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Revista Pan-Amazônica de Saúde

versão impressa ISSN 2176-6215versão On-line ISSN 2176-6223

Rev Pan-Amaz Saude v.6 n.1 Ananindeua mar. 2015

 

http://dx.doi.org/10.5123/S2176-62232015000100005

ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE | ARTÍCULO ORIGINAL

 

Dupla abordagem de infecções por Trypanosoma cruzi e/ou Plasmodium spp. aplicada ao diagnóstico de doença de Chagas e exposição vetorial triatomínica na Amazônia brasileira

 

Dual approach of Trypanosoma cruzi and/or Plasmodium spp. infections for Chagas disease diagnosis and the presence of triatomine vector in the Brazilian Amazon

 

Doble abordaje de infecciones por Trypanosoma cruzi y/o Plasmodium spp. aplicado al diagnóstico de la enfermedad de Chagas y exposición vectorial triatomínica en la Amazonia brasileña

 

 

Ana Yecê das Neves PintoI; José Eduardo SantosII; Rosinete Ferreira MacielIII; Agostinho Santiago FernandesI; João Farias GuerreiroIV; Vera da Costa ValenteI; Nelson Veiga GonçalvesI; Orivaldo de Lima Mota FilhoV

IInstituto Evandro Chagas/SVS/MS, Ananindeua, Pará, Brasil
IISecretaria Municipal de Saúde de Anajás, Anajás, Pará, Brasil
IIISecretaria Municipal de Saúde de Abaetetuba, Abaetetuba, Pará, Brasil
IVUniversidade Federal do Pará, Belém, Pará, Brasil

VLaboratório Central do Pará, Belém, Pará, Brasil

Endereço para correspondência
Correspondence
Dirección para correspondencia

 

 


RESUMO

Como parte da estratégia de vigilância para diagnóstico precoce de doença de Chagas aguda (DCA), buscou-se avaliar transversalmente a incidência de infecções por Trypanosoma cruzi e/ou plasmódios em habitantes de áreas de diferentes níveis de endemicidade para ambas as infecções, além de descrever, pela primeira vez, exposição de populações ribeirinhas ao contato com triatomíneos silvestres. Foram realizados dois inquéritos, um parasitológico e outro soroparasitológico, direcionados a dois contextos diferentes de endemicidade para malária e doença de Chagas, respectivamente. Foram utilizadas as técnicas de gota espessa (GE) e técnicas de enzimaimunoensaio (ELISA) e imunofluorescência indireta para pesquisa de anticorpos IgG anti-T. cruzi. No Município de Anajás, Estado do Pará, Brasil, foram examinadas 1.017 pessoas com história de febre atual ou febre recente/assintomáticas. Do total, 90,3% (918/1.017) apresentaram exame parasitológico negativo e 9,7% (99/1.017) resultados positivos para plasmódios, com infecções por Plasmodium vivax (75/1.017), por P falciparum (21/1.017) e malária mista (2/1.017). Entre os positivos, 45,5% (45/99) eram menores de 12 anos de idade. Foi identificado um caso de infecção por T. cruzi em lâmina de GE e, a partir deste, um surto familiar de DCA. No Município de Abaetetuba, Estado do Pará, foram avaliados 119 indivíduos assintomáticos com história prévia de contato com triatomíneos silvestres. Todos os resultados foram negativos, porém foi corroborada, pela primeira vez, intensa exposição dessa população aos triatomíneos. O caso de DCA diagnosticado por GE demonstrou o sucesso da estratégia de abordagem diagnóstica dupla em febris na Amazônia brasileira. Os índices de infecção por malária, em especial em crianças oligossintomáticas, reforçaram a importância destas como potenciais fontes gametocíticas para a transmissão de plasmódios aos vetores anofelinos. O registro da aproximação entre insetos transmissores de doença de Chagas e a população ribeirinha merece estudos entomológicos de aprofundamento.

Palavras-chave: Doença de Chagas; Vigilância Epidemiológica; Surtos de Doenças; Triatomíneos; Malária; Trypanosoma cruzi.


