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Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas

Print version ISSN 1981-8122

Bol. Mus. Para. Emilio Goeldi Cienc. Hum. vol.4 no.1 Belém Apr. 2009

 

 

 

Sobre o uso dos machados de pedra de índios sul-americanos, especialmente amazônicos, atualmente existentes11

 

 

Dr. Emílio A. Goeldi, Pará (Brasil)

 

 

Faz muitos anos que eu, pouco antes da queda do império brasileiro, tive a feliz oportunidade de assistir a uma palestra realizada na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, na qual, resumidamente, pela primeira vez, foram relatados publicamente o decurso e os resultados da para sempre memorável expedição ao Xingu12. Na ocasião, o que mais me impressionou foi a descrição que o palestrante traçou de um índio Baikiri, que embora seja um contemporâneo nosso, constitui ainda hoje uma relíquia etnográfica no momento em que vibra o machado de pedra pré-histórico para, de maneira penosa, pôr a seus pés a enorme árvore da floresta nativa necessária para suas atividades, da mesma forma como aqui no Velho Mundo fizeram nossos antepassados na Idade da Pedra. O autóctone, que, nas cabeceiras do Xingu, permaneceu alheio a qualquer contato com a cultura, passa a manhã inteira junto à árvore escolhida, iniciando com sua ferramenta grosseira um trabalho durante o qual o encontra o sol do meio-dia e, em tom de despedida, o da tardinha, sem que seu esforço represente não mais que uma minúscula fração do ainda por fazer. Os dias se passam, e semanas depois o Baikiri ainda golpeia o tronco da árvore da mesma maneira – um milagre da perseverança –, gastando luas num trabalho que para um machado de aço norte-americano seria coisa de algumas horas.

A imagem desse filho infatigável dos povos nativos, que com seu machado de pedra primitivo precisa de meses de trabalho incessante para derrubar a árvore de que precisa para construir uma piroga de guerra ou para um trocano (tambor de alarme), nunca mais me deixou e permaneceu diante dos meus olhos por anos inteiros.

Com toda essa admiração com a curiosa prova de paciência, começaram a despertar em mim certas dúvidas acerca do fato de que o trabalho com o machado de pedra definitivamente não corresponde plenamente à imagem acima citada, e que fatores eventualmente não observados nem julgados poderiam ser interessantes. Não que eu tivesse me escandalizado com o desperdício de tempo – pois que já se sabe serem pouco desenvolvidos nos índios o senso e a percepção do valor do tempo –, mas eu não pude deixar de sentir a incontestável pouca praticidade de tal método, que tanto mais surpreende quando se sabe que é inerente aos nativos certo senso prático, na maioria dos casos até bem desenvolvido, de resolver problemas simples com meios simples.

As mesmas dúvidas cresceram em mim à medida que li o que os livros atuais dizem sobre o manejo e a utilização dos machados de pedra na Europa pré-histórica. Quando, por exemplo, se relata na página 247 da "Pré-história do homem", de Hörnes (1892)13, que com extrema facilidade o Schastad dinamarquês trabalhava madeira e em pouco tempo conseguia derrubar troncos de pinheiros com instrumentos de sílex, além de lograr inclusive construir, em pouco tempo, uma casinha completa somente com ferramentas de pedra, não posso, assim, por mais que queira, formar outra opinião a não ser a de que, nesse caso, o machado de pedra terminantemente funciona mais como um martelo do que propriamente como uma ferramenta de corte. Hörnes chegou à seguinte conclusão: "De fato, visto que um dos últimos povos remanescentes da Idade da Pedra, os Baikiris do alto Xingu, derruba grossos troncos de árvores com seus machados de diorito esquinados e gastos e que todas as ferramentas de madeira utilizadas por esse tronco indígena apresentam apenas pequenos vestígios de golpes, do que se pode deduzir que recebiam acabamento exclusivamente com tais machados, poder-se-ia presumir que os machados de diorito serviam também para muitas exigências da vida diária dos antigos europeus, para as quais eles hoje não nos parecem ser apropriados" (página 247). Aproveitarei nesse momento a oportunidade de mostrar a atual condição dessa conclusão.

