera os irmãos Juan e Pedro Correa, acompanhados do "velho da égua tordilha e do rapaz do zaino negro" (Arregui, 2003, p. 31-32) (figura 2).

 

 

O conto divide-se em dois momentos: primeiro apresentam-se informações minuciosas sobre as técnicas de organização de uma tropa, uma descrição bem focada no factual e no local. Ao tocarem a margem brasileira, os contrabandistas são recebidos com tiros, morrendo o velho e o rapaz, Rulfo ferindo-se gravemente. Inaugura-se a segunda parte do conto, em que o sobrenatural vai materializando-se numa "paisagem agora com mortos", e a temática é menos ortgebunden, menos espacialmente situada (Moretti, 2003). A caminhada pelo entardecer não informa muito sobre o ofício de contrabandista, mas faz da fronteira internacional uma metáfora da morte, dando à paisagem um caráter sobrenatural e reforçando o papel do contrabandista como mediador e pasador, ora de mercadorias, ora entre vivos e mortos.

O conceito de fronteira natural é matizado pelos conhecedores do lugar. O fato de a fronteira ser desenhada por um rio não traz maiores dificuldades à travessia, ao menos por homens a pé ou a cavalo:

O Jaguarão é muito largo naquele lugar solitário. Quem o conhece sabe bem que, precisamente por ser largo, é raso no verão: as correntezas invernais formam remansos e bancos de areia que parecem pequenas pontes submersas (Arregui, 2003, p. 31).

A riqueza de detalhes verídicos oferecida pela descrição inicial reforça a verossimilhança da fantasmagoria que se descortina nessa jornada por mundos sobrepostos. O caráter documental da parte inicial coloca-se a serviço da fábula, invertendo a hierarquia presente no "Contrabandista" de Simões Lopes Neto.

A expressão "pequenas pontes submersas" exemplifica o aporte da literatura ao estudo da geografia do concreto, mediada pela capacidade do autor em registrá-la: nessa representação literária, o rio Jaguarão facilita a passagem àqueles que o conhecem, enquanto na representação cartográfica, qualquer rio seria usualmente traduzido como uma fronteira natural.

"Guapear com frangos", de Sergio Faraco (1986)

Sergio Faraco (Alegrete - RS, 1940) realizou um trabalho minucioso na tradução do conto de Mario Arregui, empenhando-se na recriação do português campeiro. Pouco tempo depois, ele escreve "Guapear com frangos", cujo título não explicita o alinhamento com o contrabando, mas emprega o vocabulário da fronteira – 'guapear' quer dizer lutar – declarando o deslocamento no espaço e na cultura em relação à média brasileira.

A narrativa trata da tarefa de dar destino ao corpo de um contrabandista morto em ofício. Alinha-se com o conto anterior porque, aqui também, um homem é obrigado a cavalgar com a morte. Guido Sarasua desaparecera ao insistir em cruzar o rio Ibicuí durante uma enchente. Seus parceiros procuram-no pela "obrigação de não deixar corpo de homem sem velório" (Faraco, 2000, p. 289), até encontrar sua canoa presa nos galhos de um salgueiro. Como o "morto não podia ser entregue aos bichos sem os recomendos do padre e uma vela que alumiasse os repechos do céu" (Faraco, 2000, p. 290), López é encarregado de levar o corpo até a casa do morto. A tarefa não parece intimidá-lo:

Na sua lida diária, de tropeadas secretas que varavam alambrados, de furtivas travessias secretas do grande rio que corria em cima da fronteira, na sua lida de partidas, miséria, punhaladas e panos ensangüentados, via a morte e a corrupção do corpo como outro mal qualquer, como os estancieiros, a polícia, fuzileiros e fiscais do mato (Faraco, 2000, p. 290-1).

A missão revela-se impossível, pois o cadáver é destroçado por animais em busca de alimento. Assim, López vai abandonando a moral ao longo do caminho que não chega a concluir.

No conto há três progressões simultâneas: a da paisagem, do mais úmido ao mais seco, do rio em direção ao povoado; a da moral, que vai da afirmação dos preceitos religiosos à aceitação da cadeia alimentar; e a dos corpos, o morto literalmente se despedaçando e López, de náusea em náusea, abandonando crenças. Novamente, os contrabandistas constituem-se nos intermediários. Entre a cultura e a natureza, a integridade dos corpos e sua dilaceração, entre a vida e a morte, os passadores ativam a paisagem humanizada por suas práticas.

Cabe citar Guilhermino César (1994, p. 37) para comparar esses três contos com os analisados a seguir. O crítico identifica duas fases no regionalismo literário gaúcho: na primeira, os clássicos do gênero "trazem-nos o camponês rio-grandense à moda gaúcha, heróico e fanfarrão mesmo na sua miséria"; na segunda, o protagonista, "semiproletário rural (...), percorre os livros dos autores rio-grandenses a pé e desencantado".

"Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez", de Tabajara Ruas (1990)

Tabajara Ruas (Uruguaiana - RS, 1942) escreve essa novela, narrada pelo jovem sobrinho de Juvêncio Gutierrez, que se retirara havia anos da vida legal para tornar-se contrabandista. A volta do tio à Uruguaiana é anunciada para o mesmo fim-de-semana em que o adolescente empenha-se numa partida de futebol decisiva. As razões para o exílio e posterior retorno de Gutierrez são misteriosas, somando-se ao suspense quanto ao resultado da partida e quanto à capacidade de Juvêncio de escapar da polícia. Esses eventos desencadeiam no narrador um amadurecimento que o conduz à vida adulta.

A ação se dá em 1957, numa Uruguaiana compósita, onde o cotidiano mescla a cidade, o pampa, a ponte, o rio Uruguai, a fronteira com a Argentina e a cidade de Paso de los Libres, articulados pela língua, por revistas, ondas de rádio e, especialmente, pelo trem, um símbolo da passagem onipresente nos contos aqui trabalhados.

A condição fronteiriça é também evocada pelos símbolos do Estado-Nação: bandeiras e postos de aduana pontuam a narrativa. O contrabando é apresentado como uma atividade exercida também por pessoas decentes, obedecendo a ciclos: "As famílias relacionavam-se há muito tempo; foram sócias num armazém na época da farinha. O contrabando de farinha tinha sido o grande negócio de Uruguaiana alguns anos antes" (Ruas, 1997, p. 18).

