Serviços Personalizados
Journal
Artigo
Indicadores
- Citado por SciELO
Links relacionados
- Similares em SciELO
Compartilhar
Revista Brasileira de Pneumologia Sanitária
versão impressa ISSN 1982-3258
Rev. Bras. Pneumol. Sanit. v.15 n.1 Rio de Janeiro dez. 2007
Vila Rosário e a Cadeia da Miséria. A caminho da eliminação da tuberculose
Vila Rosário and the Chain-of-Misery. Approachs toward eliminating tuberculosis
Claudio Costa Neto
Prof. Emérito, Instituto de Química, Universidade Federal do Rio de Janeiro; Presidente da Sociedade QTROP
RESUMO
Este trabalho relata uma fase de consolidação das atividades realizadas pela Sociedade QTROP para o Programa de Controle da Tuberculose em Vila Rosário. Nessa fase do programa, iniciada em setembro de 2005, sistematizaram-se as ações de busca ativa de pacientes pelos agentes comunitários. Para tanto, foram definidas as ações e áreas de atuação de cada agente, utilizando o software GESTÃO (QTROP-VR), projetado especificamente para esse fim. A análise dos dados complementares sobre alimentação, escolaridade, trabalho e renda, dentre outros, coletados por ocasião da visita dos agentes aos sintomáticos respiratórios e doentes de tuberculose, permitiu reforçar a tese da relação entre tuberculose e miséria.
Palavras-chave: tuberculose, pobreza, busca ativa.
SUMMARY
This paper describes a step toward consolidating actions taken aiming at eliminating tuberculosis in Vila Rosário. In this phase (started September 2005), actions were based on active search for tuberculosis, where parameters were defined to regulate agent's working areas and a new software GESTÃO (QTROP-VR) was designed specifically for controlling the attendance to patients. The analysis of complementary social data regarding food, level of education, and others, on persons presenting a productive cough for more than 3 weeks and tuberculosis patients, in the area of the "grand" Vila Rosário, allowed for a reinforcement of the thesis relating (disseminated) tuberculosis and misery.
Key-words: tuberculosis, poverty, active case-finding.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho se desenvolve na região de Vila Rosário, uma localidade com cerca de 50.000 habitantes, com uma situação econômico-social debilitada, situada no município de Duque de Caxias, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, onde a tuberculose, em algumas áreas, chega a se apresentar com incidência que se aproxima de 200/100.000 habitantes. O grau de disseminação da tuberculose em uma população pode ser usado para caracterizar o grau de miséria/riqueza em que vive a comunidade: quanto maior a densidade de doentes com tuberculose, maior será o nível esperado de miséria da comunidade. Cabe esclarecer que aqui se quer entender por miséria tanto a miséria física, a que se conforma no corpo, quanto a moral, a que reflete a alma (talvez a pior forma de miséria).
Se tuberculose e miséria andam de mãos dadas, e se a tuberculose é uma medida da dimensão da miséria em que vive uma comunidade, é bom que se pergunte:
Acabar com a tuberculose
é caminho
p'ra se acabar com a miséria?
Ou será que
Acabar com a miséria
é caminho p'r'acabar
com a tuberculose?
Esses versos reforçam o pensamento paradoxal, já expresso pela metáfora do confrei,1 de que tratar tuberculose sem a concomitante preocupação em eliminar a miséria que alimenta a doença não é uma boa estratégia sob a visão social-holística. Isso porque, sob essa ótica, a própria tuberculose ("normalmente" vista como "vilã", por ser a doença que mata) é que passa a agir como uma guia, que leva aos verdadeiros focos da miséria para permitir "tratá-los". Pode-se afirmar que, eliminada a miséria, dá-se um passo importante para eliminar a tuberculose.2
Ao se falar em miséria, fala-se, também, em pobreza. Que relação existe entre essas duas palavras? Miséria e pobreza seriam duas palavras que expressam a mesma "coisa"? Ou são palavras usadas para definir "coisas" diferentes? Em qualquer dos dois casos, que "coisas" são essas?
Para responder a essas perguntas, vale discutir um pouco mais o significado dessas palavras, ainda mais porque são conceitos que estabelecem a base de ações do programa QTROP-FAP em Vila Rosário.* O dicionário Houaiss,3 por exemplo, diz no verbete sobre "pobreza" que esta palavra é sinônima de "miséria"; já para o verbete "miséria", a expressão correspondente é "pobreza extrema". Diz ainda que "miséria" é "estado de sofrimento muito grande, desgraça, desventura; 2. estado de carência absoluta de meios de subsistência, indigência, penúria". Ambas as definições supõem níveis baixos de qualidade de vida, mas sabe-se que miséria e pobreza não são a mesma coisa. Elas caracterizam níveis hierárquicos diferentes (melhor será dizer "estágios" diferentes, já que a noção de "estágio" sub-entende que se está em uma etapa de um processo evolutivo, enquanto "nível" transmite uma imagem de alguma coisa mais permanente, estática), estabelecidos com relação à qualidade de vida de uma pessoa, de uma família ou mesmo de grupos sociais.
Um nível "zero" de qualidade de vida de uma família no sistema social vigente pode ser definido com base em um conjunto de parâmetros de ordem material e moral. As principais condições materiais que as pessoas que convivem numa sociedade justa devem ter são: • alimentação nutritiva, diária, suficiente (dentro dos padrões de alimentação nutritiva); • moradia digna (com água corrente tratada, esgoto e eletricidade); • vestimenta adequada; • acesso a médico e a medicamentos; • nível escolar médio ou estar cursando a escola no nível compatível com a idade; • interesse e acesso e participação em atividades culturais como música, teatro, leitura; • criatividade visando ampliar seu grau de conhecimento ou de cultura (isto é, agir racionalmente e emocionalmente na melhoria da qualidade de vida dele próprio ou da sociedade); • acesso a opções de lazer.
Além desses, para se adequar ao sistema social vigente, deve ter uma renda que permita ao chefe da família e a todos os seus membros viver nas condições previamente descritas.
