INTRODUÇÃO
A principal sequela da hanseníase é a incapacidade física, que pode resultar de um diagnóstico tardio e de tratamento inadequado, ou ser produzida por episódios reacionais hansênicos sucessivos (reentrantes), os quais são respostas exacerbadas do sistema imunológico ao agente agressor. Esses episódios, se não forem tratados de forma adequada, de acordo com as normas do Ministério da Saúde (MS), poderão levar a incapacidades físicas pelo comprometimento neural1,2,3,4.
Existem dois tipos de reação hansênica: a reversa (RR) ou tipo 1, que é uma resposta exacerbada do sistema imunológico do tipo celular, própria de portadores das formas tuberculoide e dimorfa, cujo quadro clínico é caracterizado por sinais e sintomas de inflamação como dor, eritema, infiltração e edema de lesões cutâneas pré-existentes, ou, raramente, acompanhado de novas lesões; e a reação tipo 2 ou eritema nodoso, que traduz uma hipersensibilidade da imunidade do tipo humoral, acomete portadores das formas virchowiana e dimorfa-virchowiana5, e se caracteriza por neurite, cujos sintomas são espessamento de um ou mais nervos periféricos, seguido de dor e acentuada alteração da sensibilidade no trajeto neural, e, dependendo da gravidade, pode levar à formação do impropriamente chamado "abscesso neural"6,7.
Poucos trabalhos abordam o problema da falta de adesão ao tratamento da hanseníase e procuram esclarecer as causas desta irregularidade, principalmente quando da presença das reações hansênicas. Neste sentido, este estudo objetiva identificar a presença de fatores clínicos e não clínicos (sociais e demográficos) que poderiam estar associados à adesão ao tratamento das reações hansênicas em uma Unidade de Referência no Estado do Pará.
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de um estudo do tipo transversal, de cunho descritivo, realizado em pacientes com diagnóstico de hanseníase que apresentaram reação hansênica em acompanhamento ambulatorial na Unidade de Referência Dr. Marcelo Cândia, Região Metropolitana de Belém, no período de 2005 a 2010.
O estudo foi realizado em 214 indivíduos, de ambos os sexos e de todas as idades, portadores de hanseníase, que desenvolveram reação hansênica. Foram excluídos do estudo pacientes que apresentaram recidivas, além dos pacientes com prontuários que não continham informações suficientes para o desfecho da pesquisa.
Os dados foram coletados nos prontuários da unidade de referência, por meio de um formulário contendo variáveis sociodemográficas como: sexo, idade, procedência e tipo de ocupação; e variáveis clínicas do tipo: classificação clínica da hanseníase, tipo de episódios reacionais, incidência de casos reacionais ao ano, sintomatologia específica das reações, medicações prescritas e frequência nos dias aprazados.
A análise estatística foi realizada no programa BioEstat 5.0. Os testes estatísticos aplicados nas análises bivariadas foram o qui-quadrado, o teste G e o teste exato de Fisher, considerando p-valor ≤ 0,05 e intervalo de confiança 95%.
Os critérios utilizados para adesão ao tratamento de reações neste trabalho foram:
Adesão ao tratamento: pacientes que tomaram a medicação regularmente e pelo tempo necessário preconizado para a regressão das lesões, com menos de três faltas consecutivas às consultas agendadas, ou 75% de comparecimento às consultas agendadas; e
Não adesão ao tratamento: pacientes com três ou mais faltas consecutivas às consultas agendadas ou frequência inferior a 75%.
O diagnóstico clínico para hanseníase adotado pelos dermatologistas do Centro de Referência Dr. Marcelo Cândia segue os padrões da classificação de Madri: indeterminada (I), dimorfa (D), tuberculoide (T) e virchowiano (V)1,3, e do MS, por meio da classificação operacional PB para os paucibacilares e MB para os multibacilares. Os pacientes que desenvolveram reação hansênica foram classificados, de acordo com os aspectos clínicos apresentados, em portadores de reação tipo 1 e de reação tipo 2, e tratados conforme as normas do MS para cada caso.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Etica da Fundação Hospital de Clínicas Gaspar Vianna, com n° de protocolo 250/2010 em 15 de dezembro de 2010 e autorizada pela direção da Unidade de Referência Dr. Marcelo Cândia.
