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Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas

versão impressa ISSN 1981-8122

Bol. Mus. Para. Emilio Goeldi Cienc. Hum. v.4 n.3 Belém dez. 2009

 

Na Primeira República, Bulhões Carvalho legaliza a atividade estatística e a põe na ordem do Estado

 

At the Early Brazilian Republic, Bulhões Carvalho legalizes the statistical activity and put it into the State's order

 

 

Nelson de Castro Senra

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Centro de Documentação e Disseminação de Informações. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil (nelson.senra@ibge.gov.br)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Recriada nos primórdios da República (jan./1890), como órgão central, a Diretoria Geral de Estatística (DGE) enfrentou dificuldades para consolidar a atividade estatística brasileira. Um novo rumo só foi ensaiado, e razoavelmente alcançado, quando José Luiz Sayão de Bulhões Carvalho (1866-1940), médico e sanitarista, dedicado aos estudos e pesquisas demográficas, assumiu sua direção (em dois períodos) por quase 17 anos. Em várias frentes de atuação, aplicou-se em facilitar o convívio da DGE com seus similares na federação (extremada) então vigente. Idealizou acordos com órgãos estaduais; imaginou conselhos para tomada de decisões coletivas; imaginou uma conferência estatística, baseada na experiência de participação em dois congressos do International Statistical Institute (1S1); ajudou a formar uma comunidade estatística, pensando a formação do profissional especializado, para tanto tendo estimulado e patrocinado a tradução de livros; entre outras medidas. O Censo de 1920, que idealizou e conduziu, sendo o único grande censo na Primeira República, pautou-se em relações amistosas com os governos federal e estaduais e com a sociedade organizada (Igreja, imprensa, sindicatos, clubes etc.). Realizou, então, por assim dizer, um censo moderno, utilizando máquinas de apuração e o concluindo em tempo hábil. Na divulgação dos resultados, inovou na feitura de gráficos (pictóricos), seja para os volumes impressos, seja para o Pavilhão da Estatística, também chamado de Pavilhão da Ciência da Certeza, que marcou a presença da DGE na Exposição Internacional Comemorativa do Centenário da Independência. Com sua vivência, antecipou as bases do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (1BGE), obra de um seu discípulo, e que pode ser visto como a medida do seu sucesso (a longo prazo).

Palavras-chaves: Primeira República. Atividade estatística. Comunidade estatística. Demógrafos sanitaristas. Campo científico. Censo.


ABSTRACT

Recreated in the early days of the Brazilian Republic (jan./1890) as a central agency, the General Directory of Statistics (DGE) faced difficulties in consolidating the Brazilian statistical activity. A new time only was achieved when José Luiz Sayão de Bulhões Carvalho (1866-1940), a medical doctor specialist in public health dedicated to demographic studies and researches, took its direction (in two times) for almost 17 years. His performance applied to facilitate the interaction of DGE with its similar agencies in the federation. He idealized agreements with provincial statistical agencies; imagined counsels (or committees) for making collective decisions; imagined a national statistical conference based on the experience he has accumulated in two conferences of the International Statistical Institute (1S1); applied attention to the formation of a statistical professional community; encouraged and sponsored the translation of books, among other measures. The Census of1920, he had made, the only major census at the Early Brazilian Republic, was guided by friendly relations with the federal and provincial statistical organizations and with the society (Catholic Church, media, unions, clubs etc.). 1t was, we can say, a modern census, using processing machines, and concluded in a timely fashion. The printed volumes of results were illustrated by pictorial graphics, also used at the Pavilion of Statistics, called (by the press) the Pavilion of Precisely Science, which fixed the presence of DGE in the 1nternational Exhibit of the Brazilian 1ndependence Centennial (1822-1922). With his experience, anticipated the basis of Brazilian 1nstitute of Geography and Statistics (1BGE), created in 1936 as the new Brazilian Statistical central agency (still working with growing success), that can be see, in sum, as a measure of his success in a long term vision.

Keywords: Early Brazilian Republic. Statistical activity. Statistical professional community. Demography applied to public health. Scientific field of research. Census.


 

 

Nem bem se instalara a 15 de novembro de 1889, com tudo por fazer, em nova ordem política e pública, e já a 02 de janeiro seguinte, o governo provisório da República ordenaria, - por ação direta de Aristides Lobo, militante positivista, então Ministro dos Negócios do Interior -, a restauração da Diretoria Geral de Estatística (DGE), havida no Império, e lhe dava a missão precípua de realizar o Censo de 1890, como previsto na legislação monárquica. Na verdade, mais que fazer um censo, a DGE devia fazer estatísticas, sob um programa abrangente; o novo órgão vinha com força, ao renascer; contudo, seguiria um caminho tortuoso e polêmico, bastante claudicante. Em suma, havia um querer-fazer (vontade política) e um poder-fazer (instituição específica) as estatísticas, mas ainda faltaria, por muito tempo, o saber-fazê-las (comunidade de especialistas); essa falta seria atenuada pelos demógrafos sanitaristas, demandantes específicos das estatísticas.

Seu primeiro Diretor Geral seria Timóteo da Costa, e logo adiante Mendes da Rocha, ambos engenheiros e matemáticos, e também militantes do positivismo; três outros seriam fracos e frágeis na direção, sem maiores qualificações, a menos de relações políticas, como Raul Pompéia, florianista apaixonado. Nada disso ajudava, ao contrário, atrapalhava. Assim, a DGE que nascera potente, pouco a pouco, minguaria; viveria em crises várias, sofrendo reduções de recursos. Os Censos de 1890 e de 1900 viriam e seriam precários; outras fontes usadas na geração das estatísticas (em especial, o registro civil) também seriam frágeis; em vez de resultados consistentes, havia lamentos e tentativas de explicação. Essa situação precária só mudou quando José Luiz Sayão de Bulhões Carvalho (1866-1940) assumiu a direção-geral, fazendo uma profunda revolução na atividade estatística brasileira; suas credenciais, suas vivências, sua visão de mundo, levaram-no ao sucesso, não a um sucesso de absolutas realizações, mas sim a um sucesso de concepção, ensaiando o futuro que seria o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

 

OS PRIMEIROS MOMENTOS

O novo regime político prometia mudanças profundas, entretanto, viveria uma década de crises, com levantes armados em várias partes do país. Essa falta de ordem afetava a operação censitária, e a de 1890 sofreria seus reflexos, oferecendo resultados precários. Tendo ainda em curso o censo, e a primeira constituição republicana, sancionada em 24 de fevereiro de 1891, numa clara imitação à constituição estadunidense, estabeleceria a decenalidade censitária. Esse preceito garantiria, ao fim e ao cabo, a existência formal e legal da DGE, pese seus altos e baixos, mas não garantiu a almejada regularidade, nem qualidade na atividade estatística. De fato, também o Censo de 1900 estaria aquém dos sonhos, e o de 1910 nem teria início efetivo (como, mais tarde, também seria o caso em 1930); assim, só restará mesmo o de 1920, esse sim, uma obra monumental, graças a Bulhões Carvalho.

