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Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas

Print version ISSN 1981-8122

Bol. Mus. Para. Emilio Goeldi Cienc. Hum. vol.3 no.3 Belém Dec. 2008

 

Notas sobre o antigo povoamento indígena do alto Trombetas e Mapuera

 

Notes on the ancient indian settlements of the upper Trombetas and Mapuera rivers, Pará, Brazil

 

 

Antonio Porro

Universidade de São Paulo. São Paulo, São Paulo, Brasil (toniporro@uol.com.br)

Endereço para correspondência

 

 

 


RESUMO

A 'Relação' de 1728 de frei Francisco de São Manços, com a narrativa da primeira exploração da bacia Trombetas-Mapuera, no noroeste do Estado do Pará, embora publicada há mais de cem anos, é aqui, pela primeira vez, objeto de análise e de interpretação geográfica e etno-histórica. A importância do documento está em nomear e em localizar com aproximação cerca de 50 'nações' indígenas, quase todas ignoradas pelas fontes históricas e etnográficas posteriores, além de mencionar muitas de suas aldeias e de seus chefes. A reconstituição do itinerário permitiu concluir que a viagem do 'descobridor do Trombetas' transcorreu, na verdade, em grande parte, pelo Mapuera, seu afluente, até o planalto das Guianas. A informação etnográfica, embora limitada, inclui referências a dois níveis de chefia política e à guerra como meio de obter escravos destinados ao escambo por mercadorias.

Palavras-chave: Capuchos da Piedade. Explorações geográficas. Etno-história. Rio Trombetas. Rio Mapuera. Amazônia.


ABSTRACT

This is the first geographical and ethnohistorical analysis of the 1728 narrative of friar Francisco de São Manços on the first expedition to the Trombetas and Mapuera rivers in Northwestern Pará. The relevance of this document consists in the naming and approximate location of near 50 Indian 'nations', most of them not mentioned by later historical and ethnographical sources, including many names of their villages and local chiefs. The reconstruction of the expedition's course showed that São Manços, known as the "Trombetas' discoverer", had in fact traveled mostly through the Mapuera, its western tributary, up to the Guyana highlands. Outstanding in the author's scarce ethnographic information, there are references to a two levels political chieftainship, and to war as means to capture slaves targeted to trade for goods.

Keywords: Capuchin Order. Geographical explorations. Ethnohistory. Trombetas River. Mapuera River. Amazon.


 

 

O propósito dessas notas é interpretar e avaliar a mais antiga descrição geográfica e etnográfica que se conhece da região Trombetas-Mapuera, no noroeste do Pará. Trata-se da 'Relação' do missionário frei Francisco de São Manços, que a explorou e descreveu entre 1725 e 1727. A análise desse texto, até hoje pouco lido, revela, entre outras coisas, que São Manços, citado amiúde como 'o descobridor do Trombetas', só percorreu daquele rio, a partir da sua foz no Amazonas, as águas mansas do baixo curso. Vencida a primeira cachoeira, ele seguiu, na realidade, pelo rio Mapuera, afluente do primeiro, até os seus formadores no maciço das Guianas.

O manuscrito da 'Relação' conservado na Biblioteca Nacional de Lisboa tem como verbete: "Relação que Frei Francisco de S. Manços, Religioso da Província da Piedade e Missionário na aldeia de Nhamondás, faz ao Rei da sua viagem pelo Rio das Trombetas, praticando o gentio e rendendo-o à vassalagem de Sua Real Magestade. - 6 de Janeiro de 1728". Foi paleografado e publicado por Joaquim Nabuco (1903, v. 1, p. 39-48). Incorporado ao Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), o manuscrito pode ser lido através do Projeto Resgate (2002), Capitania do Pará, doc. 964. É importante alertar que, no verbetesumário do AHU (mas somente no verbete), o nome do autor, por má leitura, é grafado 'São Marcos', erro que se repete em mais de uma citação moderna. Confrontado com o manuscrito, o texto editado por Nabuco revela-se confiável. Não se pode dizer o mesmo, porém, de outra versão, ao que parece novamente e desnecessariamente paleografada no AHU (Mueller, 1955), de cujos equívocos e lacunas não parecem ter-se apercebido etnólogos modernos (v. Frickel, 1958).

