INTRODUÇÃO
Do ponto de vista da escrita da história, a noção de passado histórico parece ser a última e irredutível referência de todo o trabalho da historiografia1. E, quando esse passado retorna, incomodamente conflitando com novos referenciais que parecem existir desde sempre no espaço recém-inaugurado, escavar a arquitetura da memória serve de pretexto para reforçar a premissa de que a história se constrói a cada momento, e nunca será nem única e nem definitiva, nela se buscando sempre alguma coisa a mais, com ela respondendo que sempre falta/rá algo na composição da construção, pois que, "o esquecimento tem igualmente um polo ativo ligado ao processo de rememoração, essa busca para reencontrar as memórias perdidas, que, embora tornadas indisponíveis, não estão realmente desaparecidas"1.
Deste modo, a busca pelas origens do Syndicato Medico Paraense, organização surgida na década de 1930, em Belém do Pará, sua trajetória e seu desaparecimento em algum ponto da década de 1940, tenta compreender as ações associativas da categoria médica paraense nas primeiras décadas do século XX, num período marcado por grandes mudanças na e para a profissão médica, e cujos reflexos e desdobramentos chegaram até os nossos dias, com a afirmação da Sociedade Médico-Cirúrgica como entidade científica, a instituição e posterior funcionamento do Conselho de Medicina e a (re) criação do Sindicato dos Médicos2,3.
UM PONTO DE PARTIDA
Se o Syndicato Medico Paraense tivesse sobrevivido até os dias de hoje estaria caminhando para os seus 85 anos, fundado em 23 de outubro de 1931, iniciativa que se seguiu à criação do Syndicato Medico Brasileiro (conforme grafia da época), surgido em 1927 no Rio de Janeiro, então Capital Federal, e cujo primeiro presidente foi o paraense Carlos Seidl* (Figura 1). Tal instituição, hoje, é representada pelo Sindicato dos Médicos daquela cidade5.
Uma das razões para a criação de um Sindicato Médico em Belém deve ter sido a repercussão, no seio da classe médica paraense, do Primeiro Congresso Médico Sindicalista, ocorrido em Porto Alegre entre 19 e 23 de julho de 1931, quando, após várias sessões, entre outras decisões foi aprovado o primeiro Código de Deontologia Médica6,7,8, fato divulgado pelo Boletim do Syndicato Medico Brasileiro e que teve a participação de um médico paraense, o Dr. Affonso Macdowell, que, embora estivesse radicado no Rio de Janeiro, no noticiário relativo ao evento figura como representante do Pará9.
Tanto é que, após os entendimentos iniciais, uma reunião de médicos realizada em 23 de outubro de 1931, na sede do Instituto de Proteção e Assistência à Infância, em Belém, em seguida ao evento nacional, deliberou a constituição de uma comissão para a organização dos estatutos da agremiação paraense, de conformidade com os estatutos dos Syndicato Brasileiro. Referida comissão, constituída pelos médicos Ophir de Loyola, Joaquim Magalhães, Dagoberto Souza, Feliciano Mendonça, Penna de Carvalho, Veiga Cabral e Ferreira de Lemos, trabalhou em conjunto com o representante do Syndicato Medico Brasileiro presente na capital paraense, o Dr. Carijó Cerejo10.
A imprensa paraense destacou a fundação da agremiação médica, que tinha como finalidade "amparar e defender a classe médica, procurando estreitar e manter a mais perfeita solidariedade entre os seus membros, obrigando-os a respeitar os verdadeiros principios da ethica profissional". Além disso, se propunha a "combater todo aquelle que, directa ou indirectamente, concorrer para o desprestígio da classe", tendo, por isso mesmo, "attrahido ao seu seio inúmeros enthusiastas", em número considerável e "jamais registrado em reuniões para idêntico fim"10.
A cerimônia de fundação e de instalação aconteceu em 29 de outubro de 1931 na sede do Instituto de Proteção e Assistência à Infância†, entidade criada e dirigida pelo Dr. Ophir de Loyola, e foi presidida pelo Dr. Carijó Cerejo, representante do Syndicato Medico Brasileiro e credenciado por este para a fundação de sindicatos idênticos nas principais capitais do norte, todos filiados ao órgão central12.
