INTRODUÇÃO
A hanseníase é uma doença crônica, granulomatosa e é causada pela bactéria Mycobacterium leprae que acomete preferencialmente a pele, o sistema nervoso periférico e, ocasionalmente, outros órgãos e sistemas1),(2),(3. Este bacilo multiplica-se muito lentamente, com um tempo médio de cerca de 12,5 dias, e é um parasita intracelular obrigatório que cresce melhor em temperatura que esteja entre 27 a 30° C4. A recidiva da doença pode ocorrer em qualquer paciente que apresente um ou mais dos fatores de risco, como: índice bacteriológico (IB) inicial ≥ 4 + ou final ≥ 3 + , terapia medicamentosa inadequada ou irregular, alto número de lesões de pele e espessamento de nervo5),(6),(7),(8),(9. A recidiva pode ser causada por persistência bacilar7 e ainda, devido à reinfecção, porém esta é uma condição estritamente difícil de ser analisada em uma área endêmica ou hiperendêmica10),(11.
Considera-se como um caso de recidiva hansênica, o indivíduo que, após ter recebido alta por cura, apresente sinais clínicos de atividade da doença8.
A problemática em torno dos casos de recidiva pode estar relacionada a vários fatores, uma vez que o Estado do Pará, norte do Brasil, é hiperendêmico para a doença e por esta razão faz-se extremamente necessário pesquisar os informes epidemiológicos da hanseníase nesta região, inclusive saber os fatores de risco com o intuito de conhecer, identificar e compreender com maior precisão esse processo do adoecimento e novo adoecimento, podendo desta forma ter uma visão melhor da magnitude deste problema e melhor preveni-lo, por meio da precocidade e eficiência da assistência prestada.
Este estudo teve por objetivo conhecer a ocorrência de casos de recidiva e fatores epidemiológicos e clínicos relacionados a esse evento, em pacientes atendidos na Unidade de Referência Especializada (URE) em hanseníase Dr. Marcello Candia, no Estado do Pará, no período de janeiro de 2007 a dezembro de 2008.
MATERIAIS E MÉTODOS
CARACTERÍSTICAS DO ESTUDO
Trata-se de um estudo epidemiológico transversal com caráter descritivo de uma série de 27 casos de recidiva hansênica, com formas clínicas multibacilar ou paucibacilar, de indivíduos de ambos os sexos e sem idade pré-estabelecida, tendo como base de dados 339 casos de pessoas com hanseníase, que foram diagnosticados e tratados em uma URE em hanseníase, localizada no Município de Marituba, Estado do Pará, Região Norte do Brasil.
MÉTODOS DE COLETA DOS DADOS
A coleta de dados foi obtida a partir de análise criteriosa de duas fontes secundárias: prontuários e fichas de notificação.
Como primeira etapa do percurso metodológico, foi realizada a análise das 339 fichas de notificações de hanseníase para a distinção entre casos diagnosticados como recidiva hansênica e como casos novos de hanseníase. Posteriormente, as informações foram recolhidas diretamente dos prontuários dos pacientes. Dos casos registrados no livro de controle como hanseníase, foram descartados aqueles cujo diagnóstico não era compatível com o de recidiva hansênica. As informações obtidas durante a pesquisa foram registradas em uma ficha protocolo de instrumento de coleta de dados.
O critério do diagnóstico de recidiva utilizado pelos profissionais na URE obedece às normas do Ministério da Saúde (MS), que são12:
Para os casos paucibacilares: avaliação clínica de lesões de pele e de nervos nos pacientes que após cinco anos de alta começaram a apresentar dor no trajeto dos nervos, novas áreas com alterações de sensibilidade, lesões novas e/ou exacerbação de lesões anteriores e que não responderam ao tratamento com corticosteroide, por pelo menos 90 dias.
Para os casos multibacilares: avaliação clínica de lesões de pele e de nervos nos pacientes que após cinco anos de alta passaram a apresentar quadro compatível com pacientes virgens de tratamento ou novas lesões cutâneas ou ainda, exacerbação de lesões antigas, associadas a novas alterações neurológicas e que não responderam ao tratamento com talidomida e/ou corticosteroide nas doses e prazos recomendados. Laboratorialmente, apresentaram a baciloscopia positiva, aumento do IB em 2+, em qualquer sítio de coleta, comparando-se com um exame anterior do paciente após alta da poliquimioterapia (se houver) sendo os dois coletados na ausência de estado reacional ativo.
Foram inclusos na pesquisa os pacientes diagnosticados como recidiva hansênica na URE Dr. Marcello Candia, no período de 1 de janeiro de 2007 a 31 de dezembro de 2008, que tivessem recebido o tratamento nesta unidade de referência e que não tivessem sido contrarreferenciados para outros locais em nenhum momento do tratamento. Esse período foi escolhido em virtude da necessidade de conhecer o perfil dos casos de recidiva da referência estadual neste intervalo pois, devido às discussões nacionais sobre as dificuldades no diagnóstico de recidivas, surgiu com a Portaria de n° 3.125, de 7 de outubro de 2010, que estabeleceu que todas as suspeitas de recidiva deveriam ser encaminhadas para as unidades de referência.
