SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.4 issue3At the Early Brazilian Republic, Bulhões Carvalho legalizes the statistical activity and put it into the State's order author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

  • Have no cited articlesCited by SciELO

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas

Print version ISSN 1981-8122

Bol. Mus. Para. Emilio Goeldi Cienc. Hum. vol.4 no.3 Belém Dec. 2009

 

Mensuração racial e campo estatístico nos censos brasileiros (1872-1940): uma abordagem convergente

 

Racial measurement and statistical field in Brazilian census (1872-1940): a convergent approach

 

 

Alexandre de Paiva Rio Camargo

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Centro de Documentação e Disseminação de Informações. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil (alexandre.camargo.2009@gmail.com)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo investiga os sentidos assumidos pela classificação racial nos censos brasileiros. Propõe uma análise convergente entre as convenções sociopolíticas estabelecidas para a investigação (1872, 1890, 1940) ou omissão (1920) do quesito racial dos levantamentos, em diferentes momentos históricos, e o processo de emergência da comunidade técnica de estatísticos em meio às mudanças do paradigma censitário. Como método, considera-se a circularidade existente entre o sistema social de classificação racial, as obras intelectuais de interpretação da nacionalidade vinculadas ao suporte censitário - "O povo brasileiro e sua evolução", de Oliveira Vianna (1920), e "A cultura brasileira", de Fernando de Azevedo (1940) - e o papel das exigências técnicas na tomada de posição dos estatísticos. São analisados relatórios de organizadores e comissões censitárias no plano verbal, comparando os argumentos apresentados às formas de execução das categorias e às informações e cruzamentos obtidos no plano matricial. Toma-se o censo de 1940 como ponto de inflexão na organização da atividade por acentuar o conflito estrutural entre a função prioritariamente política, até então reservada às estatísticas, e a consagração da competência técnica de seus produtores. Nesses termos, este trabalho aborda a progressiva liberação da ideologia estatística frente aos mecanismos da propaganda política sobre a cor.

Palavras-chave: Classificação racial. Demografia política. Paradigma censitário. Instituições estatísticas. Sociologia das estatísticas. História das estatísticas.


ABSTRACT

This paper investigates the meanings given by the racial classification in several Brazilian census. It proposes a convergent analysis of the social-political conventions established for the research (1872, 1890, 1940) or omission (1920) of the racial item of the surveys in different historical moments and the emergency of the technical community of statisticians in the midst of changing in paradigm census. As a method, it assumes a circularity between the social system of racial classification, the interpretations chapters on national identity hired to introduce the census - "O povo brasileiro e sua evolução" by Oliveira Vianna (1920), and "A cultura brasileira" by Fernando de Azevedo (1940) - and the role played by the technical requirements in the taken positions of the statisticians. The article analyzes the reports written by the census committees and organizers at the verbal level, in order to compare the arguments presented to the informations and crossings obtained in the matrix level. It takes the 1940 census as a turning point in the statistical activity because it reveals the structural conflict between the policy function primarily reserved for statistics and the consecration of the technical competence. Accordingly, this paper addresses the gradual release of statistical ideology from the political propaganda on the color.

Keywords: Racial classification. Political demography. Census paradigm. Statistical institutions. Sociology of statistics. History of statistics.


 

 

INTRODUÇÃO1

Já foi dito que os censos são a operação mais cara e de mais ampla escala que um Estado pode realizar, em tempos de paz. Os custos materiais e humanos que suscitam não param de crescer em todo o mundo, a cada intervalo de dez anos previsto para sua operação. O próximo censo brasileiro de 2010, a ser iniciado em 1o de agosto, contará todos os indivíduos, famílias e domicílios nos mais variados municípios do país. Novas tecnologias serão pioneiramente adotadas, como a realização de entrevistas em computadores de mão, equipados com receptores do Sistema de Posicionamento Global (GPS) e mapas digitalizados. Inovações que elevarão ainda mais o sempre oneroso orçamento da contagem censitária, que será assegurada por um exército de 230 mil agentes e um custo total de 1,4 bilhões de reais. Essa imensa mobilização social e política só pode ser entendida a partir do papel estratégico que, gradualmente, veio a ser desempenhado pela estatística na organização e no planejamento dos Estados nacionais. Para tanto, farei um pequeno preâmbulo de natureza teórica, para, então, adentrar propriamente o tema deste artigo.

Nas últimas três décadas, diversos autores têm se dedicado a pensar as fundações sociais das instituições estatísticas2. Muitos de seus trabalhos3 sublinham a potência das estatísticas como 'tecnologia de governo' (na linha de Michel Foucault e Bruno Latour), revelando coletividades previamente construídas e idealizadas por meio de complexas objetivações. Desse modo, elas trazem pessoas, objetos e situações às mesas daqueles a quem cabem tomar as decisões políticas, na forma de tabelas, gráficos e cartogramas. Estes são alguns dos instrumentos de totalização mais básicos da ciência estatística, tal como desenhada ainda no século XIX, já então indispensáveis à realização dos primeiros censos nacionais, obtidos por meio da estabilidade, portabilidade e imutabilidade dos registros de informação individual, desde o instante primordial do inquérito e da coleta dos dados até o seu processamento pelos centros de cálculo - as agências de coordenação (Latour, 2000, p. 349-420).

Além de configurar uma tecnologia de governo, base do desejo que lhe foi fixado no decorrer do século XIX4, o desenvolvimento da ciência estatística faria dela também uma importante tecnologia da subjetivação, uma nova forma de normalização. Tal fato tornou-se possível a partir, sobretudo, das técnicas de regressão e correlação, formalizadas em 1883 por Francis Galton (1822-1911), o pai da eugenia. Estas representaram uma importante virada na demanda e nos modos de uso da estatística ao possibilitar tecnicamente a classificação da variabilidade dos tipos humanos por meio de sua localização na chamada 'curva normal'. A partir de então, diferenças entre os membros de um grupo poderiam ser matematizadas, inclusive em formato visual. Habilidades intelectuais poderiam ser previamente conhecidas segundo variações distribuídas entre os subgrupos populacionais e medidas pela lei dos grandes números, a capacidade de cada indivíduo seria medida por sua posição respectiva nessa distribuição, inspirando as decisões administrativas apropriadas. A diferença reduzia-se a uma questão de ordem (Rose, 1996, p. 109-110).

Seguindo e inovando uma leitura foucaultiana bastante criativa, Nikolas Rose nos mostra como a estatística se constituiu em verdadeira "ciência moral" nas duas últimas décadas do século XIX e ao longo da primeira metade do seguinte. Com sua nova disposição para definir o normal e o patológico, logo ficaria clara a potência da estatística como discurso de verdade, bem além de sua já estabelecida função de "numerar o progresso", ensejando políticas sociais autoritárias, sobretudo em países marcados pelo legado escravista ou por intensos dilemas étnicos, como foi o caso das Américas. O mais interessante é que foi precisamente este o momento de hegemonia científica da estatística, sendo alguns de seus procedimentos alçados à condição de teste para demonstração de verdades. A psicologia e as ciências sociais se valeriam deles para construir sua própria cientificidade, de modo a convencer um público mais tradicional, composto por políticos, práticos e acadêmicos, de que seus postulados eram verídicos. A partir de então, normas e valores estatísticos foram incorporados à textura de conceitos da realidade psicológica (Rose, 1996, p. 58).

Tecnologia de governo e tecnologia de subjetivação, a estatística contribuiu e continua contribuindo distintamente para tornar conhecidas as realidades distantes e/ou ausentes, tornando-as pensáveis e, por isso, potencialmente governáveis (Senra, 2005, p. 15). Atuando nos dois pólos acima descritos, o de regulação das espécies e o de construção de subjetivações, a estatística (de Statistik, ou 'ciência do Estado') operacionaliza as ações públicas sobre os coletivos sociais. Oferece um fundamento formal às decisões burocráticas, fazendo-as parecer o resultado de técnicas analíticas padronizadas, em vez de argumentos politicamente interessados (Porter, 2000, p. 495). Ao mesmo tempo, as possibilidades cognitivas da estatística para definir o normal e o patológico estiveram na base das políticas sociais de Estados autoritários, sobretudo ao tempo em que a estatística se notabilizou como 'ciência moral'. Mesmo em Estados de tradição liberal, a estatística foi apropriada pelas elites intelectuais, ciosas de estigmatizar e excluir as minorias de uma expressiva participação política em seus países, como mostra a análise de Margo Anderson (1988) sobre o papel exercido pelo censo norte-americano na unificação da nação, após a guerra civil e a abolição da escravidão. Por tais razões, o estudo sócio-histórico dos procedimentos de objetivação da estatística e sua organização em espaços institucionais permite iluminar o papel desempenhado pelas tecnologias cognitivas mais materiais no processo de formação do Estado brasileiro e da burocracia estatística.

Nesses termos, o presente artigo pretende discutir as tensões entre as expectativas políticas e as possibilidades técnicas que envolveram as classificações raciais no Brasil, entre as duas últimas décadas do Império e o período de criação e consolidação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nos anos 1940. O recorte se justifica por duplo motivo. Por um lado, impõe-se o problema, ainda insuficientemente pesquisado, do papel das classificações raciais na patologização dos comportamentos sociais, no momento do desmonte das instituições monárquico-escravistas e dos discursos e práticas racialistas que grassaram no Estado oligárquico da Primeira República. Qual pode ter sido a contribuição da estatística para a objetivação do povo e para a formulação da identidade nacional em bases raciais? Como as expectativas sociopolíticas em torno das classificações raciais podem ter alterado ou ampliado a demanda do Estado sobre a estatística, justificando, assim, a elevação dos desembolsos públicos com suas operações? São questões mais amplas que permitem um novo olhar sobre as classificações raciais, capazes de privilegiar os modos de ver a estatística e os modos de ver o Estado e a sociedade por meio da estatística, incentivando um maior investimento historiográfico.

Por outro lado, entendo que é preciso considerar a cultura científica e o espaço de atuação dos produtores de dados oficiais como um campo de fazer próprio, isto é, dotado de uma irredutível especificidade, que ajuda a explicar o processo de objetivação estatística da realidade social. Por meio do que Pierre Bourdieu chamou de "poder de instituição", ou "poder de nomeação" (pela validação da ordem pública), a estatística se revela capaz de formar sensibilidades e ideias, de estabelecer matrizes de percepção naturalizadas e com sua própria produtividade política; princípios de conhecimento ou reconhecimento e valoração da realidade, nas quais se enraízam as formas de dominação social5. Isto quer dizer que o político, em um sentido mais amplo, aparece no trabalho estatístico de demarcação e divisão dos grupos, de seleção dos indicadores, de associação das variáveis, de apresentação dos resultados, em um plano anterior e distinto das leituras interessadas e das estratégias deliberadas de manipulação política, como meio de legitimação de determinadas decisões.

Dessa forma, a definição e a distribuição das matrizes estatísticas no espaço dos cruzamentos tabulares produzem diferentes grades de interpretação da realidade social, por vezes ocultadas pela sombra homogênea das séries estatísticas6. Devemos ter em mente que o sentido social da informação estatística passa pela identidade relacional entre categorias centrais na produção e na análise dos dados. Nesta direção, pretendemos analisar historicamente as associações privilegiadas entre as classificações raciais e outros indicadores estratégicos em momentos marcadamente distintos, como os relativos à instrução - predominante no Império -, e à nacionalidade, enfatizado na Primeira República.

Essas considerações apontam para a necessidade de levarmos em conta a relativa autonomia do trabalho estatístico e as tensões constitutivas desta atividade. Alain Desrosières (1995, p. 167-183) foi um dos primeiros autores a caracterizar o que chama de paradoxo fundamental do modelo censitário da demografia política, vigente no século XIX e nas primeiras décadas do XX: a exigência que recaía sobre os estaticistas, que pensam e formulam as estatísticas7, de elaborar a construção quantitativa da identidade nacional, baseando-se para isso na objetividade de uma ciência de valor universal. Invariavelmente, os estaticistas se defrontavam com uma contradição conceitual, pois deviam mensurar e projetar o que cada Estado comportava de singular em matéria de riqueza e de caráter nacional, com os fins propagandísticos que orientavam o financiamento das operações estatísticas e suas (ainda) precárias instituições.

Nesse ponto, as formulações de Hernán Otero (2006, p. 217-218) parecem especialmente válidas para pensar as continuidades e as mudanças estruturais no padrão de atuação dos estaticistas. Para Otero, o período marcado pela objetivação do "tipo nacional" e da propaganda da força do Estado, sublinhado por Desrosières, corresponde ao modelo da "estatística de autor". Nele, a autenticidade da produção estatística depende do nome e da grandeza pessoal das lideranças institucionais, cujo perfil e notoriedade pública atuariam como fontes de credibilidade da empreitada censitária. O discurso estatístico se encontra aí fortemente vinculado à descrição histórica para estabelecer uma genealogia da nação. A "estatística de autor" corresponderia a um reflexo sintomático da padronização incompleta da produção estatística do período, em sua função de sublinhar especificidades qualitativas por meio de universalidades quantitativas.

