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Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas

versión impresa ISSN 1981-8122

Bol. Mus. Para. Emilio Goeldi Cienc. Hum. v.4 n.1 Belém abr. 2009

 

Cavernas funerárias artificiais de índios hoje extintos no sul da Guiana e a cerâmica ali encontrada1

 

 

Dr. Emílio Augusto Goeldi

Diretor do Museu do Pará (Norte do Brasil)

Endereço para correspondência

 

Em 1895, por ocasião de uma expedição científica à região litorânea da Guiana Meridional2, entre os rios Oiapoque e Amazonas, tivemos a sorte de deparar, não muito longe do vilarejo de Cunani (Coanany), com urnas funerárias as mais curiosas possíveis, pertencentes a um extinto tronco indígena e que se revelaram uma mina inesperadamente rica de artefatos de cerâmica indígenas. Sobre essas escavações e achados, foi publicado um cuidadoso trabalho ilustrado3, do qual tenho a obrigação de apresentar um pequeno resumo, acompanhado de algumas das ilustrações mais importantes.

No declive de um morro, demos por acaso com uma rocha de granito posicionada de atravessado e partida em forma de paralelepípedo, que mais parecia um marco de localização (Figura 2). Buscando o que aquilo talvez pudesse significar, chegamos bem perto e descobrimos duas grandes e pesadas placas de granito redondas, talhadas, mas não polidas, cada uma parecendo cobrir uma cova. Após o necessário esforço para arredar essas tampas, havia para cada uma delas uma cova cilíndrica com altura aproximada de um cômodo e que ficava parecida com uma bota por causa de um nicho frontal e lateral (Figura 1). Tal nicho mostrou ser um depósito de grande número de artefatos de barro em ótimo estado de conservação e com as mais diferentes formas e tamanhos. Não foi difícil reconhecer que a maioria dessas vasilhas seria considerada como urnas funerárias, pois elas sistematicamente continham - à exceção de dois objetos que, por si sós, se revelavam como vasilhas para água, devido à forma esférica e ao considerável tamanho - algumas mãos cheias de restos de esqueletos humanos, sobretudo partes quebradas de extremidades de ossos longos misturadas com terra. Esses insignificantes restos de cinzas, aliados ao aspecto dos fragmentos de ossos, acabaram nos levando à hipótese de que os autores desses sítios mortuários pretendiam primeiramente submeter seus defuntos a um processo de cremação, a propósito, da mesma forma como ainda hoje está em voga em alguns troncos indígenas no interior da Guiana (por exemplo, entre os Rucuyennes, na Serra do Tumucumaque).

 

 

 

 

A contar pela forma, os produtos de cerâmica se dividem nas seguintes categorias: 1) travessas retangulares; 2) bacias redondas; 3) tigelas semelhantes a cartolas; 4) urnas. Aqui é curioso que o material, como um todo, segue mais um critério de divisão, a saber, o fato de o fundo da vasilha ser perfurado ou não. Assim, em nossa estampa, por exemplo, são perfuradas a travessa da Figura 3, bem como as urnas da Figura 5 (cinco furos no fundo, grandes e alinhados em quincunce, não visíveis em nossa estampa) e da Figura 7 (com 19 furos pequenos no fundo, os quais, da mesma forma, não são visíveis em nossa estampa), enquanto a bacia em forma de chapéu da Figura 4 e a bonita urna da Figura 6 não apresentam fundo perfurado. A vistosa travessa (Figura 3) mede meio metro de comprimento e 1/3 m de largura; aproximadamente as mesmas dimensões de comprimento e largura são apresentadas pela curiosa travessa em forma de cartola (Figura 4), além de uma fundura interna de 27 cm. A urna da Figura 5 possui uma fundura de 34,5 cm e um diâmetro máximo de 26 cm; já a urna da Figura 6 tem as mesmas dimensões (32 x 38 cm), e a urna da Figura 7 apresenta a relação 34 x 38,5 cm.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Comparando-se com as urnas funerárias que foram encontradas em outros sítios da porção cisandina do norte da América do Sul, as do Cunani chamam a atenção, principalmente, pelo feitio, que chamei de 'zonar', expressão que é mais bem compreendida antes pela observação das ilustrações do que pela descrição verbal.