O projeto foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa do Núcleo de Medicina Tropical da Universidade Federal do Pará (NMT/UFPA), aprovado no dia 3 de junho de 2009 e registrado sob o protocolo n° 015/2009-NMT/UFPA, como prevê a regulamentação 196/96 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e está em conformidade com a resolução 466/2012 do CONEP. Na análise descritiva, os dados obtidos foram tabulados por meio do programa Microsoft Excel 2007 e apresentados em gráficos e tabelas.
RESULTADOS
Foram coletadas informações de 27 pacientes, todos com recidiva hansênica. Destes, a maioria (74,1%) era do sexo masculino, a idade variou de 17 a 83 anos, sendo que a faixa etária mais encontrada foi a de 29 a 42 anos (44,4%) e a maioria destes pacientes (70,4%) residiam na região metropolitana de Belém (Tabela 1).
Dentre os pacientes avaliados, os sinais e sintomas que sugeriram a recidiva da hanseníase foram, em sua grande maioria, apresentados por lesões novas (81,5%), dentre estas as mais frequentes foram: mácula (11,1%), mácula associada à infiltração, nódulos, infiltração associada ao nódulo e infiltração associada à placa, com 7,4% em cada manifestação. O segundo sinal e sintoma mais frequente foi o acometimento neural, com percentual de 37%.
No que se refere às formas clínicas, as mais predominantes foram as multibacilares (dimorfa e virchowiana), com 48,1% de ocorrência em cada uma. A classificação operacional multibacilar esteve presente em 96,3% de todos os pacientes.
Quanto ao tempo de aparecimento da recidiva após a alta por cura do primeiro tratamento, a maioria manifestou-se entre cinco a dez anos, com percentual de 55,6% seguido de 11 a 16 anos em 25,9% dos pacientes (Tabela 2).
Fonte: URE Dr. Marcello Candia.
Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero não resultante de arredondamento.
Dentre os critérios usados para o diagnóstico, a maioria (63%) utilizou o exame clínico associado ao exame de bacilo álcool-ácido resistente (BAAR), seguido de 18,5% que foram diagnosticados por meio de exame clínico associado ao exame de BAAR e ao histopatológico (Tabela 3).
Dentre os pacientes que se submeteram ao exame de BAAR (81,5%) observou-se que grande parte (40,7%) estava com o IB ≥ 4+ e apenas 29,6% tiveram o resultado negativo. Observou-se, ainda, que apenas em 22,2% foi necessária a realização do histopatológico (Tabela 4).
Referente à avaliação do grau de incapacidade, 55,5% dos pacientes tiveram essa análise realizada no início da terapêutica medicamentosa, sendo que 33,3% não apresentavam nenhum comprometimento neural, 7,4% já apresentavam os primeiros comprometimentos neurais e 14,8% apresentavam os comprometimentos incapacitantes, além disso, 44,4% não foram avaliados naquele momento. No final da terapêutica, observou-se que houve um aumento na não realização da avaliação do grau de incapacidade para 61,9%. Dentre os que realizaram, 14,3% não apresentaram comprometimento neural, caracterizando-se como grau 0 e 9,5% apresentavam os primeiros comprometimentos neurais, sendo considerados, portanto, como grau I e 14,3% apresentavam os comprometimentos incapacitantes pertencentes à classificação grau II (Figura 1).
DISCUSSÃO
A análise sociodemográfica dos 27 casos de recidiva identificados no estudo mostrou que a maioria pertencia ao sexo masculino, dados que corroboram com os estudos de Jamet et al5 e de Kaimal e Thappa7, onde as recidivas foram mais comuns em homens, como indicam as informações epidemiológicas do MS13.
A faixa etária que mais recidivou foi a de jovens e adultos e estes dados discordam da pesquisa de Kaimal e Thappa7, pois segundo estes, a recidiva é comum em grupos etários mais velhos. A hipótese para o resultado encontrado pode ser atribuída ao fato de que a área é de grande endemicidade para a hanseníase em faixa etária jovem, inclusive em menores de 15 anos de idade5.
A maioria desses casos é oriunda da área metropolitana de Belém, onde as taxas de detecção de casos novos são de alta e muito alta endemicidade7),(8. Esta alta endemicidade poderia vir facilitar a reinfecção dos pacientes já tratados, e todos estes casos de reinfecção estão incluídos no grupo de recidiva por ainda não haver métodos operacionais de identificação de cepas das bactérias infectantes para comparação entre o primeiro adoecimento e o segundo, e para saber ao certo se são casos de recidiva ou reinfecção por outra cepa. Além do exposto, deve-se considerar também a facilidade de acesso, pois a unidade de referência fica localizada no Município de Marituba que compõe a região metropolitana de Belém.