ABSTRACT

As part of the surveillance strategy for early diagnosis of acute Chagas disease (ACD), it was evaluated the incidence of infections by Trypanosoma cruzi and/or Plasmodium spp. in this cross sectional study in inhabitants of different endemic levels for both infections and it was also described for the first time the human riverian population exposured to the contact with triatomine wild insect vectors. Two surveys were carried out, the first one with parasitological approach and the second one was a serological survey, directed to different endemic levels areas for malaria and Chagas disease respectively. Thick blood films (TBF) and immunoenzymatic (ELISA) and indirect immunofluorescence assays were used for IgG antibodies anti T. cruzi surveys. In Anajás City, Pará State, Brazil, 1.017 people were examined with a history of current or recent fever and also asymptomatics. Among the total, 90.3% (918/1.017) presented negative parasitological results and 9.7% (99/1.017) were positive for plasmodia, with P vivax (75/1.017), P falciparum (21/1.017) and mixed-species malaria infections (2/1.017). Among the positive results, 45.5% (45/99) were children under 12 years of age. It was identified one case of infection by T. cruzi in TBF and following this diagnosis it was registered one family outbreak of ACD. In Abaetetuba City, Pará State, 119 asymptomatic individuals were evaluated with a previous history of contact with wild triatomines. All their results were negative; however, for the first time, it was registered a high human exposition to triatomines. The ACD case diagnosed by TBF demonstrated the success of dual diagnosis strategy to febrile illness individuals in Brazilian Amazon region. Rates of malaria infection, especially in children, reinforced their importance as a potential gametocyte source for Plasmodium spp. transmission to malaria vectors. The interrelation between transmitters of Chagas disease and riverian population deserves further entomological studies.

Keywords: Chagas Disease; Epidemiological Surveillance; Disease Outbreaks; Triatomines; Malaria; Trypanosoma cruzi.


RESUMEN

Como parte de la estrategia de vigilancia para el diagnóstico precoz de la enfermedad de Chagas aguda (ECA) se buscó evaluar transversalmente la incidencia de infecciones por Trypanosoma cruzi y/o plasmodium en habitantes de áreas de diferentes niveles de endemicidad para ambas infecciones, además de describir, por primera vez, la exposición de poblaciones ribereñas al contacto con triatóminos silvestres. Se realizaron dos encuestas, una parasitológica y otra seroparasitológica, dirigidas a dos contextos diferentes de endemicidad para malaria y enfermedad de Chagas, respectivamente. Fueron utilizadas las técnicas de gota espesa (GE) y técnicas de enzimainmunoensayo (ELISA) e inmunofluorescencia indirecta para estudio de anticuerpos IgG anti-T. cruzi. En el Municipio de Anajás, Estado de Pará, Brasil, fueron examinadas 1.017 personas con historial de fiebre actual o fiebre reciente/asintomáticas. Del total, 90,3% (918/1.017) presentaron examen parasitario negativo y 9,7% (99/1.017) resultados positivos para plasmodium, con infecciones por Plasmodium vivax (75/1.017), por P. falciparum (21/1.017) y malaria mixta (2/1.017). Entre los positivos, 45,5% (45/99) eran menores a 12 años de edad. Se identificó un caso de infección por T. cruzi en lámina de GE y, a partir de este, un brote familiar de ECA. En el Municipio de Abaetetuba, Estado de Pará, fueron evaluados 119 individuos asintomáticos con historial previo de contacto con triatóminos silvestres. Todos los resultados fueron negativos, pero, se corroboró por primera vez, una intensa exposición de esa población a los triatóminos. El caso de ECA diagnosticado por GE demostró el éxito de la estrategia del doble abordaje diagnóstico en febriles en la Amazonía brasileña. Los índices de infección por malaria, en especial en niños oligosintomáticos, reforzaron la importancia de las mismas como potenciales fuentes gametocíticas para la transmisión de plasmodium a los vectores anofelinos. El registro da aproximación entre insectos transmisores de la enfermedad de Chagas y la población ribereña merece estudios entomológicos de profundización.

Palabras clave: Enfermedad de Chagas; Vigilancia Epidemiológica; Brotes de Enfermedades; Triatominos; Malaria; Trypanosoma cruzi.


