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Revista Pan-Amazônica de Saúde

versión impresa ISSN 2176-6215versión On-line ISSN 2176-6223

Rev Pan-Amaz Saude v.4 n.2 Ananindeua jun. 2013

http://dx.doi.org/10.5123/S2176-62232013000200002 

ARTIGO HISTÓRICO | HISTORICAL ARTICLE | ARTÍCULO HISTÓRICO

 

As primeiras sociedades médicas do Estado do Pará, Brasil

 

The first medical societies of Pará State, Brazil

 

Las primeras sociedades médicas del Estado de Pará, Brasil

 

 

Aristóteles Guilliod de Miranda; José Maria de Castro Abreu Junior

Instituto Histórico e Geográfico do Pará, Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, Brasil

Endereço para correspondência
Correspondence
Dirección para correspondencia

 

 


RESUMO

O artigo revê a trajetória da fundação das primeiras sociedades médicas do Estado do Pará, Brasil: a Sociedade Médico-Farmacêutica e a Sociedade de Medicina e Cirurgia, e analisa o possível contexto social que teria levado ao desaparecimento de ambas.

Palavras-chave: História da Medicina; Sociedades Médicas; Artigo Histórico.


ABSTRACT

This article discusses the founding process of the first medical societies of the State of Pará, Brazil: Sociedade Médico-Farmacéutica and Sociedade de Medicina e Cirurgia. It also analyzes the social context that led to their closure.

Keywords: History of Medicine; Societies, Medical; Historical Article.


RESUMEN

El artículo revé la trayectoria de la fundación de las primeras sociedades médicas del Estado de Pará, Brasil: la Sociedad Médico-Farmacéutica y la Sociedad de Medicina y Cirugía, y analiza el posible contexto social que habría conducido al desaparecimiento de ambas.

Palabras clave: Historia de la Medicina; Sociedades Médicas; Artículo Histórico.


 

 

INTRODUÇÃO

A organização de sociedades médicas foi uma tendência surgida na Europa do século XVII, onde o desenvolvimento veloz das ciências e das pesquisas contrastava acentuadamente com o ensino nas Universidades, que seguia modelos ainda ligados a tradições da Idade Média. Segundo Pedro Salles, "abalados por estes contrastes, os médicos tiveram como recurso a organização de associações próprias onde o aprendizado era feito sem formalismos, mas de maneira eficiente"1. Esta tendência naturalmente demoraria a chegar ao Brasil, devido à sua própria condição de colônia.

Somente no século XVIII, quando já existia um significativo número de intelectuais no Brasil, observou-se o surgimento de academias e sociedades literárias, sediadas nos Estados da Bahia e do Rio de Janeiro, respectivamente, e inspiradas nos moldes das existentes em Lisboa. Patrocinadas pelos vice-reis, tais agremiações congregavam homens de cultura, sacerdotes, bachareis em leis, magistrados, funcionários graduados da Coroa, oficiais superiores das tropas, senhores de engenho letrados e os raros físicos e cirurgiões existentes. Longe de discutir assuntos ligados à medicina, estas corporações estavam voltadas mais para a poesia e outras composições caracterizadas pela exaltação e louvores ao Rei, ao marquês de Pombal e demais autoridades da Coroa2.

Algumas organizações até tinham um caráter mais científico, como a Academia Científica do Rio de Janeiro, por vezes também denominada de Academia de Ciências e História Natural do Rio de Janeiro. De duração efêmera (1771-1779), tendo entre seus membros médicos e cirurgiões, discutindo temas de história natural, física, química, agricultura e farmácia, é considerada a primeira sociedade com alguma finalidade declaradamente médica criada em nosso país1,3.

A vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, e a consequente elevação da colônia brasileira à categoria de Reino Unido mudariam o panorama científico nacional, uma vez que o governo português aqui instalado criaria as primeiras escolas de medicina no país, inicialmente em Salvador, na Bahia, e, meses mais tarde, no Rio de Janeiro, para onde se transferiria a Corte2,4,5.