RESULTADOS
Constatou-se que o tratamento das reações hansênicas nos anos analisados neste estudo apresentou variação entre adesão e não adesão. Dessa maneira, os anos de 2006, 2009 e 2010 apresentaram predomínio de adesão ao tratamento; por outro lado, os anos de 2005, 2007 e 2008 demonstraram maior não adesão (Figura 1).
Considerando as características sociodemográficas dos pacientes estudados (Tabela 1), constatou-se que o sexo possui associação estatisticamente significativa com o fato de aderir ou não ao tratamento, tendo os homens, aproximadamente, três vezes mais chances de não aderir ao tratamento do que as mulheres. As demais características não apresentaram associação estatisticamente significativa com o fato de aderir ou não ao tratamento; contudo, descritivamente pode-se dizer que os pacientes da faixa etária de 29 a 49 anos, separados/viúvos/solteiros, foram os que mais aderiram ao tratamento. O nível escolar até o ensino fundamental apresentou um percentual de não adesão de 73,8%.
Variável | Adesão | Não adesão | Total | Teste estatístico p-valor | O.R. (p-valor) | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | N | % | |||
Gênero | Qui-quadrado | |||||||
Feminino | 067 | 38,9 | 07 | 16,7 | 074 | 34,6 | ||
Masculino | 105 | 61,1 | 35 | 83,3 | 140 | 65,4 | 0.0110* | 3.1905 (0.0110) |
Total | 172 | 100,00 | 42 | 100,00 | 214 | 100,00 | ||
Faixa etária | Teste G | |||||||
Até 15 anos | 13 | 07,6 | 02 | 04,8 | 15 | 07,0 | ||
16 a 25 anos | 40 | 023,30 | 13 | 31,0 | 53 | 24,8 | ||
26 a 49 anos | 71 | 041,20 | 12 | 28,6 | 83 | 38,8 | 0.3545 | - |
50 ou mais anos | 48 | 027,90 | 15 | 35,6 | 63 | 29,4 | ||
Total | 1720 | 100,00 | 42 | 100,00 | 2140 | 100,00 | ||
Estado civil | Qui-quadrado | |||||||
Separado(a) / viúvo(a) / solteiro(a) | 87 | 50,6 | 20 | 47,6 | 107 | 50,0 | ||
União estável/casado | 85 | 49,4 | 22 | 52,4 | 107 | 50,0 | 0.8633 | 1.1259 (0.8633) |
Total | 1720 | 100,00 | 42 | 100,00 | 214 | 100,00 | ||
Nível de escolaridade | Qui-quadrado | |||||||
Até o Ensino Fundamental | 129 | 75,0 | 31 | 73,8 | 160 | 74,8 | ||
A partir do Ensino Médio | 043 | 25,0 | 11 | 26,2 | 054 | 25,2 | 0.9690 | 1.0645 (0.9690) |
Total | 172 | 100,00 | 42 | 100,00 | 214 | 100,00 | ||
Renda familiar | Qui-quadrado | |||||||
< 1 salário mínimo | 049 | 28,5 | 12 | 28,6 | 061 | 28,5 | ||
> 1 salário mínimo | 123 | 71,5 | 30 | 71,4 | 153 | 71,5 | 0.3536 | 1.4939 (0.3536) |
Total | 172 | 100,00 | 42 | 100,00 | 214 | 100,00 |
* Nível descritivo (p-valor) estatisticamente significativo ao nível de significância α = 0.05. Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero não resultante de arredondamento.
Não houve nenhuma relação estatisticamente significativa entre características clínicas e o fato de aderir ou não ao tratamento (Tabela 2). Contudo, descritivamente, pode-se dizer que houve uma diferença percentual pequena entre as taxas de adesão (61,34%) e não adesão (60,61%) entre os que tinham mais de um ano de diagnóstico da doença. Os pacientes diagnosticados como MB (87,79%), com presença de neurites (77,91%), número de episódios igual ou superior a três (89,53%) e com tipo de reação RR (80,23%) também apresentaram maior percentual de adesão.