Em vários momentos do livro aparece o interesse privado sobrepondo-se à ordem legal. O delegado persegue Juvêncio, sobretudo por razões pessoais. Há também o coronel Fabrício, representando a preeminência do poder econômico e político local sobre os encarregados da lei.

Fica claro que, para Juvêncio, o contrabando não se deseja político, demonstra astúcia e não dissidência. O significado político do contrabando é sempre uma questão em aberto: será um ato de desobediência civil, de pretensões quase anarquistas, na medida em que representa um desvio à norma legal? Ou, ao contrário, é uma solução apolítica, fácil, na medida em que as demandas dos habitantes da fronteira se resolvem sem o recurso à organização política (o bando do contrabando não tem nada de político?), representando, assim, alienação ou esvaziamento das instâncias de organização coletiva e dos processos institucionalizados?

As últimas vinte páginas da "Perseguição..." centram-se na tragédia do corpo ausente. Juvêncio Gutierrez, varado por quarenta balas, está no necrotério. O pai do narrador dirige-se à morgue, e então ao delegado, reivindicando o corpo. A tragédia do corpo já aparecera no "Contrabandista" de Lopes Neto, em "Guapear com frangos" de Sérgio Faraco, e nos remete à "Antígona" de Sófocles, a que desobedece pela justiça e pela verdade, desafiando o tio e rei Creonte a fim de dar um destino ao corpo do irmão Polinices. Esta obra, que é freqüentemente interpretada como a representação do conflito entre a lei natural (da família ou dos deuses), defendida por Antígona, e a lei do Estado, personificada em Creonte, reforça a posição do contrabandista como um contraventor frente à lei do Estado, mas que, por outro ângulo, pode ser visto como um defensor da sobrevivência de sua família ou, como é usual formular na fronteira, sua ação pode ser ilegal, mas é legítima. A recuperação do corpo pela família encena, assim, a restituição da honra ao contrabandista.

"Arreglo", de Amílcar Bettega-Barbosa (1996)

O conto se passa em Rosário do Sul (RS), próximo a São Gabriel, lugar de nascimento do autor em 1964. Entre quartos de cabarés e um posto de gasolina na rodovia federal que leva à Argentina, marginais se movem na fronteira. O 'parador da Federal', que poderia ser descrito como um não-lugar – não fosse o uso da expressão local – sublinha a escala nacional e aponta para a articulação supranacional. Como na narrativa de Tabajara Ruas, a ação se desenrola na cidade, mas aqui o entorno rural é descrito como miserável e o rio é só cenário. Não há menção a cavalos, sequer como ornamento da masculinidade, mostrando ter-se terminado o tempo dos cavaleiros em tropeadas campo afora. Outras escalas e redes organizam o território.

"Arreglo" inicia com o assassinato do contrabandista Vico por Mendes. Como numa tragédia grega, o narrador é levado, pela honra que oprime por inexeqüível, a vingar essa morte, apesar de querer mudar de vida para casar. Vico era "chibeiro pequeno, talvez dos últimos numa época em que o chibo perdia a força e o rio já não passava de uma paisagem d'água irmanando a miséria" (Bettega-Barbosa, 2000, p. 55). Aparentemente, o assassinato tivera motivação passional, uma disputa pela prostituta adolescente Sarita, mas na verdade outra era a mulher em questão. A irmã mais moça de Mendes havia sido estuprada por Vico e engravidara. Miséria e violência atingem a todos. O desfecho é bárbaro: depois de surrar Mendes brutalmente, o narrador solta um cachorro esfomeado e feroz que termina de matá-lo. O corpo é desonrado definitivamente pelos cachorros, o fim que Antígona aponta como vil.

Entre o primeiro "Contrabandista" e "Arreglo", ao longo de mais de noventa anos, a honra masculina parece ter-se coagulado em rituais desesperados, a decadência econômica da região levando à destruição do vínculo entre essa honra e seu significado social. O enterro de Vico é patético, sua morte é vingada a contragosto, e representa a restituição de uma ordem indesejada. Nessa narrativa há a manifestação de uma raiva contra o gaúcho mítico, que poderia ser o Jango Jorge criado por Simões Lopes.

Metáforas para a fronteira gaúcha

Nascer na fronteira, no fim do século XX, é ser consciente de um destino sujo, limitado e raivoso, encenando "vigores de moral no fundo tão vazios quanto nossos próprios futuros" (Bettega-Barbosa, 2000, p. 61). Essa é a fronteira das margens da sociedade.

Viver na fronteira também é ser capaz de fazê-la trabalhar em proveito próprio, mostrando-se autônomo e arrojado. Contrabandear é, assim, ativar a fronteira, seja por sobrevivência ou por ambição: "Entrou nos homens a sedução de ganhar barato, bastava ser campeiro e destorcido. Depois, andava-se empandilhado, bem armado; podia-se às vezes dar um vareio nos milicos, ajustar contas com algum devedor de desaforos, aporrear algum subdelegado abelhudo..." escreve Simões Lopes Neto (1998, p. 94). Viver a fronteira seria, portanto, tomar a vida nas mãos, criar um destino, como nas experiências do front e da frontier, conforme apresentadas por frederick. J. Turner (1996).

Ultrapassar a fronteira pode significar amadurecer, tornar-se homem. Isso fica bastante claro em "Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez", de Tabajara Ruas, narrado pelo adolescente que, vivendo as últimas horas do tio contrabandista, entra no mundo adulto e masculino. Morrer também é cruzar a fronteira. Rulfo Alves, moribundo personagem de Mario Arregui no conto "Os contrabandistas", revê suas ações em vida, levado por uma mula cega pela "paisagem agora com mortos", isto é, com os mortos do lado de cá, vivamente recepcionando sua passagem (Arregui, 2003, p. 36).

A fronteira como materialização do Estado foi usada, na literatura produzida durante os 'anos de chumbo' das ditaduras latino-americanas, como um símbolo da autoridade ilegítima. Nesse contexto, burlar a fronteira é um gesto político e subversivo, de quem possui suficiente discernimento para desafiar leis opressivas.

Contrabandista é bandido por definição, nomeado a partir do julgamento dos que se posicionam como juízes, dentro da esfera da legalidade nacional. Mas, todos os que invocam o contrabandista como personagem literário o fazem para humanizá-lo e resgatá-lo dessa (des)classificação legal, negando sua marginalidade na sociedade local, da qual é um membro honrado, ativo, com qualidades de solidariedade (humano, irmão, amigo).