Passadas algumas décadas, os médicos formados no Brasil começaram a buscar o fortalecimento de sua corporação, a defesa de sua profissão e do mercado de trabalho, o que culminou com o surgimento das chamadas associações médicas6.

A primeira sociedade brasileira voltada exclusivamente para a medicina, nos moldes como conhecemos atualmente, foi a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, criada em 1829, elevada, em 1835, à condição de Academia Imperial de Medicina e, logo após a proclamação da República, rebatizada como Academia Nacional de Medicina3.

Com o passar dos anos e o aumento do número de médicos fora da Corte brasileira, foi natural o surgimento de sociedades médicas em outras províncias, ainda que muitas tenham tido duração efêmera. Sem preocupações cronológicas ou com seu tempo de duração, podemos citar algumas, como a Sociedade de Medicina Pernambucana (1841), a Academia de Ciências Médicas da Bahia (1848), a Associação Médico-Farmacêutica do Rio Grande do Sul (1850), a Sociedade Baiana de Beneficência Médica (1865), a Sociedade Médico-Farmacêutica de Campos (1879), a Sociedade Rio Grandense Medico Cirurgica (1886), a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro (1887), a Sociedade Medico-Cirurgica de São Paulo (1888), a Sociedade de Medicina de Porto Alegre (1892), a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Niterói (1897), a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Manaus, a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora e a Sociedade de Medicina, Cirurgia e Farmácia de Belo Horizonte, estas últimas de 18991.

AS SOCIEDADES MÉDICAS NO PARÁ

A organização, as modificações e modernizações por que passariam a assistência à saúde no Estado do Pará após a proclamação da República, ao final do século XIX, seguidas pela tentativa de valorização da medicina como categoria profissional, no início do século XX, ensejariam, consequentemente, a criação de associações no Pará, onde "fosse possível aos médicos resolver os seus dilemas e encontrar o caminho para o reconhecimento público de sua figura"7.

Deste modo, em sessão solene realizada em 8 de novembro de 1897, na Inspetoria do Serviço Sanitário do Estado, com a finalidade de a classe médica homenagear os médicos Matta Rezende e Virgilio Mendonça por sua atuação na campanha de Canudos, por iniciativa do governador e médico Paes de Carvalho é fundada a Sociedade Medico-Pharmaceutica do Pará*. Ressalte-se que foi também iniciativa deste mesmo governador a edição de uma lei, em 1899, criando as Faculdades de Direito, Medicina e Engenharia. A lei ficou no papel, o que atrasou em alguns anos o surgimento dos cursos superiores no Pará, uma vez que somente em 1902 seria criada a Faculdade de Direito.

Embora denominada "médico-farmacêutica" a nova agremiação congregava, além de médicos e farmacêuticos, químicos, veterinários e cirurgiões dentistas, e até o naturalista Emílio Goeldi, conforme ata da reunião para a discussão dos estatutos, realizada na residência do dr. Paes de Carvalho, em 21 de janeiro de 1898.

Entre outros assuntos, um dos tópicos levantado naquela sessão foi se a sociedade deveria ter a finalidade mais científica do que beneficente e se os auxílios beneficentes deveriam ser dirigidos apenas aos sócios ou a pessoas de sua família, como esposa, filhos ou mesmo irmãos, em caso de necessidade. Paes de Carvalho (Figura 1) resolveu a questão afirmando que a sociedade tinha fins tanto científicos como beneficentes, devendo prestar, caso necessário, auxílio aos associados e suas famílias, ficando a critério da sociedade julgar cada caso10.