As atitudes morais que dizem respeito a um cidadão que viva em qualquer nível acima do zero de qualidade de vida são: • ter a ética arraigada à sua cultura, isto é, praticar a ética em todas as ações na vida, de forma consciente ou até mesmo inconsciente; • ter o trabalho como atividade essencial, ter gosto e até orgulho pelo trabalho que realiza, já que ética e trabalho, por serem qualidades fundamentais de uma sociedade saudável, devem fazer parte do seu "inconsciente coletivo", isto é, as pessoas trabalham e respeitam-se mutuamente independentemente de uma ação consciente.
Esse nível "zero" contém o conjunto mínimo de condições que definem como deve ser a qualidade mínima de vida das pessoas de uma sociedade. São uma "vertente" que separa o que deve ou pode ser, do que não deve (nem pode) ser, em uma sociedade.
À medida que crescem os valores criativos e culturais individuais, cresce, também, o nível de satisfação interior das pessoas, um prazer em viver, um prazer em fazer. O grau de satisfação interior não deve significar qualquer ordenação na hierarquia social, pois isso, a rigor, é condição incompatível com uma sociedade justa e equilibrada. Porém, é de se reconhecer que, nas sociedades atuais, está presente uma "linha de corte" que separa a sociedade "normal" da que não deveria ser. Hoje em dia, as sociedades estabelecem uma hierarquia medida pelo nível dos valores materiais. É claro que as pessoas lutam por valores maiores das qualidades materiais (uma casa melhor, uma alimentação mais requintada, dentre outros), mas qualquer destas "melhorias" não lhes deve conferir um aumento de graduação na escala social.
Aqueles cujas condições materiais descritas acima não são atendidas em sua totalidade ou mesmo em parte, principalmente aquelas que dizem respeito à educação, mas que estão em razoável equilíbrio com as condições morais, vivem na pobreza. São pobres de condições materiais, mas respeitam o semelhante, trabalham. São pobres porque não cresceram no saber e, por isso, não têm condições de auferir maior renda. Não têm a cultura da educação. Vivem uma cultura do dia-a-dia. Sentem-se fracos para lutar, para alcançar aquele mínimo almejado. Mas são dignos. Respeitadores. Honestos. Cabe aos governantes dar-lhes as condições de educação de que precisam – condição necessária e suficiente – para deixarem a condição de pobreza e ingressarem na categoria dos que vivem uma vida "normal" na sociedade.
Aqueles cujas condições materiais estão longe de serem atendidas ("pobreza extrema", no dizer dos dicionários) e principalmente, cujas condições morais não são definitivamente atendidas, são os que vivem na miséria. São miseráveis. E esta miséria será tanto física quanto moral.
Na miséria física falta o alimento nutritivo e as pessoas passam a viver em um estado de "hibernação mental" que logo leva à falta de auto-estima, à falta de estímulo para fazer qualquer coisa, até mesmo para viver. Às vezes, conseguem apenas adotar um comportamento de sobrevivência a qualquer custo. Como resultado da falta de higiene, de alimento nutritivo, de roupas, de habitação e de outras necessidades básicas e essenciais, as doenças se instalam e um decaimento progressivo se estabelece até que a morte - a única forma que têm de se livrarem da miséria – chegue.
A miséria física leva, geralmente, à miséria moral, a outra grande vertente que separa a pobreza da miséria.
O aforismo de Arquimedes – dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e levantarei o mundo – seria um modelo para se tirar um grupo social do estado de miséria. Assim, a alavanca seria um programa de estímulo à melhoria da sociedade, a ser movida por uma mão externa (o programa QTROP-FAP). Falta encontrar o ponto de apoio, que teria de estar, necessariamente, na sociedade. É aí que se apresenta o grande desafio ao sucesso de "levantar o mundo": encontrar um "terreno sólido" onde se possa apoiar a "alavanca". Esta é a dificuldade – quase uma aporia – que leva a maioria dos programas, inclusive os de governo, a naufragarem e não atingirem os objetivos de eliminar a miséria de sua sociedade.
Entretanto, a miséria moral está muitas vezes dissociada da miséria física, mas intimamente associada à busca desmesurada de uma riqueza supérflua. E é a miséria moral, isoladamente, a grande chaga que mais afeta e faz sofrer uma sociedade. É a falta de ética, de respeito ao semelhante, de escrúpulo no trato da coisa pública, a exploração do trabalho alheio como forma de enriquecimento desmesurado e infinito, a luta despudorada pelo poder, aqui representado pelo dinheiro, e em nome do qual todas as artimanhas para alcançá-lo são válidas. É, enfim, a negação de que existem outros – que deveriam lhes ser iguais. Consideram só a si mesmos, num egoísmo em que tudo gira em benefício próprio e num egocentrismo em que representam o centro do mundo, para o qual devem convergir todas as benesses.
A miséria pode ser vista, portanto – no dizer do dicionário – como um estado de pobreza extrema, de indigência, de penúria – faltando dizer – do corpo ou da alma (física e moral).
A tuberculose, que tanto turva a qualidade de vida de uma sociedade, encontra terreno propício para se desenvolver na miséria, qualquer que seja a sua forma. Nem é tanto produto da pobreza.
Foi esta visão sistêmica social do problema da tuberculose, junto à experiência vivida, em Vila Rosário, que levou a Sociedade QTROP a enunciar, para estabelecer um plano de eliminação da tuberculose naquela área, o que denominou de a Cadeia da Miséria,2 resumida em cinco elos principais: entende o programa que há doença (disseminada) porque há fome; há fome porque não há renda suficiente para comprar a comida necessária; às vezes não há fome mas há desnutrição por falta de recursos para comprar os alimentos nutritivos adequados; não há renda porque não há a educação que lhe dê os meios de lutar e saber onde buscá-la (a renda); e não há educação porque não há a cultura da educação nem do trabalho permanentes.
MÉTODOS
O presente estudo compreende a avaliação das ações de controle da tuberculose desenvolvidas em 2006, na área de atuação de Vila Rosário, município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, que pôs em prática a doutrina da Cadeia da Miséria, e que tem como objetivo último eliminar a tuberculose. A operação concentrou-se na identificação das condições sócio-econômicas da população afetada, na busca ativa de casos, no tratamento e monitoramento dos casos, com ênfase no papel das agentes de saúde.
