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Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas

versão impressa ISSN 1981-8122

Bol. Mus. Para. Emilio Goeldi Cienc. Hum. v.4 n.3 Belém dez. 2009

 

Guido Beck e a noite dos bastões largos: algumas observações sobre a relação entre física e política no contexto argentino

 

Guido Beck and the night of the long police batons: some observations about the relationship between physics and politics in the Argentinean context

 

 

Antonio Augusto Passos Videira

Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil (guto@cbpf.br)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo consiste em apresentar, sem que haja pretensão de exaustão do tema, de que modo o físico Guido Beck (1903-1988) reagiu aos eventos políticos envolvendo a Universidade de Buenos Aires (UBA) ao longo do segundo semestre de 1966. Com isso, procuro expor algumas ideias de Guido Beck sobre a relação entre ciência, estado e sociedade no contexto sul-americano. Isso será feito por meio da descrição da sua reação ao episódio conhecido como 'noite dos bastões largos'. Beck sempre foi muito sensível às instabilidades políticas existentes no meio acadêmico argentino, uma vez que disputas político-ideológicas poderiam prejudicar o trabalho em prol da construção de uma comunidade de física naquele país. Como conclusão, defendo a tese de que, para Beck, os físicos da UBA avaliaram equivocadamente o valor que tinham para o governo argentino e para parte da população daquele mesmo país.

Palavras-chave: História da Ciência. Física. Guido Beck. Enrique Gaviola. Política. Militares.


ABSTRACT

The objective of this paper consists in presenting the reaction of the physicist Guido Beck (1903-1988) towards the political events that occurred in the University of Buenos Aires (UBA), during the second term of 1966. It is not our intention to write a deep treatise on the problem, but to outline some of the ideas that Guido Beck had on the relation between science, State and society in South-American context. That will be done by describing his reaction to the well-known 'night of the long police batons'. Beck had always been sensitive to the political instability in Argentinean academic system, once that political and ideological disputes could jeopardize the work towards the establishment of a scientific community in that country. As a conclusion, 1 defend the thesis that in Beck's point of view the physicists at UBA had misunderstood the importance they had to Argentinean government and to part of the population in that same country.

Keywords: History of Science. Physics. Guido Beck. Enrique Gaviola. Politics. Militaries.


 

 

LA NOCHE DE LOS BASTONES LARGOS

A 'Noite dos bastões largos' (La noche de los bastones largos, em espanhol)1 foi um dos mais importantes eventos políticos da história recente das universidades argentinas. Ocorrido na noite do dia 29 de julho de 1966, consistiu na retirada à força, por parte da Direção Geral da Ordem Urbana da Polícia Federal argentina, das pessoas que ocupavam cinco faculdades da Universidade de Buenos Aires (UBA). O acontecimento foi assim nomeado devido ao uso de grandes cassetetes (los bastones largos) pela polícia argenti na, que golpeou professores e alunos ao saírem dos prédios ocupados, obrigados a passar por um 'corredor polonês'. As faculdades mais reprimidas foram as de Ciências Exatas e Naturais e de Filosofia e Letras.

Foram detidas cerca de 400 pessoas; laboratórios e bibliotecas foram destruídos pelas forças policiais. Os efeitos da invasão policial se fizeram sentir não apenas naquele momento, mas também nos anos seguintes, uma vez que provocou uma importante emigração de cientistas, técnicos e estudantes argentinos, que procuraram melhores condições de vida e trabalho fora de seu país natal. Segundo Marta Slemenson (1970), autora de um trabalho sobre a emigração científica argentina, 1.378 docentes renunciaram aos seus postos na UBA, dividindo-se pelas faculdades do seguinte modo: Agronomia e Veterinária: 20 (1,4% do total de docentes, dois emigraram do país); Arquitetura e Urbanismo: 268 (19,4% e nove emigrantes); Ciências Econômicas: 35 (2,5% e três emigrantes); Ciências Exatas: 391 (28,3% e 215 emigrantes); Direito: 66 (4,8% e dois emigrantes); Farmácia e Bioquímica: 14 (1% e três emigrantes); Filosofia e Letras: 305 (22,1% e 42 emigrantes); Engenharia: 180 (13% e 19 emigrantes); Medicina: 34 (2,5% e seis emigrantes); Odontologia: dois (0,1% e nenhum emigrante); mais os institutos da Reitoria da UBA: 63 docentes, 4,9% do total.

A ocupação da UBA explica-se pelo fato de que o governo do general Juan Carlos Onganía, iniciado apenas um mês antes, em 28 de junho de 1966, quando derrubou o governo democraticamente eleito de Artuto Illia, decidiu reorganizar as universidades argentinas, que estavam estruturadas segundo os princípios da Reforma Universitária. Esta reforma tinha como um dos seus mais importantes eixos de organização a chamada autonomia universitária, que consistia no governo tripartite da universidade entre estudantes, docentes e graduados. Ainda que o governo Onganía não tivesse intenção de substituir os dirigentes máximos das universidades, a perda de autonomia implicava a redução das efetivas capacidades de dirigir as suas instituições.