 

 

Através de voto secreto foi eleita sua primeira diretoria, constituída pelos seguintes membros:

Presidente: Américo Santa Rosa (médico)

Vice-presidente: Barão de Anajás (médico, pai do futuro governador Antonino Emiliano de Souza Castro e homônimo deste)

1o secretário: João José Godinho (médico)

2o secretário: Leandro Eustaquio Tocantins (farmacêutico)

Tesoureiro: Ignacio Gonçalves Nogueira (farmacêutico)

Comissões:

Imprensa: Firmo Braga, Geminiano de Lyra Castro e Virgilio Lopes de Mendonça - todos médicos;

Ciências Médicas: Joaquim Antonio da Silva Rosado, José Cyriaco Gurjão e Henrique Avelino Mendes;

Ciências Cirúrgicas: Miguel de Almeida Pernambuco, João Paulino de Souza Uchoa e Augusto Numa Pinto;

Ciências Acessórias: Emilio Goeldi (zoólogo e naturalista), Antonio Marçal (médico) e Paul Bohain (químico);

Farmácia: Abel Cezar de Araujo, Elpidio Rodrigues da Costa e Cezar Pedro dos Santos;

Finanças: Antonio O d'Almeida (médico), Emilio Falcão (cirurgião dentista) e Benedicto Eusebio de Navegantes (médico).

Foram ainda nomeados presidentes de honra os decanos da medicina paraense, Augusto Thiago Pinto e Francisco da Silva Castro10.

A Sociedade Medico-Pharmaceutica do Pará foi instalada em 1o de fevereiro de 1898, em sessão solene no salão de honra da Inspetoria do Serviço Sanitário do Estado, situado à Praça Saldanha Marinho (atual Praça da Bandeira). O presidente dr. Américo Santa Rosa iniciou o discurso de abertura congratulando-se com todos os presentes, afirmando que a nova sociedade estava destinada a prestar valiosos serviços à medicina paraense e aos próprios associados. Fez uma retrospectiva da evolução da medicina e finalizou afirmando que "não ha na sciencia fronteiras, e que no seio da sociedade que acabava de installar havia logar para sectários de todas as crenças politicas ou religiosas, pois que a Associação é puramente scientífica e de caracter beneficente". A seguir discursou o governador, dr. Paes de Carvalho, afirmando que o Governo do Estado não poderia ser indiferente a uma manifestação que representava o adiantamento do Estado, um exemplo digno de imitação: a criação de uma sociedade que da qual se esperava os mais assinalados serviços em um país11.

Como o nosso, no qual da hygiene pública depende em parte o nosso progresso, onde o povoamento é questão capital, comprehende-se que o Governo do Estado, manifeste verdadeira satisfação ao ver organisar-se uma corporação scientífica, que pode e ha-de prestar-lhe o valioso concurso de suas luzes.

Logo em seguida falou o Barão de Anajás, agradecendo sua escolha como vice-presidente da sociedade, seguido pelo discurso do farmacêutico Abel Araújo, o qual fez um longo histórico das relações da farmácia com a medicina. Por fim, por proposta de Abel Araújo e do dr. Firmo Braga, que fez o discurso final homenageando o governador Paes de Carvalho, este foi eleito sócio benemérito e presidente de honra da Sociedade Medico-Pharmaceutica11.

A sociedade começou então efetivamente a funcionar e a reunião seguinte, datada de 13 de março de 1898, ocorrida também na Inspetoria do Serviço Sanitário, ilustra bem o que se discutia naquela agremiação. Naquele encontro, no qual 24 sócios fizeram-se presentes, o dr. Paes de Carvalho levou para discussão um caso de sua clínica particular, em que uma paciente primípara, por ocasião do parto, havia apresentado uma larga rotura perineal, que se estendia da vagina ao esfíncter anal. Um cirurgião da Cidade do Porto praticou a perineorrafia e, após a cicatrização, verificaram-se bridas e cordões na cavidade vaginal. A paciente estava gestante novamente e o marido, receando as dificuldades de um novo parto, escreveu ao cirurgião, o qual recomendou que se provocasse o aborto.