Secretariado pelos Drs. Ophir de Loyola e Dagoberto de Souza, por mais de meia hora o representante do Syndicato Medico falou do significado da agremiação, "inegavelmente, uma força poderosa na capital do paiz ao qual recorrem até as autoridades superiores pedindo sugestões em assumptos medicos"; mostrou os efeitos salutares de Sindicatos já fundados, como os de Porto Alegre e São Paulo, os quais, agindo em comum com o Sindicato Brasileiro‡, "têm cooperado pelos interesses da classe medica, especialmente em matéria de charlatanismo e de observancia da deontologia médica"12.
Para dirigir o Syndicato Medico Paraense foram escolhidos os médicos Ophir de Loyola§ (Figura 2), presidente; Joaquim Magalhães, vice-presidente; Ferreira de Lemos, 1° secretário; Bianor Penalber, 2° secretário; Eduardo Azevedo Ribeiro, 3° secretário; e Henrique Esteves, tesoureiro. No Conselho Deliberativo: Mario Chermont, Veiga Cabral, Izidoro Azevedo Ribeiro, Dagoberto de Souza, Antonio O de Almeida, Agostinho Monteiro, Carmo Cardoso, Feliciano Mendonça, Alvaro Camelier, Virgilio Mendonça, Oscar de Miranda e Hilario Gurjão12.
Em seu discurso, o Dr. Ophir de Loyola, entusiasta de primeira hora da ideia de criação de um sindicato no Pará, disse aceitar a presidência sem vaidade, apenas com o propósito de "trabalhar pelo prestígio e alevantamento moral da sua classe". Com frases expressivas e calorosas, mostrou o que ia ser o Sindicato e a sua atuação no meio médico, "desassombrada, eficiente e o mais breve possível, para pugnar pelos interesses de todos os colegas, sindicalizados ou não", e dizendo-se satisfeito por contar na direção do sindicato, com "gente que não recua e de attitudes sempre definidas"12.
No dia seguinte à posse, os dirigentes do novo Sindicato, tendo à frente seu presidente, visitaram o interventor, o major Magalhães Barata, o qual declarou seu integral apoio à agremiação, aceitando com prazer suas sugestões em qualquer problema médico. Em seguida, visitaram também a Diretoria da Saúde Pública do Estado, à frente o Dr. Mário Chermont, que viria a fazer parte do Conselho Deliberativo do órgão, tendo ainda o Dr. Ophir de Loyola, "trocado ideias" com o chefe de Polícia, o Dr. Eduardo Chermont, sobre interesses da classe médica paraense12.
A imprensa falou com grande entusiasmo sobre a criação do Sindicato, que logo no seu início já contava com a adesão de mais de 30 médicos, dentre estes duas médicas: Lucidea Lobato e Estrela Zagury Benayon e decanos da classe como o Dr. Virgílio de Mendonça12. Em edição de 5 de novembro de 1931, o jornal A Folha do Norte dizia que o sindicato, com poucos dias de fundação, já contava "com mais de cinquenta agremiados"14. Esses números devem ter sido superestimados, considerando a população médica da época, mas funcionaria como uma tentativa de motivar os médicos para que aderissem à nova agremiação médica.
ARREGAÇANDO AS MANGAS
Uma das primeiras discussões do Sindicato Paraense foi sobre a cobrança de honorários profissionais nos hospitais. Em reunião em dezembro de 1931, o Dr. Ophir de Loyola informava que a situação na Santa Casa estava resolvida e que os médicos teriam seus direitos garantidos quanto à cobrança de seus serviços, livres de toda sorte de explorações. Na mesma reunião foi debatida a questão da facilidade com que eram passados atestados de óbito pela polícia, "com risco de serem acobertados crimes". Para o Dr. Ophir de Loyola, as necrópsias eram imprescindíveis todas as vezes que ocorressem óbitos sem assistência médica. Presente à reunião o Dr. Otto Santos, diretor do Instituto Médico Legal, este concordou com o ponto de vista do presidente do sindicato, esclarecendo que à polícia somente cabia a verificação de óbitos nos casos de suspeita de crime, ficando acordado uma reunião entre os dirigentes do sindicato e as autoridades para discussão do assunto15.
Ainda em dezembro daquele ano foi realizado um almoço de confraternização16 (Figura 3) com a presença de grande número de associados, que chegavam a quase 100, sendo franqueado para não associados, também. O ágape, realizado nos salões da Assembleia Paraense recebeu da imprensa destaque pelo cardápio: Sopa à Santa Casa; Pescada à Casa de Saúde Marítima; Frango à Ordem Terceira; Filet à Beneficente Portuguesa17.