Ainda de acordo com Otero, a emergência da "estatística anônima" coincidiu com o complexo salto qualitativo dos espaços oficiais de produção dos dados, que vige ainda hoje, caracterizado pela adoção dos métodos amostrais, pela contabilidade nacional inspirada na macroeconomia moderna, pela criação de organismos internacionais de coordenação da produção estatística e pela mecanização e posterior informatização da produção. Veremos como este modelo, no qual os produtores conformam uma comunidade técnica que lhes respalda a autoridade, corresponde a um processo que pode ser visto no Brasil a partir da criação do IBGE e da realização do censo de 1940.

O que segue é uma discussão sobre os sentidos e as descontinuidades entre as classificações raciais investigadas (1872, 1890 e 1940) ou omitidas (1920) nos censos, tendo como eixo de análise as tomadas de posição e a mudança no perfil e na atuação dos estaticistas. Serão explorados documentos administrativos das agências produtoras de dados oficiais, obras de introdução aos censos nacionais e artigos publicados na imprensa periódica dedicados ao problema da racialização estatística. Minha hipótese central é a de que o movimento de profissionalização da atividade, que tem na criação e consolidação do IBGE (a partir de 1936) um importante ponto de inflexão, promove a progressiva liberação da ideologia estatística frente aos mecanismos políticos da propaganda política sobre a raça/cor.

Antes de encerrar a introdução, uma ressalva se faz necessária. Ao contrário do que fazem crer diversas referências partilhadas encontradas em inúmeras obras sobre a questão racial (sobretudo, as de antropologia e sociologia), não se empregou o termo 'cor' como categoria de classificação nos censos anteriores a 1940, mesmo que ele tenha sido várias vezes utilizado em análises e comentários, inclusive dos organizadores censitários. A classificação 'raça' foi utilizada na coleta, apuração, tabulação e divulgação dos resultados dos volumes originais dos censos de 1872 e 1890, ausentando-se em 1920. Ao desconhecer as fontes primárias mais remotas e se valer abusivamente de fontes posteriores, numerosos estudiosos ignoram que estas últimas realizam um trabalho de enquadramento da memória, revelando uma atividade profissional harmoniosa e livre de contradições, inclusive classificatórias, o que tende a ocorrer especialmente em uma área como a estatística, ciosa da unificação de séries temáticas (como 'raça'/'cor', 'emprego', 'rendimento', 'família', 'religião', entre tantas). Esta é mais uma contribuição que a pesquisa histórica pode oferecer ao estudo das instituições estatísticas, ao abrir a 'caixa preta' de suas construções científicas.

 

SOBRE ESCRAVIDÃO E LIBERDADE: O LUGAR DA CLASSIFICAÇÃO RACIAL NO CENSO DE 1872

Em 1870, encerrava-se a Guerra do Paraguai, o maior conflito armado já ocorrido entre os países da América do Sul. Seu término expôs as fragilidades do Brasil quanto ao controle sobre a organização do território nacional e suas fronteiras. Diante das pesadas baixas, a carência de estatísticas, já reclamada por numerosos setores do governo, ganhava contornos dramáticos. Faltavam informações sobre a capacidade de recrutamento e abastecimento de suprimentos, além de referências cartográficas, o que se tornou especialmente sensível durante o esforço de guerra.

A conjuntura reforçava a necessidade de criação de uma instituição que centralizasse o conhecimento da população, capaz de harmonizar os serviços estatísticos e recuperar a iniciativa de 1852, quando esteve prevista a realização do primeiro levantamento nacional, abortado por revoltas populares8 (Senra, 2006a, p. 141-171). Na data de 14 de janeiro de 1871, em cumprimento à lei 1.829, foi instalada a Diretoria Geral de Estatística (DGE), destinada a coordenar os serviços estatísticos do Império. Suas funções eram muito amplas: dirigir os trabalhos do censo, organizar os quadros anuais dos nascimentos, casamentos e óbitos e formular os planos de cada ramo da estatística do Império.

A par de tais funções, a maior razão de ser da DGE seria a realização do primeiro censo nacional, em 1872. Tinha início aí um longo processo de consolidação da estatística como instrumento administrativo do Estado brasileiro, com a instauração de práticas e representações típicas da modernidade censitária: respaldo legal, dotação orçamentária própria, simultaneidade das pesquisas em nível nacional, data de referência pré-estabelecida, demarcação territorial pré-fixada, universalidade da enumeração dentro do território e enumeração individual de todas as pessoas (Oliveira, 2003, p. 9). Como outros censos modernos, o levantamento de 1872 favorecia a percepção burocrática da população como objeto de gestão, com suas regularidades específicas, que devem ser conhecidas pelos estadistas, de modo a conformar o que Foucault chamou de "biopolítica das populações". Este é o sentido dos espaços de equivalência estabelecidos pela estatística na objetivação do povo e do território de um país, como se depreende da exigência de uniformidade e universalidade das perguntas dirigidas a todos os habitantes (primeiro nos boletins de família, depois nos individuais), em evidente aproximação do sentido liberal da cidadania. Definindo as pessoas pelo que têm de igual em matéria de comportamento e de papel, como se deve pensar a inserção do censo de 1872 em uma sociedade assentada em diferenças corporativas e naturalizadas entre livres e escravos?

A meu ver, o censo parece emblemático das contradições que pautavam a sociedade monárquico-escravista, que atravessava intensa modernização política e econômica, transitando para o mundo do trabalho livre. Segundo relatos posteriores, o censo deveria "servir de base à execução da lei de libertação de nascituros"9. Esta lei correspondia a um antigo desejo de D. Pedro II, e seu projeto circulava no parlamento desde os últimos anos de 1860, provocando profunda divisão na elite imperial. A lei consistia na libertação de todos os filhos de escravos nascidos a partir da data de sua publicação, prevendo, assim, uma abolição lenta, segura, gradual e talvez indenizada - muito diferente do que, de fato, ocorreria em 1888. O censo permitiria avaliar os efeitos da nova lei, que seria finalmente promulgada em 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre.

Por tal razão, a análise do censo é especialmente reveladora da crise da escravidão e da hierarquia social naturalizada que lhe correspondia. As ambiguidades que resultavam dessa transição se fizeram presentes na separação entre duas das principais categorias consideradas pelo levantamento: 'raça' e 'condição'. Comecemos pelo sistema de classificação racial, que dividia a população entre 'pretos', 'pardos', 'brancos' e 'caboclos' (em alusão aos índios). Os dois primeiros grupos eram os únicos aplicáveis aos escravos, embora pudessem também enquadrar pessoas nascidas livres, além dos libertos.

Pela primeira vez, o conjunto da população era apreendido oficialmente em termos raciais, base para o estabelecimento de novas diferenças entre os grupos sociais. Diferenças ainda longe das concepções hierarquizantes e poligenistas que se acercariam da noção de raça, anos mais tarde. Tratava-se, então, de conhecer uma população de ex-escravizados que começava a exceder cada vez mais o número de cativos, diante do quadro de deslegitimação da instituição escravista, seja por meio das consequências da abolição do tráfico (1850) e, posteriormente, das crescentes leis que prometiam a abolição gradual da escravidão - ventre livre (1871), sexagenários (1885) e proibição dos açoites (1886) -, seja por meio da proliferação de grupos abolicionistas nas camadas médias da sociedade civil. Nesta direção aponta Hebe Maria Mattos (1998, p. 98-99), ao afirmar que:

(...) a noção de "cor", herdada do período colonial, não designava, preferencialmente, matrizes de pigmentação ou níveis diferentes de mestiçagem, mas buscava definir lugares sociais, nos quais etnia e condição estavam indissociavelmente ligadas. Desta perspectiva, a cor inexistente [a ausência da dimensão "cor" na apreciação da população branca], antes de significar apenas branqueamento, era um signo de cidadania na sociedade imperial, para a qual apenas a liberdade era precondição.

Com a multiplicação dos libertos no quadro da crescente deslegitimação da escravidão, cor e condição não estariam mais identificadas. O processo de indiferenciação entre brancos pobres, negros e mestiços livres levaria, no limite, à desconstrução social da antiga noção de liberdade construída com base na cor branca, somente permanecendo estável a classificação dos escravos e dos forros recentes como 'pretos'. Nesse contexto, o recenseamento de 1872 fornecia o conhecimento das cores da população. Ao introduzir o quesito 'raça' separado do de 'condição', o censo buscava realçar as marcas do cativeiro na apreciação da população (e não a inferioridade racial, fortemente presente no censo de 1890), evidenciando a formação de uma nova hierarquia social, indispensável à transição para o regime de trabalho livre.

Dessa forma, a categoria 'raça' não se constituiu uma prioridade na organização e análise dos resultados censitários. Em seu lugar, tal papel foi reservado à 'condição', que dividia os brasileiros em 'escravos', 'livres' e 'libertos'. Chama atenção o espaço proeminente ocupado pela tabela relativa à população livre, imediatamente seguida pela tabela referente às características e totalizações da população escrava. Este fato sinaliza uma diferenciação essencial, então percebida como premissa da própria contagem, de modo a segregar visualmente as descrições estatísticas daqueles grupos em tabelas separadas, dispostas em páginas separadas. Sugere-se, assim, que as agregações a respeito da 'raça' subordinavam-se às informações sobre a 'condição', o que transparece em todas as tabelas censitárias pertinentes. Esta é a interpretação de Mara Loveman (2009, p. 442), que reconhece a

(...) prioridade cognitiva e pragmática das distinções baseadas na 'condição' sobre as assentadas na 'raça', tanto na produção quanto na interpretação do censo de 1872. Os relatórios da Diretoria Geral de Estatística utilizavam os termos 'cor' e 'raça' de forma intercambiável neste período; enquanto o questionário do censo referenciava-se à cor, os resultados foram apresentados em colunas qualificadas como 'raça' (...). Significativamente, a DGE não plasmou a raça/cor dos brasileiros como indicador sobre o status da nação ou sobre diagnósticos futuros. Isto não implicava obviamente que tais informações fossem irrelevantes, mas sugere que outras características da população tinham maior consequência (tradução minha).

A consagração da 'condição' como chave de leitura das demais informações do censo pode ser apreendida pela inclusão de duas outras categorias que também extrapolavam as recomendações dos Congressos Internacionais de Estatística: 'nacionalidade' e 'frequência escolar'. A importância da primeira consistia em revelar o contingente e a proveniência da imigração europeia, que deveria recompor a força de trabalho brasileira, assolada pela proximidade do fim da escravidão. A análise das categorias, dos discursos e relatórios censitários mostra o caráter pragmático da tentativa de conhecer os imigrantes, aos quais (ainda) não é atribuído nenhum papel civilizador, que se contrapusesse ao elemento nacional, corroído pela escravidão. Ao contrário, as informações sobre 'nacionalidade' alvejadas pelo censo tinham o fim de balizar as políticas de subvenção da imigração. Associada à 'condição', poderia prover o conhecimento exigido pela reconfiguração gradual e institucional das relações sociais de produção.

Ainda mais sintomática foi a contagem da 'frequência escolar', tal como aparece em diversos relatórios da DGE ao ministro dos Negócios do Império, ao qual estava vinculada. Em 1873, por exemplo, José Maria do Couto, diretor interino da DGE, assinalava que todo o governo que seja esclarecido a ponto de libertar os filhos recém-nascidos de escravos é confiável para realizar a tarefa de educar a "massa ignorante da população livre", a fim de incorporá-la à nação e conduzir o Brasil à era do progresso (Brasil, 1873, p. 37). Integrar a população de ex-escravizados era uma tarefa urgente, quase um ato contínuo das revelações do censo.

Semelhante posicionamento pode ser visto nas declarações do senador Manoel Francisco Correia, diretor titular da DGE. Este renomado político do Império iniciou a criação de uma 'Matrícula Nacional de Escravos'. Através do registro, a agência central poderia usar estimativas sobre mortalidade e manumissão de escravos, "com o fim de calcular o número de anos necessários para atingir a completa extinção da escravidão no Império" (Brasil, 1875, p. 1-2).