Depois que, em 1894, em virtude da fundação de um museu de história natural, fui chamado ao Pará e mantive contato com uma seção etnográfica, propus-me firmemente a não perder nenhuma chance de obter, por meio de dados de pessoas de confiança, conhecimento exato sobre o modo de manejar o machado de pedra por parte daqueles troncos indígenas amazônicos que ainda o usam. Eu tinha certeza de que minhas suposições se confirmariam, e de fato correspondem tão plenamente aos extensos relatórios de duas páginas ou mais que tenho recebido, que hoje considero tal problema resolvido e com alegria me arrisco a proporcionar a publicação dessa contribuição – aparentemente pequena, mas vista mais de perto, não pouco importante – à história da arte e da indústria dos povos da idade da pedra dos velhos e dos novos tempos.

O resultado é, em rápidas palavras, o seguinte: as tribos indígenas do alto Amazonas que interessam em ambos os casos iniciam o processo de derrubada de uma árvore previamente escolhida, na época da abundância de seiva, desbastando e removendo com o machado de pedra a casca e o córtice até a profundidade da entrecasca, através de esmagamento em linha circular da parte pouco acima do solo, buscando o efeito de uma ligadura que interrompa a circulação da seiva e logre secar e matar a árvore. Algum tempo depois, quando se chega ao aspecto desejado, é que começa o efetivo trabalho de derrubada.

No mesmo lugar do anel esmaga-se com o machado de pedra uma camada moderada da área periférica de madeira, daí ateia-se ao redor da árvore um fogo baixo alimentado com certa semente de palmeira, cuidadosamente mantido e controlado em duração e intensidade, posto que nesse processo, em primeiro lugar, se pretende não mais que: 1. a retirada do bagaço na operação anteriormente descrita; 2. a carbonização de uma nova camada circular moderada mais interior de madeira. Depois disso, o fogo é apagado e começa a segunda rodada de esmagamento com o machado, que mais tarde será de novo e da mesma forma substituído pela ação do fogo. E assim por diante, alternando-se esmagamento e carbonização, até a vitória completa sobre o gigante arbóreo. A operação, embora durando alguns dias, é executada de forma tão habilidosa, que o tronco e a área de corte da árvore não ficam muito diferentes dos daquelas que fossem derrubadas com um moderno machado de aço.

Preciso confessar que tal procedimento propõe um olhar essencialmente diferente daquele apresentado nos livros até agora: o machado de pedra funciona menos como instrumento de corte do que de esmagamento; 2. machado de pedra e fogo atuam em conjunto, ainda que alternados (esmagamento e carbonização), e cabe à sua força conjunta a implementação do trabalho, que, sem pensar, estávamos acostumados a atribuir tão só ao primeiro.

Essa solução satisfará, contanto que nossa fé no senso prático de um povo natural não fique frustrada nem deixe que os índios persistam em fazer o papel estúpido de alguém que desperdice irrefletidamente suas forças e golpeie por meses sem se dar conta de seus recursos. De resto, também a observação de um autêntico machado de pedra munido de cabo deveria, em si, imediatamente ensinar que ele quase nunca seria construído para ser resistente o bastante a fim de corresponder plenamente às exigências hipotéticas no sentido acima descrito: o fato de se derrubar troncos de madeira dura por meio do machado de pedra exige, naturalmente, uma outra explicação, relativa ao manejo racional dessa ferramenta, e para mim permanecerá sempre um enigma o modo como em círculos científicos, por muito tempo, não se chegou à idéia de seguir com maior exatidão o rastro do manejo do machado de pedra entre os povos ainda existentes.

Creio não me enganar ao acreditar que essa pequena contribuição à etnografia sul-americana será bem-vinda, também, para os estudiosos da pré-história, na medida em que pode estimular uma comparação e revisão mais cuidadosas referentes à cultura da Idade da Pedra do Velho e do Novo Mundo.

 

 

11Goeldi, E. A. Über den Gebrauch der Steinaxt bei jetzt lebenden Indianern Südamerikas, speziell Amazoniens. In: Internationaler  Amerikanisten-Kongress, Vierzehnte Tagung, Stuttgart 1904. V. II. Berlin: W. Kohlhammer, 1906. p. 441-444.

12Goeldi refere-se à expedição de Karl von den Steinen, em 1884.

13Hörnes, Moriz. Die Urgeschichte des Menschen nach dem heutigen Stande der Wissenschaft. Wien: A. Hartlebens Verlag, 1892. il.