Enfim, uma década depois do golpe de 1889, Campos Sales, ao negociar a política dos estados (ou dos governadores), por assim dizer, refundaria a República. A descentralização republicana, que, desde o início, se contrapusera à centralização monárquica, com aquele acordo ganhava forma e força; a federação resultante seria extrema. Isso tornaria, no mínimo, difícil, não raro precária, a atividade estatística; sim, as tentativas de coordenação, visando as estatísticas integradas, tendo por norte um órgão central, de caráter federal, eram ignoradas pelas agências nos estados. A esse tempo, houve a severa política saneadora das finanças, mas sem afetar o Censo de 1900, sendo feito naquela ocasião, o que é raro, dado o rigor nos gastos públicos; adiante, como parte daquela política que favorecia a federação, viriam as reformas da capital federal. No governo Rodrigues Alves, com Pereira Passos à frente da capital federal, e com as ações de Oswaldo Cruz, as políticas de urbanização e de saneamento demandaram estatísticas populacionais, fazendo pressão sobre a DGE, que não foi capaz de atender a contento, daí sofrendo uma saraivada de críticas.

A situação era estranha, já que as principais estatísticas então produzidas eram populacionais, ora via censos (o estoque da população), ora via registro civil (o fluxo da população). Como visto antes, o Censo de 1890 foi feito, mas, dada a crise no regime, não respondeu às expectativas (poucos volumes foram publicados); o Censo de 1900 nem bem saiu e, no que tange à capital federal, provocou polêmicas entre intelectuais, sendo rechaçado publicamente, e, ao fim e ao cabo, anulado oficialmente. No que tange ao registro civil, laicizado pela República, em medida recente, era ainda recebido com reticências pela população, levando a subregistros nos nascimentos, casamentos e falecimentos. Daí os demógrafos sanitaristas viverem sempre insatisfeitos, fazendo críticas severas à DGE. Então, para suprir essas faltas, bem sustentando sua administração, Pereira Passos mandou fazer um censo na capital federal, que deveria ter início em 1902, mas, face às crises advindas no contexto das reformas (saneamento e urbanização), só foi feito em 1906; em seu comando estava Aureliano Portugal, tendo como auxiliar próximo Bulhões Carvalho, ambos médicos e sanitaristas dedicados à demografia, partícipes das polêmicas mencionadas.

A DGE atuava, e o fazia com afinco, tentava (ao menos) sobreviver, mais que isso, na verdade, tentava convencer. Contudo, seus técnicos e diretores não traziam um mínimo de conteúdo, e essa falta de amparo teórico comprometia a qualidade dos resultados. Acumulava fracassos, não atendendo às expectativas; essas crises somente acabariam, claro, quando algum desses críticos, com rasgos teóricos, melhor ainda se tendo prática de produtor, assumisse o comando da DGE. Um bom nome teria sido Aureliano Portugal, mas a escolha recairia em seu auxiliar direto, Bulhões Carvalho, no governo Affonso Penna, em 1907. Sua ação na DGE, em dois tempos, 1907 a 1909 e 1915 a 1931, seria ampla, atuando nos censos e no registro civil, afora outras frentes. Com ele, a atividade estatística seria pensada, refletida e idealizada; não teve pleno sucesso de imediato, dadas as restrições federativas, mas, a médio prazo, criado o IBGE, como fruto de suas visões (ajustadas por Teixeira de Freitas), sua contribuição seria reconhecida e ele seria visto como o "Fundador da Estatística Geral Brasileira", alcançando a vice-presidência do International Statistical Institute (ISI).

 

O ESPÍRITO DAS MUDANÇAS (1907)

Bulhões Carvalho assume a direção da DGE em 26 de abril de 1907. Por sua vivência, não precisa de muito tempo para diagnosticar os problemas e apontar rumos. Pede, então, uma ampla reforma na DGE, que, em rápida tramitação parlamentar vem pelo Decreto no 6.628, de 5 de setembro de 1907.

O ponto de partida foi definir a missão da DGE, o que veio no art. 1o: "a repartição central incumbida de receber e coordenar todas as informações que se relacionem com o estado físico, político, administrativo, demográfico, econômico, moral e intelectual da República". Isso logo sofreu os obstáculos federativos.

Em seguida, foi preciso declarar a estrutura e o programa estatístico. O art. 7o apresenta a estrutura: uma secretaria e quatro seções; havia ainda um bibliotecário (art. 13o), um arquivista (art. 14o), um cartógrafo1 (art. 15o), um almoxarife (art. 16o), um porteiro (art. 17o). Passava-se de 17 para 73 funcionários. As funções das quatro seções compunham o programa estatístico, e eis como Bulhões Carvalho o revelou em relatório:

A primeira [seção] se ocupará do estudo das questões relativas ao aspecto territorial, considerado sob o ponto de vista físico, político e administrativo, coligindo detalhes estatísticos sobre os seguintes assuntos: estrutura geológica, topografia, hidrografia, orografia e climatologia; divisão política e eleitoral, estatística eleitoral, representação nacional, defesa nacional; divisão administrativa, judiciária, finanças, administração; estatística judiciária, civil e comercial, colonização, obras públicas.

A segunda [seção] terá a seu cargo tudo quanto se referir ao aspecto demográfico, estudado quer no ponto de vista estatístico (recenseamento, densidade e composição da população), quer no ponto de vista dinâmico (registro civil, imigração, tábuas de sobrevivência, tábuas de mortalidade, vida média, vida provável, movimento sanitário e higiênico).

A terceira [seção] se encarregará de coligir informações concernentes ao aspecto econômico, discriminado-as sob o ponto de vista da produção, circulação, distribuição e consumo, com esclarecimentos especiais sobre os assuntos seguintes: agricultura, zootecnia, indústria, comércio; vias e meios de comunicação, metais preciosos, moeda metálica e fiduciária, títulos mobiliários, bancos e estabelecimentos de crédito; salários, interesses, arrendamentos e aluguéis, emolumentos, impostos, benefícios; alimentação, vestuário, móveis e outros artigos de consumo, divertimentos, sinistros (incêndios, chuvas de pedra, inundações, terremotos, naufrágios, explosões, epizootias).