A noite dos bastões largos, ainda hoje recordada e comentada, significou um duro golpe na trajetória até então seguida pelas universidades na Argentina. O século XX, mais precisamente a partir do ano de 1930, foi contemporâneo de uma série de golpes militares no país. Alguns deles, como o de Juan Domingo Perón, em 1943, provocaram mudanças profundas no cenário científico-acadêmico do país vizinho. Em meados da década de 1940, o partido peronista, então no poder, passou a exigir que os empregados públicos fossem filiados. A recusa à filiação poderia acarretar demissão do serviço público. Era uma determinação legal autoritária que exigia fidelidade político-partidária dos cidadãos argentinos. No caso do mundo universitário, uma das consequências foi que Bernardo Houssay (1887-1971), prêmio Nobel de Medicina em 1947, deixou os quadros acadêmicos, filiando-se a um instituto privado, o que representou a ausência de uma importante liderança científica nos debates internos à universidade. Ainda que Houssay tenha procurado criar novos instrumentos de ação político-científica, como a Associação Argentina para o Progresso da Ciência, ele ficava como que limitado por não poder interagir mais diretamente com estudantes, o principal alvo das ações de Houssay, Guido Beck (1903-1988) e Enrique Gaviola (1900-1989).

Com a derrubada, em 1955, do governo peronista e a retomada da vida democrática, as universidades argentinas puderam reorganizar-se. Até 1966, quando, mais uma vez, houve uma interrupção forçada, o cenário argentino passou por inúmeras transformações, que permitiram a recuperação de um muito bom nível na pesquisa e no ensino. Entre os departamentos da UBA, um dos mais atingidos pelo novo golpe foi o de Física, dirigido, desde 1958, por Juan José Giambiagi (1924-1996). Esse centro de ensino e pesquisa era um dos mais importantes em todo o continente latino-americano. Para justificar rapidamente essa afirmação, é suficiente mencionar os trabalhos do próprio Giambiagi, em parceira com Carlos Bollini (1926­2009), sobre renormalização da Cromodinâmica Quântica, antecipando resultados de Gerardus t'Hooft e Martinus Veltmann, e o fato de que ambos participaram ativamente da fundação do Centro Latinoamericano de Física e das Escolas Latinoamericanas de Física, ambos em princípios da década de 1960.

Nas palavras de um dos principais protagonistas daquele evento, Giambiagi (1998, p. 374-375), a noite dos bastões largos pode ser assim descrita:

Houve uma espécie de golpe, que ficou conhecido como la noche de los bastones largos. Mais de 20 anos depois, essa noite continua sendo lembrada. Ficou como uma espécie de mancha preta na história da física argentina. A universidade, particularmente a Faculdade de Ciências de Buenos Aires, havia alcançado um enorme progresso. A física, sobretudo - e também a físico-química, a matemática, a biologia, a geologia, a geofísica - tinha evoluído muito, rompendo uma tradição universitária em que até então predominavam médicos, advogados, que davam aulas em tempo parcial. Nossa irrupção foi um tanto modernizadora e acabou provocando ciúmes e, consequentemente, a reação de muitos setores da Universidade. O momento histórico não foi muito bem interpretado. Havia acontecido um golpe militar no país e o general Onganía estava no poder. Nem o general nem os seus assessores compreendiam a importância que a ciência tinha e continua a ter para o desenvolvimento argentino. Numa noite foi destruído tudo o que tinha levado mais de dez anos para ser feito.

Como já mencionado anteriormente, a reação de professores e alunos foi a demissão em massa. Os efeitos não demoraram a ser sentidos. Somente no Departamento de Física, 95% do corpo docente foi embora. Giambiagi (1998, p. 375) resume a situação com os seguintes termos: 'A modernização deixou a Universidade de Buenos Aires naquele ano de 1966".

 

BECK, GAVIOLA E A FÍSICA NA ARGENTINA

Antes de prosseguir, creio ser necessário apresentar brevemente os dois personagens que ocuparão a nossa atenção no restante deste texto: Guido Beck e Enrique Gaviola. Beck nasceu em 1903, na cidade de Liberec, no antigo Império Austro-Húngaro, e após ter morado em diversas cidades da Europa Central, sempre acompanhando sua família, fixou-se em Viena, onde, uma vez completados os seus estudos secundários, ingressou, em 1921, na Universidade de Viena a fim de estudar física. Em 1925, doutorou-se nessa disciplina com uma tese sobre relatividade geral, área em que permaneceu por pouco tempo, mudando, em seguida, para a nova mecânica quântica. Seus primeiros empregos foram em Berna e Viena. Entre 1928 e 1932, esteve em Leipzig, como primeiro assistente de Werner Heisenberg (1901-1976). Terminado o seu contrato com aquela universidade, ele começou uma peregrinação que o levou a diferentes países da Europa e mesmo aos Estados Unidos da América (EUA). Beck esteve entre 1933 e 1943, ano em que chega, em maio, a Buenos Aires, nos seguintes lugares: Praga, Kansas City, Odessa, Copenhague, Paris, Lyon, Lisboa, Porto e Coimbra. Em todas essas localidades, ele fez física e formou alunos2.

Beck, ao chegar à Argentina, já tinha um contrato firmado com o Observatório Astronômico de Córdoba. O responsável pela sua contratação foi Enrique Gaviola, físico argentino, nascido em Mendonza e que, após estudos em La Plata, sob a direção de Richard Gans (1880-1954), foi estudar na Alemanha, em Berlim, onde, em 1926, doutorou-se com uma tese de física experimental. Após passar dois anos nos EUA (1927-1929), em parte com uma bolsa dada pela Fundação Rockefeller, Gaviola retornou a La Plata para dedicar-se à física e a transformar o cenário científico do seu país de origem. Gaviola sempre buscou melhores condições de trabalho na Argentina, em particular, se preocupou com a introdução da dedicação exclusiva, o que só aconteceu em meados da década de 19503.

