INTRODUÇÃO
Segundo a Organização Mundial da Saúde, as neoplasias são as principais causas de morte nos países desenvolvidos e a segunda causa de morte nos países em desenvolvimento1. No Brasil, as estimativas para o ano de 2014, válidas também para o ano de 2015, apontam para a ocorrência de aproximadamente 576 mil casos novos de câncer2.
Dentre as neoplasias malignas, as doenças linfoproliferativas constituem um grupo heterogêneo de doenças que acometem o tecido linfoide, decorrentes da proliferação e acúmulo de linfócitos anormais em diversos estágios de diferenciação3. Compreendem principalmente as leucemias e os linfomas, resultantes de alterações no sistema imunológico, em geral por combinação de fatores determinantes da própria doença e/ou do tratamento antineoplásico4.
As leucemias linfoides podem ser classificadas em crônicas e agudas. Na leucemia linfoide aguda (LLA) observa-se a existência de grande número de linfoblastos no sangue periférico e na medula óssea, enquanto na leucemia linfoide crônica (LLC) verifica-se a multiplicação e acúmulo de linfócitos atípicos maduros; geralmente apresenta evolução clínica prolongada. Já os linfomas são classificados em Hodgkin (LH) e não Hodgkin (LNC), os quais são diferentes quanto à etiopatogenia, característica clínica e progressão da doença. Além disso, a presença de células de Reed-Sternberg na biópsia auxilia o diagnóstico de LH3.
O diagnóstico das neoplasias hematológicas é realizado por análises citomorfológica e histológica5. Técnicas de imunofenotipagem, como a citometria de fluxo e a imuno-histoquímica (IHQ), fornecem dados adicionais importantes para identificação da linhagem da célula atípica (T, B ou NK) e o estágio de maturação dessas células3,6,7.
O presente estudo objetivou caracterizar os portadores de doenças linfoproliferativas, maiores de 15 anos de idade, atendidos em um centro de alta complexidade em oncologia (CACON), visando subsidiar ações dos programas de assistência à saúde dos portadores de neoplasias no Estado do Pará, Brasil.
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de um estudo descritivo, retrospectivo, em prontuários arquivados no Departamento Médico Estatístico do CACON de uma unidade de referência estadual no tratamento oncológico, na rede pública de saúde em Belém, no Estado do Pará.
Este estudo incluiu sujeitos, maiores de 15 anos de idade, de ambos os sexos, atendidos no período de janeiro de 2005 a dezembro de 2011, com diagnóstico de doenças linfoproliferativas: LH, LNH, LLC e LLA.
Foram coletadas informações para classificar as doenças linfoproliferativas, os subtipos histológicos dos linfomas, a linhagem celular das leucemias, além das variáveis: gênero, idade, escolaridade, profissão, procedência e casos que foram a óbito.
Os dados coletados foram compilados em planilha eletrônica Microsoft Excel® 2010 e analisados no programa estatístico BioEstat 5.08. Foram investigadas medidas de tendência central e de dispersão das idades dos pacientes por meio da estatística descritiva. O teste de Lilliefors foi empregado para determinar a normalidade das idades e o teste de qui-quadrado para identificar a significância das diferenças de proporções.
O projeto referente a este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Núcleo de Medicina Tropical da Universidade Federal do Pará (Processo N° 41/2010), sendo também submetido à aprovação pela Divisão de Ensino e Pesquisa do Hospital Ophir Loyola (Processo N° 2010/124909), sob o título "Soroprevalência da infecção pelo vírus linfotrópico de células T humanas em portadores de doenças linfoproliferativas atendidos em um centro de alta complexidade em oncologia (CACON) em Belém, Pará".
RESULTADOS
Os registros hospitalares de câncer (RHC) do CACON demonstraram uma média anual de 72,5 novos casos de leucemias e linfomas em indivíduos com 15 anos de idade ou mais. Foram avaliados 364 prontuários de pacientes atendidos no período de janeiro de 2005 a dezembro de 2011, média de 52 prontuários por ano. Destes, 42% (n = 153/364) foram classificados como LNH, 25% (n = 91/364) como LH, 17,9% (n = 65/364) como LLA, 14% (n = 51/364) como LLC e 1% (n = 4/364) não foi especificado (DL-SOE).