A busca ativa de casos, de responsabilidade das agentes comunitárias é um ponto central do programa. Como ficou mostrado no primeiro ensaio dessa série,4 mais da metade do número de doentes diagnosticados e tratados como tuberculose foi descoberto pelo trabalho das agentes comunitárias. É o trabalho de ir de casa-em-casa, atencioso, amigo e de vigilância permanente, que garante que toda a população seja alertada, vistoriada e acompanhada no tratamento da tuberculose. Sem a ação das agentes, não há como resgatar aqueles que não procuram os postos de saúde, nem os que abandonam o tratamento. E estes são os maiores responsáveis pela disseminação da doença, que mantêm a alta e persistente taxa anual de doentes de tuberculose no país. Este item deixa bem clara a diferença que existe entre as atividades médicas de curar um doente e a atividade social de eliminar a tuberculose: o médico cura o doente que chega a ele, que vai ao posto médico; os que não vão, não se tratam; e porque não se tratam, não se curam; e porque não se curam, carregam consigo a doença que vão disseminando por onde passam. As estatísticas oficiais5 mostram que o número de curas efetuadas pelos mecanismos oficiais de atenção à tuberculose é grande. É grande e permanece praticamente constante, ano após ano, porque permanece constante, também, o número de casos novos! A estratégia a ser usada para a eliminação da tuberculose há de ser diferente daquela que tem sido usada pelos organismos oficiais para a cura da doença. E mais, a estratégia a ser empregada terá, necessariamente, que incluir a eliminação da miséria, e dificilmente se afastará do padrão ditado pela "cadeia da miséria".
A estrutura do programa ora em ação, que visa à eliminação da tuberculose, se vale, em muito de seus princípios, da repetição dos pontos vitoriosos dos programas anteriores, como as ações de busca ativa desenvolvidas no programa QTROP-FAP-Ambulatório Irmã Beta, executado com o auxílio do Ministério da Saúde6 e a de geração de renda, executado com o auxílio recebido da empresa FURNAS.1
A estratégia de ataque à doença é descrita a seguir e efetuada de acordo com os seguintes itens principais:
• Cada agente tem uma área de atuação própria, bem definida, que tem por centro o local de residência da agente e uma abrangência que compreende um conjunto de ruas e de casas que possam ser visitadas a pé, sem necessidade de qualquer condução. Todas as casas de todas as ruas são visitadas em ciclos periódicos, permanentemente, na busca de sintomáticos respiratórios e no acompanhamento dos casos de tuberculose. Cada agente recebe um mapa da região a ser coberta.
• Na vigilância exercida pela agente, é dado destaque aos comunicantes dos casos de tuberculose. Nessa visita, faz-se um levantamento da cobertura de vacinação BCG da família, com particular ênfase nas crianças.
• Reconhecida a presença de sinais e sintomas da tuberculose, as pessoas são encaminhadas imediatamente pelas agentes ao posto de saúde para consulta.
• Para cada sintomático respiratório ou doente de tuberculose é preenchida, pela agente, a Ficha de Registro da Tuberculose, com a seguinte informação: dados pessoais do morador; escolaridade; trabalho/ocupação; situação alimentar da família; doenças anteriores; em relação à tuberculose: sintomático, em tratamento, retratamento, sem tratamento, alta por cura, abandono, óbito; vacinação BCG; outras vacinas; reações adversas aos medicamentos; registro das visitas e observações.
• Nessa ficha, a primeira página registra os dados e outras informações sobre o morador, enquanto a segunda é destinada ao registro das observações feitas pela agente em cada visita. Interessante é que estas observações, quando registradas no programa GESTÃO (QTROPVR), apresentam-se como que um blog de cada uma das agentes, para cada um de seus pacientes. O conjunto de comentários mostrado a seguir dá ao leitor uma idéia do trabalho realizado pelas agentes.
23/10/06; Agente C S
L.C. passou mal, foi levado às pressas ao Hospital Saracuruna onde foi feito o "RX" que indicou tuberculose.
Neto de D.E. que faleceu com tuberculose (parada cardíaca).
A família ficou apavorada com o resultado do irmão uma vez que pensavam que a avó havia morrido de parada cardíaca (não de tuberculose).
Consulta marcada com o dr. João para 25/10/06.
A casa deles é abaixo do nível da rua e está quase caindo. O esgoto corre pelo quintal.
Tem mais 2 irmãos menores e a mãe, que é alcoólatra. Consigo falar melhor com eles agora.
Os exames de "RX" estão marcados para janeiro, mas vou falar com o dr. João se tem como pedir urgência para estes casos.
Tem uma irmã grávida e 2 sobrinhos menores de 5 anos.
25/10/06
Consulta com o dr. João confirmou o esperado: tuberculose. Medicamentos: vermelhos, 2 compr. em jejum e os brancos, 4 compr. às 14:00 horas.
Dr. João fez pedido de exames de escarro e de HIV. Consulta marcada para 22/11/06.
Em conversa com ele expliquei tudo o que deve fazer quanto aos medicamentos (separei os remédios pela cor, mostrei os da manhã e os da tarde) e que toda a família tem de fazer os exames para ver se mais alguém está com tuberculose.
A mãe dele não quer nem saber do tratamento. É uma vizinha que está ajudando com a comida e a passagem para que ele possa fazer o exame de HIV no Centro de Saúde de Caxias.
Ele estava com fome, compramos pão, café e ele já saiu mais animado, dizendo que faria o tratamento. Disse-lhe que se ele ficar bom, poderá aprender mosaico (um trabalho lindo) como profissão e até trabalhar em casa.
30/10/06
Teve crises de vômito. Disse que está sem apetite, que o gosto do remédio é "forte". Ganha cesta básica. Disse-lhe que deveria ao menos tentar tomar os sucos.
D.C., uma vizinha que acompanha a família há muito tempo, disse que ele está tomando os remédios com responsabilidade.