Interessado em melhorar a situação da física teórica na Argentina, Gaviola, avisado por seu ex-professor em Berlim, James Franck (1882-1964), tomou conhecimento de que Beck passava por sérias dificuldades em Portugal, onde ele estava desde o final do ano de 1941. Após uma série de contratempos, Beck e Gaviola conseguiram estabelecer comunicação, o que possibilitou que o primeiro aceitasse o convite do segundo para dirigir-se à Córdoba e, naquela cidade, tornar-se o responsável pela disseminação das novas teorias físicas, em particular, mecânica quântica e física nuclear. Apesar de ser um físico de primeira qualidade, Gaviola era mais afeito à área experimental e encontrava-se muito ocupado com assuntos administrativos na direção do Observatório, além de manter-se em contínua disputa com as autoridades argentinas, em prol de melhores condições de ensino e pesquisa.

Beck permaneceu na Argentina entre 1943 e 1951, ano em que se dirigiu para o Brasil, uma vez que ele se mostrava temeroso em relação aos rumos que a ditadura peronista estava tomando, fazendo com que se recordasse do regime nazista. Além da insatisfação com a política argentina, Beck estava sendo, desde o final da década de 1940, seduzido por físicos brasileiros para radicar-se no país. Beck já havia estado no Rio de Janeiro em 1947 e, no ano seguinte, em São Paulo, e gostou muito do ambiente científico brasileiro, que considerava ser mais 'amigável' à ciência. Em 1951, Beck 'capitula' e passa a trabalhar no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, fundado dois anos antes por Cesar Lattes (1924­2005), José Leite Lopes (1918-2006), Jayme Tiomno (1920-), entre outros. A primeira fase da carreira brasileira de Beck terminou em 1962, quando retornou à Argentina para dar continuidade à obra de seu discípulo José Antonio Balseiro (1919-1962), falecido precocemente de leucemia, em março daquele mesmo ano.

Em 1972, Gaviola entrou em contato com Beck para informar-lhe que havia sido convidado para escrever um trabalho sobre a história da Asociación Física Argentina (AFA); esse trabalho deveria ser apresentado naquele mesmo ano num congresso de história da ciência, que seria organizado pela Sociedade Científica Argentina. Gaviola solicitava o auxílio de Beck para contar os primeiros momentos da AFA, inclusive aqueles que levaram à sua criação4. O argumento de Gaviola baseava-se na sua crença de que Beck conhecia melhor do que ele os detalhes desses eventos. O contato entre Gaviola e Beck pode nos levar a pensar que este último era o principal responsável pela criação daquela associação. Ainda que se possa questionar a validade da opinião de Gaviola a respeito de um maior conhecimento de Beck sobre a fundação da AFA, ela faz sentido, o que pode ser explicado pelo fato de, desde a fundação da associação profissional que reúne os físicos argentinos, Beck dedicar-se principalmente à organização das reuniões, ao passo que Gaviola permanecia na linha de frente das lutas político-administrativas, exigidas pela sua condição de diretor do Observatório de Córdoba.

Logo após a sua chegada ao observatório nos primeiros dias do mês de junho de 1943, Beck começou a viajar pelo país com o propósito de encontrar-se com físicos e estudantes e, se possível, atraí-los para Córdoba, local onde pretendia orientá-los em projetos de pesquisa. Tomando como modelo a Sociedade Alemã de Física, Beck, em novembro daquele mesmo ano, organizou uma reunião científica em Córdoba. Essa iniciativa não era inédita. No ano anterior, na mesma cidade, havia ocorrido um congresso, que contou com a participação de cientistas estrangeiros, destinado a comemorar a inauguração da Estação de Bosque Alegre, o observatório astrofísico da, hoje, centenária instituição astronômica cordobesa. Outro fator que merece ser considerado como facilitador para a iniciativa de Beck foi o interesse de estudantes de La Plata e de Buenos Aires em promover reuniões de trabalho, nas quais seriam discutidos temas contemporâneos de física.

Vale a pena conhecer um pouco mais a estrutura que Beck deu a essas reuniões. Elas deveriam ser semestrais, provocando a consolidação do intercâmbio científico entre os seus participantes, além de promover maior convivência social: era fundamental que os participantes se conhecessem e ganhassem confiança mútua. Além de periódicas, tais reuniões deveriam ser nacionais, atraindo todos os interessados, independentemente da região ou instituição em que trabalhavam. Era importante também assegurar a rotatividade do local do encontro. Outro ponto enfatizado por Beck, e para o qual ele concedia especial importância, era que os trabalhos apresentados deveriam ser obrigatoriamente originais. Finalmente, o ambiente deveria ser propício para uma troca franca de opiniões acerca da qualidade dos trabalhos.