Paes de Carvalho levou o caso aos colegas em busca de opiniões. Após ampla discussão apoiada na literatura médica e na experiência pessoal dos sócios, o consenso geral foi que a gestação fosse levada adiante, tendo o dr. Miguel de Almeida Pernambuco finalizado a questão afirmando que, embora se tivesse que fazer novamente a perineorrafia, esta deveria ser repetida "tantas vezes quantas forem precisas, sem que se deva por isso sacrificar uma creança" e rebateu a sugestão de que um parto prematuro, aos sete meses, nesta situação traria menos riscos à mãe, afirmando que, embora "...aos sete mezes o feto tenha condições de viabilidade, nem sempre viverá nos casos de parto prematuro. Além do que nos falham elementos para tratar fetos viáveis nascidos prematuramente..."11.

A partir daí a Sociedade Medico-Pharmaceutica passou a realizar reuniões mensais que serviam como uma oportunidade para os associados apresentarem casos difíceis ou raros, bem como teses, trabalhos, memórias, enfim qualquer tema médico que fomentasse discussão. Nas mesmas sessões, entre outros assuntos, também eram lidas comunicações e anunciados o recebimento de jornais e revistas científicas que ficavam disponíveis para os membros. A Medico-Pharmaceutica chegou a contar com um quadro de 67 médicos, 24 farmacêuticos, seis cirurgiões dentistas, dois químicos, um veterinário e um naturalista como sócios12.

Paradoxalmente, nas reuniões em que há registro do número de presentes, nota-se uma frequência decrescente, indo de 37 membros na sessão de 1o de fevereiro de 189811 e chegando apenas a 12 presentes registrados na ata de 3 de novembro de 1898, última sessão em que esta contagem é referida13. Observa-se também que os sócios não médicos pouco participavam das discussões, possivelmente pelas temáticas abordadas serem muito específicas da área de atuação do grupo dominante, o médico.

Este aparente descaso que tomou conta da Medico-Pharmaceutica é referido no discurso de posse de João Godinho, o qual, ao assumir a presidência da Sociedade após a morte de Américo Santa Rosa (Figura 2), menciona que a agremiação precisava levantar-se do abatimento14.

 

 

Na sessão comemorativa pelo terceiro ano da Sociedade, em 1o de fevereiro de 1901, o primeiro secretário, Américo Campos, em seu discurso15 aborda a questão de forma mais enfática, ao referir que:

A Sociedade Medico-pharmaceutica ficou largo período de tempo mergulhada em lethargo.

Promanou este de indifferença pelo cultivo directo e perseverante das sciencias medicas?

Originou-se da exiguidade de tempo concedido aos clínicos belenenses, para meditação e repouso, pelos diuturnos labores profissionaes?

Não sei! E não me compete agora indagar as causas reaes e aprecia-las a luz da baça da minha intelligencia.

Mesmo com tudo isso, ainda havia otimismo quanto ao futuro da Medico-Pharmaceutica. Nesta mesma sessão especial de aniversário, o presidente João Godinho refere-se a metas ambiciosas para prazos ainda que não imediatos, mas também não muito distantes, como a organização de congressos científicos, a fundação de uma policlínica e sanatórios, estes especialmente para o tratamento da tuberculose, e a criação de "uma Escola de Pharmacia e de Enfermeiros"15.

No ano seguinte, em sua mensagem16 ao Congresso do Estado do Pará, em janeiro de 1901, o Governador Paes de Carvalho fala com entusiasmo sobre a criação da Sociedade, assim se expressando:

A Sociedade Medico-Pharmaceutica do Pará foi creada sob minha administração e com prazer o lembro. Reune-se ali uma pleiade de medicos estudiosos e habilissimos, e de farmacêuticos distinctos, que vão dando o exemplo do trabalho methodico e productivo, e certamente farão nascer o estimulo no meio dos scientistas paraenses, desenvolvendo-se assim o amor pelas conquistas do saber.