Variável | Adesão | Não adesão | Total | Teste estatístico p-valor | O.R. (p-valor) | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | N | % | |||
Tempo de diagnóstico | Qui-quadrado | |||||||
< 1 ano | 46 | 38,66 | 13 | 39,39 | 59 | 38,82 | ||
> 1 ano | 73 | 61,34 | 20 | 60,61 | 93 | 61,18 | X2 = 0.9007 | 0.9694 (0.9007) |
Total | 119 | 100,0 | 33 | 100,0 | 152 | 100,0 | ||
Tipo de tratamento | Qui-quadrado | |||||||
Multibacilar | 151 | 87,79 | 35 | 83,33 | 186 | 86,92 | ||
Palcibacilar | 21 | 12,21 | 7 | 16,67 | 28 | 13,08 | X2 = 0.6081 | 1.4381 (0.6081) |
Total | 172 | 100,0 | 42 | 100,0 | 214 | 100,0 | ||
Neurites | Qui-quadrado | |||||||
Não | 38 | 22,09 | 8 | 19,05 | 46 | 21,50 | ||
Sim | 134 | 77,91 | 34 | 80,95 | 168 | 78,50 | X2 = 0.8249 | 1.2052 (0.8249) |
Total | 172 | 100,0 | 42 | 100,0 | 214 | 100,0 | ||
Nº de episódios reacionais | Exato de Fisher | |||||||
≥ 3 | 154 | 89,53 | 37 | 88,10 | 191 | 89,25 | ||
< 3 | 18 | 10,47 | 5 | 11,90 | 23 | 10,75 | 0.7820 | 1.1562 (0.9938) |
Total | 172 | 100,0 | 42 | 100,0 | 214 | 100,0 | ||
Tipo de reação | Teste G | |||||||
Eritema nodoso hansênico | 6 | 3,49 | - | - | 6 | 2,80 | ||
Reação reversa | 138 | 80,23 | 40 | 95,24 | 178 | 83,18 | 0.0312* | - |
Reação reversa/Eritema nodoso hansênico | 28 | 16,28 | 2 | 4,76 | 30 | 14,02 | ||
Total | 172 | 100,0 | 42 | 100,0 | 214 | 100,0 |
* Nível descritivo (p-valor) estatisticamente significativo ao nível de significância α = 0.05. Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero não resultante de arredondamento.
DISCUSSÃO
Apesar do impacto econômico e social que as reações hansênicas produzem na vida dos indivíduos acometidos por essa intercorrência, estudos a respeito da adesão ao tratamento da mesma ainda são escassos.
A caracterização sociodemográfica da população estudada mostrou predominância de adultos do sexo masculino, com baixa escolaridade, forma autônoma de trabalho, com renda familiar entre um e dois salários mínimos, oriundos da Região Metropolitana de Belém e da região nordeste paraense, as quais são consideradas áreas de alta endemicidade em hanseníase8. A hanseníase, em geral, concentra-se em locais de maior pobreza, estreitando relação com precárias habitações, baixa renda e baixa escolaridade, o que favorece a difusão da doença9.
Adultos de baixa renda e baixa escolaridade são achados comuns nos trabalhos epidemiológicos de hanseníase; esses indivíduos, em pleno vigor laboral, em virtude da baixa escolaridade, normalmente já têm dificuldade em conseguir trabalho; some-se a isso o quadro reacional hansênico, que aumenta muito mais as dificuldades, requerendo que a equipe de saúde tenha um olhar mais cuidadoso para esses casos. Aquino et al10 e Pimentel11, em suas pesquisas, também encontraram resultados semelhantes.