Outro assunto de destaque discutido pelo sindicato paraense foi sobre as "farmácias inidôneas", considerando a existência em Belém de "pharmacias e drogarias das mais importantes, que honrariam qualquer centro industrial", concorrendo com "certas casas de comercio, rotuladas de pharmacias, mas que tudo podem ser menos isso", sendo denunciada, ainda, a facilidade com que tem havido a abertura dessas pseudo-farmácias, principalmente nos subúrbios18.
Em sincronia com o sindicato nacional, o congênere paraense discutiu e aprovou o Código de Deontologia Médica adotado por aquele órgão, após exposição feita pelo Dr. Ophir de Loyola19.
Mas o Syndicato Paraense não se ocupou somente de questões trabalhistas ou de saúde pública e atenção à população. Observando que Belém ainda não havia homenageado a Oswaldo Cruz, foi por iniciativa da nova agremiação**, com apoio do Interventor Magalhães Barata e do prefeito Abelardo Condurú, que, em 1933, foram inauguradas as placas com o nome do notável cientista brasileiro responsável pela erradicação da febre amarela no Pará21 em um trecho à Praça da República, no centro da cidade de Belém. Após várias solicitações, o prefeito substituiu o nome de Avenida da Liberdade, naquele trecho da praça, por Avenida Oswaldo Cruz20, acontecimento que teve repercussão na então capital da República22.
Outra participação do Syndicato Medico Paraense se deu a quando da Assembleia Nacional Constituinte de 1934, sendo o Dr. Isidoro Azevedo Ribeiro representante da agremiação paraense como seu delegado eleitor, em reunião no Rio de Janeiro, em 30 de julho de 1933, para escolha de três deputados àquela Constituinte representantes de profissões liberais23.
A QUESTÃO COM O DEPARTAMENTO DE SAÚDE PÚBLICA OU MUITO BARULHO POR NADA
Na posse do novo corpo dirigente do Syndicato, após sua reorganização, em 19 de abril de 1940, tendo à frente o Dr. Acylino de Leão†† (Figura 4), como presidente da Comissão Executiva, e o Dr. Prisco dos Santos, como presidente do Conselho Deliberativo‡‡, ficou marcada para o dia seguinte uma reunião do referido Conselho, a fim de discutir as medidas a serem tomadas em razão de requerimento encaminhado pelo Dr. Froylan Barata e um grupo de médicos onde eram solicitadas providências, inclusive sindicância para apuração de responsabilidades, sobre uma nota publicada no jornal A Folha do Norte contendo acusações aos médicos que atuam naquela Diretoria de Saúde25.
Na reunião do dia 22 foi lido o requerimento do Dr. Froylan Barata§§ pedindo a abertura de inquérito no âmbito daquela repartição estadual, para apurar "a veracidade ou improcedência de tão graves accusações feitas a collegas que lá funcionam, punindo-os, se culpados, e, caso contrario, chamando a juízo o autor ou responsável pelas aludidas publicações, enxovalhantes ao nome da classe medica"26. Conforme relatado no noticiário sobre a reorganização do Syndicato27
A uma simples allegação da imprensa de que as professoras dos grupos escolares da capital se sentiram constrangidas com os exames de sanidade feitos por médicos, foram estes immediatamente dispensados da sua nobre funcção, como se não tivessem moralidade para a missão de que estavam investidos, designada em logar deles, uma senhora medica. Isto se passou sem protesto vehemente e merecido, abrindo-se assim precedente incrivel de humilhação aos médicos homens, que, de acordo com os que se fez, não possuem mais, nos serviços de Saúde Pública do Pará, idoneidade para examinar senhoras.
Na mesma reunião do dia 22 foi lido o ofício do Dr. Higino Silva, Diretor da Saúde Pública, em que "por deferencia especial ao Syndicato" esclarece pontos alusivos a um "protesto feito na mesma sociedade sobre seu recente acto substituindo por uma medica, colegas, homens, que estavam incumbidos de exames de sanidade em senhoras professoras". Manifestando-se sobre o ofício, o Dr. Bianor Penalber lamentou a "humilhação e a desconsideração injustificáveis", que o ato do Dr. Higino infligiu a seus companheiros de trabalho, "médicos como elle", considerado pelo Dr. Lauro Magalhães como desmoralizador26.