Finalmente, a quarta [seção] se incumbirá dos assuntos ligados aos aspectos intelectual e moral, organizando estatísticas relativas à instrução pública e particular, às associações científicas, literárias e artísticas, à imprensa periódica, às exposições, diversões e belas artes, penalidade, criminalidade, suicídios, mendicidade, previdência, beneficência, culto religioso, hospitais, hospícios, recolhimentos e asilos, polícia civil, penitenciárias e estabelecimentos de repressão, socorros públicos, catequese (Brasil, 1908, p. 16).

Um programa estatístico bastante amplo, cobrindo a população, em si, e em suas relações (econômicas e sociais) no território. Afora os censos, as estatísticas seriam derivadas dos registros administrativos existentes nos municípios e nos estados, daí sendo chave acordar-lhes a cooperação. O acesso aos registros, por serem muitos e em muitos lugares, teria que ser feito, óbvio, pelos seus próprios detentores em suas repartições, mas, para garantir uniformidade, valendo-se de orientações centralizadas. Já isso era difícil, pois, ao fim e ao cabo, davam-se novas tarefas àquelas pessoas, já com seus afazeres cotidianos, ainda mais se a DGE os quisesse acessar diretamente, para o quê teria que poder contar com uma estrutura de representações localizadas nos municípios e nos estados, impossível naquele tempo, seja por falta de recursos federais, seja pela recusa das entidades federativas, sem olvidar que, em existindo essas representações, seus atores teriam que entrar no cotidiano das repartições locais, fossem estaduais ou municipais, o que seria, no mínimo, um transtorno.

Como forma de solução, Bulhões Carvalho idealiza um Conselho Superior de Estatística (CSE) e pensa em acordos bilaterais. Os art. 3o a 6o tratam da criação desse Conselho, com o qual esperava configurar uma cooperação produtiva amigável nas três esferas públicas (federal, estadual e municipal). Os estados prestariam obediência não a um órgão federal executivo, mas antes a um órgão colegiado, do qual seriam membros; ao órgão federal executivo caberia apenas dar forma e curso às decisões colegiadas, e o faria, tanto mais e melhor, quando por meio de acordos bilaterais (federal e estados). Infelizmente, o Conselho idealizado era demasiado complexo, de difícil operação, e foi uma fonte de sucessivas frustrações para Bulhões Carvalho. Sua composição era demasiado portentosa, nele tendo assento as mais gradas figuras da República, por certo com muitas ocupações e com parcos saberes estatísticos, ainda que vistos num sentido bastante operacional2.

Indo fundo nas mudanças, propôs algumas então inéditas no serviço público federal: afora o lugar de Diretor Geral, que seria de livre escolha do governo, os demais cargos o seriam por seleção interna ou por concurso externo (art. 18o). As regras de entrada e de ascensão eram draconianas, exigindo aos chefes de sessões saberes (ao menos tinturas) nos vários temas do programa estatístico, além de leitura em diversos idiomas. Ora, como formar quadros, à falta de cursos regulares e de material didático? Em resposta, promove a tradução e edição do "Manual de Estatística", de Filippo Virgilii, traduzido pelo bibliotecário Augusto Dias Carneiro, e faz as primeiras admissões (em 1908) mediante concurso, entre as quais, como 'praticante' (função abaixo do oficial maior, e dos 1o, 2o e 3o escriturários), a de Mário Augusto Teixeira de Freitas, futuro criador do IBGE.

O cotidiano da atividade estatística melhora, havendo uma esperança indiscutível de continuidade, quando, em 14 de junho de 1909, morre, no Palácio do Catete, Affonso Penna. Assume o vice-presidente Nilo Peçanha. O tempo é confuso; as candidaturas à presidência estão postas: Hermes da Fonseca, ex-ministro da Guerra de Affonso Penna, apoiado pelo senador Pinheiro Machado; e Ruy Barbosa, também senador, homem de grande cultura, com sua 'campanha civilista'. Nilo Peçanha, querendo aparentar neutralidade, adota, já na posse, o lema 'paz e amor'; na verdade alinha-se com Hermes da Fonseca.

O refrão 'paz e amor' ganhou fama e deu nome a um espetáculo no cine-teatro Rio Branco, em abril de 1910, que agitou o Rio de Janeiro e contou com Nilo Peçanha na estreia. Tratava-se de um 'filme-revista', um gênero novo e original, com roteiro de José do Patrocínio Filho, que o escreveu sob o pseudônimo de Antônio Simples. Adaptava cenas filmadas com as vozes e as canções do teatro de revista; imagens, vozes, falas e cantos ocorriam ao mesmo tempo no palco. O espetáculo foi um imenso sucesso, agradando às multidões, sendo marca da belle époque brasileira (Saliba, 2004).

 

UM CENSO PERDIDO (1910)

Bulhões Carvalho, tão logo realizou a reforma, agiu, com gosto, em três frentes: a reforma do registro civil, a concepção do Censo de 1910 e se voltou a avaliar a situação do Censo de 1900, cuja apuração e divulgação estavam paralisadas.

Antes do mais, se aplicou na reforma do registro civil. A legislação reformada deveria reforçar "a obrigação de fornecerem os cartórios do registro civil os elementos precisos para a organização da estatística dos nascimentos, casamentos e óbitos", advogando o estabelecer dos "meios coercitivos necessários para obrigar o povo a cumprir esse dever social" (Brasil, 1908, p. 8). Disse que foram solicitadas informações desnecessárias, lembrando o analfabetismo predominante, e que se dava prazo muito curto para a declaração do nascimento, lembrando as dificuldades de transporte existentes, sem esquecer a cobrança excessiva de emolumentos, tendo em vista a pobreza de grande parte do povo, com o agravante da completa ausência de critérios nas cobranças, por parte dos escrivães; e apontou o precário controle de execução, na conta de indefinição na competência dos encarregados. Além disso, afirmou que dois outros fatores impediam a aceitação pacífica do registro: o medo do sorteio militar que se lhe associa e a propaganda contrária dos padres contra o casamento civil. Promoveu uma pesquisa nacional de opinião dirigida aos tabeliães e nomeou um grupo para analisar os resultados.

Entrementes, ainda em 1907-1908, designou uma comissão para analisar o estado do Censo de 1900. Ouvida essa avaliação, mandou reapurar aquele censo, usando recursos disponíveis na repartição, em rara prática de homem público dedicado e competente. Divulga, então, um conjunto de tabelas de grande valor, infelizmente, publicado apenas na edição restrita do relatório anual da DGE, o que o faz, hoje, pouco usado3.