O contrabandista de ficção é protagonista de dramas que se originam numa situação histórica, geográfica, social (classe ou família) adversa a ser enfrentada. Os autores afirmam assim que a inadequação não é do personagem, mas desse contexto. O contrabandista precisa reagir, reformar, reorganizar a ordem injusta. São narrativas contra o sistema, ou ao menos situadas na tensão entre o instituído e o realmente necessário. O contrabandista nasce torto e tem que negociar com o mundo que lhe cabe. E não é passivo diante desse muro instituído e justificado por uma lógica extra-local.

Mesmo assim, nas narrativas, a inconformidade genética acaba por aniquilá-lo e a resistência é punida com a morte. É na passagem da fronteira, constitutiva da figura do contrabandista, que o destino fatal se realiza. O contrabandista nasce para morrer.

Numa ampliação ao extremo, as duas características principais do contrabandista – passar, morrer no fim – são aplicáveis a qualquer ser humano, o contrabandista é simplesmente humano. Somos todos bandidos, nomeados por outrem, lutando contra o entorno adverso com as forças que temos, destinados a perecer no fim, ainda que esse fim seja imerecido?

Passarei a outros casos, em busca da relação específica entre cada fronteira e seus produtos literários. Antes, porém, algumas observações sobre os resultados obtidos em campo no que tange às palavras do contrabando.

Literatura, ciência e tradução em campo

Na pesquisa em andamento, muitos trabalhos de campo têm sido realizados junto aos contrabandistas em Rivera. Inicialmente, meu objeto de estudo parecia cercado de sigilo inexpugnável, que só foi penetrado parcialmente, e isso graças a uma lenta transformação nas formas de abordar os contrabandistas. Trato aqui de três termos essenciais nessa metamorfose entre o discurso científico e aquele usado pelos informantes: bagayo e suas declinações, linha / línea e passar / pasar.

O verbete 'contrabando' aparece nos dicionários de circulação nacional como a introdução clandestina de mercadorias através de fronteiras nacionais, sem o pagamento dos impostos determinados pelos Estados-Nação. Em campo, a primeira lição foi evitar tal palavra, pois isso me colocava diretamente no registro da legalidade nacional.

No "Diccionario riverense", escrito por Joel Salomon de Léon, o verbete 'contrabando' informa apenas que "É o nome dado a um passo sobre o Rio Negro, nos limites com Cerro Largo, ao sul do Paso Layado, cujo nome se origina em ser o favorito dos contrabandistas"15. Já sabemos, no entanto, que a idéia se expande quando olhada a partir de agentes locais, pois a prática do contrabando é arraigada nas regiões, envolvendo em algum grau a maioria da população, pertencendo ao seu cotidiano.

Há uma profusão de termos em uso localmente, entre os quais bagayo e bagayera se destacam16. Tais palavras enfatizam a bagagem ou 'vulto' que caracteristicamente acompanha os praticantes dessa atividade, e que os ocupa incessantemente. Várias horas de cada viagem são dedicadas à organização do volume ou 'vulto': enquanto eu conversava numa loja da linha com os bagayeros, um deles verteu vários litros de uísque em garrafas PET de guaraná, outro arrumou e rearrumou suas compras em caixas de biscoito de papelão. Assisti também (e ajudei no que podia, afinal sou mulher e estava ali sem fazer nada com as mãos, só conversando) à confecção de uma saia de cigarros. A saia era feita de um pano floreado duplo, com costuras verticais e paralelas criando canais de tecido, onde cabem três carteiras de cigarro por vez, estofando os gomos. Os pacotes de cartolina eram achatados (primeiro dobrados e depois prensados sentando-se neles) cuidadosamente, para depois serem remontados. E uma vez recheada essa saia meio cigana, ela foi vestida sobre as calças jeans. Muitos maços mais foram disfarçados em embalagens de erva-mate.

São gestos em busca do volume e da aparência: compactar a quantidade ou disfarçar os produtos mais controlados. É menos grave contrabandear guaraná e erva-mate (produtos tradicionais) que cigarros, que mal pode haver numa caixa de biscoitos? Parece ser essa a lógica que harmoniza aduaneiro-bagayero: convém mostrar respeito à patrulha. Ainda que aquela saia não convencesse alguém empenhado em achar contrabando, ela representa o compromisso em jogar o jogo do vulto, do volume, do disfarce.

No entanto, essa questão ainda não foi definitivamente acomodada, pois o termo êmico bagayero continua ignorado em outras formas de discurso, como a aqui exercitada, o que mostra que a adequação localmente registrada não se traduz facilmente a outras escalas geográficas e disciplinas.

Num ponto de vista distante do lugar, a fronteira é usualmente vista como periferia da formação estatal, e na geopolítica, por exemplo, as metáforas mais recorrentes são de epiderme e fim do Estado (fim do mundo?). A população das cidades-gêmeas de Santana do Livramento – Rivera – formulou seu conceito para a fronteira: trata-se da linha, que traz em si a imagem da tênue espessura do limite a cruzar o centro urbano binacional e os bairros adjacentes. A linha / la línea é a fronteira-lugar, tratada cotidianamente. Ela organiza a vida prática e simbólica dos habitantes das cidades-gêmeas, funcionando como ponto de referência geográfico e como critério para qualidade, confiança, oportunidades, comportamento, beleza etc.

Se a fronteira representa, essencialmente, 'barrar' ou 'distinguir', 'passar' – um dos eufemismos mais empregados para contrabandear, em várias línguas – apresenta-se como a ação mais característica da condição fronteiriça. A força própria ao lugar fronteiriço chama a si certos tipos de práticas legais e ilegais, atraindo pessoas que desejam beneficiar-se das vantagens locais, na forma de um leque amplo de serviços (de saúde, energia e comunicações, por exemplo), custo de vida menor, maiores oportunidades de trabalho, ainda que, para isso, certos aspectos da legalidade estatal sejam esquecidos ou francamente burlados.

Assim, a experiência de vida na fronteira fornece aos seus freqüentadores os instrumentos necessários para articular as diferenças identitárias, instrumentalizando seus habitantes para tornarem-se portadores/passadores dos bens simbólicos ou materiais que expressam tais contradições e diferenças manifestas no lugar. A condição fronteiriça é entendida aqui como um savoir passer (saber passar) adquirido pelos habitantes da fronteira, acostumados a acionar diferenças e semelhanças nacionais, lingüísticas, jurídicas, étnicas, econômicas e religiosas, que ora representam vantagens, ora o cerceamento de trânsito ou direitos. Evidentemente, não se deve essencializar a condição fronteiriça, haja vista a variedade de relações que podem existir entre os fronteiriços e o território à sua frente e às suas costas: o que temos idealizado aqui diz respeito a essa fronteira viva e vivida.