Ora, sabendo-se que os acontecimentos são um corte realizado na realidade, um aglomerado de procedimentos em que agem e sofrem substâncias em interação, homens e coisas28, parece surreal, aos nossos olhos de século XXI, que tal assunto envolvendo mulher & trabalho tenha gerado tanta polêmica, situação que não cabe aprofundar por hora. Entretanto, naqueles idos de 1940, a grita era bastante pertinente.
UM MURRO EM PONTA DE FACA: O SINDICATO VERSUS A FACULDADE DE MEDICINA
Apesar de ser constituído por membros que pertenciam também à Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, como os Drs. Ophir de Loyola e Acylino de Leão, o Sindicato, em 1934, entrou em rota de colisão com a direção da Faculdade quando esta resolveu preencher duas vagas de catedrático sem realizar concurso. Na verdade, este era o procedimento padrão desde a fundação daquela instituição: as vagas abertas por desistências ou falecimentos eram ocupadas por simples transferência de professores que ocupavam outras cadeiras. Tal procedimento ocorreu durante anos, não despertando nenhum interesse, mas com o tempo, com a consolidação da Faculdade como instituição relevante, capaz de emprestar status cada vez maior a seus integrantes, a questão começou a causar debates acirrados na imprensa local, capitaneados pelo sindicato.
Curiosamente, uma das vagas surgiu com a morte do próprio Ophir de Loyola, ocorrida naquele ano de 193429. A discussão então foi significativa nos jornais locais, e o que era uma questão paroquial chegou ao ponto de repercutir na imprensa nacional. Evidentemente que um dos diretamente interessados - considerado prejudicado em oportunidades anteriores, e por ser membro do sindicato contribuiu para que a polêmica rendesse um pouco mais -, foi o Dr. Bianor Penalber, que pleiteara uma vaga na cadeira de Doenças Tropicais em 1931. Bianor havia sido o único candidato inscrito naquela ocasião, chegando a ser nomeado como contratado pelo diretor Camilo Salgado, mas para sua surpresa, pouco tempo depois, a "cadeira era dada de mão beijada" a Emiliano de Sousa Castro "que nunca se lembrara della antes do concurso aberto"30.
A decisão da Faculdade não poderia ser outra, considerando que Penalber, ainda recém-formado, já havia entrado em conflito com o todo poderoso secretário da Faculdade, o Dr. Olimpio da Silveira, com ambos indo inclusive quase às vias de fato nas enfermarias da Santa Casa31. Naquele período, na Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, prevaleciam às decisões do secretário Dr. Olimpio da Silveira, e por tudo isso Penalber ficou de fora, de nada adiantando a nomeação assinada pelo diretor Camilo Salgado, figura que assumia ali um papel muito mais decorativo do que administrativo, emprestando muito mais seu prestígio e carisma para a instituição do que tomando suas rédeas.
Mas os tempos agora eram outros e Bianor Penalber dispunha de toda a "máquina" do sindicato e o apoio importante de Acylino de Leão, não só presidente daquela agremiação, como também professor catedrático renomado na Faculdade. Acylino partiu em defesa da realização de concurso para as vagas abertas com as mortes de Ophir de Loyola (Clínica Pediátrica) e de Azevedo Ribeiro (Clínica Médica - 2a cadeira), que haviam sido prontamente substituídos por Hilário Gurjão (Parasitologia) e Gastão Vieira (Anatomia Descritiva) em uma sessão da Congregação da Faculdade definida pela imprensa como "tumultuosa", na qual Acylino posicionou-se contra a ocupação das vagas alegando que Froylan Barata, reconhecido pediatra paraense, havia solicitado sua inscrição e que Hilário Gurjão não apresentava credenciais para o ensino de pediatria32.
Acylino não conseguiu mudar a decisão da Congregação, mas fez com que o caso ganhasse grande repercussão ao ser discutido no sindicato em uma sessão provocativamente intitulada "É moral ou immoral o processo adoptado pela Faculdade de Medicina do Pará para o preenchimento das cathedras que se vagam, impedindo as provas de concurso dos candidatos que se querem habilitar ás mesmas?"33.