Passagens como estas revelam que a educação, mais precisamente a instrução primária, era, então, a prescrição central da DGE e dos discursos associados à estatística ao tempo do Império. A estratégia de sensibilização do governo passava constantemente pela ênfase nos perigos que resultariam da inação, como crimes e revoltas populares. A tônica recai, assim, na manutenção da integridade da ordem pública e imperial, não havendo qualquer alusão explícita à formação da nacionalidade e do tipo nacional. Paradoxalmente, havia consciência entre os encarregados da DGE de que o censo deveria cumprir um papel político-pragmático, como revela a reiterada relação que estabelecem entre as medidas a favor da abolição gradual e a promoção do ensino das massas - os filhos da escravidão. Suas informações deveriam fornecer as bases seguras por meio das quais se faria a transição estável entre o regime escravista e o assalariado, de modo a preservar as demais instituições vigentes na ordem imperial.

 

RACIALIZAÇÃO ESTATÍSTICA E CONSTRUÇÃO DA REPÚBLICA

A República traria consigo a necessidade de garantir outras práticas de exclusão, dado que a cidadania perdera suas últimas raízes de privilégios corporativos para tornar-se uma prerrogativa universal dos brasileiros natos. É verdade que a exigência constitucional do voto alfabetizado restringia severamente a participação política dos brancos pobres e dos descendentes de africanos, mas não fornecia as bases ideológicas que pavimentariam uma nova hierarquia do mundo social.

Nesta conta, uma nova produção intelectual, difundida pela chamada geração de 1870, buscaria constituir a identidade da alta sociedade nacional, que se situava entre a degeneração do tipo híbrido mestiço, prevista pelas matrizes teóricas europeias, e o exotismo que o olhar europeu confinava aos trópicos (Ventura, 2000, p. 29-43). Situar o Brasil na comunidade internacional, no congresso das nações, significava o desafio de construir uma imagem fortemente cívica e racional do país, ao lado de um desenvolvimento urbano e industrial constante, que augurariam segura vocação para potência mundial. Durante a militância republicana dos anos 1870 e 1880 e após a proclamação, jovens letrados como Tobias Barreto, Silvio Romero, Capistrano de Abreu, Araripe Junior, Nina Rodrigues, entre outros, se empenharam em elaborar um discurso para a Europa e os Estados Unidos, capaz de articular a possibilidade de uma civilização nos trópicos com o progresso técnico, com as novas instituições como o liberalismo econômico e a democracia, mesmo que formal, e com a disseminação da pesquisa e da ciência experimental, na forma dos institutos histórico-geográficos, das academias de ciência e dos museus etnológicos, a maioria dos quais criados ou pavimentados no Império (Alonso, 2002).

Não obstante, havia um poderoso obstáculo à imagem civilizacional e à dimensão privilegiada em que tais intelectuais ansiavam por se definir: a mestiçagem. Não se deve esquecer das influentes teses do Conde de Gobineau (1816-1882) e de Gustave Le Bom (1841-1931), defensores das raças puras, para quem os mestiços exemplificavam a diferença fundamental entre as raças e personificavam a provável degeneração oriunda do cruzamento entre 'espécies diversas'. Lastimavam a extrema fertilidade dessa população, que, segundo eles, herdava sempre as características mais negativas das raças em cruzamento (Schwarcz, 2002, p. 56-57). Definitivamente, a hibridação seria um fenômeno a ser evitado. Para esses autores, o 'pecado original' da mestiçagem condenaria o Brasil à barbárie, com o desaparecimento dos tipos puros e a consequente descaracterização da nacionalidade.

A tese do branqueamento, uma originalidade brasileira, revelou-se a acomodação ideal do legado escravista, permitindo tanto desfazer os estigmas etnocêntricos quanto fundamentar práticas autoritárias que restringissem a participação popular. A tese baseava-se na presunção da superioridade branca, deixando em aberto a questão de ser a inferioridade inata. Seguiam-se duas premissas. Primeiro, a população negra diminuía progressivamente em relação à branca, em função de uma taxa de natalidade presumida mais baixa, da maior suscetibilidade à incidência de doenças e da tendência para a desorganização social. Segundo, a miscigenação produzia 'naturalmente' uma população mais clara, em parte porque o gene branco era mais forte, e em parte porque as pessoas procuravam parceiros mais claros, dado que a escolha de parceiros sexuais mais aptos é um elemento dominante na escala evolutiva. A imigração branca reforçaria a resultante predominância branca (Skidmore, 1989, p. 81). Estavam, dessa maneira, invertidos os termos. A existência da miscigenação não conduzia a um fatalismo degenerativo. Muito ao contrário, porém, o contornaria, redimindo a nação de sua depreciada pluralidade racial, ao produzir uma população mestiça sadia, capaz de tornar-se sempre mais branca, tanto cultural quanto fisicamente.

O argumento do branqueamento é um exemplo poderoso da ideologia cientificista que pautou as décadas iniciais da República. O que lhe dava força como discurso de verdade é que sua evolução podia ser facilmente constatada, comparando-se as características raciais reveladas pelos números dos censos. Ora, tendo em vista a presença deste argumento na elaboração das políticas oficiais de imigração (Seyferth, 1996, p. 41-58), não é arriscado dizer que a 'racialização estatística' era a expressão do branqueamento na mediação simbólica da nação, o que redefinia os parâmetros da demanda por estatísticas.

A decretação de um novo censo, logo após a proclamação da República, aponta nesta direção. Apenas alguns dias após o 15 de novembro de 1889, o governo provisório ordenou a realização urgente de um novo levantamento, que foi a campo em dezembro do ano seguinte. O responsável pela iniciativa foi um positivista de estirpe, o ministro dos Negócios do Interior, Aristides Lobo. Para estar à frente do censo, Lobo nomeou Timóteo da Costa, também adepto do positivismo, professor que era da famosa Escola Militar da Praia Vermelha, bastião intelectual dos militantes daquela doutrina. A consagração da regularidade censitária em intervalos de dez anos na Constituição de 1891 reforçaria a tendência anunciada, promovendo a associação ideológica entre a imagem da nação e o governar por números, o que jamais teria efetividade no período em apreço.

A intenção, entretanto, estava posta, e seu peso para a institucionalização da estatística não pode ser diminuído. A imagem do governar por números apareceria em vários momentos da Primeira República, como, por exemplo, na realização do censo do Distrito Federal, de 1906, encomendado para inspirar as resoluções do plano urbanístico e do ordenamento espacial, empreendidas pelas reformas do célebre prefeito Pereira Passos (Senra, 2006b).

Sem fugir à nova regra, o censo de 1890 trazia o signo positivista do movimento militar que edificou os primeiros anos da República. Suas classificações partiam de uma forte concepção hierárquica do mundo social. Dividia a população segundo a 'raça', em 'brancos', 'pretos', 'caboclos' e 'mestiços'. Note-se que a mestiçagem foi promovida aqui à condição de categoria, assumindo claramente o sentido atribuído pelo branqueamento, qual seja o de diluição do sangue negro no cruzamento com os contingentes migratórios, que levaria ao gradual desaparecimento desta população. Nestes termos, o censo atendia perfeitamente às expectativas do novo regime e das velhas elites, subtraindo do jogo político formal os grupos de ex-escravos e sua descendência, ao subsidiar a restrição de sua participação política na apresentação de um determinado retrato da nação e de sua população. Ao mesmo tempo, construía uma imagem fortemente progressista para o país, baseado no crescimento urbano e comercial e na valorização da contribuição quase redentora da imigração europeia para o patrimônio nacional.

Entre as muitas passagens que incorrem nesta direção, destaco o enunciado de Leão Barboza (1895, p. XXIV-XXV) na apresentação do volume relativo ao Distrito Federal do censo de 1890:

Primeiramente, a imigração corrige a inconveniência de densidades muito fortes. Em nossos dias, observa F. Leplay, as regiões ocidentais do continente, o caso oficial das raças fecundas é o excesso da aglomeração de homens e a isso se provê pela organização metódica da emigração. O trabalho de um homem na América produz o quádruplo do que produz na Europa.

O comentário aponta para a estreita filiação da estatística da Primeira República ao postulado maltusiano, um dos suportes técnicos da demografia política, como mostra análise magistral de Hernán Otero (2006, p. 299- 331). O modelo de 'equilíbrio demográfico', segundo o qual as 'fortes densidades' se reajustam espontaneamente em virtude dos recursos disponíveis, beneficiando tanto as regiões de atração como as de expulsão, está fortemente presente na retórica estatística do período.

O que há de mais significativo na avaliação da classificação racial praticada pelo censo de 1890 é a transformação da miscigenação em chave programática do discurso censitário, excedendo o nível dos comentários para se consagrar nas próprias matrizes estatísticas por meio da categoria 'mestiços'. A homogeneização étnica como fator de primeira ordem do processo social brasileiro havia atingido até mesmo os instrumentos estatísticos. A miscigenação acelerada acentuava a contribuição expressiva do grupo branco e o equivalente declínio de 'pretos' e 'caboclos'.

Chama atenção, no conjunto dos comentários, a extraordinária rapidez que os produtores de dados do período atribuem à miscigenação e à ação regeneradora do 'sangue' branco. Tudo ocorreria como se a miscigenação tivesse efeitos rápidos e contundentes, como apresenta a mortalidade, quando, na verdade, requer períodos mais prolongados e processos demográficos mais complexos. No plano matricial, a aceleração da miscigenação e a redução dos 'pretos' foram garantidas através de um procedimento operacional. Afinal, foram adotadas duas definições diferentes sobre a composição dos grupos em questão. Os 'brancos' foram entendidos como a resultante da mestiçagem, enquanto os 'pretos' foram codificados com base em uma concepção pura, isto é, abrangendo apenas os habitantes africanos ou os nascidos no país de uniões endogâmicas. Sintomaticamente, eliminavam-se do grupo 'mestiços' as associações entre aqueles considerados 'pretos' e 'caboclos' e entre 'pretos' e os próprios 'mestiços'. Por meio desse mecanismo fundamental, a população de 'pretos' era claramente subestimada, diluindo-se nos agregados oferecidos pelo levantamento de 1890.

O legado social da escravidão também seria diluído por força de outro expediente. A categoria 'condição', central na organização do censo de 1872, não apenas foi eliminada sem motivar comentários ou explicações, como se ausentou das tabelas de comparação entre os censos de 1872 e 1890. A 'condição' sequer foi citada como investigação praticada pelo levantamento do Império. Como procedimento material de objetivação, os relatórios de divulgação do censo apagavam o aviltante vestígio da escravidão das bases da memória oficial.

Ainda mais significativa era a supressão da categoria 'frequência escolar'10, quando entendida em conjunto com a inclusão de três outros quesitos, todos igualmente alheios às recomendações dos Congressos Internacionais de Estatística: 'ano de chegada no país', 'adoção da nacionalidade brasileira' e 'nacionalidade materna e paterna'. Para Timóteo da Costa11, organizador do censo e diretor da DGE, esses acréscimos constituíam " fatos necessários à investigação estatística, em um país cuja situação demográfica era, e por muitos anos, continuará a ser, perturbada por dois fatores - escravidão e imigração". O 'ano de chegada no país', por sua vez, era informação "de grande interesse para saber sobre a fixação do imigrante entre nós, sua aclimatização em determinadas regiões e longevidade em nosso clima". O inquérito sobre 'adoção da nacionalidade' ajudaria a corrigir "as distorções entre nacionalidade e naturalidade", que poderiam comprometer a apreensão da situação real. Já a questão da nacionalidade dos pais era um meio privilegiado para descobrir a "proporção em que os imigrantes têm contribuído para o crescimento da população" (p. 7).

Como é possível ler nos comentário de Timóteo da Costa, o censo de 1890 introduziu o fatalismo estatístico como categoria de percepção homóloga à genealogia da nação. Afinal, o 'inelutável' desaparecimento de 'pretos' e 'mestiços' na larga duração conduziria à consagração definitiva do tipo nacional. Inspirava a apresentação de um retrato homogêneo do país, livre das disputas sociais que se creditavam às diferenças raciais, rico em possibilidades de atração e fixação dos imigrantes. Esta função de 'espelho da nação', em sentido estrito, definia a própria natureza do paradigma censitário, atendendo com eficiência às necessidades do discurso liberal e da propaganda do país no exterior, enquanto deixava praticamente intocado o problema das políticas efetivas de integração social. Esta disposição era especialmente visível no abandono da 'frequência escolar' e na introdução de questões sobre proveniência e fixação dos imigrantes, fundamentais para subsidiar a tese do branqueamento. Como observou Hernán Otero (2006, p. 296), duas obsessões temáticas mutuamente relacionadas se faziam presentes em tal paradigma: por um lado, o estudo dos vínculos básicos que tornavam possível a sociedade, e, por outro, a identificação de seus pontos críticos, geradores do conflito social, que requerem a intervenção política do Estado.