Por força da sua personalidade - austera e distante, ao contrário de Beck, que era tido como brincalhão e muito social -, além de ser diretor do observatório, Gaviola permaneceu afastado da organização dos encontros semestrais da AFA. Levando-se tudo isso em consideração, torna-se natural o pedido que Gaviola fez em 1972 ao seu antigo colega. Seu pedido foi atendido, tendo Beck não se limitado a descrever os acontecimentos tal como ele recordava, mas ele emitiu a sua opinião acerca de como foi a fundação da AFA5. Na sua resposta, Beck afirmava que a AFA foi criada devido à necessidade sentida pelos poucos físicos e estudantes de física em dispor de um fórum para encontros e discussões estritamente científicas. Ao menos na sua fase inicial, esse desideratum foi alcançado e respeitado.

Cinco anos depois dessa troca de comentários e opiniões, Beck, após ter recebido um exemplar da conferência de Gaviola, voltou a refletir sobre os eventos relativos à física argentina entre 1943 e 1966. Novamente, Beck teceu comentários sobre a história da AFA, ressaltando que também ele desconhecia muitos fatos, principalmente aqueles relativos aos anos anteriores à sua chegada à Argentina. Em particular, Beck referia-se aos contatos que Gaviola manteve com as autoridades argentinas (oficiais da Marinha de Guerra, do Exército, do Congresso Nacional e do Executivo nacional), já que o segundo sempre se manteve preocupado em melhorar a situação (difícil e instável) vivida então pela física naquele país. Com relação a esse tema, Beck observou que, caso ele tivesse mantido algum contato desse gênero, não acreditava que daí algo de positivo teria resultado. Recorrendo à sua experiência na ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), quando esteve por dois anos (1935-1937) à frente do setor de física teórica na Universidade de Odessa, Beck afirmava não acreditar no apoio dos governos às universidades, uma vez que estas eram consideradas como excessivamente politizadas, o que as transformava em fator de instabilidade. Desde essa época, Beck passou a acreditar firmemente que o desenvolvimento científico de um país deveria ser perseguido e obtido pelos seus próprios cientistas, sem que se julgasse fundamental ou mesmo necessário o apoio dos governos.

Em 1977, Beck, dirigindo-se mais uma vez a Gaviola, fez as seguintes observações6:

a) Nunca chegou a compreender o que se passava na Argentina durante sua primeira estada nesse país, que durou oito anos (1943-1951);

b) A causa de muitos dos problemas enfrentados pela comunidade de físicos argentinos estava na sua crença na política como mecanismo de solução para problemas relativos à ciência. Em particular, Beck, segundo ele mesmo, tinha dificuldades para entender o comportamento de alguns de seus estudantes argentinos, os quais reagiam à pesquisa em física praticamente do mesmo modo que os seus congêneres russos e brasileiros, mas eram incapazes de manter o foco na ciência, dispersando atenção e energia com outros assuntos, como filosofia e política. Não seria, portanto, uma questão de competência, ou talento, individual. A diferença observada entre eles situava-se na resposta coletiva, aquela dada pelo ambiente: "What was different was the collective response and we have to find out why this is so. What I can see are only the symptoms, not the profound reasons"7.

c) durante os seus primeiros anos de existência, até 1964, a AFA8 funcionou bem, realizando aquilo que era esperado dela. No entanto, a partir de meados dos anos sessenta, ela começou a declinar, sendo que a razão para isso foi algo que se passou no seu interior. Nas palavras de Beck:

It started with a propaganda drive in Buenos Aires. Students had to go into the AFA in order to obtain the majority in the elections. This would afterwards permit to use the AFA for the "real" national problems, i.e., for politics of a small "clever" group (...). The great spirits ofthe nation wanted to determine "the scientific policy of the country". It is clear that they ignore completely the meaning of both the word "scientific" and "politics". Of course, in this moment the AFA was dead as a scientific institution9.

Ao final dos seus comentários para Gaviola, Beck arrisca uma possível razão para o destino sofrido pela AFA

I think that the main trouble is that argentine youth believes only in the value of "politics". They are not primarily interested in science and they believe that obtaining results in science means only to obtain some sort of "power" which they can use as a political weapon. As long as this spirit prevails, Argentina is not going to have any science, except under heavy pressure, e.g. in medicine10.

 

A REAÇÃO DE BECK EM BARILÜCHE

Quando ocorreu a noite dos bastões largos, Beck encontrava-se, desde 1962, em Bariloche, no Instituto de Física, fundado por seu antigo aluno, José Antonio Balseiro. Com a morte prematura de Balseiro, Jorge Agudín, entre outros de seus colegas naquela cidade da Patagônia, preocupado com a falta de liderança científica experiente no instituto, pediu a Beck que se ocupasse da orientação dos alunos.

O hoje denominado Instituto Balseiro foi fundado em 1955 e ocupou as instalações construídas para a execução do malogrado projeto de Ronald Richter (1909-1991), capitaneado por um cientista de origem austríaca, o qual procurava criar as condições experimentais da fusão nuclear (Mariscotti, 1995). O projeto de Richter malogrou completamente, apesar do enorme apoio político e financeiro que recebeu do governo de Perón. O responsável pela organização do novo instituto foi Balseiro, que trabalhou com Beck em Córdoba em meados dos anos 1940, considerando-se, a partir de então, um discípulo do físico austríaco (López Dávalos e Badino, 1995).

Do mesmo modo que todos aqueles que conviveram com Balseiro, Beck também o respeitava enormemente, não apenas por sua capacidade científica, mas também pela sua competência para a organização de assuntos administrativos, a qual era reforçada por uma preocupação forte em transformar o cenário científico argentino. Preocupado com o destino da obra começada por Balseiro, Beck não teve dúvidas em largar o CBPF.