A memória do contrabando numa fronteira em mutação

Esforcei-me até aqui para estabelecer que o contrabando constitui uma prática envolvendo saberes tradicionais, que faz parte da condição fronteiriça e que é representado em produtos culturais, entre os quais destaco a literatura. No contexto europeu, a variedade de fontes é imensa e a ficção – contemporânea – se aplica no registro de tais práticas.

Em pesquisas na França, me deparei com múltiplas abordagens do contrabando e da fronteira, em museus, galerias de arte, livros, histórias em quadrinhos, como produtos turísticos (chemins ou sentiers des douaniers ou de contrebandiers) etc. Todas essas produções e práticas valorizam o contrabando local como saber tradicional em extinção, motivando tanto as obras literárias de diversos gêneros, como a criação de lugares de memória e a exploração turística da fronteira.

A criação de numerosos museus de aduana, contrabando e fronteira se dá a partir do incentivo financeiro da União Européia, que estimula coerências territoriais transfronteiriças, amenizando a descontinuidade originada nas redes estatais. No material de divulgação do Museu das Alfândegas em Bordeaux, lê-se:

Pouco a pouco o apagamento das fronteiras aduaneiras se realiza. A aplicação dos acordos do GATT, a criação das uniões aduaneiras, especialmente da Comunidade Européia, leva a uma redução sensível, e mesmo ao desaparecimento, dos direitos e taxas a arrecadar no franqueamento das fronteiras. O desaparecimento das barreiras fiscais em 1993 foi a culminância dessa evolução17.

Na página web do Museu da Vida fronteiriça de Godewaersvelde, junto à Bélgica, explica-se que este foi construído

graças aos financiamentos da Europa [União Européia], do Estado [França], do departamento [Nord] e da comuna, fazendo com que a região disponha a partir de agora em Godewaersvelde de um espaço de salvaguarda da cultura transfronteiriça acessível a todos18.

Também fora da França há museus de fronteira, freqüentemente impulsionados por fundos da UE, num processo de conversão da fronteira interna em relíquia19.

O significado simbólico da região fronteiriça, tradicionalmente construído na relação entre Estado e lugar, transforma-se com a emergência da escala supranacional, tornando obsoletos os usos mais tradicionais. Novas funções para as fronteiras comunitárias internas se apresentam e, entre elas, está a preservação da memória do contrabandista de pequenos volumes. Nesse momento da fronteira européia, o sigilo inerente ao contrabando é rompido em nome da memória, da nostalgia, da valorização das regiões marcadas pelos trânsitos fronteiriços.

Mandrin, capitão dos contrabandistas

A folclorização e a patrimonialização do contrabando podem ser exemplificadas com a audição, em abril de 2007, no Museu Nacional das Aduanas, em Bordeaux, da canção muito triste e queixosa de Louis Mandrin, capitão dos contrabandistas, interpretada por artistas da Compagnie du Si, contratados para pesquisar o acervo, e acompanhada pelo público que assistia a apresentação e reconhecia a canção como folclórica.

Eu já conhecia o personagem que contrabandeara nos Alpes na metade do século XVIII, mas não tinha idéia de sua popularidade, no outro lado da França, em plena costa atlântica, 250 anos depois de sua morte. Dizia sua queixa que os vinte ou trinta membros do bando vestiam-se de branco como mercadores; que Mandrin fora julgado pelos senhores de Grenoble, de roupas longas e chapéus quadrados; que lhe doeu ouvir sua condenação à forca e ao estrangulamento na praça do mercado; finalmente, olhando a França do alto de uma montanha, Mandrin pede a seus companheiros que avisem à sua mãe que ela não verá mais o filho perdido20. A oposição entre 'nós', os companheiros, e 'eles', os bem-vestidos senhores de Grenoble, assim como a imagem da França/mãe que perderá seu filho, são instrumentos bastante eloqüentes em forjar uma identidade entre Mandrin e o povo da França.

Segundo o material didático organizado por outro museu, essa canção pertence ao repertório popular, tendo merecido várias gravações. Além disso, é freqüentemente ensinada nas escolas da região do Rhône-Alps com status de folclore e até o movimento ATTAC (Association pour la Taxation des Transations pour l'Aide aux Citoyens), em Isère, a adaptou para protestar contra os organismos geneticamente modificados21. Dentro do leque de produtos e produções que apelam para Louis Mandrin listam-se ainda filmes, peças de teatro, operetas, memorabilia, marcas de cerveja e de frangos (Service..., 2007).

Louis Mandrin tem sido analisado por meio da dicotomia malfeitor ou bandido de bom coração22. A história circula desde sua morte, em 1755, inicialmente na literatura popular dos colporteurs (que comercializavam versos ilustrados, como o da figura 3). Em seguida, os historiadores locais ocupam-se dele e, no século XX, é a vez de uma historiografia mais documental, num movimento que se intensificou no aniversário de 250 anos de sua execução, impulsionado pelo Musée Dauphinois de Grenoble23.

 

 

Ele entra no imaginário popular como referência à resistência política, a uma personalidade forte ou às raízes locais. Mandrin simboliza origens, condição e fins para uma população localizada junto à fronteira alpina da França, sendo reconhecido também em outros lugares não-fronteiriços. A literatura a seu respeito hoje é produzida a partir dessas interpretações. É interessante observar a amplitude da apropriação, em que o fato de tratar-se de um contraventor não impede sua eleição como símbolo, seja em protestos contra o Estado ou em atividades culturais promovidas pelo mesmo, na escola e em museus.

Nos Pirineus, gauazko lana

Aqui a ligação entre contrabando e política se faz mais clara, uma vez que o cenário é o País Basco, entre a França e a Espanha. A fronteira a ser burlada é chamada por André Ospital de delako muga, traduzida como "essa suposta fronteira" ou "a assim dita fronteira", imposta sobre a territorialidade basca. Já na introdução de "Sur les sentiers de la contrebande en Pays Basque" o autor afirma que a maioria de suas histórias situa-se em torno "dessa falsa fronteira que há muito detesto" (Ospital, 2006, p. 8). A idéia desliza, já que a passagem do tempo lhe mostrou que a falsa fronteira também pode servir aos patrícios, pois

Ao longo da história observamos que os bascos, acossados por guerras ou por suas idéias políticas, souberam admiravelmente utilizar essa fronteira dobradiça para refugiar-se de um ou de outro lado, segundo as necessidades, sem deixar o solo de sua Pátria. A solidariedade entre irmãos nunca cessou, e a cumplicidade disseminada por todo lado desfez mais de uma armadilha.