Além de ser a mais antiga, a 'Relação' de São Manços é, também, a única fonte anterior a meados do século XIX a nomear e a situar, em relação à hidrografia da região, um grande número de grupos indígenas e suas aldeias. Esta unicidade, porém, acarreta sérios problemas de interpretação etno-histórica, uma vez que, 150 anos mais tarde, as primeiras explorações geográficas modernas (Schomburgk, 1922-1923; Brown; Lidstone, 1878; Coudreau; Coudreau, 1900; Coudreau, 1903) encontraram o território em grande parte despovoado, e nomearam os grupos sobreviventes, suas aldeias e os próprios rios com termos que, salvo poucas exceções, não se encontram no texto de São Manços. Isso se explica: antes, com os descimentos do próprio frade e de seus sucessores para a missão de Faro e suas aldeias; depois, com o avanço de destacamentos militares, de comerciantes e de aventureiros rio acima, com a Cabanagem (1836- 1840) e suas seqüelas, com a formação de mocambos ao longo do Trombetas, com a miscigenação e com as devastadoras epidemias de final do século XIX. Tudo isso provocou deslocamentos, migrações e o recuo dos grupos sobreviventes para as serras do extremo norte, aquém e além de uma fronteira invisível e, na prática, inexistente.

Em 1693, com a redistribuição dos territórios missionários, a aldeia jesuítica de Santa Cruz do Jamundá (ou Nhamundá), junto ao baixo curso daquele rio, passou à gestão dos Capuchos da Piedade sob a denominação de São João Batista de Nhamundás (Leite, 1943, p. 277- 278). Alguns anos mais tarde, a aldeia foi transferida para as margens do lago de Faro, de ares mais salubres e de melhor acesso, onde iria dar origem à cidade deste nome. Em 1725, o responsável pela missão era o português frei Francisco de São Manços, que, naquele ano, conforme diz no começo da 'Relação', fez uma primeira entrada pelo baixo curso do rio Trombetas; de lá trouxe e assentou na missão 162 índios da nação Babuhi [Uaboy], além de 70 da nação Nhamundá, provavelmente do rio homônimo.

Os Uaboy atiçaram a curiosidade e o zelo de São Manços ao contar-lhe que havia "incógnitas nações de gentio da primeira cachoeira do rio das Trombetas e do Athaná para cima". O rio Trombetas, em seu baixo curso, flui mansamente por 200 km até desaguar no Amazonas. Ele se forma (v. mapa), logo acima da primeira cachoeira, a Porteira, pela junção do seu alto curso, que desce do norte, com o do Mapuera, que vem de noroeste. Os dois ramos têm seus formadores nos contrafortes das Guianas e são igualmente encachoeirados, o que sempre dificultou a navegação, mesmo de simples canoas. O 'Athaná' vem a ser o igarapé do Athanazo, que aparece num mapa de 1929 da Inspeção de Fronteiras (Faria, 1946, p. 11) desaguando na margem direita do Trombetas, 30 km a jusante da Porteira. Decidido a procurar aqueles gentios e não podendo ausentar-se da missão, São Manços enviou, no ano seguinte, frei Francisco de Alvor, seu auxiliar, com 41 índios e o soldado Francisco Dias, do presídio de Óbidos.

 

 

Os exploradores sairam da missão a 19 de novembro de 1726. Doze dias depois, chegaram à Porteira. Seguiram rio acima, como veremos pelo Mapuera, mas, passados outros vinte dias, boa parte dos homens estava doente. Frei Alvor ficou cuidando deles e mandou o soldado seguir adiante com os que tinham saúde, mas o destacamento continuou sofrendo baixas e acidentes: "Alagaram-se algumas canoas quando foram para cima e voltaram para baixo (...) perdeu-se também alguma fazenda [bagagem] da que mandei e bastante alfaias dos índios desta aldeia [de Nhamundás]; de quarenta e uma pessoas que mandei, só sete chegaram com o dito soldado (...) até dar com o gentio; e com efeito, junto do rio Urucurin achou os sobreditos [índios] (...) e trouxe [um casal da nação Parukoto] à presença do dito religioso". São Manços não o diz, mas o soldado e, provavelmente, também frei Alvor devem ter prosseguido por diversas semanas a exploração do alto Mapuera, porque só regressaram à missão de Nhamundás cinco meses depois da partida, a 19 de abril de 1727.

