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Revista Pan-Amazônica de Saúde

versão impressa ISSN 2176-6215versão On-line ISSN 2176-6223

Rev Pan-Amaz Saude v.5 n.1 Ananindeua mar. 2014

 

http://dx.doi.org/10.5123/S2176-62232014000100001

ARTIGO HISTÓRICO | HISTORICAL ARTICLE | ARTÍCULO HISTÓRICO

 

A fundação da Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará

 

The establishment of the Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará, Brazil

 

La fundación de la Sociedad Médico Quirúrgica de Pará, Brasil

 

 

Aristóteles Guilliod de Miranda; José Maria de Castro Abreu Junior

Instituto Histórico e Geográfico do Pará, Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, Brasil

Endereço para correspondência
Correspondence
Dirección para correspondencia

 

 


RESUMO

O artigo reconstitui os principais eventos ocorridos entre a fundação, instalação e os primeiros meses de funcionamento da Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará, a mais antiga associação médica em funcionamento do Estado do Pará, Brasil. Muitos fatos desconhecidos da historiografia oficial são ressaltados.

Palavras-chave: História da Medicina; Sociedades Médicas; Artigo Histórico.


ABSTRACT

The article retraces the main events that occurred between the establishment, installation and the first months of work of the Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará, the oldest medical association in functioning in Pará State, Brazil. Many unknown facts of official historiography are emphasized.

Keywords: History of Medicine; Societies, Medical; Historical Article.


RESUMEN

El artículo reconstituye los principales eventos sucedidos entre la fundación, instalación y los primeros meses de funcionamiento de la Sociedad Médico Quirúrgica de Pará, la más antigua asociación médica en funcionamiento del Estado de Pará, Brasil. Varios hechos desconocidos de la historiografía oficial son destacados.

Palabras clave: Historia de la Medicina; Sociedades Médicas; Artículo Histórico.


 

 

Após um período de mais de dez anos sem que se tenham tido informações sobre o funcionamento ou não das primeiras sociedades médicas criadas no Estado do Pará, Brasil, as Sociedades Médico-Farmacêutica e de Medicina e Cirurgia1, eis que em 11 de julho de 1914 uma nota publicada no jornal Folha do Norte2 chamaria a atenção para a criação de uma nova agremiação científica voltada para a medicina:

Sociedade Medico-Cirurgica Cogita-se ao que ouvimos, da fundação de uma sociedade scientifica, destinada ao estudo dos mais importantes problemas medico-cirurgicos, observados na clínica desta capital.

Os promotores de tão alevantada iniciativa pensam em dar ao novel grêmio, acrescenta o nosso informante - o cunho de suas congêneres do estrangeiro, concorrendo essa circumstancia para levar além fronteiras a certeza de que, no Pará, a classe medica procura, num movimento animador, acompanhar a evolução da sciencia moderna.

Para um meio já tão adeantado como o nosso, onde distinctos clínicos e peritos cirurgiões diariamente demonstram, em casos verdadeiramente assombrosos, especialmente no tocante á intervenção cirúrgica, a sua proficiência, esse núcleo é uma necessidade e a sua realização deve merecer o concurso franco e decidido de todos os medicos que aqui exercitam a sua nobilitante profissão.

No dia seguinte, o jornal Estado do Pará3 também repercutiria a boa nova assim se manifestando:

Sociedade Medico-Cirurgica

Uma bela iniciativa a que partiu de um numeroso grupo de médicos desta capital que tratava de lançar os fundamentos de uma sociedade medico-cirurgica.

Já temos, de criação recente, o instituto da Ordem dos Advogados e vamos ter uma Associação Medica. Este movimento associativo é uma prova evidente do progresso social do nosso Estado.

Numerosa e ilustre, a classe medica do Pará sofre incontestavelmente os efeitos da dispersão dos seus esforços. Os trabalhos cirúrgicos, por exemplo, que aqui se executam, alguns de alto valor scientifico, tem apenas curto echo na crônica falada e isso mesmo num limitado circulo de amigos.

Uma revista medico-cirurgica que só poderá ser mantida por uma associação como a que se vae fundar hoje, não só registrará os valiosos trabalhos da cirurgia paraense como abriria espaço ao estudo de importante matéria medica como a que é própria á nossa zona tropical, levando para fora do Estado a prova do nosso progresso scientifico.