E assim segue o relato das ocorrências apuradas em cada visita. Como estes, são os outros relatos das 278 pessoas atendidas pelas agentes ao longo do ano de 2006. Aqui foram mostradas algumas das dificuldades encontradas no acompanhamento dos doentes, que só o trabalho dedicado das agentes permite que sejam superadas: recusa ao tratamento ou dificuldades em segui-lo, falta sistemática às consultas, mesmo às marcadas (geralmente atribuídas à falta de recursos para ir ao posto de saúde), dificuldade para fazer os exames (principalmente os de raios-X, por falta de equipamento ou de equipamento fora de uso nos postos de saúde e hospitais), enfim, toda sorte de problemas que tornam penoso o trabalho das agentes, peça tão importante para a eliminação da tuberculose. Outros relatos estão à disposição de interessados em se inteirarem melhor do trabalho realizado, na Sociedade QTROP. Com certeza, será altamente instrutivo ler essas narrações para se conhecer o comportamento e as formas para se lidar com uma sociedade da qual se quer eliminar a tuberculose.
O grupo se reúne regularmente no Ambulatório Irmã Beta de Vila Rosário para a entrega, à Sociedade QTROP, dos formulários preenchidos na semana finda. No início de cada sessão, o programa GESTÃO (QTROP-VR) é "aberto", atualizado no que diz respeito às datas e discutida a situação de atenção aos doentes com cada agente. As agentes comentam sobre as ocorrências havidas na semana (relatadas sucintamente nos relatórios). Todos os dados de todos os formulários são passados semanalmente ao programa GESTÃO (QTROP-VR), de modo a garantir a supervisão do acompanhamento aos pacientes.
Serão descritos a seguir alguns aspectos da ação desenvolvida:
• A atuação do programa e a busca ativa empreendida pelas agentes são restritas às pessoas com tuberculose ou aos sintomáticos respiratórios que estejam morando na área de atuação da agente (definida no item 1).
• Os doentes tuberculosos são acompanhados permanentemente pelas agentes, até a alta por cura – a ser dada pelo médico do posto de saúde – ou até que outra causa os afaste da área (mudança, morte, etc.).
• Concomitantemente às atividades de tratamento e de geração de renda, um estudo social é levado a efeito para conhecer o ambiente em que se desenvolve a tuberculose. Note-se, no formulário preenchido pela agente, a atenção dada ao grau de escolaridade, ao nível de alimentação e à situação de trabalho. Esses dados, conquanto ainda superficiais, são importantes para dar conhecimento sobre a situação social de cada sintomático respiratório ou doente de tuberculose.
• As pessoas cadastradas como sintomáticas e os respectivos comunicantes, bem como os doentes de tuberculose que estejam em tratamento há pelo menos um mês, são convidados a integrar o programa de geração de renda, nos moldes desenvolvidos pela Sociedade QTROP – FAP para a comunidade de Vila Rosário.
• Um estudo paralelo, ainda não implantado, deverá estabelecer a eficácia de dietas alimentares no tratamento e defesa contra a tuberculose.
• Outro estudo também ainda não implantado, deverá ser conduzido para se conhecer a eficácia do uso de plantas medicinais como coadjuvante do tratamento da tuberculose.
O Programa (software) GESTÃO (QTROP-VR)** desenvolvido pela Sociedade QTROP com o objetivo de acompanhar e monitorar o atendimento dado pelas agentes aos doentes de tuberculose e aos sintomáticos respiratórios de sua área de atuação.
Tendo em vista que o programa visa precipuamente a acompanhar o atendimento aos pacientes, logo após a sua "abertura", ele indica se há pacientes "ativos", isto é, em tratamento ou na espera de resultados de exame para diagnóstico que não tenham sido atendidos há mais de 30 dias pelas agentes. Se houver, o programa ALERTA para este fato e lista os nomes das agentes/ pacientes cujos pacientes não tiveram atendimento há mais de 30 dias. Para o QTROP, nenhum paciente deve ficar sem atendimento, por parte das agentes, por mais de 30 dias. Esse intervalo de tempo pode ser alterado, conforme se verifique a necessidade de fazê-lo.
A seleção de uma agente em qualquer das telas do programa GESTÃO (QTROP-VR) em que são listadas, passa a outra, que oferece três opções para escolha: • Pacientes em ALERTA AMARELO, isto é, pacientes ainda sob cuidados médicos sob a supervisão da agente selecionada, que foram atendidos há menos de 30 dias. É apenas uma sinalização para os pacientes que estão sob observação. • Pacientes em ALERTA VERMELHO, isto é, pacientes sob cuidados médicos, que foram visitados pela agente há mais de 30 dias. As agentes devem programar uma visita a esses pacientes para a semana próxima e relatar o seu estado. • Todos os pacientes atendidos pela agente incluindo os "ativos", isto é que estejam sob observação, e os que já "deram baixa" por cura, morte, mudança para endereço desconhecido, etc.
Há ainda uma opção que remete à ficha cadastral da agente.
Um clique sobre a opção desejada leva à tela que lista, por ordem alfabética, os moradores da região na situação escolhida. Mais do que essa lista, essa tela contém algumas informações sobre o paciente que permite ao agente rapidamente reconhecê-lo. São elas: residência do paciente; agente à qual o paciente está sendo acompanhado; data da última visita; situação com relação à tuberculose (se sintomático respiratório, em tratamento etc.).
Duas outras páginas compõem essa tela. São elas:
• Doenças. Nessa página, além do estado do paciente, estão indicadas outras doenças que ele apresente (bronquite, câncer, diabete, doenças da pele, doenças mentais, hepatite, hipertensão, HIV/AIDS, hanseníase, sífilis, verminoses intestinais, outras, que podem comprometer o tratamento da tuberculose.
Um clique duplo sobre o nome do paciente remete a outra tela com todas as informações do "Livro de Registro de Pacientes e Controle de Tratamento dos Casos de Tuberculose" (Livro Preto, atualmente Livro Verde) que reúne, para consulta imediata, todos os itens requeridos pelo registro oficial de doentes de tuberculose.
• Notas Médicas. Contém as observações de cada visita feita por cada agente. É bastante instrutiva a leitura dessas páginas, porque dá uma idéia das dificuldades que encontram as agentes para levar a bom termo o tratamento dos doentes.