Além disso, quem fala em fronteira pensa logo em contrabando, chamado pelos bascos de trabalho noturno, 'gauazko lana'24.

Ospital valoriza o 'trabalho noturno' como estratégia de sobrevivência nas terras inóspitas, capaz de frear o êxodo dos jovens para a América, e diz – como tantos – que aí a atividade possui um significado peculiar, na medida em que não se choca com a consciência dos bascos, contrários aos Estados-Nação que dividiram seu território. Afasta-se, entretanto, da opinião mais disseminada sobre o contrabando, ao afirmar tratar-se de uma espécie de comércio étnico, pois o que se veria seriam bascos trocando entre si, importunados por forasteiros.

Os aduaneiros também são tematizados, considerados "necessários uns aos outros, os [contrabandistas] valorizando sua atividade, e os [aduaneiros] assegurando a situação e sua presença, de forma complementar" (Ospital, 2006, p. 12). O autor conta que há um acordo tácito entre os representantes da lei e seus desafiantes: jamais violência, que dirá armas de fogo. Um personagem das anedotas que se passam nas colinas Aldudes é o aduaneiro ou gabelou Saint-Jean – perguntado sobre o rumo norte, respondeu: "Não o temos aqui!" A subversão dos pontos cardeais, em favor de uma lógica local, é digna de Alice.

Outras anedotas contam que, durante as filmagens de "Ramuntcho", baseado na história de contrabandistas mais conhecida na França, aproveitou-se para contrabandear filmes virgens suficientes para "dar um novo fôlego à indústria cinematográfica espanhola", além da maioria dos cavalos cenográficos (Ospital, 2006, p. 18). Na mesma linha encontra-se o relato do advogado que, chamado a defender o contrabandista de uma família conhecida na região, pediu como pagamento "excelentes queijos de ovelha", demanda prontamente aceita e logo quitada com seis peças de queijo. Nesse mesmo dia, o advogado recebe a visita de outro grande contrabandista da comunidade que, roubado em seis queijos de ovelha de primeira qualidade, não queria recorrer à Polícia. Perguntado se reconheceria seus estimados bens, o contrabandista é levado à presença desses: sem dúvida, eram os mesmos. Assim, como pagamento por resolver a questão, o advogado foi pago... com seis excelentes queijos de ovelha (Ospital, 2006, p. 24-5). Contrabando a serviço da ficção – os filmes –, contrabando real dentro do ficcional – os cavalos –, no primeiro caso; e no segundo, justiça a serviço do contrabando, contrabando contra contrabandistas, contrabandistas a serviço da justiça, as permutações são todas acionadas, num jogo que lembra o kula e serve para reforçar o senso de comunidade.

Outra questão merece ser explorada, e para tal, transcrevo o "Serviço feminino de informações":

Uma jovem da aldeia, costureira de profissão, era noiva, já havia anos, de um jovem e alerta aduaneiro. Alegando todo tipo de festa ou casamento, ela tinha sempre um pequeno corte de tecido para passar para Elizondo, onde ficava seu atelier. Como não queria, por assim dizer, perder a viagem, ela se informava junto ao seu galã sobre os itinerários das patrulhas noturnas dos aduaneiros.

Mais valia sua segurança! E nossa gentil costureira esquecia-se de casar com o aduaneiro solícito que, sempre contrito, afirmava que o amor não tem fronteiras. Era amor de contrabando...25

É recorrente o relato de relações entre aduaneiros e contrabandistas, assim como reproduções maliciosas da revista das pacotilleuses: saias levantadas, sorrisos, conotações de troca de favores (sexuais) entre aduaneiros (sempre homens) e passeuses (figura 4). Serão as contrabandistas mulheres de moral duvidosa, agirão elas justamente sobre os pontos fracos que levam à humanização do agente do Estado? Há relatos antigos, também nas fronteiras brasileiras, de mulheres com o espírito aventureiro identificado em Jango Jorge, vivendo a fronteira em seus corpos (Resende Silva, 1922).

 

 

Cor local em Godewaersvelde

A história que introduz "Les passeurs du clair de lune: histoires de contrebande dans le nord de la France" reúne aduaneiro e pacotilleuse na linha de fronteira. Ele recém-chegado, ela natural da extrema fronteira26, se apaixonam à primeira vista, em 7 de maio de 1932, dia em que o presidente da França foi assassinado. Desde a manhã em que, revistando-a, ele preferiu ignorar as rendas que ela trazia enroladas nos quadris, o aduaneiro tornou-se o primeiro a apresentar-se para as emboscadas, "onde ele buscava a ocasião de ser cúmplice daquela que se instalara, de contrabando, em seu coração". Alguns meses depois, "o acaso quis que eles se casassem" no mesmo dia em que foi guilhotinado o assassino do presidente (Daeninckx, 2005, p. 17). A simultaneidade do amor e da morte, respectivamente em eventos da escala local e nacional, traça um quadro bastante complexo de fidelidades, onde o aduaneiro opta por servir à dona de seu coração. Metáfora do amor, dessa vez confirmado, a condição fronteiriça é a razão do pacto entre os diferentes sujeitos aí presentes.

O conto seguinte detalha uma operação de contrabando de fumo belga para Godewaersvelde, na França, organizada com dedicação pelo protagonista Albert. Enumeram-se as estratégias de ocultação, descrevem-se os componentes do bando – como sempre, heterogêneos em físico, caráter e origem, mas representativos dos tipos locais – e do "seboso, vulgar, sardônico" vilão, o aduaneiro Alfred (Roger, 2005, p. 21). A cor local é enfatizada pela descrição dos personagens, das paisagens, da comida, do clima, além da menção aos lugares e do emprego do vocabulário técnico do contrabando, nem francês, nem flamengo: ballot (saco de tabaco); blatter (fixar a carga); blauwer (o fraudador por excelência, em comparação com o beuze-blauwer, o quileiro); blauwer honden (também chamado fonceur, é o cão contrabandista característico da região); smokkelaars (os contrabandistas de fumo) etc.

