INTRODUÇÃO
O escorpionismo é um problema de saúde pública em várias partes do mundo. Segundo Chippaux e Goyffon1, cerca de 2,3 bilhões de pessoas vivem em áreas de risco, com 1,2 milhões de acidentes anuais, sendo a América do Sul uma das regiões. A fauna mundial de escorpiões é constituída por 18 famílias, com cerca de 1.947 espécies2, porém, 30 espécies são consideradas potencialmente perigosas para os seres humanos.
No Brasil, os escorpiões de importância médica são o Tityus serrulatus Lutz-Mello, 1922, T. bahiensis Perty, 1830, T. stigmurus Thorell, 1877 e T. obscurus Gervais, 1843. Os acidentes mais graves estão relacionados à espécie T. serrulatus, de ocorrência nas Regiões Sul, Sudeste e Nordeste do País3),(4),(5),(6, principalmente em crianças7. Na Amazônia, destaca-se a espécie T. obscurus8),(9),(10.
A peçonha do T. obscurus estudada até o momento tem demonstrado a existência de pelo menos 102 componentes peptídicos11, destes somente 18 estruturas primárias completas são conhecidas. Três deles são toxinas específicas para canais de K+ e 15 atuam em canais para Na+ (12. Estas neurotoxinas são peptídeos de baixo peso molecular que especificamente modulam a permeabilidade de vários canais iônicos de células excitáveis e não excitáveis13, responsáveis pelos sintomas dos envenenados, sendo que a gravidade do envenenamento depende da quantidade de peçonha inoculada e dos mediadores químicos liberados. No Brasil4, os critérios de gravidade são classificados em (i) leves: dor e parestesia local; (ii) moderados: náuseas, vômitos, sudorese e sialorreia discreta, agitação, taquicardia e taquipneia; e (iii) graves: além dos sintomas anteriores, apresenta uma ou mais manifestações podendo ser vômitos profusos e incoercíveis, sudorese profusa, sialorreia intensa, prostração, convulsão, coma, bradicardia, insuficiência cardíaca, edema pulmonar agudo e choque cardiogênico.
O T. obscurus, sinônimo sênior de T. paraensis Kraepelin, 1896 e de T. cambridgei Pocock, 1897, está incluído no grupo dos T. asthenes Pocock, 189314, é o de maior importância médica na Região Amazônica, conhecido como escorpião preto10. Relatos sobre o escorpionismo por esta espécie são raros. A primeira descrição foi a de Martins et al8, que mostraram 61 casos de escorpionismo em Belém, no Estado do Pará, com quatro espécimes agressoras identificadas como T. obscurus; enquanto Pardal et al9, em Santarém, descreveram 72 envenenamentos por esta espécie, todos considerados leves ou moderados, o que difere do T. serrulatus que mais causa óbito no Brasil3),(7.
Este trabalho relata um caso grave de envenenamento pelo T. obscurus, ocorrido na região nordeste do Pará.
RELATO DO CASO
Menor de 7 anos de idade, sexo masculino, foi envenenado por escorpião preto, no pé direito, no quintal de sua residência na Cidade de Igarapé-Miri (1o58'37"S e 48o57'34"W), região nordeste do Estado do Pará, Amazônia brasileira (Figura 1), no dia 31 de março de 2012, às 15 h, aproximadamente. O aracnídeo foi identificado posteriormente no Laboratório de Entomologia Médica e Animais Peçonhentos do Núcleo de Medicina Tropical da Universidade Federal do Pará (NMT/UFPA) como T. obscurus (Figura 2). Imediatamente, o menor declarou dor e surgiram eritema e edema discretos no local da picada. Após alguns minutos, apresentou sudorese e vômitos que se intensificaram com o passar das horas. Foi levado ao posto de saúde, onde os profissionais de saúde local realizaram medicação analgésica e antiemética cerca de 1 h após o acidente. Em seguida, foi encaminhado para o Hospital Pronto Socorro Municipal Mario Pinotti, em Belém, distante 120 km da Cidade de Igarapé-Miri, onde deu entrada na emergência 7 h após o envenenamento, apresentando sonolência, taquipneia, taquicardia, sudorese profusa, sialorreia intensa, vômitos frequentes e incoercíveis, prostração e alucinações. O Centro de Informações Toxicológicas de Belém foi contatado e os médicos deste serviço, por se tratar de envenenamento grave, orientaram a conduta de 20 mL do soro antiescorpiônico intravenoso, sintomáticos, suporte de vida e observação em unidade de tratamento intensivo (UTI). No dia seguinte, o paciente foi encaminhado para o Hospital Universitário João de Barros Barreto (HUJBB), onde ficou internado em UTI por dois dias, sendo realizado eletrocardiograma, o qual mostrou taquicardia sinusal, e exames laboratoriais (Quadros 1 e 2). Em seguida, foi transferido para a enfermaria para acompanhamento clínico e com evolução clínica satisfatória, com normalização dos parâmetros laboratoriais e eletrocardiográficos, recebendo alta hospitalar no dia 4 de abril de 2012.