 

 

INTRODUÇÃO

Áreas malarígenas de alta endemicidade constituem focos limitados na Amazônia e resultam de múltiplas causas, tais como densidade vetorial, mobilidade populacional e/ou de fontes gametocíticas eficazes, curto alcance logístico do diagnóstico precoce e falhas no tratamento imediato. Importantes fenômenos socioeconômicos e político-partidários somam-se às causas biológicas, triplicando as dificuldades de controle e ações de vigilância epidemiológica idealizados para estas áreas. O Município de Anajás é exemplo histórico de um destes focos problemáticos no Estado do Pará, Brasil. Parente e colaboradores1, utilizando análise por método de quantis, a qual propõe nova classificação para estratificação de risco, obteve, em uma série histórica de casos de malária, um índice parasitário anual (IPA) acima de 531, considerado muito alto quando comparado a outros municípios problemáticos na mesma série. Em relação à doença de Chagas (DC), aquele Município não registrou nenhum caso até 2008. Ao contrário, um município do nordeste paraense, Abaetetuba, é área de ocorrência frequente de surtos de DC e de baixíssima transmissão autóctone de malária.

O relatório de vigilância em DC na Amazônia reiterou a realização de pesquisa de Trypanosoma cruzi em indivíduos febris suspeitos de malária, a fim de coadunar a busca passiva de casos de malária e busca ativa de DC aguda (DCA), como estratégia para aumentar a sensibilidade na detecção de DC ou de coinfecções de malária e DC2.

A implantação deste sistema de detecção precoce de infecções por T. cruzi foi realizada de forma limitada na Amazônia a partir de 2008, com treinamentos seriados de microscopistas direcionados a áreas malarígenas3,4. O achado não raro e casual de tripanossomas, em concomitância ou não com plasmódios, nas lâminas de gota espessa feitas em pacientes febris suspeitos de malária corroboram a utilização da estratégia5,6.

A DC em fase aguda tem demonstrado incidências progressivamente maiores desde 1988, limitadas a focos na região do Marajó, mesorregião do nordeste paraense. Estudos observacionais, realizados durante estes brotos epidêmicos, mostram relação indireta (transmissão oral) com a presença de vetores não domiciliados, encontrados em regiões ribeirinhas. Em 1997, no Município de Muaná, na ilha do Marajó, Estado do Pará, foi demonstrada a invasão peridomiciliar de triatomíneos em população ribeirinha, sem registro de casos em humanos7.

No Município de Abaetetuba, onde estão concentrados 14,8% dos casos de DC já registrados na Amazônia, a aproximação entre triatomíneos e populações humanas é evidente desde 19998, sendo a transmissão autóctone de malária um evento raro.

Neste estudo buscou-se identificar casos de DC com estratégia de dupla abordagem diagnóstica, comparando-se exames realizados em habitantes de áreas com alta transmissão de malária, àqueles realizados em habitantes de áreas de baixa transmissão de malária e alta de DC. Objetivou-se, assim, estimar a incidência de infecções por T. cruzi e/ou plasmódios; diagnosticar precocemente casos de DC; descrever preliminarmente a exposição populacional ao contato com triatomíneos em área de alta incidência de DCA e identificar doença silente em população exposta ao contato com insetos vetores de T. cruzi.

 

MATERIAIS E MÉTODOS

PROCEDIMENTOS ÉTICOS

O estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Instituto Evandro Chagas e aprovado sob protocolo n° 0011/2008. Todos os pacientes identificados com DC ou malária receberam imediato tratamento específico, conforme padrões do Consenso Brasileiro de Doença de Chagas e do Manual de Controle de Malária, do Ministério da Saúde do Brasil, em suas versões correspondentes ao período do estudo9,10.

TIPO E ÁREA DE ESTUDO

Estudo seccional, aplicado em duas áreas de diferentes endemicidades para cada doença em dois municípios: Anajás e Abaetetuba, ambos localizados no Estado do Pará, na Região Amazônica brasileira, sendo que Anajás está situado no centro da ilha do Marajó (00o46'19.36"S; 49o51'19.21"O), tem baixíssima incidência de DC e alta incidência de malária. Neste Município foram eleitas para estudo três localidades: Anajás (sede) e as localidades de Vila Vencedora e Igarapé Luciana. A Cidade de Abaetetuba está situada na região nordeste do Pará (1o43'17.59"S; 48o52'45.11"O), registra baixa incidência de malária e alta incidência de DC, além de registros esporádicos de ataques de triatomíneos aos domicílios humanos (Figura 1).