Já neste relato da primeira expedição, encontramos a evidência de que as 'incógnitas nações' buscadas por São Manços acima da primeira cachoeira não estavam no Trombetas, mas no seu maior afluente ocidental, o Mapuera, cujo alto curso, aliás, é conhecido até hoje como Urucurina. Na sequência da 'Relação', com a viagem do próprio São Manços pelo mesmo rumo do seu auxiliar, veremos que, acima da Porteira, as duas expedições estavam, de fato, subindo o Mapuera, chamando-o, porém, de 'Trombetas', e chegaram até um ponto do seu alto curso em que desaguava o rio Urucurin. Nesta região, os mapas modernos registram Rio Mapuera ou Urucurina'. No dizer do cronista, os dois índios trazidos por frei Alvor, Mascolmim e sua mulher Mascotu, filhos dos 'principais' de duas adeias parukoto do rio Urucurina, insistiram para que São Manços fosse buscar sua gente rio acima para assentá-la 'com ranchos e casas' junto à missão. O missionário não se fez de rogado e, em outubro do mesmo ano de 1727, tinha aprontado uma expedição de sessenta índios e onze canoas. Eis as partes principais do seu relato, com grafia atualizada e as interpolações introduzidas no texto para melhor entendimento da narrativa.

* * *

"Relação e notícia das nações do gentio que se acha situado nas aldeias da sua gentílica e bárbara jurisdição, as quais me afirmam o índio Mascolmim, filho de Boniatá, principal da aldeia de Calarapari, e a índia Mascotu, filha de Huzá, principal da aldeia de Popunhari, todos da nação Parucuató [Parukotó], que se [os m]ande descer para este rio dos Nhamundás, onde lhes tenho consignado (...) junto desta aldeia [de São João Batista] sítios de boas terras, abundantes para poderem a seu salvo fabricar suas lavouras e poderem nelas ser assistidos (...) pelos religiosos filhos da província da Piedade, [posto] que (...) foi o rio das Trombetas descoberto este presente ano de 1727 à custa da sua religião (...) Escolhe[ram], o dito índio e sua mulher, filhos dos tais principais, lugar nesta aldeia para ranchos e casas (...)

As aldeias e sítios deste gentio [Parukotó] ficam pelo rio Urucurin, e por ele se passa para as [de]mais nações do gentio abaixo nomeado, ainda que sobre as quais só me ocorre nesta ocasião declará-las por seus nomes, e o mesmo farei das mais que se acham por outros rios circumvizinhos a este (...)

Em 28 de outubro [de 1727] (...) parti desta aldeia [de S. João Batista] (...) e em quatro de novembro cheguei à primeira cachoeira e rochas do rio das Trombetas e do Athaná, a qual passei no mesmo dia com feliz sucesso, ainda que com bastante receios de naufrágio. Em nove [de novembro] cheguei às ilhas e cachoeiras onde ficou o religioso [frei Alvor]; mandei contudo no mesmo dia abrir caminho por terra, por onde passou toda a gente e canoas com bastante trabalho, suposto sem perigo.

Em 15 do dito mês [de novembro] cheguei ao rio de Goayhini, povoado e ornado de [um] gentio de guerra chamado Cereu (...) [A descrição que segue foi deslocada do começo da 'Relação' para este parágrafo]: Antes que se chegue ao rio de Urucurin ficam duas nações de gentio, as quais não têm paz com nenhuma [outra] e [estão] continuamente em guerra uma com outra e cada uma de per si com todas. Chamam-se estas Cereu e Carabeaná; seus sertões e terras são mui dilatados, acompanham e seguem não somente o rio das Trombetas [aqui e mais adiante, leia-se Mapuera] e o de Urucurin, mas também o Nhamundá-açú. O gentio dessas duas nações não usa de gênero algum de ferramentas, nem de compôr suas pessoas com os afeitos [enfeites] de que usa todo o mais gentio (...) O principal maioral a quem todos os [de]mais da dita nação Cereu obedecem, chama-se Amagoá, e seu rio Goayhini, que desemboca no das Trombetas, por onde sai a dar guerra à nação Parucuató, suposto suas aldeias [dos Cereu] ficarem sobre o rio Nhamundá-açú, e por terra [saem a dar guerra também] na de Carabeaná, cujo principal maioral, a quem todos também obedecem, tem por nome Clixá; seu rio [chama-se Kixauahu e] também desemboca no das Trombetas, por onde saem a dar guerra no mesmo gentio Parucuató (...) O rio das Trombetas (...) vai sempre acompanhando os sertões e terras do gentio guerreiro Cereu e Carabeaná, e pela outra parte, sobre o lado direito [de quem sobe o rio] até chegar ao rio de Urucurin, [há] várias taperas e sítios antigos do gentio Parucuató e Oakiá, que as ditas duas nações destruíram e fizeram desertar. [Fim da interpolação].