José Maria do Couto, Medeiros e Albuquerque e Manoel Francisco Correia, respectivamente diretores interinos e diretor titular da DGE ao tempo do Império, Timóteo da Costa, Mendes da Rocha e João Sabino Damasceno, ocupantes do mesmo cargo nos primeiros anos da República, eram todos autênticos representantes dos homens de visão prática, que tinham na organização dos censos um ponto de inflexão para suas carreiras políticas. Daí terem se ocupado dos levantamentos e do comando da Diretoria Geral de Estatística sempre em caráter contingente, o que pressupunha um movimento de capitalização e retorno à esfera política, como deputados, senadores e até ministros.

Ao lado das semelhanças que aproximavam os produtores de estatísticas no Império e na República, havia pelo menos uma diferença decisiva em favor dos últimos: manifestaram aguda consciência quanto ao papel estratégico dos censos na mediação simbólica da nação, apostando na centralidade do argumento racial (via miscigenação). Tal percepção era visível nas relações que produtores como Timóteo da Costa e Mendes da Rocha, ou comentaristas como Leão Barboza e Pires de Almeida, estabeleceram nos temas da imigração, ocupação e instrução, que não serão aprofundados aqui. Cabe, contudo, um exemplo bastante ilustrativo. Em artigo publicado no "Jornal do Commercio", Pires de Almeida (1901) vai ainda mais longe, sem hesitar em associar constituição física e personalidade moral:

(...) não se admire, de que eu tivesse transplantado para aqui estudos sobre raças. De tal havia necessidade imprescindível, pois só deste modo se compreende também como o algarismo dos defeitos físicos, que avulta em todos os centros populosos, se apresente por demais escasso nesta cidade, com o progressivo decrescimento de uma ou quiçá mais raças. (...) não haja, pois, entre aqueles que opinam pela extinção de uma raça a partir do quarto cruzamento entre mestiços, receio de que tal calamidade possa suceder entre nós, pois que o sangue de uma raça primitiva ou pura vem tonificar e concorrer para que se perpetuem os naturais desse canto da América.

Servindo-se da estatística como sustentação de discursos de verdade e justificação de práticas autoritárias, estas leituras contribuíam para capitanear prestígio e visibilidade para a atividade estatística, ao satisfazer expectativas de círculos intelectuais e políticos. O retrato da nação que o censo de 1890 e os relatórios da DGE ofereciam correspondia aos desejos dos governos e aos apelos da propaganda imigrantista, ampliando, assim, o uso das estatísticas nos discursos dominantes e/ou oficiais.

Um decisivo ponto de inflexão viria com a emergência de um novo perfil de produtores e analistas das estatísticas. Mais do que o advento de uma nova geração, a emergência dos chamados 'demógrafos-sanitaristas' representou o início da profissionalização da atividade estatística e uma nova atitude em relação ao sistema de classificação racial. Os demógrafos-sanitaristas eram médicos formados, quase invariavelmente com teses de doutoramento em epidemiologia ou saúde pública. Homens de ciência, dedicavam-se à resolução do grave problema da insalubridade que grassava em cidades de expansão acelerada, como o Rio de Janeiro (Santos, 2006, p. 225-275). Sem deixar de ser políticos e de exercer importantes cargos públicos, eram técnicos de formação e aportaram uma importante dimensão teórica à produção e à análise das estatísticas a partir da segunda década republicana. Do início de sua atuação como funcionários da área de saúde pública e higiene até a chegada de José Luiz Sayão de Bulhões Carvalho (1866­1940) ao comando da Diretoria Geral de Estatística, em 1907, criaram conhecimentos e grandes polêmicas em torno dos números oficiais. Carvalho dirigiu por mais de vinte anos o "Brazil-Médico", principal periódico da área de saúde, publicando trabalhos voltados à sensibilização dos intelectuais e da classe médica sobre a utilização das estatísticas públicas para a prevenção das epidemias e para as reformas urbanas, entre outros temas de higiene pública12. O censo de 1920, magistralmente organizado por ele, trouxe importantes inovações temáticas, conceituais e operacionais (Senra, 2006b, 533-568).

 

SILÊNCIOS ELOQUENTES: O RACISMO DISSIMULADO DO CENSO DE 1920

O caso do censo de 1920 merece registro especial por ter sido o primeiro censo a investir intensamente na conquista das camadas médias e populares, não mais exclusivamente na construção da imagem do país no exterior. A meu ver, esta virada aponta para um significativo incremento na utilização das estatísticas na grande imprensa (como o "Jornal do Commercio"), nos veículos de comunicação, nos discursos políticos, nos periódicos científicos (como o "Brazil-Médico") e nas obras de interpretação da realidade nacional (como "O povo brasileiro e sua evolução" e outras teses de Oliveira Vianna), o que carece de pesquisas mais profundas e sistemáticas.

De todo modo, esta inflexão marcava a difusão de um código social que reservava ao censo expressão de destaque na mediação simbólica da nação. A convergência entre o longo e inédito planejamento da operação censitária e a proximidade dos festejos alusivos ao centenário da Independência apontam nessa direção. A celebração teria lugar na aguardada Exposição Universal de 1922, sediada na capital brasileira. Os preparativos para sua execução conquistaram uma mobilização ampla e eficaz. Sociedade, imprensa, escolas superiores, intelectuais, políticos e até religiosos vieram a público esclarecer a importância da pesquisa, e a população abriu suas portas aos recenseadores. Nesse contexto, o censo parece estratégico para pensar a questão da formulação racial da identidade nacional durante a conturbada década de 1920.

Estranhamente, o quesito racial não estava presente nas categorias de classificação. Seu organizador, ao justificar a sentida ausência, limitou-se a afirmar:

(...) a supressão do quesito relativo à cor explica-se pelo fato das respostas ocultarem em grande parte a verdade, especialmente quanto aos mestiços, muito numerosos em quase todos os estados do Brasil e, de ordinário, os mais refratários às declarações inerentes à cor originária da raça a que pertencem (Brasil, 1922, p. 488-489).

É curioso que a justificativa seja complementada por uma nota acerca do "valor científico da pesquisa censitária referente às raças". Carvalho recorreu à citação de Mayo Smith, para quem as classificações de raça e nacionalidade não passavam de conjeturas, pois "não existem característicos nitidamente definidos em que se possa assentar a observação comum da estatística", por causa do "fenômeno do atavismo ou reversão a um tipo ancestral puro", que pode fazer com que uma "mulata" dê a luz a um filho inteiramente negro, donde a inadequação da tonalidade da cor como critério discriminativo. Assim, seria "impossível fazer essa estatística". Além disso, para a impossibilidade contribuiria o fato de os mestiços negarem ou silenciarem sobre a experiência de cativeiro anterior, ao disfarçar a ascendência, dado que "o cruzamento ocorreu durante a escravidão ou estado de degradação social da progenitora do mestiço" (Brasil, 1922, p. 489).

O que se vê é uma linha de argumentação que confirma a predominância dos pressupostos do branqueamento biológico no pensamento social brasileiro e nos comentaristas censitários. A meu ver, a explicação para o silêncio do censo no que concerne à classificação racial pode, de fato, estar relacionada à afirmação de Bulhões Carvalho. Os mestiços dissimulavam sua condição, forma de negar o vínculo com o passado escravista que o reconhecimento da ascendência negra acarretava, o que era especialmente perigoso em meio ao predomínio de práticas autoritárias como a dos castigos corporais, que ainda grassavam na Primeira República. Por outro lado, a ambiguidade reside na citação evocada, que defende a impossibilidade de definição dos 'característicos'. Ora, o atavismo em questão poderia conduzir o mestiço ao tipo ancestral puro tão desejado: o branco, no caso brasileiro, o negro, no norte-americano. Tenha-se em mente que os contextos de significação nos dois casos são totalmente incompatíveis: branqueamento em um lado, aparte birracial no outro lado.

Neste ponto, convém lembrar a tese de Oracy Nogueira (1998) sobre o 'preconceito de marca', tecida a partir de seus estudos sobre a configuração do espaço social do município de Itapetininga entre os séculos XVIII e XX. Na perspectiva da larga duração, Nogueira mostrou como mestiços resultantes de uniões de homens brancos de projeção local com mulheres consideradas 'de cor', quando instruídos e dotados de traços negros pouco acentuados, beneficiaram-se desse conjunto de circunstâncias para atingir postos em atividades menos desvalorizadas, podendo até conquistar destaque político. De qualquer modo, no entanto, o apelo a atitudes e práticas de dissimulação correntes na localidade indicava o mal-estar provocado por tais fatos em razão do preconceito aí vigente. Servem de exemplos: o uso de termos imprecisos, como 'pardo' e 'mestiço', para designações mais embaraçosas; e a resistência em reconhecer como de negros, a despeito dos traços denunciadores, identificados pelo pesquisador, fotografias de pessoas socialmente aceitas como integrantes do segmento branco. Da mesma maneira, a pesquisa mostrou como o casamento com brancas representou condição indispensável à ascensão de negros e mestiços, diferentemente do que foi observado para os grupos de imigrantes fixados na região.

Assim, a característica fundamental do 'preconceito de marca' que pauta as relações raciais na sociedade brasileira é a extrema sutileza com que se expressa sob a forma de incentivo ao branqueamento, com o escalonamento dos indivíduos em função de sua aparência racial. Enquanto o 'preconceito de origem' norte-americano exclui, o brasileiro pretere. Dada a peculiaridade de nosso preconceito racial, é possível a ocorrência de casos individuais de sucesso e ascensão social de negros mais claros e até de alguns negros, o que contrasta com o fosso intransponível que o preconceito de origem estabelece entre negros e brancos nos Estados Unidos (Nogueira, 1998).

Esta breve digressão ajuda a compreender a evocação de Mayo Smith na introdução do censo de 1920. Ao fazê-lo, Bulhões Carvalho inverteu os termos propostos para o cenário norte-americano, adaptando a produção ideológica da exclusão para o caso brasileiro. Para ele, o mestiço tenderia a dissimular sua condição porque, estando à frente de negros e índios no estágio evolutivo, estaria próximo de se embranquecer, do atavismo do tipo racial puro originário, que, segundo a intelectualidade brasileira daquele período particularmente racialista, já estaria presente em seu sangue. Assim, na escolha dos parceiros sexuais, predominaria a opção do mulato pelo elemento branco, mais apto. Resulta da mesma lógica a negação da ascendência negra somente porque ela implicaria rejeição da experiência do cativeiro. Embora parta do mesmo princípio 'do atavismo do tipo racial puro originário', o comentarista norte-americano via o resultado oposto. Ao invés de facultar a transição, a meta era legitimar o aparte social consagrado na legislação que proibia os casamentos interraciais. É o que sugere a ênfase na possibilidade de que o atavismo se manifestasse na passagem da mestiçagem ao estado anterior de raça negra, segundo o exemplo de que a mulata pode gerar um filho "inteiramente negro". Ora, um e outro caso se afastam dos pressupostos originais que previam a degeneração inelutável do elemento mestiço.

A economia de palavras de Carvalho de fato impressiona. Ele apenas aponta como causa direta da supressão do quesito racial a tendência da população mestiça para dissimular sua condição, o que é, sem dúvida, uma afirmação ideologicamente partidária do branqueamento, mas insuficiente. Não me parece que a atitude decorra de um constrangimento em aplicar o argumento racial à análise social. Afinal, em nenhum momento, Carvalho estira a bandeira antidiscriminatória como justificativa para suprimir as categorias raciais, preferindo, para isso, as explicações técnicas, como a dificuldade de levantamento e de representatividade das declarações. Neste ponto, partilha inteiramente da fé nos dogmas do liberalismo. De toda forma, as implicações da citação de Smith 'isentam' Bulhões Carvalho de se pronunciar mais abertamente sobre o assunto.

Em ao menos um sentido, Mayo Smith e Bulhões Carvalho se aproximam. Apesar de se refugiarem nas teses bastante fechadas do determinismo, ambos defenderam a supressão das categorias raciais. Tratando-se de um estaticista de gabarito e de farto conhecimento demográfico, não me parece arriscado afirmar que Carvalho percebesse (ou intuísse) que, no Brasil, o processo de miscigenação pressupunha a existência de uma margem de mobilidade social ascendente, herdada da sociedade colonial, que permitia a negros e mulatos se branquearem com relativa facilidade. As clivagens sociais já admitiam como branco aquele que adotasse os comportamentos de elite, incorporando-se a ela. Este fato mostra que as linhas de demarcação racial no Brasil eram extremamente difusas. Por isso mesmo, a miscigenação era a principal causa da imprecisão do sistema social de classificação racial e sua valorização implicava a rejeição dos postulados integralmente essencialistas sobre as raças.