A Faculdade que naturalmente não estava acostumada a ter suas decisões questionadas de maneira alguma, respondeu prontamente e de forma bastante contundente na imprensa, tanto em nota curta onde afirmava que suas resoluções não dependiam da apreciação e muito menos da opinião do sindicato, órgão cuja autoridade desconhecia34 ou através de artigos, um deles assinado pelo pseudônimo "Olivério", onde mostrava a incoerência das ações do Sindicato que não tomou nenhuma atitude quando o professor Castro Valente, apadrinhado pelo professor Acylino de Leão, obteve um favor semelhante35.
A questão foi se arrastando pelos jornais a partir de fins de outubro, encontrando-se notícias da mesma ainda em janeiro do ano seguinte, onde o professor Lauro de Magalhães acusou Penalber de autor intelectual desta campanha, que visava achincalhar a congregação e tinha esquecido os grandes favores recebidos da Faculdade, onde fizera todo o seu curso de graça, e os mesmos professores que ele "[...] pretendeu alcunhar de immoraes, são os mesmos que sacrificavam os seus interesses particulares para o lecionar gratuitamente"36. Vale ressaltar que em meio ao fogo cruzado e das muitas vozes que surgem, não encontramos registro de parecer ou pronunciamento do diretor da Faculdade, Camilo Salgado.
No fim das contas, a Faculdade não voltou atrás em suas decisões, mas a era dos catedráticos nomeados começava a chegar ao fim; pouco tempo depois as novas vagas surgidas seriam preenchidas exclusivamente mediante concursos. Avaliar o papel do Syndicato Medico Paraense como agente isolado motivador desta mudança é difícil, porém certamente a instituição fez muito barulho e foi muito provocativa junto à opinião pública ao colocar em pauta um assunto que sequer era discutido.
BIANOR PENALBER, A "LOCOMOTIVA" DO SYNDICATO
Sem dúvida, uma das figuras mais atuantes, pelo menos no incentivo à divulgação das atividades do Syndicato Medico Paraense foi o médico Bianor Penalber (Figura 5). Um dos quatro primeiros formados pela então Faculdade de Medicina do Pará, em 192429,37, Penalber já atuava como jornalista antes de estudar medicina, e continuou nessa atividade depois de formado, trabalhando em várias revistas e jornais de Belém, como "A Semana" e o "Estado do Pará", colaborando, também, com o "Correio da Manhã", do Rio de Janeiro, além da atividade de professor no Instituto de Educação do Pará.
Embora assumindo seu ceticismo inicial quanto à criação do Syndicato Paraense, foi convencido por Ophir de Loyola a enfrentar o desafio de "arrancar a classe medica da indiferença criminosa e deplorável pelos seus altos interesses"37, tornando-se membro atuante na associação, tendo exercido o cargo de secretário e, por seus contatos na imprensa foi grande divulgador das ações empreendidas pela agremiação paraense.
Por exercer, posteriormente, cargo público no Ministério do Trabalho, fazia constantes viagens para o Rio de Janeiro, o que divulgava repetidamente na imprensa paraense a quando do seu regresso a Belém, onde chegou a exercer a clínica privada e, também, na Santa Casa de Misericórdia, transferindo-se mais tarde, definitivamente, para a então Capital Federal. Foi um dos pivôs do entrevero do Syndicato Medico Paraense e a Faculdade de Medicina e Cirurgia. Ao entrar em atrito com a Direção desta, jamais seria seu professor29,31.
Bianor também foi membro da Academia Luso-brasileira de Letras tendo ainda exercido mandato parlamentar como deputado em Belém (1934). Baratista de início, rompeu com seu líder, posteriormente passando a lhe fazer oposição. No fim da vida Penalber deu uma longa entrevista ao jornalista Carlos Rocque, falando sobre a política paraense que vivenciou, nada mencionando sobre os seus anos de estudante na faculdade que se iniciava e também sobre o período vivenciado no Syndicato Medico38.
A TRAJETÓRIA RUMO AO DESAPARECIMENTO
Quanto tempo durou efetivamente o Syndicato Medico Paraense, um dos primeiros sindicatos médicos a ser fundado12? Após um início auspicioso, conforme o noticiário da época, parece que a agremiação seguiu uma trajetória claudicante, ao ponto de, em 1940, a imprensa local ter dado bastante destaque para a notícia da sua reorganização publicada no Estado do Pará27, reproduzida até no Boletim do Syndicato Medico Brasileiro, dando conta da reunião comandada pelo Dr. Acylino de Leão, "na qualidade de antigo presidente do Syndicato", com a finalidade de "reorganização do Syndicato Médico Paraense". Acylino exortou seus colegas paraenses a se unirem pelo prestígio da classe e criticando que, "só os médicos, em nossa terra, persistiam em não faze-lo"39. Ora, se o Syndicato fora fundado em 1931 e em 1940 já lutava para se reorganizar, isso significa que sua existência não foi das mais tranquilas.