A despeito dos seus projetos ambiciosos e que jamais saíram do plano das ideias, a Sociedade Medico-Pharmaceutica deixou como legado seu órgão de divulgação, a revista Pará-Médico, de periodicidade mensal, que se dizia "revista de medicina e pharmacia", cujo primeiro número surgiu em novembro de 1900 com a proposta de um "trabalho de vulgarização scientifica em pról da collectividade" e que serviria para "apertar os laços de solidariedade que devem existir entre devotados apostolos do mesmo ideal", aos quais caberia a responsabilidade de "cimentar as bases em que apoiam-se as nossas aspirações de progresso e civilização"14.

Sobre a revista, também se manifestou o governador Paes de Carvalho em sua mensagem16 ao Congresso do Estado:

Pela sua inspirada deliberação creou-se uma revista mensal o - "Pará-Medico", - que tendo já publicado os seus dois primeiros números, continuará a concorrer para o brilho da nossa pauperrima literatura profissional.

A Pará-Médico, órgão de divulgação da Sociedade Medico-Pharmaceutica do Pará, foi editada até abril de 1902, chegando a 13 fascículos17, publicando trabalhos bastante diversificados, dando ênfase à higiene pública e a doenças que mais preocupavam o governo no período7, como malária, febre amarela, tuberculose, traçando painéis epidemiológicos e mostrando o movimento dos hospitais existentes. Seus redatores eram os médicos Pontes de Carvalho, João José Godinho e Américo Campos7.

A Sociedade Medico-Pharmaceutica representava uma agremiação muito heterogênea, e não apenas por agregar diferentes categorias profissionais. Até mesmo entre os médicos associados observava-se uma mistura de gerações conflituosas do ponto de vista da evolução da ciência, pois ela contava com médicos remanescentes da luta contra a epidemia de cólera, ocorrida em 1855, ainda ligados a teorias arcaicas como a dos quatro humores, e com médicos novos, pertencentes a uma geração que tinha aprendido na faculdade a teoria microbiana de Pasteur7.

Ainda que não seja possível avaliar o peso deste choque de gerações no desaparecimento desta sociedade, outro fator certamente contribuiu para seu enfraquecimento: a criação da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Pará, a partir de uma cisão na classe.

A cisão aconteceu nos primeiros meses de 1900, quando o governador Paes de Carvalho, fundador e presidente de honra da Sociedade Medico-Pharmaceutica, demitiu o médico Cyriaco Gurjão do Serviço Sanitário do Estado, alegando que este não cumpria com suas obrigações de funcionário público. Em fevereiro daquele ano, um grupo de médicos fez uma manifestação de protesto contra a demissão do dr. Gurjão realizada em frente a sua casa7.

A manifestação, que não passou de uma simples "visita coletiva", foi interpretada como uma afronta ao governador e um produto da oposição que se alinhava ao ex-governador Lauro Sodré. Como resultado, poucos dias depois Paes de Carvalho exonerou do cargo sete médicos que haviam participado do protesto, por terem criticado publicamente um ato do governador e ferido princípios básicos da administração pública.

Pouco tempo depois, em maio do mesmo ano, uma nota18 em a Folha do Norte convocava os médicos para a criação de uma nova agremiação:

Sociedade de Medicina e Cirurgia

Os medicos de Belém estão convidados para uma reunião amanhã, ás 8 horas da noite, em casa do sr. dr. Pereira de Barros, afim de se tratar da fundação de uma sociedade de Medicina e Cirurgia.

No dia 13 de maio, no mesmo horário e endereço, instalou-se a nova sociedade19 contando em seu quadro com os médicos demitidos, outros solidários a estes ou insatisfeitos de alguma forma com a Sociedade Medico-Pharmaceutica.

Uma nova sessão de instalação, com um caráter mais solene e público ocorreu em 11 de junho de 190020:

Ficou instalada na noute de segunda-feira, como se anunciou, a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Pará.