A Sociedade Medico-Cirurgica corresponde a uma necessidade social e merece não só a adesão de todos os membros da classe como também o aplauso publico.

Para a constituição definitiva desta sociedade estão convocados os médicos residentes nesta capital, devendo reunir-se hoje, no Instituto de Protecção e Assistencia á Infancia, á rua 13 de Maio, n.36, ás 10 horas da manhã.

A reunião de fundação foi realizada então no dia 12 de julho de 1914, data que deve ser considerada para fins de justiça histórica, sendo a data de 15 de agosto a da instalação solene da Sociedade4. A reunião inicial foi presidida pelo Barão de Anajás (Figura 1), secretariado pelos drs. Ophyr de Loyola e Penna de Carvalho. Após declarar aberta a sessão e agradecer sua escolha para presidir os trabalhos, o Barão de Anajás historiou à assembleia os fatos relativos a uma associação de classe de idêntica denominação, que existira em Belém (a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Pará), a qual tendo desaparecido, "deixara alguns haveres, em poder do seu tesoureiro, que se encontrava prompto a entregal-os a quem de direito"5. Nesta ocasião, como vários dos presentes haviam feito parte da mencionada associação, foi consultado se esta deveria ser reorganizada ou fundada uma nova sociedade, decidindo a assembleia, "depois de convenientemente discutido o assunto, foi aprovada a ideia da fundação de nova sociedade, com o título de Sociedade Medico-Cirurgica do Pará" e que a nova agremiação não deveria ter ligações com a antiga6.

 

 

Após a leitura do anteprojeto dos estatutos, pelo dr. Penna de Carvalho, aconteceu a eleição para a escolha do corpo dirigente. Por meio de votação secreta e tendo como escrutinadores os drs. Penna de Carvalho, Ophyr de Loyola e Renato Chaves, obteve-se o seguinte resultado: Presidente: Barão de Anajás; Vice-presidente: Cruz Moreira; Primeiro Secretário: Penna de Carvalho; Segundo Secretário: Arthur França; Tesoureiro: Hygino Amanajás; e Orador: Acylino de Leão.

A esta reunião fundadora estiveram presentes os seguintes médicos: Barão de Anajás, Cruz Moreira, Ophyr de Loyola, Penna de Carvalho, Renato Chaves, Pedro Miranda, Emilio Sá, Oswaldo Barbosa, Francisco Pondé, Jayme Aben-Athar, J. A. de Magalhães, Crasso Barbosa, Orlando Lima, Porto de Oliveira, Mattos Cascaes, Acylino de Leão, Hygino Amanajás, Caribé da Rocha, Agostinho Monteiro, Arthur França, Bernardo Rutowitcz, Humberto Mello, Urbano de Menezes, Manoel Penna, Castro Valente, Synval Coutinho e Ageleu Domingues, os quais são, portanto, considerados os fundadores da Sociedade6.

A reunião seguinte, realizada no dia 16 de julho do mesmo ano, contou com a presença de 26 médicos, cabendo a direção dos trabalhos ao dr. Cruz Moreira, vice-presidente. Na ocasião, foi lida uma carta do Barão de Anajás justificando seu não comparecimento. Na pauta constou a discussão dos estatutos, tendo sido apreciados os estatutos da antiga Sociedade de Medicina e Cirurgia do Pará e o anteprojeto proposto pelo dr. Penna de Carvalho, o qual foi aprovado com algumas modificações apresentadas pelos drs. Caribé da Rocha, Lauro Magalhães, Oswaldo Barbosa e Porto de Oliveira. Uma comissão composta pelos médicos J. A. de Magalhães, Caribé da Rocha, Penna de Carvalho e Arthur França foi encarregada de elaborar o projeto de regimento interno. A data da sessão de inauguração ficou marcada para o dia 15 de agosto no salão nobre do Hospital da Santa Casa7.