Dos 153 casos de LNH, em 75,8% (n = 116) não houve comprovação do subtipo histológico; 18,3% (n = 28) foram classificados como linfoma difuso de grande célula B; e 1,3% (n = 2) como linfoma anaplásico de grandes células Null. Os subtipos linfoma de Burkitt, linfoma folicular e linfoma do manto corresponderam a 1,3% (n = 2) casos cada, e 0,7% (n = 1) foi classificado como micose fungoide. Dentre os 91 casos de LH, 49,5% (n = 45) foram registrados como sem outras especificações; 48,3% (n = 44) como LH clássico; e 2,2% (n = 2) como LH de predominância linfocítica odular.
Dos 51 casos de LLC, em 74,5% (n = 38) não foram definidos o tipo celular; e 25,5% (n = 13) foram classificados como linhagem B. Dos 65 casos de LLA, 80% (n = 52) não tiveram definição do tipo celular; 15,4% (n = 10) foram definidos como da linhagem B e 4,6% (n = 3) como da linhagem T.
Na análise dos casos quanto ao gênero, não foram encontradas diferenças significativas entre as frequências de doenças linfoproliferativas observadas em homens e mulheres para os tipos LH, LLA, LLC (Tabela 1). Os casos de LNH demonstraram proporção de 45,6% para o gênero masculino (p = 0,0060).
Os portadores de LLC apresentaram idade variando de 34 a 93 anos, com média de 65 anos (DP ± 12,55) e uma distribuição normal, em que 75% dos pacientes tinham idade acima de 56 anos. Nos 65 portadores de LLA, a idade variou de 15 a 74 anos, com média de 33,8 anos (DP ± 17,56). As pessoas com LLA demonstraram padrão de distribuição das idades com desvio à esquerda (p < 0,01), em que 50% das pessoas tinham 27 anos ou menos (Figuras 1A e 1B).
Entre os portadores de LH a média de idade foi de 32,6 anos (DP ± 16,48), com idades mínima e máxima variando de 15 a 78 anos, e 50% dos pacientes com 26 anos ou menos, caracterizando uma frequência maior para idades mais jovens (p < 0,01). Entre os portadores de LNH a média de idade foi de 49,4 anos, com idade máxima de 86 e mínima de 15. A distribuição das idades não divergiu da curva normal, com 50% dos portadores de LNH entre 36 e 62 anos (Figuras 1C e 1D).
Quanto à escolaridade, observou-se que aproximadamente 70% dos portadores de doenças linfoproliferativas possuíam o nível fundamental ou menos. Na atividade profissional, 19,2% (n = 70/364) dos pacientes relataram a agricultura como profissão, sendo esta a mais frequente dentre as citadas (Tabela 2).
Com relação ao domicílio, 92,3% (n = 336/364) dos pacientes afirmaram ser do Estado do Pará, 1,4% (n = 5/364) do Amapá, 1,1% (n = 4/364) do Maranhão e 5,2% (n = 19/364) não informaram a unidade federada do domicílio. A análise da procedência dos indivíduos residentes no Pará revelou que 56% (n = 188/336) residiam na área metropolitana de Belém e os demais 44% (n = 148/336) eram oriundos de diversos municípios do interior.
No total, ocorreram 115 óbitos (32%) entre os 364 portadores de doenças linfoproliferativas atendidos no CACON no período do estudo. Não houve óbito entre os quatro pacientes com DL-SOE e, dentre os casos classificados, a letalidade foi de 56,9% (n = 37/65) para as LLA, 38,6% (n = 59/153) nos portadores de LNH e, naqueles com LH e LLC, os óbitos ocorreram nas proporções de 12,1% (n = 11/91) e 15,7% (n = 8/51), respectivamente (Tabela 3).
DISCUSSÃO
A frequência de distribuição dos diferentes tipos de câncer varia em função das características epidemiológicas regionais, tais como raça, padrão de vida, hábitos e endemicidade local, o que enfatiza a necessidade do estudo das variações geográficas nos padrões da doença. Além disso, essas frequências são influenciadas também pela capacidade diagnóstica dos serviços de saúde, o que intervém no seu adequado monitoramento e controle9,10.
Neste estudo foram investigados portadores de doenças linfoproliferativas em um CACON e observou-se frequência significativamente maior de casos de LNH (42%) em relação às demais neoplasias, sendo, aproximadamente, duas vezes maior que os casos de LH. Estes achados são concordantes com os dados do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA) 2 e de outros relatos11,12.