 

 

PROCEDIMENTOS

Foram realizados dois inquéritos, sendo um parasitológico, de dupla abordagem, em área de alta incidência de malária e baixa de DC e outro soroparasitológico em pessoas assintomáticas, nos Municípios de Anajás e Abaetetuba, respectivame nte. O inquérito parasitológico de Anajás foi realizado em agosto de 2009. Foram consideradas elegíveis todas as pessoas com história de febre atual ou recente e ainda, assintomáticas. Entenda-se como febre atual aquela cujo início de período febril tenha ocorrido sete ou menos dias antes do exame e como febre recente, aquela em que o início de período febril tenha ocorrido no mínimo oito e no máximo 30 dias antes do exame, sendo o portador, portanto, assintomático atual. Delas foi coletado 1 mL de sangue periférico, por punção digital, para realização dos métodos parasitológicos de gota espessa e gota distendida. As lâminas foram coradas conforme metodologia padrão11. A leitura foi realizada contabilizando-se 100 campos, lidos em MO (100x), para identificação paralela de plasmódios e T. cruzi e os resultados qualitativos considerados positivos ou negativos para cada um. A leitura foi realizada por dois microscopistas em leituras do tipo duplo-cega. Em casos de discordância de duas leituras, um terceiro microscopista fazia nova leitura.

Para efeitos clínicos, foram considerados dois grupos: 1) sintomáticos: aqueles com história de febre em menos de sete dias (febre atual); e 2) febre recente ou assintomático atual: aqueles com história anterior de febre em mais de sete e menos de 30 dias ou que não referiram febre.

Para o inquérito soroparasitológico em Abaetetuba, foram incluídas pessoas com história de contato direto do tipo invasão domiciliar de triatomíneos, assim identificados por demanda espontânea ao serviço de endemias da Secretaria Municipal de Saúde de Abaetetuba, no período de 2008 a 2009. Delas foram coletados 5 mL de sangue periférico, por punção venosa, para realização de exame de gota espessa para pesquisa de plasmódio e T. cruzi, e de sorologia para pesquisa de anticorpos IgG anti-T. cruzi, em duas técnicas: método imunoenzimático (ELISA) e imunofluorescência indireta (IFI).

Paralelamente foram realizados treinamentos ou reforços de treinamento de microscopistas nos Municípios de Anajás e Abaetetuba para identificação de T. cruzi em lâminas de gota espessa, cujo resultado tenha sido negativo para malária. Foram realizadas supervisões dos microscopistas treinados durante todo o período de estudo.

DESCRIÇÃO DE CASOS DE DCA

Pacientes que durante o estudo foram diagnosticados com DCA, receberam avaliações clínicas seriadas, incluindo sorologia por técnicas de IFI e hemaglutinação indireta; avaliação eletrocardiográfica e ecocardiográfica realizadas em Belém, na Fundação Luiz Décourt, além de tratamento específico.

Os resultados foram registrados em banco de dados epidemiológicos e descritos sob a forma de estatísticas descritivas. Os resultados de exames parasitológicos e sorológicos foram tabulados. Todos os dados foram analisados em estatísticas descritivas demográficas em programa Epi Info™, versão 7.1.0.6.

 

RESULTADOS

INQUÉRITO PARASITOLÓGICO

Foram avaliadas 1.017 pessoas na área de alta endemicidade de malária da mesorregião do Marajó, correspondente ao Município de Anajás, distribuídas em três localidades: Anajás (sede), Vila Vencedora e localidade de Igarapé Luciana (Figura 1).

Do total, 90,3% (918/1.017) apresentaram exame parasitológico negativo para Plasmodium spp. e/ou T. cruzi e 9,7% (99/1.017), exame parasitológico positivo, sendo 1,01% positivo para T. cruzi e o restante para Plasmodium spp., com predomínio de P. vivax (Tabela 1).

 

 

Entre indivíduos com resultado positivo da pesquisa de plasmódio, 65,7% eram febris e 31,3% foram considerados assintomáticos ou febris recentes. Para aqueles sintomáticos, a média de tempo entre o início da febre e a realização do diagnóstico foi de dois dias. Do total de positivos com idade conhecida, 48,9% (45/93) eram menores de 12 anos (Figura 2).