Ao mesmo tempo, trata do censo a se fazer em 1910. Começa a planejá-lo, trazendo a experiência do Censo de 1906 na capital federal. Trata de todas as etapas, não descuida de nenhuma. Faz escolhas conceituais, seleciona as variáveis e elabora os formulários, adquirindo as bobinas de papel para suas impressões; começa a preparar os cadastros de informantes e pensa na propaganda. As contratações de pessoal são poucas; só as faria muitas quando do efetivo começo do trabalho de campo. Esse é o quadro, quando se afasta da função, em final de 1909, pois, ao voltar à direção, em início de 1915, retoma o assunto e, embora sempre sisudo, lhe faz uma análise minuciosa contundente, em cores vivas.

Quis a minha boa ou má estrela, ou antes quis a providência divina (que jamais me desamparou no exercício de cargos públicos) que fosse obrigado a afastar-me da direção do serviço de estatística em fins de 1909, antes do desastre inevitável que forçosamente se daria na operação censitária do ano seguinte, quais que fossem os meus esforços e trabalhos, tais as condições precárias em que ela se ia efetuar, num país extensíssimo, sem meios fáceis de comunicação, mais ou menos desorganizado em matéria administrativa, bastante comprometido pelos interesses da mais mesquinha política e, para maior agravo ainda, com um grau de instrução muito baixo, tornando evidente a sua inferioridade quanto à assimilação das práticas que têm conseguido o progresso em toda parte no que diz respeito à civilização dos povos. [...] Além do grande stock de papel, comprado nas melhores condições, deixei também já organizado o modelo do boletim censitário. Começava a redigir as instruções gerais para a execução do censo em 1910, quando me vi na contingência de deixar o cargo de diretor geral de estatística, convencido de que me faltava o apoio imprescindível para levar a efeito tão difícil quanto espinhosa empresa, numa época em que se apregoava o regimen de paz e amor, mas em que, de fato, a intriga política, a serviço da indisciplina, perturbava a tranqüilidade de espírito que se faz mister no seio das corporações laboriosas como incentivo ao trabalho fecundo (Brasil, 1915, p. 27-28).

A seu juízo, aquela operação censitária fracassada ficaria "registrada nos anais da história da administração brasileira como uma das maiores sangrias do Tesouro Nacional e, talvez, uma das causas remotas que influíram para a ruína financeira" (Brasil, 1915, p. 25), em que se achava, então, o Brasil. O elevado montante despendido teria sido usado em "nomeações de numeroso pessoal, que se ia encarregar de serviços ainda não existentes ou apenas prováveis na sua maior parte". De fato, sem haver o censo em curso, efetivou-se a nomeação de 8.433 pessoas; em São Paulo, foram 1.839; em Minas Gerais, 1.081; no Distrito Federal, 812, e assim por diante. E não houve o censo.

 

RECUPERANDO AS MUDANÇAS (1915)

Ao reassumir em janeiro de 1915, sai em busca do tempo perdido e pede ajustes na estrutura da DGE (seria a quarta em uma década), obtendo-os pelo Decreto no 11.476, de 5 de fevereiro de 1915. A missão segue sendo igual; e volta o Conselho Superior de Estatística.

Em 1916, em relação a 1915, Bulhões Carvalho lamenta em relatório a "instabilidade resultante de sucessivas reformas realizadas na repartição de estatística", e advoga, naturalmente, uma construção da estabilidade: "sem uma organização definitiva, especial e estável, dificilmente poderá prosperar tão útil serviço público" (Brasil, 1916, p. 3). A não operação do Conselho Superior de Estatística é sua maior frustração, e reitera: "O Conselho Superior de Estatística será, no Brasil, um auxiliar poderoso da repartição encarregada de dirigir e desenvolver o serviço de coleta e elaboração dos elementos suscetíveis de confronto numérico" (Brasil, 1916, p. 4-5).

Sobre 1916 e 1917, a situação pouco modifica: o Conselho segue titubeante, a seleção de técnicos não alcança os resultados necessários, por resistências na condução do serviço público, e Bulhões Carvalho lamenta ser forçado a ceder técnicos a outros órgãos (o que pede seja proibido); como ideia nova, pede um plano de carreira específico para a atividade estatística. Pese as muitas dificuldades enfrentadas, e mesmo diversos insucessos, não esmorece. É quando recebe o alento de fazer o Censo de 1920, ao qual se dedicará atentamente; o que intentara realizar no Censo de 1910 faria agora, e com sucesso absoluto. Com o novo censo, revelará de maneira indiscutível sua competência, fazendo uma inflexão positiva na história censitária brasileira (ainda que o Censo de 1930 não seja feito).

 

O INÍCIO DO CENSO (1920)

A glória de Bulhões Carvalho será marcada fortemente pela realização do Censo de 1920. Nunca antes o país planejara tão minuciosamente um recenseamento; e jamais o fizera, de fato, geral, ou seja, populacional e também econômico. Um planejamento minucioso, obtendo cadastros (ou os fazendo), traçando divisões dos espaços urbanos e rurais, começara antes mesmo da aprovação da legislação pertinente, autorizando a realização censitária e aportando-lhe orçamento. O conteúdo e o cuidado dos planos atestavam maturidade, mesmo aos olhos de hoje, mais ainda aos padrões da época.

Na capital federal, sob a direta ação da DGE, mapas das ruas foram feitos e divididos em segmentos trabalháveis (tipo os atuais setores censitários); isso em estreita relação da DGE, via seu cartógrafo, com órgãos municipais, em geral, aqueles voltados às atividades sanitárias. Nos estados, houve a orientação e o estímulo para que o mesmo fosse feito, mas com sucessos limitados; dessa forma, neles, seguiu-se contando com pessoas que conhecessem as localidades onde deviam trabalhar, o que dava, por certo, margem a improvisos, que se tentou atenuar com uma estrutura de fiscalização, com realce para a atuação de um delegado da estatística nos estados. Contudo, a estrutura censitária nos municípios seguia sendo local, sujeita a vícios de várias ordens, o que seria péssimo, mas, diante do espírito federativo dominante, seria mesmo inevitável.

Os delegados da estatística nos estados puderam garantir a distribuição dos formulários, em números e em tempo certos (a menos de poucos furos). Ao final do processo, puderam garantir o controle de qualidade, checando e corrigindo os preenchimentos, bem assim, evitando extravios na remessa dos formulários preenchidos e conferidos à repartição de estatística na capital federal. Com essa rara presença federal nos estados, para fins da atividade censitária, pôde-se contornar as autonomias federativas. Alguns dos delegados cumpriram suas atividades com extremada competência4, conseguindo aglutinar esforços também dos estados; alguns, nessa luta, também fizeram pesquisas de interesses estaduais, aplicando formulários específicos na atividade censitária. Muito do sucesso da operação deveu-se aos delegados.