Para facilitar a vida das agentes, essa página contém ainda, na barra de menu, três opções para a impressão do relatório: • uma relação simples com os nomes dos pacientes na condição escolhida; • uma relação com os nomes dos pacientes na condição escolhida, acompanhada dos nomes dos respectivos agentes e da data da última visita; • uma relação com os nomes dos pacientes na condição escolhida, acompanhada dos nomes dos respectivos agentes, da data da última visita e ainda dos respectivos endereços.
Um clique duplo sobre o nome do paciente leva ao seu cadastro, onde se encontram todas as informações contidas na Ficha de Registro.
Caso não haja nenhum paciente em ALERTA VERMELHO com qualquer das agentes, o GESTÃO (QTROP-VR) passa diretamente ao menu principal do programa, que oferece duas opções: • Seleção de Moradores; • Estatísticas.
A opção Seleção de Moradores leva à tela que permite a escolha dos moradores cadastrados que atendam a qualquer uma das seguintes condições: pelo Nome do Morador; pelo Bairro onde mora; pela Rua/Número da Casa onde mora; por Faixa Etária; pela Atividade/Profissão; pelo Estado de Origem; pela Região (Geográfica) de Origem; os Homens; as Mulheres; Todos os Moradores Cadastrados; por Doenças; por Agente Comunitário; pela Atividade Artesanal; por Palavra-Chave nas Notas Médicas; por Palavra-Chave nas Notas Artesanais.
É um elenco grande de opções que podem ser feitas, sucessivamente, em até três cortes, nas bases de dados que resultam de cada corte. Por sua vez, cada uma destas possibilidades se desdobra em outras tantas pertinentes. O elemento central da arquitetura do programa é que, para qualquer opção feita, ele termina na seleção dos moradores cadastrados que atendem à(s) condição(ões) escolhida(s).
O menu principal oferece ainda as opções de Incluir, Excluir ou Modificar a base de dados principal do programa, a saber, a dos Moradores, a dos Agentes e a do "Livro Preto".
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados obtidos com as ações do programa QTROP-FAP em Vila Rosário, no ano de 2006, estão resumidos na Tabela 1.
A análise da Tabela 1 revela dados importantes. Em primeiro lugar, vale citar a importância do trabalho das agentes na busca ativa de casos: no período de um ano, seis agentes, visitando todas as casas de sua área de atuação, reconheceram cerca de 200 pessoas como sintomáticos respiratórios, e os encaminharam para diagnóstico no Posto de Saúde.
Ainda neste período, 30 permanecem em tratamento para tuberculose e 46 receberam alta com cura. Nos sintomáticos respiratórios restantes, não foi confirmada, por meio de exames de Raios-X e escarro, a tuberculose: eram gripes fortes ou até mesmo pneumonias. Portanto, graças ao trabalho das agentes, cerca de 80 casos de tuberculose foram tratados nesse período.
O número de abandonos é relativamente pequeno (6 casos) e se deve à mudança de endereço do doente para fora dos limites das áreas de atuação e do alcance das agentes.
Outra conclusão muito importante é constatar que, apesar da descoberta e do tratamento de casos de tuberculose em Vila Rosário – trabalho que já vem sendo realizado há vários anos, – o número de casos parece permanecer constante É como se um reservatório externo à região fosse o responsável pela contaminação permanente das pessoas de Vila Rosário. E isso deve ser precisamente o que está acontecendo. Pessoas de Vila Rosário viajam de ônibus, trem, etc. apinhados de gente dentre as quais, provavelmente, há tuberculosos. Como a alimentação dessas pessoas é, na maioria dos casos, deficiente, seus sistemas de defesa estarão provavelmente deficientes, sem condições de combater a bactéria invasora, fazendo com que a doença se instale. Esses resultados comprovam a conclusão de que é indispensável elevar o nível de vida dessa sociedade, principalmente no que diz respeito à alimentação/nutrição, de forma a eliminar a tuberculose da região. Para tanto, é necessário um aumento da renda, o que só será alcançado através da educação e da conseqüente aquisição da cultura do saber e do trabalho.
A busca de casos, o tratamento e as demais ações, da forma como têm sido feitos até aqui, deverão continuar, mas um esforço grande será necessário para preparar essa população para enfrentar a tuberculose, estabelecendo um sistema individual de defesa forte. No momento em que forem melhoradas as condições de vida da sociedade, a qualidade da alimentação, a renda, a possibilidade de acesso à educação, uma cultura baseada no saber e no trabalho vai se incorporando lentamente. Só assim será possível controlar a tuberculose. De outra forma, não fará muita diferença tratar os doentes de Vila Rosário, porque a contaminação "vem de fora" e, sem a devida defesa instalada nas pessoas, a doença continuará a se manifestar.
Talvez a característica mais marcante da miséria seja a fome: onde há fome, há miséria, embora nem sempre a recíproca seja verdadeira, isto é, nem sempre onde há miséria, há fome. A fome resulta da total dificuldade ou até mesmo incapacidade de as pessoas obterem alimento por meio de trabalho. O problema da fome não se resolve por via da esmola nem da distribuição gratuita de alimentos; a grande via, e com caráter permanente, é a da educação e do trabalho ético para obter renda.
É preciso conhecer, individualmente, as pessoas com tuberculose que vivem em situação de miséria para conhecer bem o quadro social em que se encontram, e procurar meios de mudar a situação para reintegrá-los à categoria de cidadãos. Não há cidadania onde há fome. É esse o objetivo do item 6 dos "Princípios que orientam a estrutura do programa de controle da tuberculose em Vila Rosário": "concomitantemente às atividades de tratamento e de geração de renda, um estudo social será levado a efeito para se conhecer o ambiente em que se desenvolve a tuberculose". Esse estudo visa conhecer, caso a caso, todos os doentes das áreas de atuação do programa, para estabelecer estratégia adequada às ações que permitirão resgatá-los da situação em que vivem e alçá-los à condição de cidadãos.