Um dado curioso da referida reunião foi a fala do antigo secretário do Syndicato, o Dr. Bianor Penalber, que disse ter sido procurado pelo Dr. Prisco dos Santos, então presidente da Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará (SMCP), no sentido de fazer uma aproximação com o sindicato "ou talvez mesmo uma fusão, com aquela Sociedade, para que disso resultasse um trabalho real e sincero em pról dos interesses de nossa classe medica"39.
Coincidentemente, o jornal Estado do Pará de 2 de abril de 1940 informou que o Dr. Prisco dos Santos, presidente da SMCP, assegurava sua entrada como membro do Syndicato, a fim de participar das eleições deste órgão40. Prisco seria eleito Presidente do Conselho Deliberativo do Syndicato26, mas rejeitou a ideia de fusão das duas associações. Para ele, ambas poderiam trabalhar separadamente; uma no terreno científico e a outra no da defesa dos interesses profissionais da categoria médica27,***.
Vale mencionar que, na convocação publicada na imprensa, em março de 1940, em que o Interventor Federal no Estado e o Diretor do Departamento de Saúde do Estado convidavam o "Corpo Clinico de Belem, a Sociedade Medico Cirurgica e a Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará" para uma reunião no Palácio do Governo visando a "cooperação na resolução dos grandes problemas de Saude Publica que ali serão ventilados e discutidos", o sindicato não é mencionado41. Como a reunião com o Interventor aconteceu no início do mês e a reorganização do Sindicato somente se daria no final do mês, por ocasião da reunião o Sindicato não estava em funcionamento de fato.
A legislação sindical foi regulamentada em 1939, por um Decreto-lei, que previa primeiro a organização em associações profissionais para, posteriormente, serem reconhecidas como sindicatos e estes investidos nas prerrogativas definidas na lei42. E assim procedeu o Syndicato Medico Paraense, convocando pela imprensa a realização de Assembleia Geral Extraordinária no dia 20 de janeiro de 1941, para discussão e aprovação dos novos estatutos, a constituição da Associação Profissional dos Médicos do Pará e o consequente enquadramento sindical43,†††.
Ao que tudo indica, criada a Associação Profissional, esta não conseguiu agregar forças e empenho para chegar a requerer a carta sindical, parecendo ter continuado a funcionar, oficiosamente, como sindicato. Tanto que, em 1942, foi lançada uma publicação contendo o Código de Deontologia Médica, sob os auspícios do Syndicato Medico Paraense, que já não deveria existir como tal após a mudança da legislação45. Outra, pela imprensa tem-se a informação da presença do Dr. Prisco dos Santos como representante do Syndicato Paraense no 4° Congresso Medico Sindicalista, realizado no Rio de Janeiro, em outubro de 194446. E curiosamente tem-se a existência de um recibo de pagamento efetivado pela Associação em favor da SMCP, datado de 5 de dezembro de 1944, referente ao sobre aluguel do imóvel em que ambas funcionavam47. Outro dado digno de registro é a cerimônia de instalação do Instituto Paraense de História da Medicina, ocorrida em 3 de outubro de 1947, quando o Dr. Lauro de Magalhães, membro da nova agremiação, foi citado entre as autoridades presentes como "presidente da Associação Profissional dos médicos"48. Daí pra frente, o silêncio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desaparecido o Syndicato Medico Paraense durante a década de 1940 e surgido um novo sindicato cerca de 40 anos depois, gostaríamos de deixar algumas questões para reflexão:
Pelas fontes conhecidas até agora, parece fora de dúvida que o Syndicato Medico Paraense não conseguiu se organizar à luz da nova legislação sindical. Tanto que, em janeiro de 1961 uma nota na imprensa intitulada "Associação Médica do Estado do Pará" convoca a classe médica para eleições, a fim de compor "a primeira diretoria da referida Associação"49 ‡‡‡. Sua íntima relação com a SMCP, ao ponto de funcionarem no mesmo local à Praça da República, n° 39, "nos altos do Café Chic"43, contribuiu para o desinteresse de seu funcionamento?§§§. Apesar de próximas, o então presidente da SMCP, Dr. Prisco dos Santos, como visto acima rejeitou a proposta de fusão de ambas, ideia que já vinha sendo levantada desde 193951. Será que o início do funcionamento efetivo dos Conselhos de Medicina, em 1957, contribuiu, também, para o desinteresse para com o sindicato? Paradoxalmente a melhor resposta talvez esteja em uma pergunta feita pelo Dr. Ophir de Loyola a Bianor Penalber: "será possível que, no Pará, ate os engraxates se arregimentem e os médicos não consigam faze-lo?"37.