Precisamente no dia 1o de setembro de 1920 realizou-se em todo [o] Brasil o recenseamento da população, da agricultura e das indústrias5. Tanto na Capital como nos Estados, correram regularmente os trabalhos do censo, com mais ou menos facilidade, segundo as condições especiais inerentes ao meio onde foram executados, não sendo razoável exigir perfeita uniformidade do serviço em todas as localidades do vastíssimo território brasileiro, algumas das quais quase inacessíveis aos mais comuns meios de transporte, ainda mesmo não levando em conta outros empecilhos, tais como o perigo na travessia de zonas excessivamente insalubres e não raro infestadas de hordas selvagens de índios ou de bandoleiros da pior espécie. Não obstante tudo isso, o recenseamento não deixou de ser feito em parte alguma do Brasil, tendo sido convenientemente supridas as possíveis lacunas do inquérito demográfico (Brasil, 1922, p. 501).

Para vencer as resistências e/ou reticências da população, praticou-se uma vastíssima propaganda: cartazes, folhetos etc. foram amplamente distribuídos; matérias especiais para imprensa, palestras, seminários, conferências etc. foram realizados; empenhou-se por conquistar expressivos segmentos da sociedade: a Igreja Católica (dos altos prelados aos simples párocos e vigários), as associações operárias, as associações patronais, os clubes (por exemplo, dos aviadores, então em moda), as forças armadas, os órgãos públicos federais, entre outros. Tudo isso funcionou como uma ação valiosa de superação à federação.

Outro fator de sucesso da operação censitária, angariando simpatias e apoios, foi o centenário da Independência. Não seria aceitável que um país, há cem anos livre, não tivesse de si um retrato numérico, como era comum entre as nações civilizadas. Teria que haver um censo, um ótimo censo, ainda mais a partir do momento em que ficou acertado que a comemoração do centenário da Independência se daria no contexto de uma Exposição Universal, no Rio de Janeiro. Nesses casos, seria comum haver um pavilhão da estatística, para o quê um censo atualizado era fundamental; e, de fato, houve na Exposição o Pavilhão da Estatística, chamado pela imprensa de Pavilhão da Ciência da Certeza6.

Não apenas foi pensado o trabalho de campo, o que era comum, mas também as demais etapas do processo de trabalho. A apuração foi realizada com as máquinas separadoras e tabuladoras Hollerith (criadas para o serviço censitário norte-americano), com seu sistema de cartolinas (cartões perfurados), dando agilidade e segurança às apurações, com ganhos imediatos na divulgação dos resultados. O sistema era complexo e minucioso, exigindo pessoas atentas e, por isso, seria feito por mulheres.

Na divulgação dos resultados, a inovação foi completa. Houve um inédito volume introdutório, com vários estudos, entre os quais o de Oliveira Viana, "O povo brasileiro e sua evolução", sem olvidar a narrativa do processo de trabalho da pena do próprio Bulhões Carvalho. Houve adoção de gráficos pictóricos, causando admiração, ainda hoje, a quantos os veem nos volumes impressos; esses mesmos gráficos, em formatos gigantes, foram usados nas paredes do Pavilhão da Estatística.

 

DEPOIS DO CENSO

Afora o censo, a DGE seguia com suas atividades ordinárias, já se beneficiando da infra-estrutura trazida para o censo, sobremodo das máquinas, mas também de pessoal extra. Tentava alcançar uma normalidade, mas a situação seguia sendo precária, por ser difícil chegar aos municípios e neles alcançar os registros administrativos.

A marcha das seções era lenta, mas não sem avanços. Teria que haver muita persistência para, ao fim e ao cabo, alcançarem resultados irrisórios e, sobretudo, duvidosos. Isso, a um custo sempre crescente, o que mais ainda alarmava. O tempo era longo, o custo era largo; daí, as frequentes resistências e a recorrente incompreensão.

Terminando esta breve notícia dos trabalhos realizados pela repartição a meu cargo no ano próximo findo, devo consignar a minha impressão de que a Diretoria Geral de Estatística, graças à boa vontade do seu dedicado pessoal, continua a manter de modo satisfatório a sua atividade, sempre profícua, no organismo administrativo nacional. Se os resultados dos seus inquéritos não são ainda perfeitos e se ressentem de falhas inevitáveis, a razão dessas deficiências ressalta logo ao encarar as dificuldades inerentes ao nosso meio social: a precariedade das fontes informantes a que é possível recorrer, como acontece, para citar apenas a mais importante, com o defeituoso registro civil; o mau aparelhamento do nosso sistema judiciário e administrativo no que respeita à verificação dos fatos que mais intimamente afetam a vida dos seus diferentes órgãos; e, finalmente, as condições da própria Diretoria, cujas iniciativas só poderão alcançar o desejado êxito quanto dispuser este departamento, nas várias unidades da República, dos elementos de ligação que o ponham em contato imediato com os governos estaduais e, por meio deles, com as autoridades que lhes estão subordinadas direta ou indiretamente.

Dos vários embaraços apontados, é possível esperar sejam removidos alguns com o decorrer dos tempos, sob a influência da legislação e da cultura, em geral aperfeiçoadas à medida que o país evolui e aumenta a ação educadora da própria Diretoria, cujos inquéritos registram, de ano para ano, uma diminuição auspiciosa na porcentagem dos dados lacunosos por falta de resposta dos questionários ou pedidos de informações. Para que ainda mais se acentuem essas perspectivas favoráveis, convém perseverar a ação do governo federal no sentido de aproveitar a eficiente colaboração das diversas organizações estatísticas dos Estados, as quais, devidamente prestigiadas pelas respectivas administrações, poderão prestar ao país, orientando melhor os seus dirigentes, os mais valiosos serviços (Brasil, 1930, p. 171-172).

Em 1929, há um novo censo em vista, e a DGE ganha alento. Em maio de 1930, Bulhões Carvalho proferiu as famosas conferências de propaganda do Censo de 1930, em Recife e em Salvador, nas quais advogou uma harmoniosa cooperação interadministrativa, já na esfera federal e, especialmente, com os estados e municípios.

Não houve, contudo, o Censo de 1930, na conta do movimento revolucionário que pôs fim à Primeira República. Um novo tempo começaria mudando a atividade estatística, e ele viria pela idealização do discípulo Teixeira de Freitas do que viria a ser o IBGE, instalado em 29 de maio de 1936, com a posse na presidência do embaixador Macedo Soares.

 

A TUTELA CORRETA

Embora vinculada a um ministério, à repartição de estatística competia realizar um programa estatístico supra-temático, ou seja, acima dos vários órgãos da esfera federal (sem olvidar seus vínculos indiretos aos municípios e aos estados). Assim, o vínculo da repartição a um ministério, temático, pouco a pouco, será posto em pauta.