Uma terceira sessão preparatória seria realizada no dia 26 do mesmo mês para a discussão do regimento interno e eleição das comissões científicas criadas pelo referido regulamento8,*. Nesta reunião foi lida uma carta do Barão de Anajás reiterando seu pedido de dispensa do cargo para que fora apontado (presidente), "em virtude de subsistirem os mesmos motivos que o determinaram", tendo a plenária deliberado conceder a exoneração, dada a insistência do signatário, ficando incumbida a mesa de oficiar ao sr. Barão, expressando-lhe o pesar por vê-lo afastado do lugar para o qual justamente havia sido indicado. Em razão deste fato e de acordo com as disposições regulamentares, o dr. Cruz Moreira anunciou a eleição para o cargo de presidente, vago com a renúncia. Apurados os votos, obteve a maioria dos votos o dr. Camilo Salgado (Figura 2). Deste modo, também por justiça histórica, registra-se ter sido o Barão de Anajás o primeiro presidente da então nascente Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará.

 

 

Um dado curioso retirado da notícia desta terceira reunião preparatória é que, ao mesmo tempo em que é registrado que a Sociedade já contava com cerca de 70 sócios, é comunicado à assembleia o recebimento de cartas de três clínicos (Jayme Bricio, Deoclecio Corrêa e Lobão Jr.10) "excusando-se de não poderem aceitar a indicação para sócios com que foram lembrados"8.

E chega o tão esperado dia 15 de agosto, data comemorativa da Adesão do Pará à Independência, e, como tal, com várias solenidades planejadas. Mais uma vez, a imprensa saúda a iniciativa da "inauguração" da nova agremiação falando dos seus propósitos "tão alevantados" e expressa a "grande satisfacção e o grande desejo de vel-a prospera e feliz"11.

Laudatoriamente, a nota fala que "conglomerar sob o mesmo pallio os fructos da inteligência e do trabalho mental de cada um; estabelecer a convergencia dos surtos dos talentos para um único fóco, donde se irradiem benefícios á sofredora humanidade", não seria tarefa de pouca valia para que a imprensa silenciasse, deixando de levar aos leitores "o annuncio desse feito inestimavel"11.

Ainda segundo a nota, a instalação definitiva da Sociedade, marcada pela posse solene de sua diretoria, era consignada como um acontecimento de relevo no seio da sociedade paraense. Quanto à medicina paraense, "quer à medicina, quer à cirurgia, os nossos patricios sabem dar, pelo fulgor de suas aptidões, brilho notavel", podendo-se prever maior ainda com o surgimento "dessa obra de associação do labor intelectual de cada um"11.

E acrescenta o Estado do Pará12:

Além do mais, é de se esperar que a Sociedade Medico-Cirurgica venha contribuir para o aperfeiçoamento da ethica medica entre nós e mais que venha erguer a classe à sua verdadeira altura, talvez não totalmente atingida até agora, precisamente pela dispersão de esforços.

A imprensa continuou dando grande destaque ao fato. Tanto que, no dia seguinte, o noticiário destacava a "inauguração" da Sociedade, realizada às 21 h, no salão nobre da Santa Casa, em "uma solemnidade que deixou bem patente o espirito de harmonia que ha de reinar sempre entre os associados da novel agremiação para a pratica do bem e para a consecução dos fins altruísticos a que ella se destina"13.

Na presença de "grande numero de famílias e cavalheiros da sociedade belemense, autoridades civis e militares, representantes de associações, imprensa, etc.", a presidência dos trabalhos coube ao governador do estado, dr. Enéas Martins13.

Dizendo sentir-se feliz em presidir a sessão de instalação, o governador declarou aberta a sessão e convidou os dirigentes eleitos (Figura 3) para tomarem posse em seus cargos, sendo então empossados:

 

 

Camilo Salgado: presidente; Cruz Moreira: vice-presidente; Penna de Carvalho: primeiro secretário; Arthur França: segundo secretário; Acylino de Leão: orador oficial; Amanajás Filho: tesoureiro.

Em seguida à posse, o governador convidou para secretariá-lo os drs. Camilo Salgado e Cruz Moreira, concedendo a palavra ao dr. Acylino de Leão, orador oficial, para pronunciar seu discurso inaugural, que versou sobre Medicina Experimental4.