Os sindicatos adquiriram fisionomia própria a partir da década de 1950, crescendo de importância na década de 197052. Bafejados pelos ventos do movimento de Renovação Médica (REME) capitaneado pelo Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro e que mudou nacionalmente o perfil das entidades associativas médicas, os médicos paraenses com pensamentos mais progressistas também sentiram a necessidade da presença de um sindicato que lutasse pela categoria. Como em outros Estados, as entidades - CRM e SMCP - eram comandadas por uma assim considerada elite médica, representada por profissionais liberais, ocupantes de cargos elevados na administração pública53, avessa às mudanças sociais advindas daqueles anos, notadamente com a reabertura política, e seus consequentes reflexos no exercício da medicina.
Em Belém, um grupo de médicos resgatou o registro da Associação Profissional e, em 1981, fundou o Sindicato dos Médicos do Pará. Esses pioneiros parecem desconhecer esse momento histórico anterior vivenciado pelos precursores sindicalistas da década de 1930. Os dirigentes da SMCP se confundiam com os do CRM e certamente não repassariam suas informações históricas para os "revolucionários" que chegavam embalados pelos ventos da abertura democrática após os anos de chumbo.
O atual Sindicato dos Médicos do Pará (Sindmepa), em sua página na Internet54 diz que
O embrião da organização médica no Pará nasceu no início do século XX, com a fundação da Associação Médica do Estado do Pará. Pouco registro se tem da atuação da associação. O fato é que, no dia 6 de janeiro de 1979, a associação foi reativada pelo médico Waldir Mesquita e Júlio Cruz, antigo integrante da instituição e Zuza Klautau.
Evidente que há alguns reparos a fazer na afirmação acima. Na verdade, a "Associação Médica" citada foi o resultado da adaptação do Syndicato Medico à nova legislação sindical, conforme convocação pelos jornais, em 1941, e que não vingou. Essa Associação Profissional dos Médicos do Pará, que não surge "no início do século XX", não deve ter ido adiante, como sindicato, haja vista a convocação de 1961, para eleições da primeira diretoria da Associação49.
Certamente algumas informações chegaram aos neo-criadores sindicais, inclusive a da existência de uma Associação Profissional, facilitando a fundação do sindicato, mas não o suficiente para despertar a curiosidade a fim de que se buscassem as origens sindicais desaparecidas pelos anos de 1940. Perdeu, assim, o Sindmepa, a chance de reivindicar sua ancestral certidão de idade, o que o tornaria um provecto órgão de mais de oitenta anos, anterior até ao Conselho Regional de Medicina. E bem verdade que talvez fosse mesmo o interesse na época no contexto de "Renovação Médica": romper radicalmente com os laços do passado, considerados retrógrados e reacionários distantes dos ideais de redemocratização que o país atravessava.
São muitas as questões levantadas e a serem dissecadas na saga do Syndicato Medico Paraense (Figura 6), sendo "impossível decidir antecipadamente se as especulações aparentemente mais desinteressadas não virão a revelar-se, um dia, extraordinariamente prestáveis à prática"55. E o que esperamos que aconteça.
AGRADECIMENTOS
A Ana Cristina Mesquita, ex-bibliotecária do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, que facilitou o contato junto à Diretoria daquela organização, para o acesso ao seu acervo. Aos Drs. Jorge Sale Darze e Heraldo Bulhões Martins, respectivamente Presidente e Secretário de Comunicação Social do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, por permitir as pesquisas na biblioteca da entidade, embora o setor não estivesse franqueado ao público. Aos Drs. Waldir Cardoso e João Fonseca Gouveia, Diretores do Sindicato dos Médicos do Estado do Pará, pelas informações prestadas e pelos documentos fornecidos. A Simone Matos Moreira, bibliotecária na Biblioteca Pública Arthur Vianna, pelo apoio incondicional às pesquisas ali realizadas.