Mesmo se eventualmente não tivesse consciência discursiva deste fenômeno, Bulhões Carvalho mostrou um acentuado pragmatismo na matéria. Este é o ponto que deve ser valorizado. Ao mesmo tempo em que descartava a medição racial na conta de dificuldades estritamente técnicas, partilhava da ideologia racial de seus contemporâneos, manifesta na crença i nabalável sobre a vocação redentora da miscigenação. Em relatórios e obras anteriores, sobretudo as de caráter oficial ou comemorativo, Carvalho já havia se mostrado reservado na análise de cunho racial, ao mesmo tempo em que sutilmente extrapolou importantes diferenças de definição entre categorias, que ele conhecia como poucos. No "Boletim" comemorativo da Exposição Nacional de 190813, afirmou:

O coeficiente etnográfico dos brancos aumentou em 20 estados. (...) o dos pretos decresceu em 19 estados. (...) o dos caboclos teve notável aumento em quase todos os estados e apreciável redução no Amazonas (15,55%), no Espírito Santo (0,35%) e no Rio Grande do Sul (0,54%). Enfim, o dos mestiços ou pardos elevou-se em 7 estados e diminuiu em 14 (Brasil, 1908, p. XXIII).

É preciso dizer que as estatísticas dos censos de 1872 e 1890 não eram verdadeiramente comparáveis, devido às profundas diferenças de definição e abrangência entre os termos 'pardos' e 'mestiços'.

Evidentemente, Bulhões Carvalho não desconhecia esse fato. O que é digno de nota é a sua excessiva cautela em comentários relativos aos quesitos raciais. Por um lado, mesmo em publicações oficiais e comemorativas, Carvalho se abstinha de se pronunciar abertamente sobre estes números. Por outro lado, não se eximia de apresentar tais dados e, ao fazê-lo, manipular importantes diferenças de definição, que, ignoradas ou não, não eram questionadas pelos setores da opinião pública e da sociedade civil. Ora, esta ambivalência na atitude frente à classificação racial é essencial aos propósitos deste artigo. Ela atendia às expectativas do governo, que fundavam a demanda por estatísticas no período. Ela se solidarizava ao quadro de referências da política imigrantista, baseada na ideologia das 'raças fecundas' e do branqueamento, ao que tudo indica partilhada pelo próprio Carvalho. O silêncio complacente do diretor da DGE, partidário daqueles pressupostos, há de ter influenciado sua decisão pessoal sobre a escolha do autor responsável pela introdução ao censo de 1920.

A indefinição dos 'característicos' raciais da população e a consequente ausência dos números não impediram que se associassem as estatísticas àquele que se tornaria um clássico estudo, encomendado para compor o volume de introdução ao recenseamento de 1920: "O povo brasileiro e sua evolução", de autoria do ainda jovem Oliveira Vianna - um racista histórico. É nessa tese, que o apresentou ao mundo intelectual, que ele fez a primeira exposição sistemática de sua "teoria de arianização"14, retomando e aprofundando as ideias de Silvio Romero. O mais interessante é que se trata da primeira leitura onde se encontra a associação entre miscigenação e mobilidade na estrutura social brasileira, descrita acima. Oliveira Vianna (1922, p. 325) via no 'mulato' um estágio evolutivo mais avançado relativamente ao negro: "os mulatos, em regra mais inteligentes do que os negros puros, mais vivazes e destros, mais 'ladinos', aplicam-nos os senhores em ofícios mais finos, como sapateiros, marceneiros e alfaiates, em que se revelam habilíssimos". Para o autor, a proximidade do 'mulato' em relação ao tipo branco responderia pela maior tendência dos primeiros para obterem alforria e ascensão social, o que se constata através da desproporção existente entre 'mulatos' livres e 'mulatos' escravos, favorável ao primeiro grupo. Na análise pioneira de Vianna, tantas vezes recuperada e reavaliada pelas mais variadas gerações de autores consagrados (como Gilberto Freyre, Octavio Ianni, Florestan Fernandes, Carlos Hasenbalg e o próprio Oracy Nogueira), a mobilidade social é o expediente retórico fundamental que justifica e reforça o branqueamento da população.

Com essa abordagem, a obra supria as barreiras da mensuração racial, enfatizando, ironicamente, as dificuldades técnicas deste tipo de apreciação da população em um censo nacional, ao mesmo tempo em que desempenhava a relevante missão de apresentar um Brasil biologicamente mais branco, recolocando-o nos trilhos do progresso e no concerto das nações. Este era o papel simbólico fundamental que o censo deveria cumprir, como principal peça do Pavilhão da Estatística (emblematicamente chamado de "Pavilhão da Ciência da Certeza"), carro-chefe da Exposição Internacional de 1922, que celebrava o centenário da Independência.

Dessa forma, a associação da sofisticada literatura racista de Vianna ao discurso censitário fundamentava o sucesso e a continuidade das políticas de imigração e de representação da nacionalidade mantidas pela Primeira República, ainda que sua sustentação fosse cada vez mais precária. Afinal, o momento exigia que o censo fosse tecnicamente impecável. A verdade é que, àquela altura, o Brasil sequer dispunha de tradição censitária, dado o defeituoso censo de 1890 e o fracasso fragoroso do de 190015. Ambos introduziram temáticas fora das recomendações dos Congressos Internacionais de Estatística, que acabaram não sendo apuradas, e seus planos de divulgação não puderam ser seguidos. Não houve levantamento em 1910, quando a verba censitária se esgotou com a contratação de um enorme quadro de 8.433 agentes, sem qualquer cronograma de trabalho (Senra, 2006b, p. 355-365). O Brasil ainda não tinha censos prestigiados e a melhor referência era o de 1872, o que denegria a República e o projeto de futuro promissor encarnado pela 'ciência da certeza'.

Por esta razão, garantir o sucesso do empreendimento passava pelo rigor metodológico e pela simplificação dos temas e formulários. Quesitos como religião e a maioria dos defeitos físicos foram deixados de lado, em observância às convenções internacionais. Neste quadro, as dificuldades técnicas levantadas pela classificação racial representavam um desafio redobrado e sua exclusão pareceu ser a melhor solução. A afirmação é corroborada pelo próprio Oliveira Vianna. Em artigo publicado no "Correio Paulistano", de 1926, o historiador confessa que apelou ao seu "eminente amigo, Dr. Bulhões Carvalho", para saber sobre as razões que o levaram a excluir o inquérito racial do "magistralmente dirigido" censo de 1920. A resposta foi taxativa: argumentou "que não incluiu o questionário porque lhe pareceu que as declarações não seriam confiáveis". Ainda segundo o artigo de Vianna, Carvalho argumentou que os recenseadores não saberiam determinar se o indivíduo era "branco puro" ou "mulato brancóide", ou seja, "em processo de reversão ao tipo ancestral ariano". Além disso, vários "mulatóides" "dar-se-iam por brancos" no formulário censitário. O resultado seria uma indesejável superestimação da população branca, falseando as informações (Vianna, 1926).

Ora, as afirmações de Carvalho são extremamente significativas. Suas referências a uma tipologia das raças (ainda que distorcidas pelo verniz científico do racismo de Vianna) mais uma vez sugerem solidariedade ao sistema de representações raciais dominante - o que, de resto, é muito interessante, sobretudo por sua atuação no campo médico. Entretanto, recusa expressamente a racialização estatística, por considerar que não é possível reunir condições técnicas para mensurá-la, pelo menos no Brasil. Trata-se da tomada de posição de um agente situado em um campo estatístico em formação. Talvez, a primeira colocada com tamanha clareza, para o que certamente contribuiu a natureza do objeto em controvérsia: a conflituosa classificação racial. A Oliveira Vianna restou apenas o lamento contra esta "grande lacuna", refutando os fundamentos apontados por Carvalho relativos à precisão técnica. Não obstante, foi esta última que finalmente 'virou o jogo' na avaliação dos riscos e ganhos propiciados pela classificação da população em termos raciais. E o mais impressionante é saber que foi exatamente a superestimação o resultado antevisto por Carvalho. A opção pela exclusão do quesito racial deveu-se, ironicamente, à falácia de uma população enganosamente branca.

Sem romper, e até mesmo solidarizando-se com a leitura propagandística de cunho racial, como mostram várias referências em suas obras anteriores e a escolha de Vianna para redigir a introdução do censo, Carvalho buscou excluir a classificação racial da cobertura temática de 1920. Um fato que se revela duplamente interessante. Por um lado, destaca o aparecimento de uma cultura profissional dos estaticistas. Vale dizer que, para os agentes vinculados a esta atividade, a rigidez de uma categoria é a condição essencial que preside sua inclusão ou exclusão de uma pesquisa. Quando as categorias são sólidas, isto é, não se apresentam a priori como objetos de disputa, seu conteúdo se aproxima de um consenso geral. A rigidez é própria de categorias bem amparadas na legislação e em conceitos importados das ciências, diminuindo os desvios sistemáticos e a heterogeneidade normativa (Comte, 1995, p. 194-195). Este, definitivamente, não foi (e nem é) o caso da classificação racial e, consciente ou não, a tomada de posição de Bulhões Carvalho foi pioneiramente profissional, em um sentido plenamente moderno16.

Por outro lado, o mesmo fato mostra o excessivo personalismo da produção censitária, configurando o que Hernán Otero chamou de paradigma da "estatística de autor", mencionada na introdução. Ela pode ser ilustrada pela organização pessoal dos censos - Medeiros e Albuquerque, em 1872; Timóteo da Costa, em 1890; Mendes da Rocha, em 1900; Bulhões Carvalho, em 1920. A estatística de autor baseava-se na consagração das instituições estatísticas por meio do nome e da grandeza pessoal de seus próceres, cujo perfil e notoriedade pública deveriam atuar como fontes de credibilidade da empreitada censitária. A estatística de autor corresponde a um reflexo sintomático da padronização incompleta da produção estatística do período, em sua função de sublinhar especificidades qualitativas por meio de universalidades quantitativas (Desrosières, 1995, p. 168­169). Mas uma diferença deve ser marcada: o aporte técnico trazido por Bulhões Carvalho e as quase duas décadas que dedicou ao comando da atividade estatística brasileira foram decisivos para seu habitus profissional de estaticista, antes mesmo da existência de uma comunidade científica organizada e de espaços formais de transmissão de saberes e práticas. Estes viriam nas duas décadas seguintes, com a criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a definitiva conquista da regularidade censitária.

 

DA RAÇA À COR: CENSURA POLÍTICA E COMPETÊNCIA TÉCNICA NO CENSO DE 1940

Ao longo da década de 1930, assistiu-se a um notável avanço das teses culturalistas sobre a questão racial. De forma crescente, o pensamento social brasileiro abandonou o legado do racismo científico, que identificava a constituição física à personalidade moral e intelectual, consagrando em seu lugar a perspectiva da nova antropologia. O gênero humano passa a ser novamente interpretado em sua unidade, já que as diferenças étnicas são tomadas como produtos culturais. O conceito de cultura traz a noção de comportamento aprendido e ensinado, em vez de instintivo. Descobria-se o potencial simbólico e linguístico na imensa flexibilidade de reações humanas, na capacidade de atribuição de significados e de criação cognitiva de comportamentos. Estudos como os de Franz Boas (1858-1942) e, depois, de Claude Lévi-Strauss (1908-2009) consagraram definitivamente o ponto de vista de que o comportamento humano está profundamente enraizado nas relações sociais e em outras características da sociedade. Nesses trabalhos, emergia o fenômeno das culturas humanas, entendidas como identidades isoladas de sociedades distintas, caracterizadas por tradições culturais específicas (Foley, 1996, p. 24).

No Brasil dos anos 1930, a igualdade racial tornou-se uma convicção oficial, como mostra a celebração do 'dia da raça', instituído por Getúlio Vargas em 1938. Em medidas desse tipo, a celebração oficial da diversidade racial constituía-se em poderosa figura para a mobilização psicológica das massas em torno da agenda do governo. As teses da democracia racial, como as de Gilberto Freyre, foram adotadas pelos meios de difusão ideológica do Estado Novo, mostrando-se compatíveis com a formação de um operariado urbano e com a conversão do homem do campo em trabalhador pacífico e ordeiro (Dávila, 2006).

É importante afirmar desde já que a abordagem culturalista não implicou o desaparecimento das antigas concepções racialistas, que, mesmo perdendo estatura, mantiveram lugar de destaque nos debates sobre a nacionalidade durante todo o Estado Novo. É sintomático que um ideólogo como Oliveira Vianna tenha sido consultor jurídico do estratégico Ministério do Trabalho, atuando diretamente na formulação da legislação trabalhista e do corporativismo sindical. Como sustentou Echazábal (1996, p. 107-124), enquanto Vianna assegurou a permanência do discurso racial em um período de valorização dos conceitos de cultura e etnia sem suscitar uma avaliação de semelhante discurso, Freyre procurou garantir um lugar teórico e político para o conceito de cultura, sem deslocar, de fato, as abordagens deterministas e hierárquicas. Desse modo, tanto Vianna quanto Freyre contribuíram para a "culturalização da raça" e para a "racialização da cultura". Os debates sobre a questão racial travavam-se, portanto, em um acordo sobre os terrenos do desacordo entre diferentes tradições, compondo um verdadeiro ecletismo nos estudos raciais, que concorria para a legitimação de seus proponentes e para a visibilidade de seu objeto.