A tarefa de organizar e de sistematizar o serviço da estatística agrícola, em todo o território da República, não pode nem deve ser integralmente conferida à Diretoria Geral de Estatística. Nas atuais condições do Brasil, semelhante empreendimento só será levado a bom termo pela conjugação de esforços das várias repartições do Ministério, mediante o aproveitamento do numeroso corpo de funcionários que as diretorias de Inspeção e Fomento Agrícolas, Indústria Pastoril e Meteorologia mantém em todos os Estados. O concurso da Diretoria Geral de Estatística poderá ser, entretanto, assaz vantajoso, desde que, convenientemente organizada, possa auxiliar os inquéritos locais com os seus correspondentes voluntários ou estipendiados, incumbindo-se, além disso, da rápida apuração dos algarismos coligidos nos vários inquéritos, o que exige naturalmente pessoal competente e assaz numeroso na sede da repartição. O confronto da amplitude das atribuições regulamentares da Diretoria Geral de Estatística, com o escasso pessoal técnico de que atualmente dispõe para efetuar os seus inquéritos, demonstra a imprescindível necessidade de reorganizá-la de modo a prevenir a virtual paralisação dos serviços, em época não muito remota, quando, concluídos os trabalhos do censo de 1920, cessarem os recursos extraordinários facultados para a execução desse empreendimento e dos quais se tem valido para ativar e por em dia os seus trabalhos permanentes (Brasil, 1925, p. 80).

Essa questão da tutela do órgão central só seria resolvida quando da criação do IBGE, vinculado diretamente ao presidente da República. Assim será até 1964, quando, após alguns poucos tempos erráticos, irá, como ainda hoje, vincular-se ao Ministério do Planejamento (que, por sua natureza, tem atuação ampla).

 

ROMA E CAIRO, REUNIÕES DO ISI

Entrementes, Bulhões Carvalho participa de duas reuniões do International Statistical Institute (ISI), a de Roma, em 1925, e a do Cairo, em 1927. Pontifica o intelectual.

Na reunião de Roma, houve três seções. Na 1a, "Método e demografia", foram vistas a "Classificação das indústrias", o "Método representativo" (discussões sobre amostragem), a "Estatística das causas de morte", a "Estatística das migrações". Na 2a seção, "Estatísticas econômicas", foram vistos o "Recenseamento da produção industrial", a "Estatística dos stocks", o 'Anuário estatístico das grandes cidades", a "Estatística da produção das indústrias que constituem objeto de um monopólio ou estão sujeitas a impostos de consumo". Na 3a, "Estatísticas sociais", foram vistos o "Índice do custo da vida", a "Estatística dos acidentes no trabalho", a "Estatística dos salários e da duração do trabalho", os "Salários como elementos do custo da produção", a "Estatística dos desocupados".

Bulhões Carvalho ofereceu "um sucinto relatório dos trabalhos realizados no censo de 1920" (Carvalho, 1925a), tendo ouvido avaliação lisonjeira de Valentino Dore, do Instituto Internacional de Agricultura de Roma. Exibiu no Cinema Orfeo, aos delegados à conferência, "o film cinematográfico das operações censitárias nas suas diferentes fases, desde os trabalhos de propaganda até a final apuração dos algarismos nos engenhosos aparelhos Hollerith". O prof. Benini, da Universidade de Roma, "conhecido e conceituado demografista", disse que "havia assistido a uma bela lição de estatística prática" (Brasil, 1926, p. 200). Proferiu também "conferência de propaganda sobre a imigração italiana" (Carvalho, 1925b) no Palácio Sciarra, sob os auspícios do Instituto Cristoforo Colombo, "logrando ser ouvido por numerosa e seleta assistência, em que figuravam muitos políticos, diplomatas e pessoas de grande destaque na sociedade romana" (Brasil, 1926, p. 200).

Na reunião do Cairo, houve três seções. Na 1a seção, tratou-se da "Classificação das causas de morte", do "Anuário estatístico das grandes cidades", do "Registro de óbitos e nascimentos nos distritos de população esparsa"; em temas pontuais, das "Estatísticas das minorias", da "Estatística dos nascimentos da Itália", do "Recenseamento da Turquia" (sob a direção de Camille Jacquart); e, em tema geral, da "Aplicação do método representativo" (por Corrado Gini). Sobre as causas de morte, o foco seria a modificação da nomenclatura de Jacques Bertillon, já de 40 anos, que não mais atendia à "estatística nosológica" da atualidade. Sobre as minorias, discutiu-se "a importância da estatística para a proteção das minorias nacionais", em Viena, sendo criado o Instituto de Estatística das Minorias. Na 2a seção, viu-se temas muito variados: índices da atividade produtiva, estoques de cereais e de açúcar, salário, turismo, transporte. Na 3a seção, vieram as temáticas: estatística intelectual, comparação internacional dos salários, estatística dos acidentes no trabalho (Brasil, 1928).

Bulhões Carvalho ofereceu uma comunicação: "Breve notícia sobre a legislação social do Brasil e especialmente sobre os acidentes no trabalho"; contribuiu na discussão do "registro civil de óbitos e nascimentos nos distritos de população esparsa", e tratou da "produção e consumo do algodão e do fumo no Brasil". Porém, esses textos não nos chegaram.

 

A CONFERÊNCIA DE COOPERAÇÃO NACIONAL

Valendo-se dessas experiências internacionais, idealiza aquela que teria sido a primeira Conferência Nacional de Estatística, a se realizar em outubro de 1930, com a qual pensava estabelecer uma cooperação interadministrativa entre as três esferas públicas (federal, estadual e municipal) do país. O programa tem duas partes: uma geral, com os fundamentos da conferência; outra especial (território, clima, administração, justiça, demografia, economia e finanças, estatística intelectual), com os devidos detalhes. Vejamos a parte geral:

I Uniformidade da estatística federal. Cooperação entre os diferentes órgãos administrativos da União. Bases para a colaboração desses serviços na organização da estatística geral do país. Natureza e limites das contribuições respectivas. Prestação automática das informações, estabelecendo-se o prazo para a remessa dos contingentes destinados a figurar nas publicações de conjunto, de modo a permitir a divulgação oportuna dos anuários e outras publicações de caráter geral.

II Uniformidade das estatísticas estaduais. Meios de conseguir esse objetivo. Adaptação dos modelos utilizados nos inquéritos estaduais aos tipos de formulários adotados pela estatística federal. Uniformização do método a seguir na exposição dos resultados.

III Sistematização das estatísticas municipais. Medidas necessárias para promover a criação e o desenvolvimento dos serviços de estatística municipal. Interferência indireta, auxílios e coparticipação dos governos estaduais para a organização dessas estatísticas.