 

 

A frequência de encontro de formas parasitárias de transmissão humana (gametócitos) mostrou o baixo percentual de 1,7% (17/1.017), mesmo tendo a pesquisa ocorrido durante o pico epidêmico no mês de agosto de 2009, período inicial do verão amazônico.

Foi identificado um caso de infecção por T. cruzi em lâmina de gota espessa em indivíduo febril. Sequencialmente, e por método de busca ativa, outros três casos a ele relacionados, espacial e temporalmente, também foram confirmados por exames parasitológicos, configurando um surto familiar de DCA.

Na investigação epidemiológica deste surto todos os pacientes haviam apresentado síndrome febril prolongada e eram procedentes da localidade de Igarapé Purus, comunidade ribeirinha situada a 20 km da área urbana de Anajás (Tabela 2 e Figura 1).

 

 

A investigação epidemiológica e entomológica realizada no período registrou a presença de insetos vetores de T. cruzi, da espécie Rhodnius pictipes, colonizando o peridomicílio dos doentes. Considerando o adoecimento concomitante de todos os pacientes e a manipulação local de alimentos de forma inadequada, configurou-se transmissão por provável contaminação alimentar do suco de açaí consumido in natura, o qual pode ter sido contaminado por insetos infectados do peridomicílio.

Todos apresentaram síndrome febril aguda sem sinais de comprometimento cardíaco e receberam tratamento específico imediato com benznidazol conforme doses preconizadas pelo Ministério da Saúde9, e permanecendo sob acompanhamento médico longitudinal, sem intercorrências dignas de nota.

INQUÉRITO SOROPARASITOLÓGICO

Foram avaliados transversalmente 119 indivíduos assintomáticos, pelos métodos da gota espessa e sorologia para DC na área de baixa endemicidade para malária e alta para DC (Abaetetuba). Todos os resultados de gota espessa foram negativos, tanto para plasmódios quanto para T. cruzi. Da mesma forma, todos os resultados de sorologia de pesquisa de anticorpos IgG anti-T. cruzi (IFI e ELISA) também foram negativos.

Todas as pessoas referiram contato com triatomíneos, tendo encontrado estes insetos no interior de suas casas. A figura 3 mostra a procedência (áreas urbanas e ribeirinhas) e percentual de afetados no Município de Abaetetuba.

 

 

Todos os registros sobre os insetos referem que foram encontrados no interior dos domicílios, em especial nas cozinhas ou nos quartos. Nove pessoas (7,5%) do total de investigados referiram terem sido picadas. Esta informação foi corroborada por evidências clínicas da presença de manchas eritematosas nos locais de picada. Uma pessoa, procedente do Ramal do Abaetezinho, zona rural de Abaetetuba, relatou sete picadas na mesma noite (Figura 4), tendo sido o inseto identificado como R. pictipes. Não foram registradas manifestações clínicas sugestivas de desenvolvimento de doença no grupo afetado. Foram encontradas duas espécies de triatomíneos nos domicílios investigados, sem quaisquer indícios de domiciliação: Rhodnius pictipes e Pastrongylus geniculatus.

 

 

DISCUSSÃO

Nesta casuística de dupla abordagem diagnóstica para DC e malária, indivíduos considerados assintomáticos e com exame positivo para plasmódios foram encontrados em baixa frequência, mesmo em período epidêmico de malária na região. Dentre os indivíduos oligossintomáticos ou assintomáticos diagnosticados, a maioria apresentava apenas dois dias de período febril. Este resultado expressa a melhora na capacidade de diagnóstico precoce de malária, sensivelmente acurada nos últimos 15 anos com as medidas de controle adotadas na Amazônia12.

Também é interessante registrar que, no inquérito parasitológico, entre as pessoas com malária, 48,9% eram menores de 12 anos de idade, o que reitera a necessidade da criação de estratégias de atenção diagnóstica mais efetiva direcionada às crianças daquela região, especialmente se considerarmos que, em casuísticas bem estudadas de crianças com malária, a manifestação febril inicial acontece em apenas 88% dos casos13. Assim, é verdadeira a assertiva de que a população infantil de um município de alta endemicidade como este, possa sofrer cronicamente do retardo diagnóstico em malária e funcione como fonte gametocítica eficiente para a manutenção da transmissão de plasmódios ao anofelino.