Os reflexos do ecletismo se fariam sentir também nos levantamentos populacionais. O censo de 1940 é ambiguamente marcado pelo surpreendente retorno da classificação racial e pela alteração delicada e profunda em sua terminologia, que doravante daria lugar à noção de 'cor'. Há aí mudança radical de perspectiva, pois o que se valoriza não são mais os tipos raciais originários, mas a 'cor', isto é, as tonalidades da pele e a variedade de traços físicos, sem a antiga referência à continuidade sanguínea. É o que parece afirmar a comissão censitária, através de seu gabinete técnico:

Essa qualificação 'cor branca' não deve, entretanto, ser interpretada como afirmação da presença de um caráter biológico próprio de determinados grupos étnicos, mas apenas como reconhecimento da presença de uma cor clara da tez, que pode ser incluída - às vezes com certa largueza de julgamento - entre os matizes usualmente chamados brancos (Gabinete, 1950, p. 31).

A nova perspectiva sobre a questão racial influiu nos discursos associados à estatística, como mostra a introdução do censo de 1940, um vigoroso volume de 536 páginas encomendado para engrandecer o primeiro levantamento do IBGE, criado em 1936, e da Era Vargas, em plena ditadura do Estado Novo.

Em "A cultura brasileira", o sociólogo e educador Fernando de Azevedo, um dos fundadores da Universidade de São Paulo, opera um corte fundamental nas matrizes raciais originárias, postuladas por Oliveira Vianna. O autor desloca a cultura da base geográfica e étnica do 'meio' e da 'raça', cuja importância no caráter de um povo reduz-se

(...) ao momento em que sua alma é virgem ainda; e prolongando sua ação ao longo da história, são capazes, através das modificações do meio humano, de perpetuar os traços hereditários (...). Mas, à medida que a civilização se desenvolve, as forças sociais pesam mais sobre o caráter das nações do que as forças naturais que tiveram um papel de importância primordial nas suas origens e na sua formação (Azevedo, 1943, p. 105-106).

Para Azevedo, no processo civilizador, o predomínio passaria a ser dos fatores econômicos e sociais para a formação da cultura.

Se, em 1920, Bulhões Carvalho, ao justificar a ausência da investigação racial no censo, concordava tacitamente com o argumento do branqueamento da população, demonstrando inquietude quanto às possibilidades técnicas da mensuração racial da população, porém sem detalhar sua posição, em 1940 as coisas se darão de modo bem diverso. Basta lembrar que, em plena política de extermínio empreendida pelo nazismo e seus reflexos na Itália de Benito Mussolini, o eminente demógrafo judeu Giorgio Mortara (1885-1967) aceitara o exílio no Brasil e a acolhida oferecida pelo IBGE, assumindo a consultoria técnica do recenseamento de 1940. Seria natural que Mortara visse com antipatia e restrições a classificação racial, negando até mesmo que fosse praticada para aquele ano de 1940. Nesta direção aponta o relatório da comissão censitária, composta por nomes como Carneiro Felipe, diretor do censo, Giorgio Mortara, consultor técnico, M. A. Teixeira de Freitas, idealizador e secretário-geral do IBGE:

A cor, ou raça, foi uma indagação que teve adeptos e adversários, prevalecendo, afinal, no questionário por maioria de votos, depois de haver sua sorte ficado pendente ou indecisa por algum tempo. O Sr. Carlos Imbassahy, aludindo aos trabalhos de Richet e de outros estudiosos da formação das raças, propôs que a indagação tripartisse as respostas possíveis em branco, preto e mulato. O Sr. Teixeira de Freitas sugeriu inquéritos sobre os corpos discentes das escolas, com a assistência de médicos e professores, de modo a se colher uma orientação dos tipos componentes da massa, mais segura do que a simples declaração individual consignada no questionário. O Sr. Costa Miranda, apoiando essa sugestão, lembrou que a investigação por amostra poderia ser estendida às coletividades militares. A Presidência, manifestando-se igualmente favorável à investigação em miniatura, deu a conhecer o ponto de vista do Gabinete-Técnico, segundo o qual o quesito devia ser suprimido devido à imprecisão das respostas que obteria, recordando, a propósito, que constante embora dos recenseamentos de 1872 e 1890, fora omitida nos de 1900 e 1920, bem como no projeto de 1930. O Sr. G. Mortara, consultor-técnico, opinou que a questão era mais política que técnica, opinião a que, logo após, o Sr. Lourival Fontes deu o reforço de um argumento decisivo ao dizer que o quesito era fundamental para a propaganda do Brasil no estrangeiro. Posta a votos a supressão do quesito, foi rejeitada, em face da declaração do Sr. Lourival Fontes, contra os votos dos Srs. Costa Miranda e Cerqueira Lima, ficando, pois, mantido no questionário o quesito cor, sem quaisquer outras explicações (Carvalho, 1940, p. 124-125).

Note-se que, à exceção de Imbassahy, a comissão foi unânime na rejeição da investigação censitária do quesito 'cor'. Alguns, liderados por Teixeira de Freitas, sugeriram a classificação racial pelo viés institucional, sem qualquer vinculação com o recenseamento nacional. Certamente, negavam a adequação do empreendimento às possibilidades do censo. Ora, mesmo adotando-se o princípio das investigações parciais - caso das escolas e corporações militares sugeridas no trecho em questão -, já não se trata mais de conhecer a população em termos raciais. Ou seja, a raça deixava de ser associada ao tipo nacional. Desvinculava-se, então, do discurso sobre as características da nacionalidade, que estivera na origem das preocupações sobre a classificação racial e que tanto marcou a função genealógica do censo durante a Primeira República. Giorgio Mortara ainda vai além, rejeitando o caráter científico ou técnico da abordagem racial, ao evidenciar os interesses políticos por ela suscitados.

Eis que somos surpreendidos com a intervenção de Lourival Fontes, diretor do poderoso Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão de inteligência do governo Vargas, alegando que "o quesito era fundamental para a propaganda do Brasil no estrangeiro". Trata-se de argumento decisivo por duas razões: em primeiro lugar, confirma a desracialização do olhar científico da estatística. O discurso racial praticado naquele momento torna-se político. É à representação da nação no estrangeiro, assim como à sua auto-imagem, que a classificação racial se reportará.

A imagem do país produzida pelo suporte censitário se mostraria bastante ambígua e controvertida. Por um lado, há a iniciativa da comissão de rejeitar a pesquisa racial no censo por falta de sustentação científica, e também a escolha de um autor simpatizante do culturalismo e do funcionalismo, como Fernando de Azevedo. Por outro lado, os resultados atingidos pelo censo e a forma de encaminhamento da tipologia da cor nos boletins censitários levam à outra direção.

Nos febris anos das políticas nazistas de perseguição e extermínio, os brasileiros se ressentiriam muito especialmente de declararem sua cor, sobremodo oriunda de mestiçagem. Seria de se esperar que a comissão censitária levasse esta variável em consideração. Anos antes, Bulhões Carvalho apontou para o problema da dissimulação da cor, fato que atestou para justificar a ausência do quesito em 1920, e que se sabe ser causa insuficiente. Aliás, a consciência do problema crônico da dissimulação se faz presente no próprio censo demográfico de 1940. Afinal, mesmo investigando a cor, pondera que "a omissão da resposta traduziria, em muitos casos, uma reserva à declaração expressa da mestiçagem" (Brasil, 1950, p. XXI). Mais um motivo para acreditar que a comissão teria todos os cuidados no sentido de minimizar as declarações não representativas. Não foi o que ocorreu.

O censo simplesmente não previu em seu inquérito a categoria 'pardo' ou qualquer outra equivalente de mestiçagem. As qualificações resumiam-se a 'preta', 'branca' e 'amarela'17, sem operar com a variável dos 'pardos'. Todas as demais designações de cor que indicavam miscigenação, como 'caboclo', 'mulato', 'moreno' etc., eram subsumidas a um traço horizontal no lugar reservado para a resposta nos boletins. A categoria 'pardo' era incluída somente na análise, e não na coleta, abrangendo justamente tais qualificações desviantes. Na coleta, os boletins traziam como instrução apenas a filiação a um dos três grandes grupos, e a indução ao preenchimento com o traço como única alternativa àquela filiação, o que resultava num constrangimento para o entrevistado, inibindo-o quanto a uma eventual declaração que afirmasse sua condição. É forçoso concluir que o qualificativo 'pardo' foi escamoteado por um procedimento operacional, dada a evidência de que os números resultantes estariam muito aquém de um patamar representativo.

O censo de 1950, ao contrário, faz a distribuição da população em quatro grupos - 'brancos', 'pretos', 'amarelos' e 'pardos' - e, ainda que incluindo neste último os índios e os que se declararam 'mulatos', 'caboclos', 'cafuzos' etc., prevê um grupo especial de 'pardos', enquanto unidade de análise e coleta. Por conseguinte, os miscigenados não são tomados como elemento inadequado às categorias investigadas, como fez o censo de 1940. Neste sentido, "no censo de 1950 a declaração foi deixada à discrição do recenseado, emprestando, assim, maior precisão aos resultados censitários" (Brasil, 1956, p. XVII - XVIII).

Naturalmente, o resultado da adoção de modos de procedimento diversos seria uma discrepância gritante entre as conclusões a que os dois censos chegaram. Na comparação entre os dados de 1940 e de 1950, há de se notar o grande avanço da população 'parda', que salta de 21,20% para 26,54% do total, inversamente proporcional ao recuo da população 'preta', cujo patamar sofre queda de 3,68%, passando de 14,64% para 10,96% (Brasil, 1956, p. 1). Difícil deixar de atribuir o ocorrido às inovações levadas a cabo na investigação de 1940. E mais: mesmo com o decréscimo a que chegou o censo de 1940, a intenção dos organizadores censitários, premidos pela pressão da classe dirigente, era a de diluir ainda mais a variável 'pardo' na composição da população. A nosso ver, a expectativa era a de que a omissão desta categoria de classificação na coleta inibiria ainda mais os declarantes. No entanto, foram muitos os que afirmaram sua condição de miscigenado por meio de qualificativos alternativos, mas imbuídos da polissemia da miscigenação. É o que revela o testemunho da própria comissão, novamente através de seu gabinete técnico:

De fato, essas instruções foram interpretadas, na grande maioria dos casos de recenseados de cor diferente das três explicitamente discriminadas, como se esta discriminação visasse apenas a exemplificar, e não a limitar, as declarações da cor. E, por isso, ficaram muito frequentes as especificações de cores não previstas nas instruções, como 'morena', 'parda', 'mulata', 'cabocla', etc., e apareceu em alguns casos a especificação do grupo étnico 'índio', que só indiretamente representa uma declaração de cor (Gabinete, 1950, p. 7-8, grifo meu).

A intenção de limitar as declarações de cor seria mais do que compatível com a natureza do fazer estatístico. Porém, para este censo em particular, não foi elaborada na coleta uma categoria de 'pardos' que incorporasse outros qualificativos tidos como menos pejorativos - como 'moreno', 'mulato', 'caboclo', entre tantos possíveis. Consequentemente, a afirmação da condição mestiça passava necessariamente pela negação das categorias disponíveis e pelo alargamento semântico da classificação racial. Vários eram os significados atribuídos à cor. Mesmo se considerássemos a inclusão da categoria 'pardo', é inegável que, em relação a ela, às designações 'morena', 'mulata' ou 'cabocla', entre tantas outras variantes, são atribuídos sentidos distintos no ato de identificação pessoal provocado pelo recenseador.