Como se observa, as palavras do contrabando são específicas a cada lugar, revelando os eufemismos característicos do sigilo inerente à atividade, as gírias de uma atividade de alcance local, a influência das línguas em contato e das mercadorias transportadas. A profusão de nomes também fala da grande especialização das técnicas e, no caso em análise, salta à vista o emprego de cães. Também a toponímia é marcada pela condição fronteiriça, sendo freqüente a repetição de nomes de cidades dos dois lados da fronteira (Mouscron na França, Moscrouw na Bélgica), expressões como caminho e passo (em Pas de Calais, por exemplo) e outras mais curiosas, como Risquons Tout (isto é, 'arrisquemos tudo'). Personagens lendários, grandes homens da história do contrabando, também fazem parte dessa produção de folclore: o protagonista dessa história chama-se Albert, como Albert Capoen, figura tradicional do contrabando entre a França e a Bélgica.

Metáforas para as fronteiras francesas

Como no caso gaúcho, fronteira e contrabandista aparecem como símbolos da resistência à injustiça institucionalizada, daí a forte oposição entre aduaneiro e contrabandista, representando uma inversão de papéis, onde o certo é ilegal.

A fronteira como lugar romântico, onde paixões e ilusões são encenadas, é uma novidade. Um caráter altamente corpóreo, representado nos encontros entre passadoras e guardas aduaneiros, aflora no limite do Estado-Nação. O direito de revista, do toque garantido por lei, nessas sociedades de distância física, parece transtornar os guardas. Curiosamente, a invasão da intimidade foi representada nos dois casos como vantajosa para a mulher, à vontade no seu lugar de origem. Na verdade, até hoje encontrei muitas paseras em campo e nenhuma na ficção gaúcha, mas após a leitura deste conto, levantando a questão com moradores de Santana do Livramento-Rivera, casos com essa configuração me foram relatados.

O contrabando como ato patriótico, restituidor de uma ordem pré-estatal, aparece no País Basco. Mais ainda, aqui essa é uma prática de afirmação de unidade nacional, manifestando uma posse simbólica do território.

Acima de tudo, a idéia da fronteira como um lugar de memória a preservar, despertando um olhar nostálgico, onde se atinge raízes locais, merece ser investigada no presente francês (Dorfman, 2007c).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quase todas as metáforas apostas à fronteira coincidem com os momentos da vida que motivam ritos de passagens, levando a crer que a fronteira geográfica figura no registro literário como signo desses trânsitos. Arnold van Gennep, ao analisar e classificar, em 1908, os ritos que pontuam a vida individual, afirma que tais momentos regulam a indeterminação entre duas situações determinadas:

É o próprio fato de viver que exige passagens sucessivas de uma sociedade especial a outra e de uma situação social a outra, de tal modo que a vida individual consiste em uma sucessão de etapas, tendo por término e começo conjuntos da mesma natureza, a saber, nascimento, puberdade social, casamento, paternidade, progressão de classe, especialização de ocupação, morte (Gennep, 1977, p. 26-7).

Possivelmente, apropriações muito genéricas da fronteira pela literatura não se relacionem substancialmente com aspectos da cultura local, informando mais sobre o pólo universalizante da obra literária, aquele que se propõe representatividade e legibilidade ampla. As metáforas da fronteira como rito de passagem são traduções culturais cujo compromisso seria mais com a recepção, com a chegada do texto, do que com o objeto que serviu como base da representação. Essa questão aparece, para o pesquisador interessado na interpretação da cultura espacialmente situada, como um dilema quanto ao grau de generalização, já que a busca de explicações para as práticas encontradas em campo pode acabar por esterilizar, em taxonomias taxativas ou afirmativas essencializantes, os significados atribuídos pelo grupo aos seus atos.

Note-se que as figurações políticas da fronteira como lugar de subversão e exclusão social não constam na taxonomia de passagens de van Gennep. Segundo Franco Moretti (2003), comentando o romance europeu do século XIX, vários autores constroem personagens cômicas ou trágico-sublimes ao relatarem a aproximação a uma fronteira: as cômicas aparecem nos espaços que se opõem debilmente ao novo poder central, enquanto as trágico-sublimes povoam as áreas que oferecem resistência.

O espaço age sobre o estilo, produzindo um deslocamento duplo (em direção à tragédia e à comédia: em direção ao "alto" e ao "baixo") daquele registro "realista", "sério", médio, que é típico do século XIX. Embora o romance apresente uma baixa figuratividade (como diria Francesco Orlando), perto da fronteira a figuratividade surge: o espaço e os tropos se entrelaçam; a retórica depende do espaço (Moretti, 2003, p. 53-4).

As metáforas "expressam"-no, "dizem"-no por meio da estranheza da sua predicação (...). Mas como as metáforas usam um campo familiar de referência, também dão forma ao desconhecido: o contém e mantém de algum modo sob controle (Moretti, 2003, p. 57).

Segundo Moretti, a fronteira é a passagem para o desconhecido, do interior do Estado-Nação para suas margens, de um território a outro, onde se desenrolam processos de construção do estrangeiro. Ao caricaturar os habitantes das fronteiras, estes são excretados do corpo da nação, contidos em subclasses. Essas generalizações surgem como uma remissão dos sentidos locais àqueles mais amplos, buscando aproximá-los de usos unânimes. Interpretar a fronteira em seu sentido mais universal (literal e metaforicamente) implica distanciá-la do contexto que a gerou.

Os contos aqui interpretados aproximam-se de pontos de vista locais, desviando desse tipo de generalização baseada nos contextos nacionais ou em aspirações universalizantes. A tradução cultural enfatiza o lugar, se interrogando sobre quais, entre os termos gerais, são pertinentes no contexto em análise. A tradução ouve o campo, se esforça para distinguir as palavras que nomeiam as práticas ou lugares, se pergunta por que tais termos e não outros. Traduzir, transladar, passar, parece avalizar interpretações mais próximas dos sentidos locais das práticas dos contrabandistas.

 

AGRADECIMENTOS

A autora recebe apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Os dados relativos à França foram levantados graças a auxílio da CAPES. O tema aqui desenvolvido faz parte da pesquisa para a tese de doutorado "Contrabandistas na fronteira gaúcha", orientada pela Profa. Dra. Leila Christina Dias, no PPGG-UFSC.