Chama a atenção, neste estudo, o percentual de crianças e de adolescentes que trataram hanseníase: apesar de baixo para as demais variáveis, é relevante uma vez que demonstra a existência de focos ativos da doença, provavelmente sem tratamento12. Para um serviço de hanseníase e diante deste achado que condiz com a realidade endêmica do Estado do Pará, em relação aos menores de 15 anos de idade8, urge realizar uma vigilância epidemiológica mais efetiva sobre os casos de hanseníase e seus contatos intradomiciliares.
As características clínicas da hanseníase demonstraram predomínio das formas consideradas multibacilares, concordantes com o tipo de tratamento adotado. Este achado é coerente para uma área endêmica, como é o Estado do Pará. A Coordenação do Programa Nacional de Controle da Hanseníase (PNCH/MS)8,12 divulgou o comprometimento da Região Amazônica em relação à concentração de casos novos de doença perante o restante do país: 38,9% (15.532 casos), ocupando o Estado do Pará o quinto lugar na taxa de detecção de casos novos, 62,17%. Outros estudos também apontam a Região Norte como uns dos clusters da doença na Amazônia8,12.
A RR é a que gera maiores danos orgânicos e sociais, pela característica de produzir quadro agudo com dor e pela possibilidade de dano neural, incapacitando o portador para o trabalho, levando a licenças médicas recorrentes e consequente desemprego6,7,13,14.
Neste estudo, a análise da influência dos fatores sociodemográficos na adesão ao tratamento das reações hansênicas mostrou que o sexo masculino tem três vezes mais chances de não aderir ao tratamento do que o feminino. Historicamente a mulher sempre teve maior disponibilidade e acessibilidade em comparecer às unidades de saúde, seja para tratar sua saúde ou a de seus familiares; o homem sempre apresentou barreiras nesse sentido, com justificativas apoiadas na jornada de trabalho. Outros estudos também encontraram no sexo masculino maior dificuldade em frequentar os serviços de saúde15. Desse modo, convém às unidades de saúde, que tratam portadores de hanseníase, enfatizar a necessidade de manter assiduidade às consultas, principalmente dos pacientes do sexo masculino, e, principalmente, alertá-los sobre o aparecimento das reações hansênicas e suas consequências.
E importante destacar que os pacientes deste estudo têm, em sua maioria, baixa escolaridade. Este fator deve ser observado com atenção no momento de verbalizar orientações e esclarecimentos a respeito da hanseníase e das reações hansênicas. Alguns estudos na índia e outros no Brasil, como o de Aquino et al10, correlacionam a importância da educação básica e a melhoria do nível de compreensão do indivíduo acerca da doença e ressaltam este fator para a adesão ao tratamento.
Os resultados do estudo, relacionando características clínicas com adesão, apesar de não apresentarem nenhuma relação com significância estatística, apontaram maior tendência à adesão de pacientes com formas multibacilares, com tempo de diagnóstico de hanseníase maior que um ano, tipo reacional RR e neurites. Esta tendência se constitui em fato positivo para a unidade em que foi realizado o estudo, uma vez que o tratamento multibacilar é longo, a quantidade de drogas a ser ingerida é bem maior, podendo ocorrer efeitos colaterais. Outros trabalhos apontaram maior tendência em não aderir ao tratamento em pacientes com essas características clínicas, com justificativas para a não adesão de que o tratamento é muito ''longo e difícil''14,15.
A análise da adesão ao tratamento, apesar de mostrar taxa percentual positiva de adesão, alerta para a existência de taxas de não adesão que, olhadas anualmente, são preocupantes em virtude das consequências físicas severas geradas por danos neurais reversíveis e até irreversíveis; e também consequências sociais, como desemprego e discriminação, entre outras.
CONCLUSÃO
Neste estudo constatou-se que as reações hansênicas se manifestaram em maior número durante o período de tratamento da hanseníase. A análise da associação de fatores sociodemográficos na adesão ao tratamento mostrou o sexo masculino com três vezes mais chances de não aderir ao tratamento que o feminino. Não houve interferência de fatores clínicos na adesão. A adesão ao tratamento em pacientes com reação hansênica na Unidade de Referência mostrou índice elevado.