Em 19 [de novembro] cheguei às ilhas e cachoeiras sitas [n]as primeiras terras e sertões do gentio Parucuató, (...) junto das quais mandei arvorar uma cruz e fazer junto dela arraial e sítio, cujo órago e título é Jesus Maria José (...) e em 21 (...) mandei pelo guia chamar o principal Maxacari, da aldeia de Moiri (...) Em 23 chegou o dito guia com o tal principal e 14 vassalos seus, com os quais estava a caminho para ir incorporar-se no novo sítio e aldeia que antes tinha mandado fazer (...) [porque] o gentio da nação Xarumá e da Oanu lhe tinham morto e cativado a maior parte dos seus vassalos numa guerra que lhe deram três dias antes da minha chegada, e que não somente mataram e cativaram, mas também lhe queimaram a sua aldeia e consumiram suas lavouras e roças, o que nunca experimentara nas contínuas e cruéis guerras que o gentio Cereu e Carabeaná antigamente lhe fizeram, suposto [também] darem fim a outra aldeia que ele também governava (...)

Em 25 [de novembro] (...) parti para a aldeia de Popunhari (...) Em 26, pelas duas horas da tarde, cheguei ao rio de Xinamá; e em 27, pelas oito horas da manhã, ao [rio] de Kixauahu, do gentio de guerra chamado Carabeaná, na boca do qual mandei arvorar uma cruz (...) Em 28, pelas dez horas da manhã, cheguei ao rio de Amaurú e, no mesmo dia, pelas cinco da tarde, ao de Macori, ambos de gentio suposto se não puder navegar por eles.

Em 29, cheguei à boca do rio de Urucurin, porta por onde se entra e passa para todas as nações do gentio [a seguir nomeadas]; é este rio tão perigoso e mais que o das Trombetas [Mapuera], porque além de ir todo atravessado de altas cachoeiras e cercado de ásperas serras, se acham outros muitos e maiores [perigos], que são as muitas e várias nações de gentio que o acompanham de uma e outra parte até junto [da Guiana] de Holanda. Junto da dita boca mandei arvorar duas cruzes em correspondência uma de outra, e nas Trombetas, da parte contrária e fronteira, mandei arvorar outra, junto ao sítio donde o sobredito soldado tirou os ditos Tapuias; mandei junto desta fazer um limitado arraial e aposento, de onde no mesmo dia mandei por dois vassalos do dito principal Maxacari chamar toda a sua gente (...)

Considerando a demora e tardança que este principal [Maxacari] faria em chegar ao dito arraial e aposento, determinei, em três de dezembro, pelas quatro horas da manhã, depois de tomar parecer com o guia, ir esperá-lo no porto da sua aldeia, no qual aportei [ no dia ] quatro, pelas cinco horas da tarde; fiz arraial e quartéis de uma e outra parte [margem] do rio [ ...e] intitulei e dei por nome a este arraial e sítio Piedade de Urucurin (...)

[Este parágrafo e os seguintes, que arrolam cinquenta 'nações' da bacia do Urucurina, também pertencem ao começo da 'Relação']. As nações de gentio que este rio [Urucurina] tem, são estas: Hureaná, Hoaluxá, Camará, Macorei, Juhi, Xibiliana, Xaxaro, Pajulá, Xumi, Peritauá, Makenu, Heurao, Calanamai, Taucu, Motocoxima.

O rio de Coromuó tem estas: Patuó, Caparanao, Calcouó.

O rio de Ajubacabo tem estas: Oanú, Coritanahó, Ojemuná, Paranacorí, Orekeá.

O rio de Camoó tem estas: Tutumú, Heúo, Morulaboca, Canahauhó, Oanaháuhó, Camaré, Axiná. O rio Cabremen tem esta: Macacabo. O rio Huheini tem esta: Xikianá. O rio Cabo tem esta: Peraugoaru. O rio Hetabu tem esta: Cabareijo. O rio Joruá tem esta: Orabaru.