No que se refere aos ornamentos, vemos que são usados, de um lado, desenho e pintura, e, de outro, adornos em alto e baixo relevo. A louça crua, antes de ser queimada, recebia uma finíssima camada de barro branco especial (tabatinga), que após a queima produzia o belo tom amarelado. Anteriormente a isso, os desenhos, que de certa forma causavam nossa sincera admiração, eram feitos com pigmento vermelho (urucu) e preto (jenipapo). Percebe-se, claramente, uma preferência por três formas diferentes: 1) a vírgula (Figura 3, fundo da travessa; Figura 7, gargalo da urna); 2) o chamado ornamento 'grego', feito em linha reta e entrelaçado (Figuras 3, 4 e 5); 3) o desenho de escada de corda (Figuras 6 e 7, gargalo das urnas). Na utilização da 'linha grega', sobretudo, manifesta-se uma maestria incontestável: a travessa (Figura 3), a tigela (Figura 4) e a urna (Figura 5) poderiam aqui bastar como provas eloqüentes.

Como motivos de natureza plástica, vemos empregarem, principalmente, linhas de contorno de rostos humanos ingenuamente imaginados (Figura 7) e cópias em miniatura de mamíferos, aves, sapos e serpentes, parte em forma de asas e alças laterais, parte como ornamentos marginais em torno do lado externo da abertura da vasilha. Dessa forma, a travessa retangular (Figura 3), no centro da parte estreita, apresenta alguns belos esquilos (no folclore indígena, o símbolo do sono profundo); nos cantos, para cada um destes, em posição diagonal frontal, um pássaro com asas abertas. Na urna da Figura 5, pode-se ver, servindo de alça, o rosto de um predador.

As condições de conservação desses produtos de olaria são geralmente tão impecáveis que até parece - sobretudo diante do aspecto fresco das tintas - que as vasilhas foram feitas dias atrás. E, contudo, sua idade deve ser avaliada em muitas centenas de anos. Um machado de pedra encontrado na mesma época nos dá a informação de que os construtores dessas urnas funerárias são enquadrados no período neolítico, o qual, em conseqüência das mais recentes pesquisas no Brasil Central4, deve ser apreciado na América do Sul, por um lado, de forma essencialmente diferente em relação ao Velho Mundo e, por outro, alcança mesmo o presente, em se tratando de algumas populações que vivem nos mais distantes rincões. Em todo caso, não restou nem na memória dos atuais habitantes daquela região, nem na literatura sobre o período pós-colombiano mais antigo, um único resquício confiável do tronco indígena ao qual possam ser atribuídos esses cemitérios e o seu conteúdo de cerâmica. Temos dependido de conclusões alcançadas por analogias feitas com o auxílio de modelos de cerâmica indígena antiga, como felizmente podem ser vistos abundantemente nas regiões circundantes da porção setentrional da América do Sul.

Aqui existe um arquivo guardado apenas em pinturas e ornamentos de caráter artístico em vasilhas de barro, o qual, à primeira vista, parece nada dizer, mas que, por meio de estudos comparativos do especialista experiente, logo tem o que apresentar.

Para concluir, note-se, ainda, que esses artefatos de fundo estético certamente foram fabricados exclusivamente por mãos femininas, com as mais primitivas ferramentas e sem a utilização do torno de oleiro, ignorado pelos índios. Sabemos de relatos atuais acerca da invasão européia que, com certeza, as vasilhas desde sempre cabiam à criadagem feminina, e tal costume foi mantido com rigor até os dias atuais, tanto entre os índios autênticos quanto entre os mestiços de origem indígena da região amazônica.

 

 

Endereço para correspondência:
Museu Paraense Emílio Goeldi
Editor do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas
Av. Magalhães Barata, 376
São Braz - CEP 66040-170
Belém - PA - Brasil
Caixa Postal 399
Telefone/fax: 55-91-3249-1141
E-mail:boletim@museu-goeldi.br

 

 

1Goeldi, E. A. Altindianische Begräbnishöhlen im südlichen Guyana und in denselben vorgefundene kunstvolle Töpfereiprodukte. Die Schweiz, Zurique, ano IV, n. 20, p. 475-476, 1900.

2Atual estado do Amapá.

3Goeldi, E. A. Excavações archeologicas em 1895. Executadas pelo Museu Paraense no Littoral da Guyana Brazileira entre Oyapock e Amazonas. 1a Parte: As cavernas funerárias artificiaes de Índios hoje extinctos no Rio Cunany (Goanany) e sua ceramica. Belém: Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, 1900. 43 p. il. (Memórias do Museu Goeldi, I).