Com menos de uma década de existência, o jovem instituto em Bariloche era relativamente conhecido e já tinha condições de competir com o departamento de Buenos Aires. Para Beck, essa competição era positiva. Contudo, essa opinião não era compartilhada pelos seus colegas na capital portenha.

Ao saber da renúncia coletiva na UBA, Beck convocou uma reunião em Bariloche com o propósito de evitar que o mesmo se repetisse por lá. Segundo ele mesmo, foi com muito custo que conseguiu demover os seus colegas. O objetivo de Beck com a reunião era convencer os físicos e os estudantes de Bariloche a permanecerem trabalhando normalmente. O que levava Beck a defender tal posição era a sua preocupação com a interrupção das atividades. Para ele, a instabilidade era uma das mais graves características do ambiente acadêmico sul-americano.

Em 1977, ao relembrar com Gaviola os eventos de 1966, Beck tece um comentário que me parece ser fundamental para a compreensão do seu pensamento acerca das relações entre política e ciência:

But I think that they [os físicos de Buenos Aires] failed to understand the spirit of the problem. One of the symptoms (Kinderkrankheit) was the attitude towards Bariloche. They did not understand that both places could only gain by competition and mutual control. They wanted the monopoly, without control, though, being in Buenos Aires, they disposed of much facilities than Bariloche. But this was a secondary problem. What showed that they had not understood the character of the problem became visible in 1966 when Onganía took over. They imagined that they were indispensable for the country, resigned collectively and waited that the government came begging them to come back. They still wait...11 (grifos meus).

Apesar da forte declaração anterior, Beck, como vimos anteriormente, dizia que nunca chegou a compreender completamente as razões que impediam o pleno desenvolvimento da ciência na Argentina. Para ele, e isso seria apenas uma suspeita que tinha, faltaria a resposta coletiva adequada. Contudo, nem todos os seus colegas em Bariloche concordavam com ele.

Luis Másperi (1941-2003), que, na época, era aluno de Beck na pós-graduação, anos depois dizia que:

Beck lived in difficult years for Argentina, the most negative events being the "golpe" of 1966 with the destruction ofthe physics department of Buenos Aires and the beginning of the violence of the seventies. Even though Don Guido liked sucking mate and riding dressed as a gauch, perhaps he was intimately too linked to european culture to understand completely Argentina and its problems12 (Másperi, 1995, p. 87).

A declaração acima foi proferida em um simpósio especialmente organizado no CBPF para relembrar a vida e a obra de Beck. Assim, Másperi, provavelmente, não se sentia em condições de ser mais explícito ou crítico na sua avaliação acerca da atitude de seu antigo professor. Para ele, o comportamento de Beck naquele distante ano de 1966 pode ser explicado pelo fato de o físico austríaco ser muito ligado às suas raízes europeias. Mesmo isso sendo correto, parece-me que Másperi simplifica a posição defendida por Beck, já que parece não se lembrar das antigas dificuldades vividas pelo professor na Alemanha pré-nazista, na URSS comunista e no Portugal salazarista. De Copenhague e Praga, Beck acompanhou os eventos e as consequências desastrosas da política implementada por Hitler para as universidades alemãs. A comunidade universitária, mesmo que dividida com relação à atitude mais sensata a ser tomada diante das demissões frequentemente impostas pelas autoridades nazistas, foi incapaz de oferecer qualquer tipo de resistência ao regime nazista.

Beck havia aprendido em todos esses lugares como diferentes regimes políticos podem atrapalhar, e mesmo condenar, o desenvolvimento da ciência, o qual não deveria ser incentivado apenas como meio de crescimento econômico, ainda que, certamente, também fosse mecanismo fundamental para que isso pudesse efetivamente ocorrer. Para Beck, talvez ainda mais importante fosse a contribuição que a ciência poderia dar para a cultura e para a vida humana em sentido amplo. Em outras palavras, parece-me que Beck considerava que a dedicação à ciência era uma forma de se estar no mundo. Os critérios para o sucesso não seriam avaliados apenas pela importância das descobertas alcançadas.

O apoio que deveria ser dado aos institutos científicos pelos governos não seria apenas material e financeiro, mas deveria se concentrar naqueles valores percebidos como necessários para a preservação do ambiente propício à prática da ciência. Entre tais valores, encontrava-se a continuidade de investimentos e de apoio, como se pode ler na seguinte declaração de Beck:

Crear un instituto sin garantías para su continuidad es una actitud nociva e irresponsable. Un gobierno sin colaboración de hombres de ciencia formados no puede hacer un instituto científico. Un grupo de hombres de ciencia, por entusiasta y por capaz que sea, sin apoyo continuo de los gobiernos sucessivos no puede hacer un instituto científico. Este simple hecho tiene implicacions bien fuertes e impone restricciones muy estrechas tanto al comportamiento de los hombres de ciencia como al comportamientos de los gobiernos. Son estas restricciones que nadie, en Sudamerica, le gusta acceptarlas. No obstante son indispensables. Lo que necesitamos, luego, son garantías de continuidad, garantías que no puedan ser obtenidas de comum acuerdo entre todos los que intervienen. Sin eso queda una sola alternativa: renunciar a la ciencia13.