No salão do Club Euterpe, para isso gentilmente cedido, era distincta e numerosa a assistencia de pessoas a que assistiu á cerimonia solemne de inauguração. Presidiu o sr. Barão de Anajás, que falou conceituosa e elevadamente abrindo a sessão e tracejando o bello e promissor programa da sociedade - um nucleo de dedicados no estudo e á verdade no que entender com a sciencia medica e suas dificultosas relações com a nossa vida social.

O orador do acto Dr. Brito Pontes proferiu brilhante e primorosa oração, que deixou vivamente impressionado o auditorio, que era selecto.

Falaram também os snrs. drs. Hermogenes Pinheiro e Retiliano Gemanto.

O acto deixou agradavel e duradoura impressão no espirito de quantos o assistiram.

A Sociedade de Medicina e Cirurgia a partir daí seguiu funcionando de forma regular, tendo como presidente o Barão de Anajás (Figura 3), que havia sido vice-presidente na primeira gestão da Sociedade Medico-Pharmaceutica21.

 

 

As reuniões eram realizadas uma ou duas vezes por mês, no Largo da Trindade, no 15, na residência do dr. Pereira de Barros. O primeiro secretário era o dr. Hollanda Lima, e o segundo, o dr. Pedro Miranda. Nas reuniões, eram discutidos casos de cirurgia, questões de higiene pública e temas clínicos, como o impaludismo. Em uma delas é referida a presença de 12 sócios22. É interessante observar que, em muitas notas de jornal com chamadas para reuniões, a Sociedade de Médicina e Cirurgia também era frequentemente denominada de Sociedade Médico-Cirurgica23,24,25.

Há registro de uma publicação desta sociedade: os Annaes da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Pará, do qual Manoel Barata registra ter sido publicado apenas um número, em 1o de outubro de 190017. A revista tinha como redatores os médicos Henrique Mendes, Silva Rosado, Ó de Almeida e Britto Pontes. Em suas 12 páginas foram abordados diversos assuntos, assim discriminados26:

Artigo de Redacção - Discurso do Presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia - Discurso do orador official - Um caso de Obcessão pathologica e um caso de escorbuto, pelo Dr. T. Roxo - O tratamento da tuberculose pelo igazol, Dr. Brito Pontes - Chronica e noticias scientificas - Actas da 1a, 2a e 3a secções ordinarias da Sociedade - Formulas - Prescripções -Medicamentos novos e Estatutos.

Por todo o ano de 1901 e de 1902, ambas as sociedades coexistiram, com os jornais noticiando a realização de reuniões semanais, embora sem detalhar os assuntos discutidos. De 1903 em diante, as notícias sobre as reuniões das sociedades médicas somem dos jornais. Qual ou quais teriam sido os motivos para o desaparecimento de ambas?

Para Sílvio Rodrigues, a classe médica paraense, na virada do século XIX para o XX, vivia em pé de guerra. O historiador chega mesmo a afirmar que as principais características da maior parte dos médicos do Pará neste período eram a falta de parâmetros éticos, um conhecimento terapêutico limitado, a ausência de interesse científico e paixões partidárias exacerbadas7.

Por mais chocante que tais afirmações possam parecer, elas encontram amparo em relatos da época, como na obra A Medicina em Belém, publicada em 1901, escrita pelo médico Eduardo de Léger Lobão Junior. Neste livro há uma descrição nada abonadora da medicina praticada na capital paraense, onde, segundo o autor, ainda havia médicos que não acreditavam nas teorias antimicrobianas e de antissepsia, tirando bisturis direto do bolso e fazendo injeções sem asseio27. O autor também criticava o excessivo hábito dos colegas de atestarem como causa de óbito as chamadas "polynevrites", quando estas representavam patologias de difícil diagnóstico e que nem eram assim tão mortais27.