Figura 1 - Mapa do Estado do Pará localizando o Município de Igarapé-Miri, local do atendimento inicial, e Belém, local do atendimento hospitalar
DISCUSSÃO
Na Amazônia brasileira, os escorpiões de importância médica são o T. metuendus, T. silvestris e o T. obscurus10, sendo este último o maior responsável pelos envenenamentos na região8),(9. Este trabalho registra um caso comprovado de envenenamento grave por T. obscurus na região nordeste do Estado do Pará, com sintomatologia autonômica, cardiológica e neurológica semelhantes às encontradas nas outras regiões do País causadas pelo T. serrulatus e T. bahiensis em São Paulo e Minas Gerais3),(7),(15, T. stigmurus na Bahia16, T. pusillus em Pernambuco17 e em outros países como no México pelos Centruroides18, no Iran pelo Hemiscorpius lepturus19 e na Colômbia pelo T. asthenes20; porém, a espécie do relato na área oeste do Pará, causa manifestações neurológicas diferenciadas, onde se destacam mioclonias, disartrias, dismetria e ataxia de marcha, não encontrados neste caso9, o que também foi observado na Guiana Francesa21.
A sintomatologia e gravidade dos envenenamentos dependem da espécie do escorpião, composição e quantidade da peçonha inoculada e dos mediadores químicos liberados1, sendo classificados no Brasil em leves, moderados e graves4. Nishikawa et al22, em estudo experimental, mostraram que a peçonha do T. obscurus tem menor toxicidade, quando comparada aos outros venenos de escorpiões brasileiros, como T. bahiensis, T. stigmurus e T. serrulatus, sendo este último incriminado como o mais perigoso de todos, principalmente nos extremos das faixas etárias4),(7.
No Brasil, a presença de prostração, vômitos frequentes e incoercíveis, sudorese profusa e sialorreia intensa caracterizam caso grave4, como observado neste relato. Este é um caso comprovado de envenenamento por T. obscurus, com quadro clínico considerado grave na Região Amazônica, em criança menor de idade e com evolução favorável. Nishikawa et al22, em estudo experimental, mostraram que a peçonha desta espécie está entre as moderadamente tóxicas do Brasil, em concordância com o relato e o escorpionismo encontrado por Pardal et al9 no Estado do Pará, cuja gravidade variou de leve a moderada. Outros estudos mostraram que o envenenamento por T. obscurus não causa êxito letal8),(9 e nem hipoxemia21.
As alterações laboratoriais encontradas foram semelhantes a outros envenenamentos por escorpiões3),(20. Contudo, as alterações mais evidentes foram hematológicas e das enzimas musculares CPK, CK-MB e AST. A literatura tem mostrado que o trauma agudo causado pelo envenenamento por escorpião é causa constante de leucocitose, como os encontrados por Mohamed et al21 na Guiana Francesa entre vítimas de T. obscurus; Amaral et al23, em Minas Gerais, pelo T. serrulatus; e Jalali et al24, no Iran, pelo Hemiscorpius lepturus. Entretanto, os níveis das enzimas musculares mostraram-se elevados, porém, a relação entre CPK e CK-MB é inferior a 5% (2,29%) e AST não alcançou dez vezes o limite superior normal25, o que sugeriu uma lesão dos músculos esqueléticos e não do miocárdio, no qual os efeitos são atribuídos à ação das catecolaminas ou da peçonha sobre as fibras musculares e ação das citocinas que podem agir isolada ou simultaneamente26),(27. Amaral et al23 encontraram CPK entre 20 e 2.830 Ul/L no envenenamento pelo T. serrulatus, enquanto Cupo e Hering28, no escorpionismo grave, mostraram que a CK-MB variou de 20 a 170 Ul/L, com alterações eletrocardiográficas em todos.
O tratamento do caso baseou-se no suporte clínico e na administração do antiveneno escorpiônico específico brasileiro, obtido a partir de plasma de cavalos imunizados com os venenos de T. serrulatus e tem sido utilizado de forma eficaz para o tratamento de escorpionismo humano por T. serrulatus e de outras espécies, tais como T. stigmurus e T. bahiensis3),(4),(16. Estudo recente no Estado do Pará, na amazônia brasileira, mostra que o antiveneno de T. serrulatus pode ser utilizado com sucesso contra T. obscurus29, o que foi observado no presente caso, tendo o paciente evoluído para cura sem complicações, mesmo o antiveneno tendo sido administrado após 7 h do envenenamento.
CONCLUSÃO
O relato apresenta um caso de escorpionismo em criança, causado pelo T. obscurus, classificado como grave pela presença de prostração, vômitos frequentes e incoercíveis, sudorese profusa e sialorreia intensa, cujos exames laboratoriais mostraram elevação de enzimas dos músculos esqueléticos e não do miocárdio, leucocitose e taquicardia sinusal no eletrocardiograma. Apesar do tratamento soroterápico e de suporte clínico terem sido realizados após 7 h do envenenamento, o paciente apresentou evolução para cura clínica. Os autores ressaltaram a importância da soroterapia o mais precoce possível.