Após a fala do dr. Acylino, usou da palavra o governador. Sua excelência disse que lhe era "sumamente grato" presidir aquela sessão, e congratulando-se com a Sociedade Médico-Cirúrgica disse esperar ver conjugados os esforços de todos os seus membros para um só fim nobre e humanitário, sendo imprescindível "a coadjuvação de todos para a obra nobilitante a que se propunha a novel sociedade". O governador falou ainda sobre a elevada missão do médico, terminando por desejar "muitas prosperidades à agremiação que acabava de ser instalada"13.

Conforme a ata da sessão, estiveram presentes, além do governador e seu ajudante de ordens, major Pedro Nolasco, as seguintes pessoas: dr. Deodoro de Mendonça, representante do Intendente de Belém, coronel Ignacio Nogueira, presidente da Câmara dos Deputados, coronel Calheiros Lima, inspetor da segunda Região Militar, dr. Theotonio de Brito, deputado federal, segundo tenente Raymundo de Oliveira Pantoja, Sabino da Luz, monsenhor Hermenegildo Perdigão, Joaquim Magno Moraes, Cônego Antonio Lobato, Elesbão Moreira do Valle, Antonio José de Paulo, Odorico Kós, Antonio Loyola, pela Loja Antonio Baena, Diogenes Cardoso, pela diretoria do Collegio Maçonico, Mario Rocha, Dom Santino Coutinho, arcebispo do Pará, drs. Ophyr de Loyola, Arthur França, professor Bertholdo Nunes, representando a Academia Paraense de Letras, José Lopes, J. José Monteiro de Paiva, tesoureiro da Associação da Imprensa, drs. Agostinho Monteiro, Lauro Magalhães, Crasso Barbosa, Caribé da Rocha, Acylino de Leão, Emilio Sá, Archimino Lima, secretário da Delegacia do Grão-Mestre, drs. Cruz Moreira, Pedro Miranda, João Henriques, Porto de Oliveira, Oswaldo Barbosa, Matta Bacelar Junior, segundo tenente João Silva, representando o Regimento de Cavalaria, drs. Azevedo Ribeiro, Synval Coutinho, Theodorico de Macedo, Renato Chaves, Jayme Aben-Athar, Dias Junior, Mattos Cascaes, Orlando Lima, Veiga Cabral, Moraes Bittencourt, Raymundo Tavares Vianna, secretário das Obras Públicas, Penna de Carvalho, Camilo Salgado, Marco Vianna, Carlos Rego, pela Associação Comercial, Jayme Mattos, pela Associação dos Empregados no Comércio, Felipe Augusto de Carvalho, José Figueira Rodrigues, Julio Moreira, Domingos Neves, Antonio Manoel de Pinto, pela Loja Harmonia e Fraternidade, Barão de Souza Lajes, drs. Ageleu Domingues, Appio Medrado, Raymundo de C. Vianna e Gilberto S. Moreira, pela Loja Firmeza e Humanidade, Antonio Virgilio Coelho, Manoel João Alves, Silvestre Falcão, pela Loja Cosmopolita, João Friza, dr. Amanajás Filho, Jorge Victor, Calixta Moreira, deputados Moraes Sarmento e Nicolau Maia, drs. Castro Valente, Arthur Porto e os representantes do Correio de Belém, da Imprensa, do Correio da Manhã e da Folha do Norte14.

Postada na entrada da Santa Casa tocou, durante o ato, a banda de música da Brigada Militar do Estado13.

A instalação oficial da Sociedade, com a posse da sua diretoria, seria notícia nos dias que se seguiram. Tanto assim que o Estado do Pará15, de 18 de agosto daquele ano, estampou a seguinte manchete: "Sociedade Medico-Cirurgica do Pará. Projetos animadores - Assistencia Publica - Uma Faculdade de Medicina no Pará".

Considerando a sessão de posse da Diretoria como "um grande acontecimento social", a notícia expressava a expectativa pelas ações da nova associação, "que julgamos destinada a prestar os mais relevantes serviços á terra paraense" e a promover "melhoramentos que ainda não temos, mas precisamos ter", agora mais fácil de realizar com a criação da Sociedade, "que representa como que o esforço preliminar indispensavel para maiores cometimentos"15.