Em outro trecho do livro27 tem-se a descrição de uma classe médica diferente do que normalmente estamos acostumados a ver nos relatos de época, mais ligada a carruagens do que aos estudos:

"Um dos maiores defeitos dum certo numero dos nossos medicos velhos, é não pegarem em livro; e muitos neophytos é, além de não abrirem livro, o Carro. Quando se acham reunidos, os medicos, ou melhor os latinos, sua conversa em geral versa sobre politica (o que é improprio), sobre bandalheira (o que é feio), ou detractando os outros collegas (o que é triste). Por vaidade, por ter muita clinica, ou como reclame (o que parece mais certo), em consequencia da concorrencia que já vae havendo aqui na nossa classe médica, o collega nóvel, chegado anno atrasado ou passado, anda a carro. É um mal - o Carro em todos os sentidos e temos-nos certificado; porque obriga o medico novo a so pensar em cavallos, e... cavallos bons, bonitos, de raça!".

Sobre as agremiações médicas criadas no período, Lobão Júnior também não demonstra piedade e dispara27:

"Quando estuda então esse ou esses medicos? Só se elles entendem que estudar é abrir um livro ou jornal de medicina e ler um capitulo! Isso mesmo, queremos acreditar, que muitos não fação — velhos e novos. — Em que tempo então, sendo assim, como é, poderá a medicina desta terra, elevar-se? O anno passado constituio-se aqui a Sociedade Medica e Pharmaceutica (e em 1900 — a de Medicina e Cirurgia — por desavenças políticas, disem, da classe medica). Nunca lá fomos; porque logo que ellas foram creadas perguntamos:— para que isso? Já conheciamos o mundo médico onde vivemos. Houverão algumas sessões; e ninguem mais fala nellas hoje (Perdão! Recuscitou em fins de 1900 — a Sociedade Medica-Pharmaceutica) antes de um anno de fundadas. Nem podia deixar de ser assim, visto quasi todos os medicos velhos faserem — politica, e os moços — empregos, e pensarem só em carros e cavallos".

E claro que as opiniões do dr. Eduardo de Léger Lobão Junior, ainda que representem um ponto de vista importante, não devem ser assumidas como a única verdade. Ainda mais se levarmos em conta possíveis ressentimentos do autor, pois em decorrência de seus estudos sobre os efeitos terapêuticos da flora amazônica, este foi durante os 14 anos de predomínio de Antônio Lemos taxado de pajé pelo jornal A Província do Pará, órgão de tendências lemistas7.

Independente das causas que possam ainda vir a ser descobertas, ambas as sociedades médicas desapareceram dos noticiários. Seria preciso mais de uma década para que uma nova geração de médicos, juntamente com membros remanescentes das sociedades antigas, em um momento de paixões políticas menos acirradas, criassem uma nova agremiação médica paraense, tomando emprestado um nome que remetia a uma e usando o título da revista científica de outra. Assim nasceria a Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará, assunto a ser abordado em outra oportunidade.

 

REFERÊNCIAS

1 Salles P. História da medicina no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Coopmed; 2004.

2 Santos Filho L. História geral da medicina brasileira. v. 1. São Paulo: Hucitec; 1977.

3 Nascimento A. Centenário da Academia Nacional de Medicina do Rio de Janeiro, 1829-1929: primórdios e evolução da medicina no Brasil. Brasília: Imprensa Nacional; 1929.

4 Sarinho CT. Faculdades de medicina do Brasil: as dez mais antigas. Natal: Nordeste Gráfica; 1989. 270 p.

5 Torres O. Esboço histórico dos acontecimentos mais importantes da vida da Faculdade de Medicina da Bahia (1808-1946). Salvador: Imprensa Vitória; 1946. 142 p.

6 Santos PM. Profissão médica no Brasil. In: Machado MH, organizador. Profissões de saúde: uma abordagem sociológica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1995. 226 p.

7 Rodrigues SF. Esculápios tropicais: a institucionalização da medicina no Pará, 1889-1919 [dissertação]. Belém (PA): Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia; 2008. 163 p.

8 [Dr. Paes de Carvalho propõe a criação de uma associação entre médicos e farmacêuticos para tratar dos interesses científicos, morais e materiais dessas classes...]. Pará Med. 1900;1(1):22.