As nações seguintes todas ficam terra adentro, suposto também se comunicarem com o sobredito rio de Urucurin com] seu gentio: Magoyaná, Naucu, Marixaná, Beneboyaná, Xarumá, Maxacá, Araui, Mauhá, Timumu, Mauguá, Makigi, Parancaxena, Mapoyaná, Melki [e] Paranancari, última esta, e primeira que recebe fazendas da mão do Holandês para as distribuir e passar [trocar] por escravos por todas nações que ficam pelos rios acima nomeados, os quais todos desembocam no de Urucurin.

[Outra interpolação que nomeia uma quinzena de chefes locais e suas aldeias:] Os principais desta tal nação [Parucuató] que os sobreditos índio e índia me pedem [que] os arranje e situe nesta aldeia [da missão] são estes: [Boniatá, principal da aldeia de Calarapari; Huzá, principal da aldeia de Popunhari], Teumigé [da aldeia de Moxotoreí], Clixi, Maxacari, Canahó, Cloem, Hibasto, Tomari, Oamotó, Taskitó, Jagoaramoná, Toporocori, Borobitó, Xarari, Macouri e outros muitos que também estão subordinados ao dito principal Teumigé da aldeia de Moxotorei. As aldeias dos [de]mais principais são as seguintes: Moiri, Popunhari, Momunhari, Pakephá, Calarapari, Pehateri, Xibolicá, Cleoca, Oaná, Quaçanari e outras muitas que regem e governam com seus gentílicos ritos e bárbaros costumes, os quais não expresso e declaro por fazer a relação e notícia mais breve. [Fim da interpolação].

Em cinco [de dezembro], pelas doze horas do dia, chegou [ao arraial de Piedade de Urucurin] o principal Cloem em companhia do seu maioral Teumigé, [vindos] da aldeia de Pakephá, onde estavam incorporados com outros principais da mesma nação (...) Deram-me estes principais notícias [de] que o principal Huizá e o principal Boniatá eram falecidos, e também que o gentio da nação Mapoyaná e a de Xarumá e a de Oanu tinham dado guerra havia dois meses no gentio da nação Melki e no da Caxorena, na qual [guerra] mataram todos os índios, e a [de]mais gente cativaram (...).

Em 7 do dito mês me mandou dizer o principal Teumigé, pelo principal da aldeia de Clioca, de nome Macoiri [sic], que ainda não eram chegados os principais de doze aldeias mais remotas da sua jurisdição (...) e que determinava, segundo sua razão e vontade de seus vassalos, fosse o principal da aldeia de Moiri, chamado Maxacari, e o da aldeia de Momonhari, por nome Tomari, ver a dita aldeia e terras do Nhamondás (...) e que ninguém da sua nação e da de Magoyana poriam dúvida em se quererem descer e deixar seus sertões (...).

No dia seguinte [8 de dezembro], (...) determinei voltar para o arraial de Jesus Maria José, onde tinha deixado o religioso e [o] soldado, com toda a mais gente cristã e o outro principal também nomeado, Maxacari. De cujo arraial parti com toda a mais gente a dezenove do dito mês de dezembro, pelas cinco horas da manhã; e cheguei a esta aldeia de S. João Batista [do Nhamundá] no dia do nome de Jesus, primeiro de janeiro de 1728, pelas sete horas da manhã, com quarenta pessoas da sobredita nação Parucuató, (...) suposto passarmos a [cachoeira] do rio das Trombetas e do Athaná, com bastante trabalho, no dia do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelas onze horas (...).

Certifico eu, frei Francisco de S. Manços, religioso da Província da Piedade e missionário nesta aldeia de S. João Batista do Nhamundá, no Estado do Maranhão, em como por serviço de Deus e de Vossa Real Majestade e bem das almas, determinei (...) minha jornada pelo rio das Trombetas, tão incógnito como perigoso que ninguém o tinha cometido; [e que] cheguei, enfim, aos sertões do gentio que confinam com [a Guiana de] Holanda (...) e para que em todo tempo tenha a fé que se requer, não só a relato, mas a firmo aqui, e juro in verbo sacerdotis. Nhamondás, seis de janeiro de 1728."

Frei Francisco de S. Manços, Missionário.