O texto comenta ainda o estado de inação da classe médica - "a quem compete ser a instigadora dos melhoramentos a que nos queremos referir" - tinha vivido até aquele momento, "sem concordancia de vistas, sem homogeneidade no sentir, sem a força social resultante da coligação de esforços"15, o que tornava impossível executar projetos de utilidade geral.

Para o jornal, com a Sociedade criava-se um núcleo central capaz de atrair todas as energias, todos os elementos necessários não só para o progresso da classe médica, mas também "nos melhoramentos de ordem social de que merece"15.

Dentre esses melhoramentos destacava um "serviço moderno de assistencia publica"; um serviço "amplo, rápido e eficaz serviço de assistência", principalmente naquele momento em que "os horrores de crise que nos aflige cahindo com todo o peso sobre a pobresa, [e] vão diariamente por essas ruas e arrabaldes provocando dramas pungentes, tragedias horripilantes"15, tornando a situação favorável à criação do Serviço.

Outro tema abordado, "de menor urgencia talvez, mas de não menos importância é creação entre nós de uma Faculdade Livre de Medicina e Cirurgia, onde se formassem pharmaceuticos, dentistas, médicos e cirurgiões", com a justificativa de que uma Faculdade de Medicina em Belém "facilitaria os estudos da mocidade do Extremo Norte e do Meio Norte até Pernambuco", uma vez que "muitas vocações neste vasto trecho do nosso paiz ficam impossibilitados de fazer seus estudos scientificos por não poderem se transportar para a Bahia ou Rio e ali se manter"15.

A importância da criação de uma Faculdade de Medicina no Pará é reforçada com o argumento que, pelo fato da cidade estar em plena zona tropical, em pouco tempo, por força das circunstâncias, a escola seria "um verdadeiro instituto de medicina tropical", especialidade importante "por causa das tendencias colonizadoras das grandes potencias". Um instituto desta especialidade, funcionando em local apropriado, operando in loco, teria mais possibilidade de êxito que os que estavam mais distantes do foco das doenças que estudam, "como o Instituto de Medicina Tropical de Liverpool"; com a convicção de que, dentro de alguns anos, "depois de repetidas comunicações levadas ao conhecimento dos grandes centros scientificos", a Faculdade de Medicina "gosaria de grande autoridade em materia de medicina tropical", e que juntamente com o Instituto de Manguinhos, "iria levar a bôa fama da sciencia brasileira, ao mundo inteiro"15,§.

A nota15 finaliza com uma afirmação que soa premonitória:

A idéa de creação de uma Faculdade de Medicina no Pará, alimentada e encaminhada pela Sociedade Medico-Cirurgica, será fatalmente posta em execução mais anno menos anno, para gloria da terra paraense.||

A primeira reunião seguinte à instalação aconteceu em 24 de agosto, quando foram eleitas as diversas comissões científicas de acordo com os estatutos a saber17:

Clínica Médica: drs. Dutra Vaz, Oswaldo Barbosa e Agostinho Monteiro;

Clínica Cirúrgica: drs. Silva Rosado, Orlando Lima e Penna de Carvalho;

Clínica Ginecológica: drs. Cruz Moreira, João Henriques e Appio Medrado;

Clínica Obstétrica: drs. Almeida Pernambuco, Crasso Barbosa e Lauro Magalhães;

Clínica Pediátrica e Ortopédica: drs. Cyriaco Gurjão, Francisco Pondé e Ophir de Loyola;

Clínica Psiquiátrica e de moléstias nervosas: drs. Americo Campos, Castro Valente e Humberto Mello;

Otorrinolaringologia: drs. Emilio Sá, Pedro Miranda e Synval Coutinho;

Clínica Dermatológica e Sifiligráfica: drs. Azevedo Ribeiro, Dias Junior e Bernardo Rutowitcz;

Moléstias das vias urinárias: drs. Eduardo Reis, Ausier Bentes e Aleixo Simões;

Higiene: drs. Macambira, Moraes Bittencourt e Theodoro Macedo;

Microbiologia: drs. Mattos Cascaes, Antonio Peryassú e Acatauassú Nunes;

Anatomia Patológica: drs. Jayme Aben-Athar, Antonio Figueiredo e Ferreira Bastos;

Terapêutica e matéria médica: drs. Rodrigues de Souza, Fernandes Penna e Coelho de Souza;

Fisioterapia: drs. J. A. de Magalhães, Souza Castro e Acylino de Leão;

Medicina Legal e Deontologia Médica: drs. Porto de Oliveira, Veiga Cabral e Renato Chaves;

Conselho Fiscal: drs. Angeleu Domingues, Caribé da Rocha e Luciano Castro.