9 Borges R. O Pará Republicano 1824-1929: ensaio histórico. Belém: Conselho Estadual de Cultura; 1983. 392 p.

10 Sociedade Medico-Pharmaceutica do Pará. Acta da sessão celebrada em casa do Sr. dr. Paes de Carvalho, para discussão dos Estatutos da Sociedade medico-pharmaceutica do Pará, em 21 de Janeiro de 1898. Pará Med. 1900 dez;1(2):52.

11 Sociedade Medico-Pharmaceutica do Pará. Acta da installação solene da Sociedade Medico-Pharmaceutica do Pará, celebrada em 1° de Fevereiro de 1898, como abaixo se declara. Pará Med. 1901 jan;1(3).

12 Sociedade Medico-Pharmaceutica do Pará. Socios effectivos fundadores. Pará Med. 1901 out;1(10).

13 Sociedade Medico-Pharmaceutica do Pará. Acta da sessão do dia 3 de Novembro de 1898. Pará Med. 1901 abr;1(6).

14 Godinho J. Discurso pronunciado pelo dr. J. Godinho, na sessão de posse da actual directoria da Sociedade Medico-Pharmaceutica do Pará. Pará Med. 1900 nov;1(1).

15 Sociedade Medico-pharmaceutica do Pará. Sessão solemne de posse. Pará Med. 1901 fev;1(4).

16 Pará. Governador (1897-1901: José Paes de Carvalho). Mensagem dirigida ao Congresso do Estado do Pará, Typ. do Diário Official [Internet], Belém, p. 24, 1 jan 1901 [citado 2013 abr 15]. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u2434/000024.html.

17 Barata M. Formação histórica do Pará. Belém: UFPA; 1973. 373 p.

18 Folha Norte. 1900 maio 12;5:2. 5 col.

19 Folha Norte. 1900 maio 13;5:2. 4 col.

20 Folha Norte. 1900 jun 14; 5:2. 4 col.

21 Folha Norte. 1900 ago 1;5:2. 6 col.

22 Folha Norte. 1900 set 27;5.

23 Folha Norte. 1900 set 4;5:2. 4 col.

24 Folha Norte. 1900 set 5;5:5. 6 col.

25 Folha Norte. 1900 set 17;5:3. 1 col.

26 Pará Med. 1900 nov;1(1):25.

27 Lobão Junior EL. A medicina em Belém. Belém: Tavares Cardoso; 1901.

 

 

Correspondência / Correspondence / Correspondencia:
Aristoteles Guilliod de Miranda
Trav. 14 de Abril, 1716
CEP: 66063-140
Belém-Pará-Brasil
E-mail: ariguilliod@hotmail.com

Recebido em / Received / Recibido en: 4/2/2013
Aceito em / Accepted / Aceito en: 5/3/2013

 

 

*Terminada a leitura da Mensagem, o Dr. Paes de Carvalho pede a palavra e propõe a creação de uma associação entre medicos e pharmaceuticos com o fim de tratar dos interesses scientificos, moraes e materiaes das classes có-irmãs de cujas vantagens e necessidades, disse o orador, dispensava-se de tratar, pois que se impunham tanto ao espirito do medico quanto do farmacêutico."8.

Lei no 629, de 22 de maio de 1899. José Paes de Carvalho foi governador do Pará de 1897 a 1901. Eleito senador em 1903, assumiu e retirou-se em definitivo para Paris. Médico humanitário, foi durante muitos anos amigo dos paraenses e brasileiros na capital francesa, além de assessor das relações financeiras entre o Brasil e seus banqueiros europeus9.

Durante as discussões, houve proposição para a admissão como sócios, também, das parteiras diplomadas, ensejando que a redação do artigo correspondente ficasse assim redigido: "Para pertencer á Sociedade é preciso ser medico ou farmacêutico ou titulado em qualquer dos ramos das sciencias medicas, cirurgicas ou acessórias, etc."10.