IV Ação conjugada da Diretoria Geral de Estatística e das repartições centrais de estatística dos Estados na coleta de elementos estatísticos de interesse comum. Delimitação das atividades da União e dos Estados para conseguir aquele objetivo. Definição dos encargos e determinação das responsabilidades financeiras no custeio das investigações.

V Influência das leis federais, estaduais e municipais quanto à criação de registros e fontes informantes. A finalidade estatística na regulamentação dos serviços públicos.

VI O ensino da estatística como disciplina social absolutamente indispensável à cultura moderna dos povos bem orientados e progressistas. Sua inclusão como matéria de curso obrigatório nos programas das escolas secundárias e superiores. Criação de cadeiras independentes e autônomas de estatística, confiadas a docentes especiais, sobretudo nas Faculdades de Direito7.

VII Questões estatística de ordem geral não especificadas.

Não teve lugar, contudo, na conta da Revolução de Outubro que deu fim à Primeira República, levando Getúlio Vargas ao poder, mas dela ficou uma contribuição excepcional, qual sejam as "33 teses" elaboradas por Teixeira de Freitas, como fruto de sua vivência em Minas Gerais, nos anos 1920, e que dariam, depois, forma ao IBGE.

 

UMA REFLEXÃO INTELECTUAL

Bulhões Carvalho produziu relatórios, e afins, que têm o caráter de estudos e são valiosos. Na DGE, ainda que sendo um gestor, seus relatórios gerenciais são altamente reflexivos, e bem abordam a atividade estatística teoricamente. Mas, foi além e fez leituras da realidade brasileira a partir dos números produzidos. Afora os acima referidos, levados às reuniões do ISI, abordou diversas questões sociais, por exemplo, a imigração japonesa e a situação dos deficientes. Aposentado, escreveria "Estatística: methodo e applicação", um livro robusto que publicaria pela Typografia Leuzinger, em 1933. Sob seu nome, na folha de rosto, aparecem as seguintes qualificações: "ex-demografista da Diretoria Geral de Saúde Pública, ex-Diretor Geral de Estatística e membro titular do Instituto Internacional de Estatística".

A obra tem três seções. A 1a, "Noções Gerais", tem três capítulos: 1. "Noções Gerais", 2. "Organização da estatística oficial", 3. "Congressos de Estatística (programa, votos e pareceres)". Nessa seção, entrando na discussão se a estatística é um método ou uma ciência, afirma poder-se "asseverar que a estatística é um método científico no rigor da palavra", e lembra que Quetelet "considera a estatística ciência e método" (Carvalho, 1933, p. 9-10). Depois, oferece um alentado histórico da estatística, passando por Petty, na Inglaterra, por Colbert, na França, por Conring e Achenwall, na Alemanha, por Quetelet, na Bélgica.

A 2a seção, "Método: estatística metodológica", trata da "técnica", do "número", das "operações técnicas", dos "processos aritméticos, algébricos e geométricos, ou gráficos de exposição dos resultados estatísticos". Trata do processo de pesquisa: coleta (elaboração dos questionários, decisão da técnica etc.), apuração (máquinas, tabulações etc.), interpretação e divulgação dos resultados; e trata das séries, dos números índices, das tábuas de vida, das médias e das dispersões, dos coeficientes, entre outros assuntos; nessa seção, reproduz trechos de relatórios por ele elaborados e trechos de prefácios de várias obras da DGE.

A 3a seção, "Aplicação: estatística aplicada", trata da "estatística territorial", da "estatística demográfica (estado da população, movimento da população)", da "estatística econômica", de "outras estatísticas econômico-sociais", da "estatística financeira", da "estatística social", da "estatística moral". Detalha um programa estatístico; cada tema é aberto e, a cada subtema, disserta os problemas e condições de solução; nessa seção, "encontram-se as principais decisões adotadas pelo Instituto Internacional [de Estatística] em relação às diversas espécies de estatística" (Carvalho, 1933, p. 138).

 

UM NOVO TEMPO

Em 1931, a DGE é extinta. O órgão criado se revela incapaz de fazer avançar a atividade estatística brasileira. Então, a feliz união do saber de Teixeira de Freitas e o poder de Juarez Távora levaria à criação do IBGE (em 1934)8.

No 29 de maio de 1936, com a posse como presidente do embaixador Macedo Soares, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, o IBGE seria instalado. Depois dos discursos de Getúlio Vargas e de Macedo Soares, caberá a palavra a Teixeira de Freitas.

Em seu discurso, presta honras a Bulhões Carvalho, dizendo que o que naquele instante ganhava as condições de funcionamento e funcionalidade por ele fora antes pensado, e mesmo testado, e se não tivera sucesso, fora pelas razões já superadas e removidas, qual seja, a federação extremada. O novo tempo do Brasil fazia um novo tempo da estatística brasileira, que, depois, faria um novo Brasil, melhor informado e conhecido.

E nós outros que o vamos movimentar, temos, pela nossa experiência, a convicção de que ele corresponderá aos seus fins. E quando não tivéssemos a consciência disso, poderíamos afirmá-lo, em confiança à inteligência e ao extraordinário senso profissional de Bulhões Carvalho, que com a autoridade eminentíssima de criador da estatística geral brasileira, de realizador do grande censo geral de 1920, de tratadista consagrado na matéria e de técnico de reputação mundial como membro vitalício que é do Instituto Internacional de Estatística, preconizou e ensaiou todas as realizações que o plano do nosso Instituto sistematizou.

Os acordos inter-governamentais; o Conselho de Estatística; as delegações regionais e locais para inquéritos diretos; a especial franquia postal-telegráfica para os serviços estatísticos; a organização do Anuário Estatístico Brasileiro; o preparo das publicações especializadas de estatística e ainda das que são preparatórias ou complementares daquelas; a cartografia estatística; a colaboração dos serviços estatísticos na cartografia geográfica, na obra de vulgarização científica ou educativa e na publicidade informativa; as exposições de estatística; as conferências de estatística; a organização e o amparo da Associação Brasileira de Estatística; a criação da Revista Brasileira de Estatística; a colaboração do Brasil nas iniciativas internacionais ligadas à estatística; - tudo isto que é o principal no plano de organização ou de operação do Instituto, tudo também foi objeto de iniciativas, de realizações, de ensaios, de demonstrações, de apelos de Bulhões Carvalho. Logo, tal a força demonstrativa que os êxitos da exemplar e fecunda carreira de 30 anos de vida pública desse grande brasileiro dão a estas diretivas por ele praticadas ou lembradas, podemos bem ter como certo que o Instituto é precisamente o grande sistema que deve ser e não poderá falhar à sua missão. Esta é a fé inabalável dos estatísticos brasileiros, que vemos em Bulhões Carvalho, mestre querido de todos nós, nosso modelo, nosso guia, nosso oráculo (Freitas, 1990, p. 108-109).