Ao término da reunião, foi apresentada uma proposta de edição de uma revista da Sociedade, tendo sido adiada "para quando houver melhor oportunidade", ficando inscritos para apresentarem trabalhos na próxima reunião os médicos Jayme Aben-Athar e J. A. de Magalhães17.

A primeira reunião científica com apresentação de comunicações realizou-se em 15 de setembro, quando os drs. J. A. de Magalhães e Jayme Aben-Athar apresentaram seus trabalhos, conforme deliberado na sessão anterior.

Primeiramente o dr. J. A. de Magalhães apresentou à assembleia um estudo sobre "as reações locais produzidas pelos mosquitos inoculadores do hematosoario de Laveran". Para o autor, tais reações hiperêmicas estariam "em relação estreita com as condições de receptividade ou imunidade de cada individuo em face da infecção paludica". Após ligeira discussão, o presidente, dr. Camilo Salgado, deliberou encaminhar o trabalho à comissão de Clínica Médica para elaborar parecer sobre ele e submetê-lo à discussão na próxima sessão18.

O trabalho seguinte foi apresentado pelo dr. Jayme Aben-Athar e, na verdade, constituía-se de duas observações: a primeira, sobre uma tricofitose de couro cabeludo em uma criança proveniente do Amazonas; a segunda, uma microsporia plantar de um paciente seu de Belém. Ambos os casos com documentação fotográfica e culturas. Para o autor, o fungo da lesão plantar, pelo seu aspecto e pelas diversas reações nos diferentes meios de cultura, pareceu-lhe inédito, tendo o cientista denominado-o Cruciatus, em virtude da forma em cruz de Malta pela qual se apresentavam as colônias. Estes trabalhos também foram encaminhados à comissão de microbiologia para elaborar parecer e submetê-los à discussão na próxima reunião18.

Na reunião seguinte19, em 1o de outubro, o dr. Agostinho Monteiro, pela comissão de Clínica Médica, ao falar sobre trabalho do dr. J. A. de Magalhães, disse que, pela exiguidade do tempo e pela falta e dados experimentais, era impossível elaborar um parecer completo sobre a matéria. Após discussão, o dr. Camilo Salgado pediu que a comissão elaborasse um parecer e o desse por escrito.

Quanto aos trabalhos do dr. Aben-Athar, o dr. Mattos Cascaes disse já ter elaborado o seu estudo, mas como os outros dois membros da comissão ainda não haviam feito os seus, ele questionou se poderia apresentar isoladamente o seu parecer, porém o dr. Camilo Salgado negou a solicitação e pediu o adiamento da discussão e apresentação do parecer.

Em sequência aos trabalhos, o dr. Porto de Oliveira perguntou à Sociedade sobre certos fenômenos nervosos observados no sexo masculino "quando as mulheres a que estão ligados por laços affectivos, de matrimonio e outros semelhantes a manifestam-se gravidas ou em trabalho de parto". Depois de discutido concluiu-se que tais fenômenos eram de ordem puramente psíquica, em que entrava em jogo "de um lado a sugestão e de outro a tara nevropathica de certos homens"19.

A seguir, o dr. J. A. de Magalhães consultou a assembleia sobre as injeções de 914, "nos casos de hypertrophia cardiaca e ectasias arteriaes". Depois da manifestação de vários sócios, "e trazerem em abono de suas informações diversas observações pessoaes", ficou decidido que as injeções de Neo-salvarsan não eram contraindicadas naqueles casos e que "provada a cumplicidade da syphilis, muito aproveitam do tratamento de Ehrlich, desde que se empreguem soluções concentradas para evitar o aumento da tensão arterial, o que se daria em condições opostas"19.