 

À GUISA DE CONCLUSÃO

Um dos pontos que mais incomodou Beck ao longo das quatro décadas em que viveu e trabalhou na América do Sul com o propósito de consolidar a ciência nesse continente diz respeito à reação do ambiente (i.e. sociedade, academia e governo) frente às tentativas e aos esforços para a promoção da ciência. Beck nunca, até onde posso perceber, foi claro o suficiente sobre o que seria o ambiente e como ele deveria atuar para que a ciência vingasse, talvez porque gestos valessem mais do que palavras. Além disso, a relação entre ciência e ambiente não foi, até os dias de hoje, suficientemente bem entendida, constituindo-se num tema de intermináveis discussões e debates. De todo o modo, a posição de Beck é próxima ao voluntarismo. Em outras palavras, sem a vontade explícita por parte daqueles que afirmam publicamente querer ajudar a ciência, todo e qualquer apoio externo seria inútil. Isso se torna claro a partir do comentário que ele fez ao comportamento da juventude na AFA, a qual estaria preocupada tão somente em instrumentalizar a sua atuação na associação.

Com relação aos eventos do segundo semestre de 1966, Beck conseguiu convencer os seus colegas de Bariloche que demissões voluntárias não produziriam resultado algum. Muito provavelmente sem o saber, ele repetiu a atitude de Max Karl Ludwig Planck (1858-1947), quando instado, em 1933, por Heisenberg a protestar publicamente contra as demissões de professores judeus e contrários ao nazismo, preferiu pensar nas gerações futuras e renunciar a qualquer atitude explícita de oposição ao regime.

Não constitui novidade afirmar que, entre os historiadores, uma das discussões mais importantes que os animam diz respeito a uma eventual capacidade de a história nos dar lições. Seria possível aprender algo com a análise e o entendimento dos eventos passados? Se a resposta for afirmativa, concorda-se com a tese de que a história é como que mestra da vida. No entanto, independentemente da nossa própria opinião a esse respeito, certamente importante, penso que Beck tinha uma resposta positiva para ela. Ele acreditava ser possível aprender com os erros e os acertos, cometidos e obtidos no passado.

Toda a sua atitude diante dos eventos de julho de 1966 sugere que, para Beck, os seus colegas deveriam recordar o que havia ocorrido em outros países na primeira metade do século passado. Caso ocorresse tal movimento de recordação, seria possível concluir que o melhor para a ciência seria manter-se o mais possível afastada da política.

Além de concernir à (velha e inconclusa) questão muito debatida entre ciência e política, a atitude de Beck nos eventos brevemente descritos neste artigo pode ser vista como sendo ainda vinculada a um outro tema, também ele relevante, a saber: de que modo os cientistas constroem as imagens que fazem de si mesmos? É certo que definir o que significa imagem não é tarefa simples. No contexto que me interessa aqui, julgo ser procedente afirmar que, entre outros elementos, imagem equivale à função que o cientista atribui a si mesmo na sociedade: como ele compreende o lugar que ocupa entre aqueles que não são cientistas? Nos eventos ora em consideração, parece-me que a conclusão de Beck, além de dura para com os seus colegas argentinos, em especial, com aqueles que trabalhavam na UBA, exagerou a importância que teriam para o governo e para uma parcela da sociedade argentina. Ao procurar evitar que demissões ocorressem em Bariloche, Beck instava seus colegas a refletirem criticamente sobre se a imagem que faziam de si próprios não seria equivocada. Creio que ele acreditava que sim.

Se valor há no episódio envolvendo em 1966 a comunidade científica argentina e na atitude que Beck defendeu como a mais razoável face à repressão do governo de Onganía, parece-me que este valor pode ser formulado como uma questão, a qual deve ser respondida primeiramente pelos cientistas: que imagens ou representações fazem de si mesmos? Não residiria parte do problema na imagem distorcida que os cientistas fazem da sua relevância para a sociedade? Ou seja, enquanto os cientistas não compreenderem a relação que a sociedade mantém com eles, situações e problemas, como aqueles vividos em fins de julho de 1966, poderão se repetir com uma frequência indesejada. Em suma, para Beck, diferentemente do que se pode imaginar à primeira vista, a origem das dificuldades vividas pela ciência em sua relação com a sociedade talvez se situasse na autoimagem do cientista, que seria resultado de uma incapacidade de criticar a si próprio.

 

AGRADECIMENTOS

Agradeço os comentários, as críticas e as sugestões enviados pelos três árbitros escolhidos pela Comissão Editorial desta revista.

 

REFERÊNCIAS

BERNAOLA, Omar A. Enrique Gaviola y el Observatório Astronómico de Cordoba - Su impacto em el desarrollo de la ciência argentina. Buenos Aires: Ediciones Saber y Tiempo, 2001.

GIAMBIAGI, Juan José. Cientistas do Brasil (depoimentos). São Paulo: SBPC, 1998. p. 371-384.

LÓPEZ DÁVALOS, Arturo; BADINO, Norma. Guido Beck in Argentina 1943-1951. Guido Beck Symposium. Anais da Academia Brasileira de Ciências, v. 67, Supl. 1, p. 67-72, 1995.

MARISCOTTI, Mario A. J. Guido Beck and the Dawn of Atomic Energy in Argentina. Guido Beck Symposium. Anais da Academia Brasileira de Ciências, v. 67, Supl. 1, p. 79-83, 1995.