* * *

Uma primeira observação, das muitas provocadas por esse texto singular, é a quantidade de nomes tribais, de aldeias, de seus chefes e 'maiorais', e a minuciosa cronologia, com dia e hora, das etapas da viagem. É claro que o autor registrou in loco, dia a dia, as suas observações, o que lhe confere credibilidade. Ainda na crítica externa, a letra do manuscrito é do século XVIII e prima pela ordem e regularidade. Nas suas dez páginas não há uma única correção, o que faz pensar em transcrição por um copista proficiente, hipótese plausível por se tratar de documento a ser encaminhado ao Comissário das Missões para fins de certificação. Se foi assim, é quase certo que o foi à vista do autor, por não haver, o que é raro em documentos do gênero, divergências ao longo do texto na grafia dos muitos etnônimos de difícil pronúncia.

Passando ao conteúdo, é preciso, antes de tudo, justificar a afirmação inicial de que grande parte da viagem de São Manços não se deu pelo rio Trombetas, mas pelo Mapuera. Como já assinalado, nos mapas modernos o alto Mapuera é, também, chamado Urucurina, fato estabelecido em 1938 pela Comissão Demarcadora de Limites: "Acima do ponto de junção com o Tauiní, o Mapuera diminui consideravelmente em largura, torna-se pouco profundo e recebe o nome de Urucurina, dado pelos índios" (Aguiar, 1941). Outra indicação disso é que os poucos nomes tribais que aparecem na 'Relação' e que ainda seriam registrados nos séculos XIX e XX, estão mais associados à bacia do Mapuera-Urucurina do que à do Trombetas: Parucuató//Parukotó; Magoayana//Mawayana; Paranancari//Faranakaru; Mapoyaná//Maopytian; Xibiliana// Chiriwiyána; Camaré//Kamare.yama; Tutumú//(rio) Tutumo. Obviamente, ao denominar 'Trombetas' o rio Mapuera, São Manços não estava cometendo um erro geográfico; o 'verdadeiro' curso de um rio tem sido, muitas vezes, mera convenção geográfica, e o 'verdadeiro' alto Trombetas ainda não era conhecido.

Identificar as etapas e o ponto extremo alcançado pela viagem de São Manços é muito mais difícil e aqui só será sugerido em caráter tentativo. A expedição saiu da missão de S. João Batista a 28 de outubro de 1727; passou do Nhamundá ao baixo Trombetas e chegou à cachoeira Porteira a 4 de novembro, percorrendo os 300 quilômetros de águas mansas em oito dias. Acima da Porteira e, como vimos, já no Mapuera, passou pelas inúmeras ilhas e cachoeiras que se sucedem até a região de Suretama, em algum ponto da qual frei Alvor havia acampado com os doentes da primeira expedição. Ao final de onze dias, a 15 de novembro, São Manços chegou à foz do rio Goayhini, afluente que devemos supor da margem direita, visto que o território dos seus habitantes, os temíveis Cereu, estendia-se a oeste até o Nhamundá. Podemos, então, supor que o 'Goayhini' fosse o rio Acari, primeiro afluente importante que encontramos nessa posição e que deságua no Mapuera 170 km acima da Porteira.

Quatro dias depois, a 19 de novembro, tinha início outra seqüência de ilhas e de cachoeiras; era o começo do extenso território das muitas nações Parukotó. Em algum ponto dessa região, armou-se o arraial chamado Jesus Maria José e a expedição pousou por cinco dias. A 25 de novembro, foi retomada a viagem e, no dia seguinte, passou-se pela foz do rio Ximaná, não identificável. Mais um dia e, a 27, chegouse ao rio Kixauahu, do gentio Carabeaná, também de guerra. Era, ao que tudo indica, o rio Baracuxí, também da margem direita, porque, assim como os Cereu, os Carabeaná ocupavam o interflúvio Mapuera- Nhamundá, onde atacavam os Parukotó e os próprios Cereu. Descontado o pouso no arraial, os 120 km desde a foz do Acari até a do Baracuxi foram, então, percorridos em seis dias.

No dia seguinte, 28 de novembro, a expedição passou por mais dois rios não identificados, o Amauru e o Macori; e a 29, por fim, chegou "à boca do rio de Urucurin, porta por onde se entra e passa para todas as nações do gentio (...) que o acompanham de uma e outra parte até junto [da Guiana] de Holanda". Aqui foi armado o arraial da Piedade de Urucurin. A 'boca do Urucurin' era, na verdade, a junção deste rio com o Tauini, vindo a formar o Mapuera ou, como se prefere hoje, o ponto em que o Tauini deságua no Urucurina- Mapuera. Estes últimos 50 km haviam sido percorridos em dois dias. Descontadas as paradas, os 650 km rio acima desde a missão do Nhamundá haviam sido vencidos em dezenove dias de navegação.