O último caso da noite foi apresentado pelo dr. Crasso Barbosa, que tratou de um caso de distócia por hímen hipertrofiado e complacente e sobre o qual se manifestaram os drs. Porto de Oliveira, Lauro Magalhães, Cruz Moreira, Camilo Salgado, Agostinho Monteiro, J. A. de Magalhães e outros.

Ao final da sessão, o dr. Veiga Cabral pergunta à assembleia se a Sociedade teria poderes para intervir perante os poderes públicos para fazer cessar os abusos cometidos pelo exercício ilegal da medicina, ficando decidido que sempre que a classe médica fosse prejudicada por tais abusos, a Sociedade emitiria seu voto de protesto19.

Mas, além das questões científicas, a Sociedade também tinha outras preocupações, na tentativa, talvez, de marcar presença como destaque na sociedade, no processo de afirmação da profissão, tão bem discutido por Silvio Rodrigues21. Deste modo, em 14 de outubro de 1914, foi tomada uma importante decisão que resultou em nota publicada no jornal22 com o título "Importante deliberação da Sociedade Medica do Pará sobre a borracha".

A nota iniciava atacando o preconceito "que attribue á medicina um campo estreito e reservado de que não nos é dado sahir", o que é considerado um "prejuízo ignaro" que deve ser combatido, a fim de assegurar "o papel supremo que á nossa sciencia cabe na direção mental e social". Levantava, por isso, uma "questão hygienica visando defender a saude das populações tropicaes, e auxiliar a vencer a crise economica, que ameaça o bem estar e o futuro de todos nós"22.

Após questionar o uso, "que em nosso clima nada justifica e tudo condemna", dos capachos de palha, das passadeiras de linho, dos tapetes de veludo, "todos usados como se estivessemos na mais fria das zonas", prosseguiu dizendo que se as causas climáticas locais nos levassem a usar tapetes de lã como na Europa, mesmo com prejuízos dos preceitos higiênicos seria aceitável, mas não se podia compreender o largo uso de tapetes e capachos aqui, o que só agravava o calor. E ao perguntar por que não usávamos tapetes, passadeiras e capachos de borracha, "mais hygienicos, mais faceis de assear e mais proprios ao nosso clima?", forneceu justificativas ao dizer ser por imitação, o que devia ser combatido "por todos os meios dignos"; pelas proibitivas taxas alfandegarias aos produtos fabricados de borracha "que nós produzimos, e constitue o segundo artigo de exportação do paiz", favorecendo a entrada de produtos de veludo, de lã, de algodão, "que não produzimos nem exportamos"22.

Após a argumentação, a nota propunha um voto para que a Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará, "em nome dos altissimos interesses da hygiene e da saude publica" e em nome dos "sagrados interesses nacionais", solicitasse às suas congêneres, à imprensa do país, aos poderes públicos e a todos os cidadãos, "os seus mais leaes esforços no sentido de sanar uma anomalia, que razão alguma justifica e que a sciencia medica e os mais elementares principios economicos condemnam"22.

A proposta, aprovada por unanimidade, vinha referendada por 43 assinaturas e era inspirada no memorial apresentado pelo dr. J. A. de Magalhães à Comissão da Defesa Econômica da Amazônia22.

Ao ser fundada em 1914, dentro de um novo contexto científico, social e, principalmente, econômico da Cidade de Belém, a Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará significou o traço de modernidade alcançado pela ciência médica de então, expressando ainda o ideal de afirmação da medicina como profissão numa sociedade que ainda se utilizava bastante dos conhecimentos da medicina tradicional, empírica, baseada nas crendices da cultura popular.

Para o fortalecimento desse grupamento profissional como elite intelectual, era de fato necessária uma sociedade organizada capaz de defender os interesses da classe; que participasse ativamente da vida social da cidade, cujos membros ocupassem espaços, preenchendo cargos, desempenhando funções relacionadas à profissão, atendendo às demandas de uma população que continuava convivendo com índices alarmantes de doenças infecciosas, propagando na imprensa suas conquistas e as novidades científicas a que tinham conhecimento. Enfim, divulgando e popularizando a profissão e os profissionais, procurando eliminar da sociedade aqueles hábitos considerados atrasados de recorrer a pajés e curandeiros em detrimento à medicina científica e consequentemente passando a ter mais poder e mais ingerência sobre assuntos afeitos à saúde e ao exercício da profissão.