MÁSPERI, Luis. Guido Beck and Theoretical Physis at Centro Atomico Bariloche. Guido Beck Symposium. Anais da Academia Brasileira de Ciências, v. 67, Supl. 1, p. 85-87, 1995.

SLEMENSON, Marta. Emigración de científicos argentinos -organización de um éxodo a América Latina. Buenos Aires: [s. n.], 1970.

 

 

Endereço para correspondência:
Museu Paraense Emílio Goeldi
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Recebido: 14/04/2009
Aprovado: 13/11/2009

 

 

1Uma rápida explicação sobre o título. 'Bastones largos' são grandes cassetetes policiais usados, muitas vezes, para conter e reprimir manifestações de rua. Talvez a tradução para o português mais adequada fosse 'a noite dos grandes cassetetes', mas creio que isso faria com que se perdesse a possibilidade de se referir diretamente aos eventos ocorridos na Universidade de Buenos Aires em finais de julho de 1966.

2Para maiores detalhes sobre a vida e a obra de Guido Beck, recomendo a consulta ao volume especial dos Anais da Academia Brasileira de Ciências, dedicado à descrição e análise da sua vida e da sua obra científica (Guido Beck Symposium, Anais da Academia Brasileira de Ciências, v. 67, Suplemento número 1, 1995).

3Para maiores detalhes sobre Gaviola, recomendo a leitura de Bernaola (2001).

4Carta de Enrique Gaviola. Bariloche, 10/03/1972. Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, Centro de Documentação e Informação. Fundo Guido Beck, Gaviola, 1972/001.

5Carta de Guido Beck a Enrique Gaviola. Rio de Janeiro, 14/10/1977. Instituto José António Balseiro. Arquivo Centro Atómico Bariloche, Fundo Enrique Gaviola.

6Carta de Guido Beck a Enrique Gaviola. Rio de Janeiro, 14/10/1977. Instituto José António Balseiro. Arquivo Centro Atómico Bariloche, Fundo Enrique Gaviola.

7"O que era diferente era a resposta coletiva e nós temos que descobrir porque isso é assim. O que eu posso ver são somente os sintomas, não as razões profundas". Carta de Guido Beck a Enrique Gaviola. Rio de Janeiro, 14/10/1977. Instituto José António Balseiro. Arquivo Centro Atómico Bariloche, Fundo Enrique Gaviola. Tradução minha.

8A Asociación Física Argentina foi criada em meados de 1944 e sucedeu as reuniões do grupo de física teórica, que Beck animava em Córdoba. Os membros da AFA, professores e estudantes de física, reuniam-se duas vezes ao ano para apresentar e discutir suas próprias pesquisas. Além de trabalhos de pesquisadores argentinos, físicos brasileiros também participavam com suas próprias pesquisas. Enquanto Beck esteve em Córdoba, Leite Lopes, Bernhard Gross, Gleb Wataghin, Joaquim da Costa Ribeiro e Mario Schemberg compareceram às reuniões da AFA.

9"Começou com uma propaganda em Buenos Ares. Estudantes tinham que ir à AFA a fim de obterem a maioria nas eleições. Isso permitiria que, depois, a AFA fosse usada para os 'reais' problemas nacionais, ou seja, para política de um pequeno e 'sagaz' grupo (...). Os grandes espíritos da nação queriam determinar a 'política científica do país'. É claro que eles ignoravam completamente o sentido das palavras 'científico' e 'política'. É claro que, nesse momento, a AFA estava morta como uma instituição cientifica". Carta de Guido Beck a Enrique Gaviola. Rio de Janeiro, 14/10/1977. Instituto José António Balseiro. Arquivo Centro Atómico Bariloche, Fundo Enrique Gaviola. Tradução minha.

10"Eu penso que o principal problema é que a juventude argentina apenas acredita no valor da 'política'. Eles não estão genuinamente interessados em ciência e eles acreditam que obter resultados em ciência significa apenas obter algum tipo de 'poder', o qual eles podem usar como arma política. Enquanto esse espírito prevalecer, a Argentina não terá ciência, exceto sob grande pressão, como, por exemplo, em medicina". Manuscrito inédito, sem data. Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Centro de Documentação e Informação, Fundo Guido Beck, Titular, S.D./005. Tradução minha.

11"Mas, eu penso que eles falharam em compreender o espírito do problema. Um dos sintomas Kinderkrankheit (comportamento infantil) foi a atitude com relação a Bariloche. Eles não compreenderam que ambos os lugares somente poderiam ganhar através da competição e do controle mútuo. Eles queriam o monopólio, sem controle, apesar de que, por estarem em Buenos Aires, eles dispunham de muito mais facilidades [materiais e econômicas] que Bariloche. Mas esse era um problema secundário. O que mostrou que eles não tinham entendido a natureza do problema tornou-se visível em 1966, quando Onganía tomou o poder. Eles imaginaram que eram indispensáveis para o país, renunciaram coletivamente e esperaram que o governo fosse chamá-los de volta. Eles ainda esperam....". Carta de Guido Beck a Enrique Gaviola. Rio de Janeiro, 14/10/1977. Instituto José António Balseiro. Arquivo Centro Atómico Bariloche, Fundo Enrique Gaviola. Tradução minha.

12"Beck viveu anos difíceis na Argentina; os eventos mais negativos foram o 'golpe' de 1966 com a destruição do departamento de física de Buenos Aires e o início da violência dos [anos] setenta. Mesmo que Don Guido gostasse de tomar mate e cavalgar vestido de gaúcho, talvez ele fosse intimamente muito ligado à cultura europeia [para que] pudesse compreender completamente a Argentina e seus problemas". Tradução minha.