Os resultados clínicos mostraram que os critérios sugestivos da recidiva foram caracterizados em sua maioria com o aparecimento de lesões novas (máculas, nódulos e infiltração), seguido de acometimento neural, dados que são similares ao estudo realizado em Recife, Estado de Pernambuco, por Ximenes et al14, no qual obtiveram o mesmo resultado. Gebre et al15 e Jamet et al6 afirmam que, em pacientes multibacilares, a recidiva geralmente ocorre com lesões novas tipo nódulos ou como pápulas.
As formas clínicas predominantes foram as multibacilares, que são consideradas como contagiantes. Sugere-se que isto se deva ao fato da pesquisa ter sido realizada em uma URE, a qual atende, geralmente, pacientes com quadros clínicos mais complexos e graves, que normalmente são referenciados para unidades secundárias como esta. O ideal é que as formas mais graves, na qual a resposta imune do paciente não ocorra de forma adequada, sejam tratados em uma URE, onde se encontra todo apoio multiprofissional, minimizando ao máximo o aparecimento das incapacidades, o que também foi observado em estudos realizados em URE de outros estados brasileiros16),(17),(18),(19. Contudo, faz-se necessário ainda, ressaltar que o predomínio de formas bacilíferas, traduz a permanência de focos de contágio, o que deve colocar os profissionais em alerta para o controle da adesão ao tratamento e de seus comunicantes.
Todos os casos diagnosticados iniciaram novo quadro clínico da doença, com período superior a cinco anos após a cura, como o que é descrito pelo MS. Este fato sugere que os casos de recidiva desta URE foram tratados adequadamente no primeiro tratamento20 e corretamente diagnosticados no segundo7),(8.
A maioria dos casos de recidiva realizou a baciloscopia para diagnóstico conclusivo, refletindo uma investigação diagnóstica adequada na URE dermatológica. O IB mais frequente foi o de ≥ 4 + . Um estudo de Jamet et al6 recomenda que pacientes cujo IB inicial de ≥ 4+ e final de ≥ 3+ sejam acompanhados laboratorialmente em URE em hanseníase, a fim de identificar a recidiva precocemente, já que estes são os que mais apresentam risco de recidivar a doença por serem altamente bacilíferos. Portanto, é importante o uso da baciloscopia como ferramenta auxiliar no diagnóstico da recidiva nas formas multibacilares6),(8.
Nesta pesquisa, o IB final não foi analisado uma vez que muitos pacientes não compareceram à unidade após a 12a dose, sem ao menos terem recebido alta medicamentosa por cura.
A pouca realização de histopatológico, nesta unidade, talvez se deva ao fato de que a maioria dos pacientes apresentava manifestações clínicas bem características das formas as quais pertenciam (dimorfa e virchowiana), somando-se ao fato dos médicos que trabalham na unidade já serem experientes no diagnóstico da hanseníase, não necessitando assim de outra forma de elucidação diagnóstica, já que o exame histopatológico é indicado apenas como suporte em casos com aspectos clínicos duvidosos21.
Nos casos de recidiva, houve avaliação do grau de incapacidade da maioria dos pacientes no momento do início da terapêutica e no final. Na entrada, predominou o grau 0, refletindo que o diagnóstico estava sendo realizado precocemente. No entanto, um grande número de casos estava sem registro de avaliação após a alta medicamentosa. Acredita-se que muitos pacientes desconhecem a importância da avaliação no final do tratamento, pois, após o recebimento da última cartela do medicamento, evadem-se antes que ocorra esta avaliação. De acordo com as informações registradas nos prontuários, além do não retorno do paciente à última consulta após o término do tratamento, o fato ocorre, em alguns momentos, também devido à falta momentânea de recursos humanos treinados para suprir a elevada demanda da unidade para a realização de tal avaliação.
Propostas de solução para problemas como este foram descritas em estudo realizado em uma área hiperendêmica para hanseníase no Estado do Maranhão11, o qual chamou a atenção para a falta de pessoal qualificado para avaliar o grau de incapacidade, o que gerou dificuldade na atenção ao paciente. Nele foi proposto capacitação para todos os profissionais que lidam com hanseníase, pois sabe-se que o acometimento de nervos periféricos pelos bacilos de Hansen é capaz de ocasionar o dano neural e, consequentemente, a alteração da função sensitiva e/ou motora, podendo ocorrer em todas as formas da hanseníase13.
CONCLUSÃO
Os casos de recidiva hansênica diagnosticados e tratados em uma URE em dermatologia na Região Norte do Brasil, em sua grande maioria, obedeceram aos critérios estabelecidos pelo MS. Os pacientes foram criteriosamente avaliados quanto ao diagnóstico de recidiva, utilizando principalmente aspectos clínicos e baciloscópicos. Houve predomínio de pacientes multibacilares, com as formas clínicas dimorfa e virchowiana, do sexo masculino, entre 29 a 42 anos de idade e procedentes da região metropolitana de Belém. No item grau de incapacidade, alguns não apresentaram o resultado dessa avaliação, que é muito importante para prevenção de incapacidades. A avaliação dermatoneurológica simplificada, preconizada pelo MS, deve ser reforçada em sua importância em todos os serviços que prestam atendimento a pacientes com hanseníase, visto que é essencial o diagnóstico precoce de danos neurológicos que podem ser incapacitantes.