Fome, no contexto aqui descrito, inclui desnutrição, isto é, alimentação insuficiente ou deficiente, que leva à carência dos elementos nutricionais indispensáveis para que o organismo se defenda contra a ação de agentes infectantes (o bacilo de Koch, no caso da tuberculose), possibilitando que a doença se instale. A falta de dinheiro para adquirir alimentos nutritivos, ou, simplesmente, desconhecimento acerca da dieta correta para manter a saúde podem ser fatores que justificam tal condição.
Essas são, também, facetas da vida das pessoas que precisam ser exploradas quando se pensa na eliminação da(s) doença(s). É preciso, pela educação, dar consciência às pessoas da importância que o seu sistema de defesa tem para enfrentar as doenças. Se enfraquecido, seja pela fome, pela desnutrição, pela aids, até mesmo pela idade ou por muitas outras causas que reduzem as defesas do organismo, as doenças se instalam.
Nutrição tem muito a ver com plantas – cereais, frutas, sementes, legumes e hortaliças – de forma que o atual programa repousa também sobre o uso de plantas na alimentação. De forma semelhante, plantas podem ser usadas para o combate a doenças (plantas medicinais).
Levar à sociedade – e particularmente aos doentes com tuberculose – os ensinamentos de uma alimentação correta, nutritiva, que lhes dê condições de se defenderem contra doenças, bem como o uso de plantas medicinais na cura de certas doenças é um dos grandes objetivos do programa. Esses objetivos deverão se concretizar na nova estrutura proposta para o programa, vale dizer o Instituto Vila Rosário.
A situação dos sintomáticos respiratórios e doentes de tuberculose moradores de Vila Rosário, que resulta do registro feito pelas agentes comunitárias – na ficha de controle e computado automaticamente pelo programa GESTÃO (QTROP-VR) – com relação à alimentação é mostrada na Tabela 2. Observar que os números dessa tabela devem ser vistos como uma "indicação preliminar" dos níveis de alimentação dos moradores atendidos, devido ao modo como foram obtidos: a avaliação do nível de alimentação do morador foi feita pelas agentes através de perguntas indiretas aos moradores sobre o que comem, quantas refeições fazem, se há mais de uma pessoa na casa, etc. Vê-se, portanto, que os resultados devem ser tomados com a reserva devida, uma vez que contêm interpretações e discursos subjetivos, seja por parte da informação que o morador fornece, seja pela interpretação dada pela agente. Mesmo assim, os resultados obtidos, sem serem alarmantes, são preocupantes.
Assim, cerca de 1/4 dos 232 moradores envolvidos na tuberculose, tem fome ou alimentação deficiente reconhecida pela análise feita pelas agentes. Em alguns casos, há mesmo fome. O que eufemisticamente chamam de alimentação deficiente é quase o mesmo que fome, falta de alimentos nutritivos. Por alimentação adequada não se deve esperar que todas as pessoas estejam se alimentando de forma nutritivamente correta. Há que se estabelecer um programa alimentar nutritivo mínimo para os tuberculosos, extensivo à população em geral, que classifique sua alimentação como satisfatória. Certamente muitas pessoas consomem alimentos que lhes tiram a sensação de fome, mas não consomem os teores mínimos necessários de proteínas, vitaminas, minerais que necessitam para garantir o bom funcionamento das defesas do seu organismo na luta contra os invasores. Contudo, de qualquer forma, 65% desta população dizem ter uma alimentação adequada. Aproximadamente 8% têm alimentação farta, que pode incluir frutas, carne, etc.
A geração de renda foi o elo estratégico definido pelo programa de Ações de Cidadania da Sociedade QTROP-FAP para atuar na cadeia da miséria. A geração de renda pela parte da sociedade menos provida de recursos permite-lhes, desde um primeiro momento, ganhar confiança na sua capacidade de trabalho, que resulta poder "comprar" coisas de que necessita ou deseja. A esta auto-confiança segue-se um aumento da auto-estima que, num circuito virtuoso, promove uma melhoria de perspectiva para o futuro, o que leva a uma vontade de trabalhar, de agir, chegando até mesmo a promover uma mudança no humor e na atitude das pessoas no seu cotidiano. A primeira fase, como foi mencionado no ensaio anterior,1 tratou apenas de estabelecer o programa de geração de renda com pessoas saudáveis. Em uma fase que se seguirá, a experiência se estenderá aos doentes com tuberculose, adotando-se um esquema semelhante (reportando ao aforismo de Arquimedes mencionado anteriormente, ainda não foi possível estabelecer o "apoio" sobre o qual atuará a "alavanca" que irá "erguer" este grupo social).
A geração de renda num sistema auto-controlado pela comunidade se faz através de uma cooperativa, associação ou qualquer mecanismo de ação social que envolva as pessoas da comunidade. "Forças externas" podem existir apenas para ajudar no "pontapé" inicial, mas tão logo as "asinhas" da comunidade cresçam, elas devem "voar" com as forças próprias. Esse é um importante princípio a ser seguido, porque, só assim, a cidadania se exercerá como tal em todas as pessoas da comunidade. É necessário, portanto, que haja uma estrutura legal estabelecida na região capaz de garantir-lhe o funcionamento próprio.
Uma primeira tentativa de se cooperativar o trabalho da comunidade foi criar a Cooperativa QTROP de Produtos Agrícolas (Ref. 2, p. 386) para produzir plantas medicinais. Por questões de mercado, a Cooperativa foi logo expandida para produzir, também, plantas para tempero. A estrutura legal foi montada, a assembléia geral formalizou a entrada dos cooperados e foi eleita uma diretoria. As terras tiveram que ser apropriadas às plantações e ferramentas, adubo, mudas, dentre outros, foram comprados com recursos da Sociedade QTROP. A Cooperativa contratou um agrônomo e um técnico em agronomia para dar o suporte técnico ao programa. Enfim, toda uma estrutura e uma infra-estrutura foram montadas para dar vida ao projeto de produção cooperativada de plantas medicinais e aromáticas. Entretanto, uma série de dissensões internas, falta de um espírito comunitário, incompreensões e disputas internas impossibilitaram a cooperativa de atingir seus objetivos. Ela chegou a produzir algumas das plantas, porém não conseguiu estabelecer uma estrutura de vendas que lhe permitisse funcionar como instituição. Atualmente acha-se em processo de dissolução.