Paradoxalmente ao elogio da mestiçagem que se vê em Freyre e também em Fernando de Azevedo, na conjuntura de guerra, a imagem que a estatística produzia para o Brasil não era, sob nenhuma hipótese, a de paraíso racial. Naquele momento, a ameaça nazista era uma realidade e a vitória alemã uma grande possibilidade. O problema do racismo só seria estudado e inventariado pelos órgãos internacionais após a derrota alemã e os traumas provocados pela revelação oficial do holocausto ao mundo. Se no Brasil vigorava o ideal da harmonia étnica e um ecletismo que conjugava diferentes abordagens sobre a questão, se os estaticistas retiravam o estatuto científico do argumento racial, tornando-o político, o mesmo não poderia ser dito para o cenário mundial. Não antes que Berlim finalmente sucumbisse. Externamente, o Brasil de 1940 via o pensamento dominado pela tecnocracia nazi-fascista condená-lo em virtude do hibridismo da miscigenação. Os desdobramentos da guerra, àquela altura, poderiam elevar este pensamento, então expressivo, à condição de hegemonia. A fala de Lourival Fontes é modelar. No que dependesse dos estaticistas, não teria havido nenhuma classificação racial em 1940, não fosse sua investida em favor da propaganda do país. Nesse sentido, era preciso moldar os procedimentos de inquérito de maneira a afiançar ainda mais a dissimulação sobre a cor da população, aterrorizada com as barbaridades que o distante Terceiro Reich engendrava, como sugere o desnível em relação aos números obtidos em 1950.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As inovações introduzidas no censo de 1940 sugerem a agudização do conflito estrutural entre as expectativas políticas e as possibilidades técnicas da classificação racial. Os testemunhos de estaticistas como Teixeira de Freitas, idealizador do IBGE, que viria a ser vice-presidente do International Statistical Institute, e Giorgio Mortara, então um dos mais renomados demógrafos do mundo, são enfáticos na recusa do estatuto técnico da associação entre raça e nacionalidade. É verdade que esta recusa não impediria a intervenção política no planejamento das operações censitárias, de forma a restringir as declarações de cor em prol da projeção de uma nação racialmente mais homogênea. Entretanto, a propaganda e a censura sobre a cor assumiam agora papéis muito bem definidos no jogo sociopolítico de produção, análise e divulgação das informações estatísticas. A propaganda política que outrora fundava as expectativas em torno dos números da DGE, justificando seu financiamento, torna-se agora pressão explícita sobre a comissão censitária. Não há mais 'silêncios eloquentes' ou negativas reticentes, como as de Bulhões Carvalho vinte anos antes.

A mudança na tomada de posição dos estaticistas teve na criação e na consolidação do IBGE um passo de decisiva importância. A partir de 1936, a atividade estatística brasileira ganharia institucionalização e autonomia de ação, superando o personalismo, a descontinuidade e a estrutura puramente censitária que até então a dominava. O órgão, eficiente e gigantesco de coordenação do sistema estatístico nacional (presente em todos os municípios do país), apoiaria a criação de associações formais (como a Sociedade Brasileira de Estatística, em 1941), a formação de quadros técnicos (com cursos, currículos, manuais de divulgação), o patrocínio à edição de periódicos científicos (como a "Revista Brasileira de Estatística", publicada desde 1940, em surpreendente regularidade), culminando com a fundação de uma escola própria, a primeira da América Latina - a Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE), instalada em 1953.

Dessa forma, os anos 1940 e 1950 assistiram à diversificação dos espaços de transmissão de práticas e saberes estatísticos e à especialização do perfil profissional, o que levou ao aparecimento da primeira geração de estatísticos de formação. Por um lado, a organização de uma inédita comissão censitária e o intenso investimento na produção científica sugerem que a criação do IBGE e o censo de 1940 representam o verdadeiro marco de iniciação da 'estatística anônima' no Brasil, conceito apresentado na introdução. Por outro lado, o censo também revela importantes continuidades com o modelo censitário da demografia política, caso da pressão explícita pela propaganda sobre a cor, da inclusão na pesquisa de quesitos alusivos à naturalidade dos pais e à 'língua falada' em domicílio. Esses quesitos mostram que o censo ainda deveria medir a aculturação dos imigrantes, sobretudo os alemães, então considerados de difícil assimilação. Ainda mais ilustrativo é o volume de introdução, "A cultura brasileira", encomendado para monumentalizar o IBGE e o Estado Novo de Getúlio Vargas. Em seu conjunto, tais aspectos apontam para o hibridismo que caracteriza as instituições estatísticas na década de 1940, que ainda tinha como função estratégica projetar a força de um Estado extrator de recursos.

Os censos de 1950 e 1960 seguiriam nesta senda, reforçando cada vez mais seu papel como instrumento de investigação social. Em 1950, os cortes no questionário atingiram itens que antes balizavam o paradigma censitário. Foram suprimidas questões sobre deficiências físicas, naturalidade dos pais e data de fixação de residência dos estrangeiros. Ao mesmo tempo, o censo apresenta, pela primeira vez, dados referentes à população economicamente ativa, sob influência da contabilidade nacional. Em 1960, aprofunda-se essa tendência na direção dos indicadores econômicos, incluindo uma inédita pesquisa sobre rendimentos individuais e o destaque dado ao fenômeno do desemprego nas categorias ocupacionais.

Ambos os censos, portanto, deslocam o problema da nacionalidade e da imigração como matriz de interpretação, cedendo crescente lugar às migrações internas (campo-cidade) e à inserção econômica dos migrantes, sobretudo de origem rural, no contexto urbano-industrial, atribuindo maior importância à divisão do trabalho e aos diferenciais de renda e consumo (Oliveira, 2003, p. 36). Por conseguinte, os resultados relativos à classificação quanto à 'cor' serão tabulados e analisados a partir da inserção econômica dos agentes, como o emprego em atividades ocupacionais. Não há mais qualquer indício de um 'caráter nacional' baseado nas classificações de 'raça' ou 'cor'.

A situação sofreu nova mudança por ocasião da elaboração do censo de 1970, marcado pela preocupação rigorosa dos estaticistas com a qualidade do dado a ser obtido. Os pareceres emitidos por especialistas apontaram para a preocupação com os critérios de classificação e com os termos referentes à cor. Constata-se a existência de múltiplas relações entre o critério de classificação e os termos, girando o problema em torno de como as pessoas se classificam e, em se classificando, que termos utilizam (Araújo, 1974, p. 99).

Ora, o que se verifica no censo de 1970 é a recusa técnica da classificação quanto à cor, porquanto sua dimensão de objetividade até então predominante, baseada no critério antropométrico, isto é, o da aparência física exterior (pigmentação, traços labiais, tipo de nariz e cabelo etc.), dá lugar ao problema da localização étnica dos indivíduos, que passa por questões da ordem do prestígio e do contato com outros grupos étnicos, ou seja, pela experiência de objetividade dos sujeitos sociais. Nessa nova apresentação do problema racial, as categorias de classificação então consagradas ('brancos', 'pretos', 'pardos' e 'amarelos') se esvaziam de significado, colocando o obstáculo sobre os meios técnicos de mensuração e a necessidade fundamental de preservação da série estatística.

Do meu ponto de vista, o que há de mais interessante no descarte da classificação quanto à cor em 1970 é o elevado grau de autonomia dos estaticistas na resolução da questão, que não enfrentam aí pressões explícitas, nem do Estado, nem de grupos sociais organizados potencialmente interessados neste tipo de contagem. Precisamente no momento em que o IBGE elabora seus primeiros indicadores sociais, incorporando numerosos antropólogos e sociólogos às suas fileiras, a classificação quanto à cor, que desde Bulhões Carvalho apresentara definição precária e heterogeneidade normativa, tornava-se especialmente fluída, ou seja, incapaz de estabelecer ou mediar um mínimo de consenso, inclusive entre especialistas. Mesmo assim, e este ponto é fundamental, sua exclusão deveu-se integralmente à tomada de posição dos estaticistas. No momento em que o censo se tornava um forte instrumento de produção e distribuição da riqueza nacional para um Estado planejado e planejador, a racialização estatística sequer constituía um problema político significativo. As instituições estatísticas estavam em processo de autonomização, o Estado não tinha mais interesses estratégicos na classificação racial e a sociedade não se fazia um demandante formal e organizado das estatísticas.

A democratização das informações mediante a incorporação de associações e representantes de movimentos sociais é um fenômeno próprio das últimas três décadas, dando uma nova feição à produção e aos usos sociais da estatística. Novos grupos de pressão se organizam, interessados nos resultados diretos que a contagem em separado lhes atribui, permitindo-lhe respaldar políticas de reparação contra injustiças históricas. Pleiteiam acesso a um maior número de informações e buscam interferir em sua produção, tomando parte na definição do programa estatístico e da cobertura temática dos censos. Já em 1980, quando o quesito 'cor' ficara de fora do censo experimental de Taubaté, foram as intensas e inéditas pressões do movimento negro e da comunidade acadêmica que asseguraram a inclusão daquela classificação. Alterações mais profundas já se fariam sentir em 1991, quando a terminologia 'cor' deu lugar ao retorno da 'raça', que evidencia uma vontade de marcar a memória da discriminação. Em 2000, viria nova alteração, consagrando a classificação por 'cor ou raça', que exprime a tentativa de preservação da tradição censitária, conciliando-a com a diversificação das demandas sociais.

O problema fundamental da associação entre raça e nacionalidade volta à ordem do dia, não mais sob o manto autoritário do branqueamento e da homogeneização racial, mas sob o signo do multiculturalismo e da etnização estatística. Nessa nova representação estatística das relações raciais, o Brasil se torna um país de vocação pluralista, que abriga as minorias e as protege da discriminação. A estatística torna-se, assim, um meio e um fim para a retórica política das diferenças.

Enfim, cabe salientar que os censos posteriores ao de 1950 não foram propriamente objetos deste trabalho. Não obstante, as considerações acima corroboram meus argumentos centrais a respeito do pragmatismo e da rigidez enquanto elementos-chave da cultura profissional dos estaticistas. Examinando a classificação racial, demonstrei que essa cultura remonta à tomada de posição de Bulhões Carvalho em 1920, tem no censo de 1940 um importante ponto de inflexão e encontra seu ápice na exclusão do quesito racial em 1970. Nesses termos, não me parece arriscado concluir que, quando uma categoria considerada muito fluída integra as pesquisas estatísticas, pode-se admitir que os interesses políticos e sociais prevalecem sobre a resistência técnica, determinando sua mensuração. Este parece ter sido o caso tanto da racialização estatística promovida pelo Estado autoritário quanto da etnização estatística pós-redemocratização.

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Pires de. Balanço da população da capital federal. Jornal do Commercio, 11 jun. 1901.

ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-lmpério. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

ANDERSON, Margo. The american census: a social history. New Haven: Yale University Press, 1988.

ARAÚJO, Tereza Cristina Nascimento. O quesito classificatório 'cor', sua complexidade e implicações para um estudo censitário. Revista Brasileira de Geografia, v. 36, n. 3, p. 91-103, jul.-set. 1974.

AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, 1943.

BARBOZA, F. Leão. A população do Rio de Janeiro. ln: BRASIL. Recenseamento geral da República dos Estados Unidos do Brasil, em 31 de dezembro de 1890: Distrito Federal. Rio de Janeiro: Leuzinger, 1895. p. lX-XLlll.

BESSON, Jean-Louis. As estatísticas: verdadeiras ou falsas? ln: BESSON, Jean-Louis (Org.). A ilusão das estatísticas. Tradução Emir Sader. São Paulo: Editora Unesp, 1995. p. 25-67.

BOURDlEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. População e nação no Brasil do século XIX. 1998. Tese (Doutorado em História Social) -Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Recenseamento geral de 1950. Rio de Janeiro: IBGE, 1956. v. 1.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Recenseamento geral de 1940. Rio de Janeiro: IBGE, 1950. v. 2: censo demográfico: população e habitação.

BRASIL. Diretoria Geral de Estatística. Recenseamento do Brasil, realizado em primeiro de setembro de 1920. Rio de Janeiro: Tipografia da estatística, 1922. v. 1. Introdução: aspecto físico do Brasil: geologia, flora e fauna, evolução do povo brasileiro, histórico dos inquéritos demográficos.

BRASIL. Diretoria Geral de Estatística. Boletim comemorativo da Exposição Nacional de 1908. Rio de Janeiro: Tipografia da Estatística, 1908.

BRASIL. Ministério dos Negócios do Império. Relatório da Diretoria Geral de Estatística, dirigido ao Ministro dos Negócios do Império, Dr. João Alfredo Corrêa de Oliveira, por Jose Maria do Couto, diretor geral interino, em abril de 1875 [sobre 1874]. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1875.

BRASIL. Ministério dos Negócios do Império. Relatório da Diretoria Geral de Estatística, dirigido ao Ministro dos Negócios do Império, Dr. João Alfredo Corrêa de Oliveira, por Jose Maria do Couto, diretor geral interino, em abril de 1873 [sobre 1872]. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1873.

CAMARGO, Alexandre de Paiva Rio. Aquarela dos Números: a questão racial nos censos em perspectiva histórica. In: SENRA, Nelson de Castro. História das estatísticas brasileiras (1822 -2002). Rio de Janeiro: IBGE, 2008. (Estatísticas Organizadas (c. 1936 - c. 1972), v. 3).

CARVALHO, Afrânio de. Observações sobre a organização e execução do recenseamento geral do Brasil em 1940: Relatório da Comissão Censitária Nacional do Recenseamento geral de 1940. Rio de Janeiro: IBGE, 1940.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

CARVALHO, José Murilo de. A utopia em Oliveira Vianna. In: CARVALHO, José Murilo de. Pontos e bordados: escritos de história política. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

COMTE, Maurice. A fluidez e a rigidez. In: BESSON, Jean-Louis (Org.). A ilusão das estatísticas. Tradução Emir Sader. São Paulo: Editora Unesp, 1995. p. 185-198.

DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil - 1917-1945. Tradução Claudia Sant'Ana Martins. São Paulo: Editora UNESP, 2006.

DESROSIÈRES, Alain. Entre a ciência universal e as tradições nacionais. In: BESSON, Jean-Louis (Org.). A ilusão das estatísticas. Tradução Emir Sader. São Paulo: Editora Unesp, 1995. p. 167-183.

ECHAZABAL, L. Martinez. O culturalismo dos anos 30 no Brasil e na América Latina: deslocamento retórico ou mudança conceituai? In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (Orgs.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/Centro Cultural Banco do Brasil, 1996. p. 107-124.

FOLEY, Robert. Antropologia. In: BOTTOMORE, Tom; OUTHWAITE, William (Eds.). Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. p. 22-26.

GABINETE técnico do Serviço Nacional de Recenseamento. Estudos sobre a composição da população do Brasil segundo a cor. Rio de Janeiro: IBGE, 1950.

LATOUR, Bruno. ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. Tradução Ivone C. Benedetti; revisão de tradução Paula Assis. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

LOVEMAN, Mara. The race to progress: census taking and nation making in Brazil (1870-1920). Hispanic american historical review, v. 89, n. 3, p. 435-470, agosto 2009.

MATTOS, Hebe Maria. Identidade camponesa, racialização e cidadania no Brasil monárquico: o caso da 'Guerra dos Marimbondos' em Pernambuco a partir da leitura de Guillermo Palacios. Almanack Braziliense, n. 3, p. 40-46, maio 2006.

MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

NOGUEIRA, Oracy. Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga. São Paulo: EDUSP, 1998.

OLIVEIRA, Jane Souto de. Brasil, mostra a tua cara: imagens da população brasileira nos censos demográficos de 1872 a 2000. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Ciências Estatísticas, 2003. (Série Textos para discussão, n. 6).

OTERO, Hernán. estadística y nacíon: una historia conceptual del pensamiento censal de la Argentina moderna, 1869-1914. Buenos Aires: Prometeo libros, 2006.

PORTER, Theodore. Statistics in the history of social science. In: BEAUD, Jean-Pierre; PRÉVOST, Jean-Guy (Orgs.). The age of numbers: statistical systems and national traditions. Québec: Presses de l'Université du Québec, 2000. p. 489-497.

ROSE, Nikolas. Inventing ourselves: psychology, power and personhood. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

SANTOS, Marco Aurelio Martins. Demógrafos-sanitaristas: vida e morte pelas estatísticas. In: SENRA, Nelson de Castro (Org.). História das estatísticas brasileiras (1822 - 2002). Rio de Janeiro: IBGE, 2006. p. 225-275. (Estatísticas Legalizadas (c. 1889 - c. 1936), v. 2).

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

SENRA, Nelson de Castro (Org.). História das estatísticas brasileiras (1822 - 2002). Rio de Janeiro: IBGE, 2006a. (Estatísticas Desejadas (1822 - c. 1889), v. 1).

SENRA, Nelson de Castro (Org.). História das Estatísticas Brasileiras (1822 - 2002). Rio de Janeiro: IBGE, 2006b. (Estatísticas Legalizadas (c. 1889 - c. 1936), v. 2).

SENRA, Nelson de Castro. O saber e o poder das estatísticas: uma história das relações dos estaticistas com os Estados Nacionais e com as Ciências. Rio de Janeiro: IBGE, 2005.

SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (Orgs.). Raça, ciência e sociedade no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz/Centro Cultural Banco do Brasil, 1996. p. 41-58.

SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. 2. ed. Tradução Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. (Coleção Estudos brasileiros).

VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

VIANNA, Francisco José de Oliveira. Raça e pesquisas estatísticas. Correio Paulistano, 25 set. 1926.

VIANNA, Francisco José de Oliveira. O povo brasileiro e sua evolução. In: BRASIL. Diretoria Geral de Estatística. Recenseamento do Brasil, realizado em primeiro de setembro de 1920. Rio de Janeiro: Tipografia da estatística, 1922. v. 1. Introdução: aspecto físico do Brasil: geologia, flora e fauna, evolução do povo brasileiro, histórico dos inquéritos demográficos.

 

 

Endereço para correspondência:
Museu Paraense Emílio Goeldi
Editor do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas
Av. Magalhães Barata, 376
São Braz - CEP 66040-170
Belém - PA - Brasil
Caixa Postal 399
Telefone/fax: 55-91-3249-1141
E-mail: boletim@museu-goeldi.br

Recebido: 04/05/2009
Aprovado: 03/12/2009

 

 

1Este artigo é uma versão profundamente transformada em extensão e objetivos do trabalho "As cores do progresso: propaganda e censura racial no censo de 1940", apresentado no simpósio "O engajamento político dos cientistas na América Latina", coordenado pela Dra. Heloísa Bertol Domingues e pelo Dr. Antonio Augusto Passos Videira, durante o 11o Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, promovido pela Sociedade Brasileira de História da Ciência, em Niterói, Rio de Janeiro, entre 26 e 30 de outubro de 2008. Por sua vez, a reflexão inicial desta comunicação foi retirada de Camargo (2008, p. 331-370).

2Por instituições estatísticas, compreendo três dimensões fundamentais: 1) as agências de Estado, com sua infra-estrutura de contagem populacional, cuja presença difundida no território nacional se constituiu historicamente em vetor importante para a extensão física do poder central; 2) os instrumentos de medição técnico-científica, cujos recursos de totalização, como a variância e a amostragem, constituem a tecnologia mais refinada de individualização dos coletivos sociais; 3) o campo estatístico, com suas sociedades científicas (congressos, fóruns, associações, periódicos), influências intelectuais próprias (livros teóricos, manuais de divulgação, circuito de autores e obras), e formações nacionais técnicas (escolas, cursos, currículos).

3Entre os autores que se dedicam a tal estudo, podem ser citados Alain Desrosières, Laurent Thévenot, Theodore Porter, Stephen Stigler, Jean-Claude Perrot, Ian Hacking, Eric Brian, Nikolas Rose, Jean-Guy Prévost, Jean-Pierre Beaud, Hernán Otero, Simon Schwartzman e Nelson Senra, entre outros.

4Veja-se, por exemplo, a criação do Bureau Statistique de la Republique, na França de Napoleão Bonaparte, primeira agência nacional de estatística; a fundação da Royal Statistical Society inglesa, em 1834, primeira associação privada desta área de saber; o pioneiro censo dos Estados Unidos, em 1790, o primeiro da história moderna, que inaugura uma impressionante e ininterrupta regularidade censitária naquele país.

5Para Bourdieu (2005, p. 147-148), o instituto nacional de estatística "produz as taxonomias oficiais, investidas de um valor quase jurídico, tendendo a fixar as hierarquias e, ao fazê-lo, a sancionar e a consagrar uma relação de forças entre os agentes a respeito de nomes de profissão e ofício, componente essencial da identidade social. A gestão dos nomes é um dos instrumentos de gestão da raridade material e os nomes de grupos - sobretudo de grupos profissionais - registram um estado das lutas e negociações a respeito das designações oficiais e das vantagens materiais e simbólicas que lhes estão associadas".

6A sociologia dos modos de escrita da estatística defende que é preciso ler as matrizes e os quadros estatísticos como textos, mediante sua tradução em proposições e sistemas de hipóteses, expressáveis em linguagem verbal. Nesta direção, Hernán Otero (2006, p. 47) observa que "dois quadros sobre níveis de mortalidade tabulados segundo a estação do ano ou segundo os grupos sócio-ocupacionais dos falecidos remetem a duas hipóteses científicas e a dois universos teóricos radicalmente diferentes: a mortalidade como fato climático ou como fato social".

7Ao usar o termo 'estaticista', sigo a proposta de Nelson Senra (2005), que justifica a expressão com base na necessidade de diferenciar as funções do estatístico, que coleta, apura e divulga as estatísticas, em relação aos profissionais que idealizam e formalizam as pesquisas estatísticas, além de influírem nas diretrizes das agências centrais de coordenação, variando suas formações entre economistas, sociólogos, antropólogos, demógrafos, educadores e outras.

8O decreto que previa a realização do censo em 15 de julho de 1852 foi acompanhado de regulamento sobre a instituição do registro civil obrigatório. O censo logo foi suspenso por conta de uma série de revoltas populares, ocorridas, sobretudo, no Nordeste. Os movimentos, conhecidos como Guerra dos Marimbondos, teriam iniciado, entre outras razões, por boatos que corriam, identificando a obrigatoriedade do registro e a declaração sobre a cor à tentativa de reescravização dos libertos (Mattos, 2006, p. 40-46; Botelho, 1998).

9Gouveia, Hilário de. "A mortalidade pela tuberculose no Rio de Janeiro". In: "População". Rio de Janeiro, 1799-1900. Rio de Janeiro: [s.n., 19-?], p. 210. Edição manuscrita contendo contendo vários documentos, presumivelmente escritos no Rio de Janeiro em data posterior a 1901.

10A exclusão da contagem referente à educação primária sugere e, em certa medida, antecipa o que viria a ser ratificado na Carta Magna, publicada no ano seguinte, que "retirava a obrigação do governo de fornecer instrução primária, constante do texto imperial" (Carvalho, 2002, p. 45).

11Ofício n. 667, do diretor da Diretoria Geral de Estatística Manoel Timóteo da Costa ao ministro do Interior. 12 jul. 1890, p. 6. Arquivo Nacional (RJ), GIFI 5C 272.

12Além de Bulhões Carvalho, contavam-se entre os demógrafos-sanitaristas nomes como os de Aureliano Portugal e Hilário de Gouveia.

13A centralidade dessa obra para a difusão da imagem do país deve ser considerada. O boletim foi a primeira publicação oficial do Brasil vertida integralmente para o esperanto, língua que então expressava o ideal de neutralidade científica e o de congraçamento entre nações.

14A teoria da arianização radicalizava a noção de branqueamento concebida por Silvio Romero, porquanto buscava demonstrar o legado do patrimônio genético alemão à constituição psicofísica do tipo nacional brasileiro, pela mediação do colonizador português, cuja origem, insiste Vianna, remonta à imigração dos "dólico-louros" para a Península Ibérica. A "caracterização psicossomática" do elemento português é atribuída a matrizes de dois tipos: "um, louro, alto, dolicóide, de hábitos nômades e conquistadores; outro, moreno, de pequena estatura, braquióide, de hábitos sedentários e pacíficos, temperamento patriarcal e hábitos rurais", o único tipo a permanecer na península após as grandes navegações (Vianna, 1922, p. 314). A superioridade dos dólico-louros teria sido legada aos brasileiros pelos portugueses, que a perderam ao emigrarem para o Brasil as correntes de sangue ariano e construírem nos trópicos uma civilização calcada na iniciativa da empresa particular do latifúndio (Vianna, 1922, p. 315-316). O controle particular dos cargos públicos e da administração da justiça refletiria esta tendência e se constituiria em traço marcante da cultura política brasileira. Como resultado, os grandes proprietários organizaram a sociedade com base na forma espúria da solidariedade da patronagem e do clientelismo. À autoridade administrativa do grande proprietário correspondia, no núcleo familiar, o fortalecimento do poder do pater famílias, tornando os senhores os promotores da miscigenação. Assim, com sua superioridade racial, a camada senhorial promovia e comandava a miscigenação desde o eito escravista (Carvalho, 1999).

15Realizado na insólita data de 31 de dezembro (!), o censo seria alvo de inúmeras polêmicas nacionais e estrangeiras, e teria sua apuração cancelada. Seus resultados só seriam conhecidos pelos esforços de Bulhões Carvalho, que, ao assumir a precária direção da DGE em 1907, concluiu o processo de apuração e remeteu os resultados em sigilo ao ministro da Viação e Obras Públicas (hoje pode ser consultado em CD-ROM).

16Em tom mais militante, Jean-Louis Besson (1995, p. 29) afirma: "no que lhes diz respeito, os estatísticos dão prova de uma discrição excessiva em matéria de erro. Isso se explica historicamente: eles precisaram conquistar uma legitimidade científica, vencer o ceticismo e a incredulidade. O meio para isso foi construírem uma imagem de rigor, se não de infalibilidade. O estatístico é, de fato, vítima de uma maldição: não basta que ele respeite protocolos de medida, é preciso que se acredite nele. A credibilidade é então um elemento subjacente ao trabalho do estatístico".

17O censo de 1940 foi o pioneiro na investigação do agrupamento de cor 'amarela', instituindo a prática como tradição para os levantamentos ulteriores.