Dois anos depois, em 16 de julho de 1938, ao se tornar membro vitalício do International Statistical Institute, recebe da Assembléia Geral do Conselho Nacional de Estatística, um dos três colégios máximos do IBGE, o título de "Fundador da Estatística Geral do Brasil". Sua obra, então, ganhava a merecida consagração; e seguiria ganhando, ao longo do tempo, refletido no crescente sucesso do IBGE, mais e mais como parte da ordem do Estado, vital à arte de governar, em indiscutível credibilidade e legitimidade. Pois tudo tem origem no pensar de Bulhões Carvalho.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL, Diretoria Geral de Estatística. Relatório apresentado ao Dr. Geminiano Lyra Castro, Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio, pelo Dr. José Luiz S. de Bulhões Carvalho, Diretor Geral de Estatística. Rio de Janeiro: Typographia da Estatística, 1930.

BRASIL, Diretoria Geral de Estatística. Relatório apresentado ao Dr. Geminiano Lyra Castro, Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio, pelo Dr. José Luiz S. de Bulhões Carvalho, Diretor Geral de Estatística. Rio de Janeiro: Typographia da Estatística, 1928.

BRASIL. Diretoria Geral de Estatística. Relatórios apresentados ao Dr. Miguel Calmon du Pin e Almeida, Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio, pelo Dr. José Luiz S. de Bulhões Carvalho, Diretor Geral de Estatística. Rio de Janeiro: Typographia da Estatística, 1926. p. 200.

BRASIL. Diretoria Geral de Estatística. Relatório apresentado ao Dr. Miguel Calmon du Pin e Almeida, Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio, pelo Dr. José Luiz S. de Bulhões Carvalho, Diretor Geral de Estatística. Rio de Janeiro: Typographia da Estatística, 1925.

BRASIL. Diretoria Geral de Estatística. Recenseamento do Brasil, realizado em 1o de setembro de 1920. Rio de Janeiro: Typographia da Estatística, 1922. v. 1.

BRASIL. Diretoria Geral de Estatística. Relatório apresentado ao Dr. José Rufino Beserra Cavalcanti, Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio, pelo Dr. José Luiz S. de Bulhões Carvalho, Diretor Geral de Estatística. Rio de Janeiro: Typographia da Estatística, 1916.

BRASIL. Diretoria Geral de Estatística. Relatório apresentado ao Dr. João Pandiá Calógeras, Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio, pelo Dr. José Luiz S. de Bulhões Carvalho, Diretor Geral de Estatística. Rio de Janeiro: Typographia da Estatística, 1915.

BRASIL. Diretoria Geral de Estatística. Regimento Interno do Conselho Superior de Estatística, aprovado em sessão de 7 de julho de 1909. Rio de Janeiro: Oficina da Estatística, 1909.

BRASIL. Diretoria Geral de Estatística. Relatórios apresentados ao Dr. Miguel Calmon du Pin e Almeida, Ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas, pelo Dr. José Luiz S. de Bulhões Carvalho, Diretor Geral de Estatística. Rio de Janeiro: Typographia da Estatística, 1908.

CARVALHO, José Luiz Sayão de Bulhões. Estatística: methodo e applicação. Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger, 1933.

CARVALHO, José Luiz Sayão de Bulhões. Aperçu sur les résultats du recensement réalisé au Brésil em septembre 1920: population, agriculture, industrie. Rio de Janeiro: Typographia da Estatística, 1925a.

CARVALHO, José Luiz Sayão de Bulhões. Progresso da imigração italiana no Brasil. Rio de Janeiro: Typographia da Estatística, 1925b.

FREITAS, Mário Augusto Teixeira de. Discurso proferido no ato de instalação do Instituto, em 29 de maio de 1936. In: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Teixeira de Freitas: pensamento e ação. Rio de Janeiro: IBGE, 1990. p. 108-109. (Memória Institucional, 1).

SALIBA, Elias Thomé. Belle Époque tropical. História Viva, São Faulo, ano 2, n. 13, p. 80-84, nov. 2004.

SENRA, Nelson. História das Estatísticas Brasileiras: 1822-2002 - Estatísticas Legalizadas: c.1889-c.1936. Rio de Janeiro: IBGE, 2006. v. 2.

 

 

Endereço para correspondência:
Museu Paraense Emílio Goeldi
Editor do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas
Av. Magalhães Barata, 376
São Braz - CEP 66040-170
Belém - PA - Brasil
Caixa Postal 399
Telefone/fax: 55-91-3249-1141
E-mail: boletim@museu-goeldi.br

Recebido: 06/04/2009
Aprovado: 27/10/2009

 

 

1Segundo o decreto: "O cartógrafo terá por dever organizar os modelos gerais dos quadros destinados à impressão e executar todos os trabalhos gráficos de que o encarregar o Diretor Geral". Dessa forma, elaborar mapas e cartas não estava entre suas tarefas, ao menos, não entre as principais.

2Sua primeira reunião ocorreu em 15 de junho de 1908, tendo examinado os "modelos e questionários adotados para a coleta de informação"; uma reunião extraordinária estava pensada "para tomar em consideração o plano do recenseamento que se deve efetuar em 1910"; nessa reunião, ainda, o Conselho debateu e aprovou seu minucioso regimento interno, em sete títulos, com 56 artigos (Brasil, 1909). Com sua saída da direção, ao final de 1909, e até início de 1915, o Conselho não se reuniu, embora seguisse existindo.

3Para sanar essa situação, o relatório no qual divulgou os resultados da nova apuração foi transcrito no CD que acompanha o volume II de Senra (2006).

4É o caso de Teixeira de Freitas, em Minas Gerais, onde, depois do censo, solicitando licença da DGE, assume o comando das estatísticas estaduais e começa a praticar suas ideias.

5Por um feliz acaso, enquanto ocorria o trabalho de campo (coleta), não houve nenhuma revolta militar ou de qualquer outro tipo. Isso ajudou sobremodo a realização do censo. Só ao seu final, mas já em fase de apuração, portanto em trabalhos internos, é que o país passaria pela revolta dos tenentes.

6Trata-se de um dos poucos pavilhões ainda de pé, hoje abrigando o Centro Cultural da Saúde, em frente ao Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro.

7Essa ênfase de ensino da estatística nos cursos de Direito talvez se deva à intensa demanda por legislação específica (para criar registros, para criar obrigações, para criar compromissos etc.).

8Nesse momento, a bem da verdade, é criado o Instituto Nacional de Estatística que, ao receber a Geografia, se torna o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (1938). A história institucional, contudo, toma já o 1936 como seu momento de fundação, e não 1938, quando apenas a sigla atual surge.