Novos ventos começaram a soprar com a implantação do programa de geração de renda com o ambulatório Irmã Beta, em 2005. Um grande afluxo de pessoas da comunidade de Vila Rosário, interessadas na produção de artesanatos, fez ressurgir o interesse em uma estrutura de trabalho cooperativo, remodelando os objetivos originais. O foco e o interesse pelas plantas medicinais e de tempero se mantém, abrindo-se o leque de produtos a serem comercializados. Sachês, travesseiros e outros formam um primeiro grupo; caixas para o acondicionamento de chás, cachepot feito em mosaico formam um segundo grupo. Uma "nova" organização, chamada Instituto Vila Rosário, encontra-se em processo de estruturação. O trabalho de geração de renda com os doentes e os curados de tuberculose procurou adotar uma estratégia de integração com o trabalho cooperativo de artesãos de Vila Rosário. A adesão dos doentes seria feita somente após terem completado um mês de tratamento – quando não há mais perigo de contagiar os outros artesãos – e a dos curados seria imediata. O mais difícil tem sido, no entanto, trazer esses doentes e pós-doentes ao trabalho comunitário. É fácil compreender essa dificuldade: muitos desses doentes e ex-doentes estão mergulhados na miséria; livrá-los dessa condição requer estratégias especiais. Chamá-los e oferecer-lhes trabalho não leva a lugar nenhum. Somente um trabalho lento, praticamente voltado para cada indivíduo, fará com que estas pessoas se libertem da miséria e se integrem à sociedade "normal".
A Tabela 3 mostra o resultado da apuração feita pelo programa GESTÃO (QTROP-VR) das informações registradas pelas agentes na Ficha de Registro da Tuberculose, em Vila Rosário com relação ao trabalho/ocupação dos moradores sintomáticos respiratórios/doentes com tuberculose.
Essa tabela mostra que cerca de 30% dos sintomáticos respiratórios/doentes com tuberculose se enquadram nas categorias de biscateiros e desempregados, enquanto 17% estão empregados, vale dizer têm carteira de trabalho assinada. Esses dados mostram que a falta de um emprego que gere renda regular é grande nesse grupo. Quase o mesmo número é de aposentados que vivem da renda da aposentadoria. Cerca de 1/4 das pessoas desse grupo é de mulheres que trabalham em casa nos serviços domésticos e cuidando dos filhos, enquanto o companheiro é o responsável pela geração da renda. Interessante é constatar que cerca de 6% têm atividades de geração própria de renda.
Sobre os "elos" educação e cultura há pouco a se dizer no momento. Uma estrutura provisória prevista para o Instituto Vila Rosário está procurando formalizar o preparo dos artesãos através de cursos de costura, bordado e mosaico. Ao mesmo tempo, organizam-se cursos sobre: • Nutrição: necessidades nutricionais do organismo humano, natureza e preparo dos alimentos, utilização integral dos alimentos, balanceamento dos alimentos nas refeições, e até mesmo gastronomia. • Plantas medicinais: conhecimento de plantas medicinais usadas para pequenas afecções do organismo. Preparo das formas de uso (chás, xaropes etc.). Desenvolver o conhecimento e o gosto por pequenas plantações, seja no terreiro da casa ou em vasos. • Ética e Higiene: regras básicas para a saúde do espírito (a ética e a filosofia) e para a do corpo (a alimentação, a higiene – como é conhecida atualmente – e o exercício físico). • Leitura e compreensão de textos: círculos de leitura para exercitar a compreensão de textos.
A educação depende de um trabalho longo, contínuo, persistente. Uma sociedade tem de entender que a estrutura de uma atividade de ensino tem de ser programada para durar "indefinidamente". Qualquer atividade de ensino, uma vez iniciada, não deverá sofrer interrupções nem ser extinta e, por isto, terá que prever como sobreviver às muitas vicissitudes que certamente encontrará ao longo do percurso. A educação é um elemento de cultura indispensável à saúde de uma sociedade. Deve fazer parte do seu "inconsciente coletivo" que qualquer estabelecimento de ensino seja visto como um templo a ser venerado, ao mesmo tempo em que este "templo" deve fazer jus à veneração que a sociedade tenha por ele: a excelência da qualidade dos seus professores e do ensino que é ministrado. Só por meio dessas sementes – as escolas de excelência – se poderá formar uma sociedade de cidadãos livres, dignos e independentes.
Dentre as múltiplas opções de pesquisa que o programa GESTÃO (QTROP-VR) oferece ao analista, uma delas permite conhecer o grau de escolaridade dos sintomáticos respiratórios/doentes/ex-doentes de tuberculose. Os resultados estão mostrados na Tabela 4.
Cerca de 40% desse grupo são analfabetos ou dizem ter "educação pré-escolar" (há até indicação de pré-escolar incompleto) eufemismo para, reconheçamos, analfabetos: talvez saibam assinar o nome, mas, certamente, são analfabetos funcionais. A metade (um pouco menos, 45%) tem apenas o primeiro grau completo. Completa o quadro uma pequena percentagem que cursou o nível médio (15%) e só uma mínima (2%) o nível superior. Portanto, a falta de uma educação formal é também patente nesses casos.
O programa GESTÃO (QTROP-VR) permite, também, que se conheça de imediato a distribuição dos sintomáticos respiratórios/doentes/ex-doentes tuberculosos por faixa etária. Os resultados estão mostrados na Tabela 5.
Assim é que cerca de 70% dos casos ocorreram com adultos; seguem-se os idosos (com cerca de 14%) e crianças (13%). O grupo de adolescentes contribui com uma percentagem pequena (5%). É na fase adulta, portanto, que se concentram os casos, provavelmente pela maior exposição dessas pessoas a contaminantes do bacilo. De novo, a grande barreira a ser estabelecida para impedir, ou pelo menos reduzir, a tuberculose na população é promover a resistência dos organismos à doença. Para isso, a alimentação nutritiva é o fator preponderante.