Uma versão preliminar desse trabalho foi apresentada no GT-39 "Etnografia e tradução cultural em Antropologia", na VII Reunião de Antropologia do MERCOSUL, em Porto Alegre, 2007. A presente versão beneficiou-se das críticas e sugestões dos pesquisadores lá presentes e dos editores desta revista.

 

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Endereço para correspondência:
Museu Paraense Emílio Goeldi
Editor do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas
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E-mail:boletim@museu-goeldi.br

Recebido: 08/10/2007
Aprovado: 26/02/2008

 

 

1Expressão de Mario Arregui (2003, p. 31), na tradução de Sergio Faraco.

2Gerard Génette (1972, p. 105) vai além e afirma que "nossa linguagem é toda tecida de espaço".

3Na escala da nação, a discussão da importância da literatura para a construção nacional passa, dentre outros, pelas obras de Franco Moretti (2003; 2005), Pascale Casanova (2002) e Benedict Anderson (1998), esta última de tamanha repercussão que a expressão "comunidade imaginada" é freqüentemente usada como um aposto de nação.

4Um exemplo paradigmático é o da literatura produzida na fronteira México-Estados Unidos. O geógrafo Edward Soja analisa-a como "formas inovadoras de interpretação do (terceiro) espaço" (1996, p. 129). Sonia Torres (2001) interpreta a "literatura, etnografia e geografias de resistência" como um questionamento da hispanização da cultura norte-americana, como a busca de uma voz pelos migrantes latinos que não abandonam suas origens, como resistência. A produção literária assume uma posição militante em que os latinos e seus descendentes têm tomado a palavra, ou talvez eles sejam mais valorizados pelos teóricos, por serem considerados como os portadores da nova representação, em oposição às tradicionais histórias gringas de frontier.

5Nem todos os autores regionalistas tratam de sua própria cultura. Há os que, a partir do centro, se propõem a inventariar tipos de outras regiões, por vezes caricaturando-os: a obra de José de Alencar vem à mente.

6A preocupação com a veracidade da obra literária tem sido desqualificada e descartada com o argumento algo irônico de que também a ciência oferece representações parciais (White, 2001), cuja legitimidade encontra-se, em geral, na posição institucional dos autores desse tipo particular de texto (Foucault, 2001), no "ter estado lá" dos antropólogos (Geertz, 2002a; 2002b) ou no "ter feito" dos geógrafos (Smith, 1996). Tzvetan Todorov (1989), ao discutir a diferença entre a verdade do romancista e aquela do cientista, estabelece uma distinção entre verdade-adequação (estabelecimento de fatos, tudo ou nada) e verdade-desvelamento (interpretativa, teórica, discursiva), sem estabelecer precedência entre os elementos do par. O autor lança mão também da idéia de verossimilhança (efeito do real), mas o ponto central de sua argumentação é que a crítica relativizadora aplique-se à verdade-desvelamento, sem descartar a existência de verdades (mais simples, talvez) que se encontram além do relativismo. Essa distinção é bastante útil, ainda mais se reconhecermos que a verdade, a justiça, a honestidade, a liberdade, continuam como horizonte do trabalho científico. As representações produzidas pelas ciências humanas (de modo mais amplo, as relações entre as representações verbais e a realidade) podem ser concebidas como um processo em constante reacomodação (Agambem, 2006, p.39).

7Essa estratégia aproxima-se do efeito de estranhamento dos formalistas russos. Esse é um "artifício graças ao qual o artista conduz o leitor a perceber a coisa descrita sob um perfil e uma luz diferentes, de modo a compreendê-la melhor do que até então compreendera", segundo Umberto Eco (2007, p. 203).

8Outros veios da relação literatura-ciência têm sido explorados. Carlo Ginzburg (2004), em "Tusitala e seu Leitor Polonês", especula que a idéia do kula surgiu para Bronislaw Malinowski a partir da leitura do conto "The bottle imp", de Robert Louis Stevenson. Nesse caso, a literatura serviria como inspiração, sugerindo, talvez inconscientemente, motivos, metáforas e símbolos, seguindo uma lógica não-cartesiana. Clifford Geertz (2002a; 2002b), por sua vez, acredita que a contribuição dos estudos literários à antropologia estaria no aumento da "consciência do texto", na percepção das estratégias argumentativas a que os antropólogos recorrem. Alinha-se, como crítica textual com implicações metodológicas, à maioria dos textos da coletânea organizada por James Clifford e George Marcus (1986), discutindo a produção clássica e recente dessa disciplina.

9Roman Jakobson (1959) propõe a diferenciação entre 1) tradução intralingüística ("uma interpretação de signos verbais por meio de outros signos verbais da mesma língua", reformulação, rewording); 2) tradução interlingüística ("uma interpretação de signos verbais por meio de signos verbais de outra língua", de uma língua a outra, a tradução mesma); 3) tradução intersemiótica ("uma interpretação de signos verbais por meio de signos não-verbais", do romance ao filme, por exemplo, dita transmutação) (apud Eco, 2007, p. 265-270).

10Note-se que o contrabando também é feito por agentes que operam com grandes somas, traficando drogas e armas, agindo numa escala geográfica mais ampla, e implicando em violência e lucros mais volumosos que os tratados aqui. Estudar tais práticas exigiria uma metodologia diferente.

11A existência de uma 'literatura de fronteira' pode ser discutida. Entretanto, essa expressão tem tido uso corrente em estudos no Rio Grande do Sul – vejam-se, além de outros trabalhos meus (Dorfman, 2003; 2004), as importantes análises de Lea Masina (1994) e Nara Rubert (2003).

12Dialeto(s) falado(s) na fronteira lingüística que caracteriza os limites continentais do Brasil. Português, espanhol e guarani se fecundam, "la una el error dela outra", segundo a inesquecível fórmula de Néstor Perlongher (1992).

13Ligia Chiappini (1999, p. 21) cita Dino Preti (1977, p. 42-3, 47) para enumerar outras estratégias a que Simões Lopes Neto recorre em seu esforço para transcrever a oralidade: "a redundância; a freqüência das expressões de situação (aqui, ali, agora...); o truncamento básico; o ritmo e sonoridade típicos da fala; o papel da pontuação ressaltando a afetividade; a imagem do interlocutor; as interjeições e chamamentos, pelo vocativo; as questões, supostamente dirigidas ao interlocutor e, por meio deste, ao leitor-ouvinte; as comparações dentro do horizonte de Blau; os castelhanismos".