Para identificação de infecções agudas por T. cruzi e plasmódios, o método diagnóstico considerado padrão ouro ainda permanece sendo o exame parasitológico direto11. Entretanto, para identificação da infecção chagásica de potencial crônico, seja ela sintomática ou não, o método parasitológico não constitui a abordagem diagnóstica ideal. Por esse motivo utilizamos na área de maior exposição triatomínica ambos os métodos. Utilizando o método parasitológico na área de baixa endemicidade para DC foi possível identificar pelo menos um caso de DCA, demonstrando o sucesso da estratégia de dupla abordagem utilizada, independentemente de suspeição médica. Isto reforça a necessidade de persistência nos treinamentos seriados de microscopistas em lâminas de gota espessa nos postos de notificação de malária na Amazônia2,4.

Na área de alta endemicidade para DC, a despeito do método sorológico não ter diagnosticado nenhum caso crônico, os autores consideram que a pequena casuística pode ter contribuído para os resultados negativos. Entretanto, os ciclos enzóoticos de T. cruzi registrados desde a década de 1960 na Amazônia, incluindo a área ora estudada, reforçam a necessidade de vigilância entomológica contínua e a potencialidade da transmissão de DC em populações progressivamente mais expostas ao contato com vetores, a exemplo dos registros de áreas endêmicas14,15,16.

A transmissão de DC por via oral predomina na Amazônia por ter sua expressão mórbida muito evidente. Estes inusitados fenômenos epidemiológicos de surtos familiares sazonais de elevada morbidade, doença febril prolongada acompanhada ou não de miocardite aguda, letalidade por miocardite aguda grave e quase sempre relacionada a diagnósticos tardios, têm sido registrados ao longo de 22 anos17,18,19. Ao contrário, na área endêmica clássica, a transmissão vetorial que envolvia vetores domiciliados é registrada como uma entidade mórbida de pouca ou nenhuma expressão clínica na sua fase aguda inicial20. Assim, para estas áreas de transmissão vetorial predominante, as quais recentemente foram certificadas como livres de transmissão domiciliar pelo Triatoma infestans, discute-se o potencial adaptativo de outras espécies de hábitos silvestres como transmissores16,21.

A despeito da rara evidência de domiciliação de espécies vetoras de T. cruzi na Amazônia ocidental7, a possibilidade da transmissão vetorial acontecer de forma esporádica, mesmo sem domiciliação, é evidente e já foi aventada por outros autores na Amazônia oriental como relacionada à atividade profissional de extração de piaçaba22. Para a casuística ora estudada, também demonstramos o contato fortuito de pessoas com insetos invasores, inclusive com demonstração de um comportamento vetorial agressivo (repasto sequencial em um mesmo indivíduo) contra humanos nas regiões ribeirinhas estudadas (Figuras 3 e 4). Mesmo não tendo encontrado nenhum caso inaparente (infecção assintomática) de DC na população estudada, o indicativo de reforço na vigilância entomológica para o entendimento destes novos comportamentos vetoriais está sinalizado.

A transmissão vetorial tem permanecido invisível aos sistemas de detecção diagnóstica amazônicos, os quais estão focados em doentes febris, e, assim proporcionam subestimativas da frequência, teoricamente existente, de DC na sua forma silente ou assintomática, de transmissão vetorial.

 

CONCLUSÃO

Neste trabalho buscou-se associar dupla abordagem diagnóstica para duas importantes endemias em nível regional, sob dois contextos de diferentes endemicidades e focos limitados. Na área malarígena (Anajás) foram diagnosticados casos de malária, incluindo nove deles em pessoas consideradas assintomáticas, além de um caso de DC diagnosticado em gota espessa. Este diagnóstico proporcionou, em sequência, o registro do primeiro surto de DCA naquele Município, reforçando a necessidade de manutenção da estratégia de busca de T. cruzi em lâminas de gota espessa de pessoas febris, mesmo em áreas supostamente livres de DC.

Na localidade com maior incidência de infecção chagásica nenhuma das infecções estudadas foi diagnosticada durante o período de estudo. Contudo, foram observados indícios de potencial risco de transmissão silenciosa de DC pelo contato humano fortuito com triatomíneos. Finalmente, as relações de contato direto de insetos vetores de T. cruzi com populações ribeirinhas na Amazônia persistem incipientemente estudadas e merecem vigilância entomoepidemiológica cuidadosa e pesquisas que proporcionem conhecimento acerca do comportamento de espécies vetoras de T. cruzi silvestres com potencial para um contato direto ou indireto com humanos em regiões ribeirinhas na Amazônia.