São Manços permaneceu vinte dias no alto Mapuera e no Urucurina, onde fez contato com as aldeias mais próximas e enviou emissários às demais do Urucurina, visando atrair os principais chefes. É provável que, para esses contatos, além dos intérpretes parukotó que levava, São Manços tenha-se valido de informações colhidas no ano anterior pelo seu enviado, frei Alvor, de cuja viagem não temos maiores detalhes, mas sabemos que se havia prolongado por cinco meses. Diversos chefes de aldeias vieram e ouviram sua exortação para que descessem com ele em seu retorno à missão do Nhamundá. Ao final dos entendimentos, o 'chefe maioral' daqueles Parukotó, Teumigé, da aldeia de Moxotoreí, determinou que dois outros chefes subalternos seus, Maxacari, da aldeia de Moiri, e Tomari, da aldeia de Momonhari, fossem com o missionário. A 19 de dezembro, a expedição começou a viagem de regresso levando consigo, ao todo, 40 índios parukotó; chegaram sem maiores incidentes à missão do Nhamundá a 1º. de janeiro de 1728.

Apesar da abundância de topônimos e etnônimos, a informação geográfica de São Manços sobre o alto Mapuera é pouco aproveitável, e a etnográfica é ainda mais modesta. Ele nomeia oito rios que parecem ser formadores do Urucurina ou do Tauiní, mas nenhum desses nomes aparece nos mapas atuais, nem coincidem com os do primeiro mapa moderno (Coudreau, 1886- 1887). Quanto aos etnônimos, ele arrola cinqüenta 'nações' para a bacia do alto Mapuera (Urucurina, Tauiní e seus formadores), número que provoca perplexidade num território que podemos avaliar em menos de 10.000 km2. Ao mesmo tempo, há uma indicação de que todas essas 'nações' correspondiam às 'terras e sertões do gentio Parucuató', termo que, aliás, para um etnólogo moderno, "é quase sempre usado como nome coletivo para as tribos do Mapuera (...) todavia, parece que também existe uma tribo autônoma com este nome" (Frickel, 1958, p. 168). Na ausência de qualquer indicação lingüística ou de efetivos demográficos, é razoável supor que as 'nações' de São Manços fossem, na verdade, sub-tribos ou linhagens.

Os quadros que seguem organizam a informação das 'nações' do rio Urucurina (com algumas de suas aldeias e 'principais'), as de seus afluentes e as de terra adentro.

 

 

A afirmação de não querer relatar os "gentílicos ritos e bárbaros costumes" dos índios a pretexto de "fazer a relação e notícia mais breve", é comum nas crônicas missionárias da época e sói ocultar a autocensura religiosa. O que ela nos deixa, a respeito, são umas poucas referências isoladas e circunstanciais:

Chefia política. A 'nação', o que quer que ela fosse, era constituída de unidades físicas, as aldeias, cada uma delas com um chefe, o 'principal'. De algumas 'nações' é mencionado o 'principal maioral', "a quem todos [os chefes de aldeia] obedecem": Amagoá, dos Cereu; Clixá, dos Carabeaná; e Teumigé, dos Parukotó. Este último devia liderar um grande número de aldeias, porque convocado por São Manços a vir com os seus 'principais', mandou dizer que os "de doze aldeias mais remotas da sua jurisdição" ainda não haviam chegado. Suas decisões, por outro lado, eram compartilhadas, visto que dizia tomá-las "segundo sua razão e [a] vontade de seus vassalos" ('vassalo', na linguagem da época, tanto podia ser um 'principal' subalterno em relação ao 'maioral', como um simples aldeão em relação ao seu 'principal').