O programa permite também que se conheça, em qualquer tempo, a distribuição por faixa etária para qualquer grupo de moradores que atendam a uma dada situação. Assim, por exemplo, a Tabela 6 mostra a distribuição por faixa etária dos moradores sintomáticos respiratórios para tuberculose (em todo o período). Já a Tabela 7 mostra a distribuição por faixa etária dos moradores que estavam em tratamento da tuberculose na data de atualização do programa (30/ 12/2006), enquanto a Tabela 8 mostra a distribuição por faixa etária dos moradores curados (com alta médica) da tuberculose em 2006.
Em todas essas tabelas o grupo de adultos é o que lidera a percentagem de casos, particularmente alta (96,5%) no que diz respeito aos casos em tratamento por ocasião do encerramento da aquisição destes dados.
Como foi mencionado anteriormente, é na fase adulta que se concentram os casos, e isso deve ter como causa principal o maior contato com tuberculosos em locais fechados, com circulação interna de ar, como em conduções, "shoppings" etc.
Heráclito de Éfeso (544 - 480 a.C.) deixou-nos um aforismo que bem descreve a essência das coisas que acontecem na natureza, principalmente daquelas em que pessoas estão envolvidas: "nunca terás como atravessar um rio duas vezes, porque, quando voltares a querer atravessá-lo as águas não serão mais as mesmas nem mesmo tu serás mais o mesmo".*** Portanto, para Heráclito, tudo muda sempre, tudo é movimento. Nada permanece o mesmo com o passar do tempo. E isto é particularmente mais evidente quando pessoas estão envolvidas, e até quando são as mesmas pessoas envolvidas.
Os ensinamentos de Heráclito são particularmente importantes de serem ouvidos no modelo de ação empreendido na sociedade de Vila Rosário. Um movimento social baseado em uma experiência que vise estabelecer novos paradigmas para o comportamento de uma sociedade ("modelos" de atuação), não deve ser nunca interrompido. O raciocínio de que a experiência se esgotou e que agora basta ampliá-la é falacioso, porque ela nunca mais será reproduzida fielmente. O componente humano dessas experiências faz com que, diferentemente do que acontece no mundo físico em que as leis são definitivamente deterministas, seja alto o nível de indeterminação dos novos resultados.
Mais do que usar a experiência como modelo que se encerrou, ela deve ser pensada como o núcleo de uma ação que poderá ser continuamente expandida, mas nunca interrompida.
A experiência acumulada vale para a sociedade "viva", isto é, a sociedade em que se está atuando. Se a experiência deixar de existir – conseqüentemente tiver morrido – nunca será possível "ressuscitá-la". Pode-se até buscar repetir o que foi feito – valer-se das idéias usadas no programa anterior como norte das ações futuras –, mas como as condições vigentes certamente serão outras, as pessoas serão outras, tudo enfim será "outro", um novo ("outro") programa surgirá. Nunca será uma continuação do que o precedeu.
O caminho, portanto, para a consolidação de um modelo de atuação usado para mudar comportamento de uma sociedade é fazê-lo expandir-se até que atinja uma massa crítica na sociedade que lhe permita automanter-se, e que tenha seus bons resultados incorporados à cultura da sociedade.
Finalizando pode-se dizer que os dados aqui apresentados comprovam a tese da relação entre tuberculose (disseminada) e a cadeia da miséria, o que nos leva de volta às perguntas levantadas pelo poeta no início desse documento, cujas respostas podem contar, agora, com subsídios oferecidos por esse trabalho:
Se tuberculose
é bem uma medida
de quanto é a miséria em que vivem
pessoas de uma comunidade,
é bom que se pergunte:
Acabar com a tuberculose
É caminho
P'ra se acabar com a miséria?
Ou será que
Acabar com a miséria
É caminho p'r'acabar
Com a tuberculose?
Agradecimentos: O Programa de Ações de Combate à Tuberculose que a Sociedade QTROP realiza em Vila Rosário foi possível graças ao apoio financeiro dado pela Fundação Ataulpho de Paiva - FAP, para o pagamento das seis Agentes Comunitárias, e pela empresa FURNAS Centrais Elétricas S.A. que possibilitou a implementação do programa de Ações de Cidadania.
REFERÊNCIAS
1. Costa Neto C. Tuberculose, Vila Rosário e a Cadeia da Miséria. Antigas Angústias, Mais Reflexões, Novos Caminhos. Bol Pneumol Sanit 2004;12(3):171-83.
2. Costa Neto C. Vila Rosário. Rio de Janeiro. Cálamo Produção Editorial, 2002.
3. Houaiss A, Villar MS. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001.
4. Costa Neto C. Tuberculose, Vila Rosário e a Cadeia da Miséria. Angústias e reflexões de um cidadão. Bol Pneumol Sanit 2003;11(2):25-40.
5. World Health Organization - Global Tuberculosis Control / Brazil. WHO Report 2006 Genebra, 2006.
6. Gerhardt G, Teixeira GM, Diniz LS. O Controle da tuberculose em área do Distrito de Campos Elíseos de Duque de Caxias/RJ. Bol Pneumol Sanit 2002;10(2):13-20.
7. Kirk GS, Raven JE, Schofield M. Os filósofos pré-socráticos. 4a. ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1994.
Endereço do autor:
Instituto de Química, UFRJ.
Cidade Universitária,
Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, RJ.
Recebido em 2/04/2007 e aceito,
após revisão em 30/04/2007.
*Uma descrição detalhada do programa QTROP/FAP em Vila Rosário, pode ser encontrada na referência 2.
**Cópia do programa GESTÃO (QTROP-VR) poderá ser obtida da Sociedade QTROP por solicitação da instituição interessada. O programa é acompanhado de um manual de instruções para o seu uso.
*** Esta é a forma "traduzida" do texto original de Heráclito, para linguagem moderna. Nunca esquecer que Heráclito era tido, mesmo entre seus parceiros na antiguidade, como o "obscuro". A tradução do original lê-se assim: "Para os que entrarem nos mesmos rios, outras e outras são as águas que por ele correm... dispersam-se e... reúnem-se... juntas vêm e para longe fluem... aproximam-se e afastam-se7