 

AGRADECIMENTOS

A equipe do Núcleo de Estudos em Doenças Infecciosas da Universidade Federal do Pará, pela parceria estratégica durante o inquérito parasitológico em Anajás; às equipes técnicas dos setores de endemias das Secretarias Municipais de Saúde de Abaetetuba e Anajás; ao João Júlio Monteiro, pelo auxílio técnico no georreferenciamento e à Maria Miriam França, pelo auxílio na atenção aos pacientes com malária.

 

APOIO FINANCEIRO

Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas do Pará, Programa de Pesquisa para o SUS, Departamento de Ciência e Tecnologia/MS e Instituto Evandro Chagas.

 

REFERÊNCIAS

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2 Rojas A, Vinhães M, Rodríguez M, Monroy J, Persaud N, Aznar C, et al. Reunião Internacional sobre Vigilância e Prevenção da Doença de Chagas na Amazônia. Implementação da Iniciativa Intergovernamental de Vigilância e Prevenção da doença de Chagas na Amazônia: relatório técnico. 2004 set 19-22; Manaus; 2005. (Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical; vol. 38, no. 1). Doi: 10.1590/S0037-86822005000100022 [Link]

3 Pinto AYN, Santiago A, Miranda K, Valente SAS, Souza JM, Ventura AMS, et al. Detecção precoce de casos de doença de Chagas no Pará: resultados parciais de eficiência de busca diagnóstica de T. cruzi em um posto de notificação de malária em Belém. In: 45° Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. 2009 mar 6-9; Recife; Uberaba: Sociedade Brasileira de Medicina Tropical; 2009 p. 525. (Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical; vol. 42; supl. 1).

4 Souza DO, Oliveira SM, Vivaldini S, Silveira AC, Junqueira A, Vinas PA. Diagnóstico parasitológico direto de casos agudos de infecção por Trypanosoma cruzi em lâmina de malária na Amazônia brasileira: avaliação do treinamento e potencial do método. In: 45° Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical; 2009 mar 6-9; Recife. Uberaba: Sociedade Brasileira de Medicina Tropical; 2009. p. 36. (Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical; vol. 42; supl. 1).

5 Pinto AYN, Monteiro VCS, Libonati RMF, Mota Filho O, Valente VC, Ventura AMRS. Infecção aguda por T. cruzi e P. vivax. In: 43° Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical; 2007 mar 11-15; Campos de Jordão, SP. Uberaba: Sociedade Brasileira de Medicina Tropical; 2007. p. 36. (Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical; vol. 40).

6 Costa ASL, Santos VC, Amorim PCBV, Santos JE, Pinto AYN. Infecção tripla por Trypanosoma cruzi, Plasmodium vivax e P. falciparum: relato de caso. J Bras Patol Med Lab. 2012 dez;48(6):421-5. Doi: 10.1590/S1676-24442012000600006 [Link]

7 Valente VC, Valente SAS, Noireau F, Carrasco HJ, Miles MA. Chagas Disease in the Amazon Basin: association of Panstrongylus geniculatus (Hemiptera: Reduviidae) with domestic pigs. J Med Entomol. 1998 Mar;35(2):99-103. [Link]

8 Valente SAS, Valente VC, Gomes FSG, Araújo JEA, Souza GC. Triatomíneos silvestres avançam sobre o domicílio do homem em Abaetetuba, Pará: relato de estudo preliminar. In: 40° Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. 2004; Aracaju. Uberaba: Sociedade Brasileira de Medicina Tropical; 2004. p. 37. (Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical; vol. 37; supl. 1).

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10 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Guia prático de tratamento da malária no Brasil [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2010 [citado 2014 fev 12]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_pratico_malaria.pdf.

11 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Manual de diagnóstico laboratorial da malária. Brasília: Ministério da Saúde; 2005. [Link]

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Correspondência / Correspondence / Correspondencia:
Ana Yecê das Neves Pinto
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Recebido em / Received / Recibido en: 21/5/2014
Aceito em / Accepted / Aceito en: 22/10/2014