Guerra e comércio. A guerra, sob forma de ataques, incursões e razias, parece ter sido uma modalidade habitual de relações intertribais. Uma das suas principais finalidades, senão a principal, era a obtenção de escravos destinados ao escambo por mercadorias. A nação dos Paranancari [=Faranakaru], do extremo norte, era a "primeira que recebe 'fazendas' [mercadorias] da mão do Holandês, para as distribuir e passar [trocar] por escravos por todas as nações que ficam pelos rios". Um circuito comercial análogo, que envolvia holandeses do Essequibo e tribos do alto rio Branco, do rio Negro e do Solimões nessa modalidade de troca, havia sido descrito ao final do século XVII pelo jesuita Samuel Fritz, e é provável que a sua dinâmica estivesse enraizada numa tradição pré-européia de comércio intertribal (Porro, 1996, p. 130-131). Entre os Parukotó do Urucurina, a associação guerra/comércio parece ser confirmada pelo episódio do principal Maxacari, que estava sendo obrigado a implantar uma nova aldeia devido a um fato inusitado: "o gentio da nação Xarumá e da Oanu lhe tinham morto e cativado a maior parte dos seus vassalos numa guerra que lhe deram três dias antes da minha chegada, e que não somente mataram e cativaram, mas também lhe queimaram a sua aldeia e consumiram suas lavouras e roças, o que nunca experimentaram nas contínuas e cruéis guerras que o gentio Cereu e Carabeaná antigamente lhe faziam".

Equipamento material. Aqui, como nos demais aspectos culturais, a 'Relação' não diz absolutamente nada, salvo uma referência em sentido negativo: o aguerrido gentio Cereu e Carabeaná, do interflúvio Mapuera-Nhamundá, "não usa de gênero algum de ferramentas, nem de compôr suas pessoas com os afeitos [enfeites, adereços] de que usa todo o mais gentio". Uma vez que Cereu e Carabeaná eram adversários temidos, cujos ataques causavam morte e destruição entre os Parukotó, é provável que, com "ferramentas", o autor se referisse aos equipamentos e utensílios domésticos e agrícolas que os 'índios de corso', em geral, não possuiam.

Para concluir, diga-se que, apesar da pobreza da sua informação etnográfica, a 'Relação' de São Manços, em perspectiva histórica, foi um clarão que, por um momento, descortinou o panorama geográfico e humano daquela parte da Amazônia. Só por um momento, porque depois dela e por mais cento e cinquenta anos, a região voltaria a ser tão desconhecida como antes. Em 1885, depois de ter-lhe explorado as cabeceiras, Henry Coudreau imaginava que o Mapuera não fosse outra coisa senão o rio Urubu. Em 1913, o diligente botânico Adolfo Ducke acreditava que nenhum 'civilizado' havia ainda subido o Mapuera além da cachoeira Bateria, a jusante do rio Baracuxi (Ducke, 1913). Ainda hoje, a bacia do alto Mapuera é uma das regiões menos conhecidas da Amazônia.

 

 

REFERÊNCIAS

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COUDREAU, Henry. La France Equinoxiale. Paris: Challamel Ainé, 1886-1887. 2v. Atlas.

COUDREAU, Henry; COUDREAU, Olga. Voyage au Trombetas (1899). Paris: A. Lahure, 1900.

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FARIA, João Barbosa de. A cerâmica da tribo uaboi dos rios Trombetas e Jamundá. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Proteção aos Indios, 1946. Publicação n. 89.

FRICKEL, Frei Protásio. Classificação linguístico-etnológica das tribos indígenas do Pará setentrional e zonas adjacentes. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 113-189, 1958.

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: INL; Lisboa: Portugalia, v. 3 (Norte 1), 1943.

MUELLER, Frei Bonifacio. Como Frei Francisco descobriu o rio Trombetas. Santo Antônio, Recife, v. 13, n. 1-2, p. 44-48, p. 128-134, 1955.

NABUCO, Joaquim. Limites entre le Brésil et la Guyane Anglaise. Annexes du Premier Mémoire du Brésil. v. 1. Documents d'origine portugaise (Texte portugais). Première Série. Paris: A. Lahure, 1903.

PORRO, Antonio. O povo das águas. Ensaios de etno-história amazônica. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Edusp, 1996.

PROJETO RESGATE. Catálogo de documentos manuscritos avulsos da Capitania do Pará existentes no Arquivo Histórico ultramarino de Lisboa. Belém: SECULT, 2002. 3v.

SCHOMBURGK, Richard. Travels in British Guyana, 1840-1844. Georgetown: The Daily Chronicle Ltd., 1922-23. 2v.

 

 

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Recebido: 17/09/2009
Aprovado: 09/10/2009