14Observe-se que a figura oscila entre dois pontos de vista: o do narrador, no nível do horizonte, e o da geógrafa, que representa a paisagem do alto.

15"Así se denomina un vado sobre el rio Negro, en los límites con Cerro Largo, al sur del Paso Layado, cuyo nombre se origina en ser el favorito de los contrabandistas" (Salomon de Leon, 1988, p. 168, tradução da autora). Compare-se às seis páginas dedicadas à Confeitaria Metropolitana. A existência desse dicionário, em 15 volumes e quase 2.000 páginas, sobre temas locais, atesta a força cultural do lugar.

16E esses termos têm alcances bem localizados: correspondem às paseras na fronteira Posadas (AR)-Concepción (PY), aos quileros ou 'passadores' de Uruguaiana (BR)-Paso de los Libres (AR), aos 'chibeiros', 'changadores' e ao 'contrabando-formiga', popularizado na mídia e na literatura acadêmica.

17"Peu à peu, l'éffacement progressif des frontières douanières se réalise. L'application des accords du GATT, la création des unions douanières, nottament de la Communauté européene, aboutissent à une réduction sensible, voire à une disparution, des droits et taxes à percevoir lors du franchissement des frontières. La disparution des frontières fiscales en 1993 est l'aboutissement de cette évolution." (L´ unique..., 2007, tradução da autora)

18"Grâce à des financements de l'Europe, de l'Etat, du département et de la commune, la région dispose désormais à Godewaersvelde d'un espace de sauvegarde de la culture transfrontalière accessible à tous." (Musèe..., 2007, tradução da autora).

19Entre outros se podem listar: o Musée des Douanes et Accises, em Esch-sur-Alzette, Luxemburgo; o Musée des Douanes, em Cantine di Gandria, Lugano, Suíça, "às vezes chamado 'museu dos contrabandistas', recebendo 20 mil visitantes por ano" (Musèe des Douanes..., 2007, tradução da autora); HM Customs & Excise National Museum, Liverpool, RU, "que tem como tema central o combate ao contrabando e será expandido para incluir o trabalho de detecção, o combate ao crime, o controle das fronteiras, a captura de criminosos, a vigilância encoberta e informações sobre heróis e vilões". (Liverpool..., 2007, tradução da autora).

20"La complainte de Mandrin: Nous étions vingt ou trente / Brigands dans une bande / Tous habillés de blanc, / A la mod' des ... Vous m'entendez? / Tous habillés de blanc, / A la mod' des marchands.// Ces messieurs de Grenoble / Avec leurs longues robes / Et leurs bonnets carrés, / M'eurent bientôt...Vous m'entendez? / Et leurs bonnets carrés, / M'eurent bientôt... jugé. // Ils m'ont jugé a pendre / Ah ! C'est dur à entendre! / À pendre et étrangler, / Sur la plac' du...Vous m'entendez? / À pendre et étrangler, / Sur la plac' du marché. // Monté sur la potence / Je regardai la France / J'y vis mes compagnons, / A l'ombre d'un ...Vous m'entendez? / J'y vis mes compagnons, / A l'ombre d'un buisson.//Compagnons de misère, / Allez dire à ma mère / Qu'elle'ne me verra plus, / J'suis un enfant ...Vous m'entendez? / Qu'elle'ne me verra plus, / J'suis un enfant perdu" (Bonifay; Lacaf, 2005, p. 1-2).

21"Nous étions bien deux cents, ensemble dans un champ / A vouloir résister au diktat des … vous m'entendez / A vouloir résister au diktat des s'menciers." A versão fala de duzentas pessoas reunidas num campo para resistir às imposições dos produtores de sementes (Service..., 2007).

22Mandrin, o capitão dos contrabandistas, alinha-se a Robin Hood, Cartouche e Arsène Lupin, considerados bandidos de bom coração, injustiçados ou perseguidos por atos considerados menores, como roubar caça ou contrabandear. Ele só mata para se defender ou vingar a honra, só tem como inimigos as autoridades locais, o clero ou outros poderes opressores considerados venais ou corruptos, só é preso em caso de alguma traição, é admirado pela coragem, astúcia, força, correção e generosidade, porque rouba dos ricos para dar aos pobres (Service..., 2007, p. 10).

23Frantz Funck-Brentano publica, em 1908, a primeira biografia histórica: "Mandrin, capitaine general des contrebandiers de France". Contextualizando a história: contra taxas abusivas, um comércio se desenvolve entre o reino da França e o ducado de Savóia. Tabaco (dito falso tabaco), tecidos, sal, café, especiarias, relógios e armas são comprados em Genebra e transpõem os Alpes, para serem vendidos a baixo custo. As grandes manobras de contrabando assemelham-se a operações militares, sendo lideradas por um capitão, um oficialato e dezenas a centenas de cavaleiros a soldo, bem armados, envolvendo ainda investidores e mercadores de ambos os lados da fronteira (Service..., 2007).

24"Tout au long de l'histoire nous observons que les basques, traqués en raison de guerres, ou encore de leurs idées politiques, ont su admirablement utiliser cette frontière à bascule pour se refugier selon les besoins, d'un côté ou de l'autre sans quitter le sol de leur Patrie. La solidarité entre frères n'a jamais cessé d'exister et la complicité partout retrouvée, a pu déjouer bien des pièges.Et puis qui dit frontière doit aussi penser à la contrebande que les basques appellent travail de nuit 'gauazko lana'." (Ospital, 2006, p. 8, tradução da autora).

25"Une jeune fille du village, couturière de son état, était restée durant de longues années, la fiancée d'un fringuant jeune douanier. Invoquant mille prétextes de fêtes ou de mariages, elle avait toujours un petit coupon de tissu à faire rentrer d'Elizondo pour son atelier. Comme elle ne voulait soi-disant, pas le perdre en chemin, elle s'informait auprès de son galant des itineraires empruntés par les patrouilles de nuit des douaniers. Il valait mieux assurer d'abord la securité! Et notre gentille couturière oublia d'épouser son douanier servant qui, toujours désolé, affirme que l'amour n'a pas de frontière. C'était de l'amour de contrebande." (Ospital, 2006, p.76-7, tradução da autora).

26Faixa de 4 km de largura ao longo da fronteira que dava direito a uma carte de riverain, identidade de ribeirinho permitindo a compra de pão e outros gêneros para consumo próprio no outro país, segundo as informações constantes no glossário do mesmo livro.