13"Criar um instituto sem garantias para a sua continuidade é uma atitude nociva e irresponsável. Um governo sem colaboração de homens de ciência formados não pode fazer um instituto científico. Um grupo de homens de ciência, por mais entusiasta e capaz que seja, sem apoio contínuo de governos sucessivos não pode fazer um instituto científico. Este simples fato tem implicações bem fortes e impõe restrições muito estreitas tanto para o comportamento dos homens de ciência, bem como para o comportamento dos governos. São essas restrições que ninguém, na América do Sul, gosta de aceitar. Não obstante, são indispensáveis. O que necessitamos, logo, são garantias de continuidade, garantias que não podem ser obtidas que por meio de um comum acordo entre todos os que intervêm. Sem isso, fica uma única alternativa: renunciar à ciência". Manuscrito inédito, sem data. Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Centro de Documentação e Informação, Fundo Guido Beck, Titular, S.D./005. Tradução minha. O texto completo e no idioma original encontra-se reproduzido no Apêndice.

 

 

APÊNDICE

Após os eventos de Bariloche, Beck se animou a escrever um pequeno artigo, na verdade, uma nota, que deveria ter sido publicada em "Ciencia e Investigación", o que não aconteceu, sem que sejam conhecidos os motivos para isso. No arquivo Guido Beck (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas/MCT, Rio de Janeiro), onde se encontra o original, há, junto ao manuscrito, um pequeno bilhete de Ernesto Galloni, no qual este último afirma ter esquecido do texto de Beck. Tendo passado muito do seu envio, Galloni não via muita razão em publicá-lo.

Reproduzo, aqui, o texto no original, isto é, no espanhol característico de Beck, para que não se perca nenhuma nuance do seu pensamento. Não há data no original, mas o bilhete de Galloni, de 29/11/1967, leva a crer que o texto de Beck é desse mesmo ano.

 

Garantías

Guido Beck

Se trata solamente de una palabra. El concepto que corresponde a ella y que le dará significado tendrá que crecer lentamente para entrar en la conciencia.

Hace alrededor un cuarto de siglo [provavelmente por volta de 1942] el Dr. Bernardo Houssay lanzó una palabra, la palabra "full time". Aún que el concepto correspondiente hasta hoy no alcanzó a todos a los cuales era dirigido, este concepto creció y tuvo consecuencias importantes. Sentí sus efectos en la Argentina, en el Brasil, en Venezuela, en Mejico y ultimamente en Chile y en el Perú. No todos concuerdan en que hace falta que se haga ciencia, pero los que concuerden en que hace falta ya saben que no puede haber ciencia sin full time.

Los acontecimientos de los últimos 25 años muestran que hace falta otra palabra, la palabra garantías. No puede haber ciencia sin garantías.

Hace 25 anõs muchos creian que los jovenes sudamericanos no eran capazes [de] hacer ciencia. Era una creencia muy difundida y muy nociva. No obstante un pequeño número de jóvenes sudamericanos logró hacer ciencia y logró hacerla en Sudamérica. No eran muchos porque las condiciones eran difíciles y muchas veces prohibitivas. Pero eran suficientes para que ningún ministro de educación pueda atreverse más afirmar que no tenian la capacidad suficiente.

Se organizó un pequeño número de grupos e institutos. Algunos de ellos todavía existen, en [Ciudad de] Mejico, en Caracas, en Porto Alegre, en Santiago de Chile, en San Carlos de Bariloche. Son debiles y nadie sabe cuanto tiempo podrán durar. También hay algunos que tratan de formarse. Pero algunos de los más importantes, después de algunos años de existencia prometedora desaparecieron: en Puebla, en São Paulo, en Rio de Janeiro, en Brasilia y en Buenos Aires.

Simplificar y echar la culpa en cada caso sobre uma determinada persona, sobre un grupo de personas, sobre una institución o sobre un gobierno es facil. La multiplicidad de los casos por si solo prueba que las razones profundas deben ser más complejas.

Un instituto que puede funcionar algunos años puede dar provecho a algunas personas, pero ni justifica el trabajo invertido por la gente formada que tienen que organizar este instituto ni los gastos invertidos en el. No solo que no tiene utilidad para el pais sino lo prejudica.

Crear un instituto sin garantías para su continuidad es una actitud nociva e irresponsable.

Un gobierno sin colaboración de hombres de ciencia formados no puede hacer un instituto científico. Un grupo de hombres de ciencia, por entusiasta y por capaz que sea, sin apoyo continuo de los gobiernos sucessivos no puede hacer un instituto científico.

Este simple hecho tiene implicacions bien fuertes e impone restricciones muy estrechas tanto al comportamiento de los hombres de ciencia como al comportamientos de los gobiernos. Son estas restricciones que nadie, en Sudamerica, le gusta acceptarlas. No obstante son indispensables.

Lo que necesitamos, luego, son garantías de continuidad, garantías que no puedan ser obtenidas de comum acuerdo entre todos los que intervienen. Sin eso queda una sola alternativa "renunciar a la ciencia". No hay escape posible. Vaya [?] la palabra y actue. Solamente después cuando habra producido el concepto podrá seguir la conversación.