 

REFERÊNCIAS

1 Miranda AG, Abreu Júnior JM. As primeiras sociedades médicas do Estado do Pará, Brasil. Rev Pan-Amaz Saude. 2013 jun;4(2):11-7. Doi: 10.5123/S2176-62232013000200002 [Link]

2 Folha do Norte. Belém, 1914 jul 11. 3 p.

3 O Estado do Pará. Belém, 1914 jul 12. 2 p.

4 Apontamentos para a história social e scientifica da Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará. Rev Para Medico. 1922 set;2/8(10):268-78.

5 Estado do Pará. Belém, 1914 jul 13. 1 p.

6 Folha do Norte. Belém, 1914 jul 13. 1 p.

7 Folha do Norte. Belém, 1914 jul 18. 1 p.

8 Folha do Norte. Belém, 1914 jul 28. 2 p.

9 Miranda AG, Abreu Júnior JMC. Memória Histórica da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará 1919-1950: da fundação a federalização. Edição dos autores. Belém: Fadesp; 2009. 511 p.

10 Folha do Norte. Belém, 1914 jul 23. 2 p.

11 Folha do Norte. Belém, 1914 ago 15. 1 p.

12 Estado do Pará. Belém, 1914 ago 13. 1 p.

13 Folha do Norte. Belém, 1914 ago 16. 2 p.

14 Rev Para Medico. 1915 mai;1(1):3-4.

15 Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará. Projetos animadores: assistência pública: uma faculdade de Medicina no Pará. O Estado do Pará. 1914 ago 18. 1 p.

16 Miranda AG, Abreu Júnior JM. As expedições da Liverpool School of Tropical Medicine e a Amazônia Brasileira. Rev Pan-Amaz Saude. 2011;2(2):11-8. Doi: 10.5123/S2176-62232011000200002 [Link]

17 Folha do Norte. Belém, 1914 set 3. 2 p.

18 Folha do Norte. Belém, 1914 set 17. 2 p.

19 O Estado do Pará. Belém, 1914 out 3. 2 p.

20 Goldblatt D. Paul Erlich and 606. Arch Neurol [Internet]. 1986 Feb [cited 2013 Sep 2];43(2):105. Available from: http://archneur.jamanetwork.com/article.aspx?articleid = 584964

21 Rodrigues SF. Esculápios tropicais: a institucionalização da medicina no Pará, 1889-1919 [dissertação]. Belém (PA): Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia; 2008. 163 p. [Link]

22 Importante deliberação da Sociedade Médica do Pará sobre a borracha. Folha do Norte. Belém, 1914 out 16. 1 p.

 

 

Correspondência / Correspondence / Correspondencia:
José Maria de Castro Abreu Jr.
Trav. Mauriti, 2218.
Bairro: Pedreira CEP: 66087-680
Belém-Pará-Brasil
E-mail: josemcajr@yahoo.com.br

Recebido em / Received / Recibido en: 12/10/2013
Aceito em / Accepted / Aceito en: 4/11/2013

 

 

*O jornal mencionaria ainda a acolhida que a Sociedade estava tendo por parte da classe médica.

A dobradinha Barão & Camilo se repetiria mais tarde, em 1919, na ocasião da criação da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, quando o Barão, então diretor da escola, afasta-se do cargo, assumindo Camilo Salgado em seu lugar9.

N.A.: O Serviço de Assistência Pública seria, hoje, um Serviço de Pronto Socorro de Urgência e Emergência.

§Certamente o jornalista relembrou a expedição da Escola de Liverpool a Belém, em 1901, para estudar a febre amarela, quando o pesquisador Walter Myers veio a falecer vitimado por esta doença16.

||A Faculdade ainda demoraria mais cinco anos para ser criada, em 1919, e não oficialmente por meio da Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará, embora o grupo idealizador da escola fizesse parte da Sociedade9.

N.A.: Medicação usada no combate à sífilis desenvolvida por Paul Ehrlich (1854-1915) em 1912, também conhecida pelo número 914, era menos tóxica e mais solúvel em água que o seu precursor, o Salvarsan ou 606. Caiu em desuso com a popularização da penicilina na década de 194020.