Quanto à frequência das leucemias, os dados deste estudo demostram que a LLA (17,9%) foi mais frequente que a LLC (14%), resultado semelhante ao encontrado em outro estudo realizado em Pernambuco13 que observou, dentre as leucemias, a LLA representando 23% (342/1.478) e a LLC 10% (147/1.478) dos diagnósticos.
Pela análise dos perfis de linhagem celular e dos subtipos histológicos, observou-se, neste estudo, que cerca de 80% dos pacientes com leucemia não apresentaram a definição do tipo celular, e que, entre os LNH e LH, 76% e 50%, respectivamente, não foram definidos os subtipos histológicos.
O diagnóstico de leucemias, embora firmado pelo mielograma, requer um refinamento, com o emprego de análises bioquímicas, citoquímica, citogenética e de imunofenotipagem. Este último método permite detectar com exatidão a linhagem celular e nível de diferenciação do processo leucêmico14. A classificação das leucemias, segundo o tipo celular, confirma e complementa o diagnóstico, contribuindo para que o paciente receba um tratamento mais adequado e eficaz15.
Nos linfomas, o exame de anatomia patológica é utilizado como um exame de referência para auxiliar na definição de quais exames complementares serão necessários para definir o diagnóstico, visto que só observando a morfologia celular não é possível chegar a um diagnóstico preciso16. Neste sentido, há um número significativo de casos em que o diagnóstico final não pode ser baseado apenas em características morfológicas. A resolução deste problema veio com o surgimento das técnicas de imuno-histoquímica17. Essas reações são utilizadas na elucidação do tecido de origem de uma neoplasia indiferenciada; na pesquisa de fatores prognósticos, terapêuticos e índices proliferativos de algumas neoplasias, na detecção de células neoplásicas metastáticas e na subclassificação de linfomas18.
No presente estudo, a ocorrência de LNH entre portadores de doenças linfoproliferativas foi maior no gênero masculino, concordando com dados descritos pelo INCA2 para a Região Norte. Não foram observadas diferenças nas frequências de LLA, LLC e LH entre os gêneros, dados semelhantes à pesquisa realizada no mesmo hospital no ano de 201119, mas que divergem de outros estudos que demostram maior frequência de homens acometidos por essas neoplasias2,20,21,22.
Quanto à idade de acometimento da LLC, essa neoplasia mostrou distribuição normal, a partir da quarta década de vida, com maiores frequências observadas de 50 a 80 anos de idade. Essa neoplasia apresenta característica epidemiológica peculiar: acomete indivíduos com idade mais avançada (não ocorre em crianças e são raras em indivíduos abaixo dos 30 anos) e a sua incidência varia de acordo com a origem étnica, sendo mais frequente em países ocidentais23.
A LLA é mais frequente nas faixas etárias mais jovens e, semelhante ao que ocorre no LH, observa-se uma distribuição bimodal, com um segundo pico de idade em torno dos 50 anos24,25. Um estudo realizado em Pernambuco13, no período de janeiro de 1989 a dezembro de 1999, observou maior frequência de LLA em indivíduos nas faixas etárias entre a segunda e terceira décadas de vida, resultado semelhante ao encontrado neste estudo e em outros relatados na literatura26,27. Considerando os casos de LH registrados no presente estudo, observou-se maior frequência em indivíduos jovens, entre 20 e 30 anos de idade, resultados semelhantes aos relatados por outros estudos28,29.
A faixa etária mais acometida por LNH, neste estudo, foi de indivíduos entre 50 e 60 anos, resultados concordantes com outros estudos30,31. A incidência dos LNH vem aumentando em todo o mundo; provavelmente isso tem ocorrido em função do aumento no número de diagnósticos precoces de linfomas indolentes, elevação no número de imunodeprimidos (HIV e transplantados) e envelhecimento da população. A idade mediana de acometimento dessa neoplasia é em torno de 50 anos12. Neste estudo, a mediana foi de 51 anos de idade, resultado semelhante ao encontrado em estudo envolvendo portadores de doenças linfoproliferativas também em Belém18, os quais identificaram maior frequência de doenças linfoproliferativas entre indivíduos acima da quinta década de vida.
Na avaliação de fatores socioeconômicos, verificou-se que cerca de 70% dos indivíduos tinham apenas nível fundamental de ensino. Vários relatos da literatura afirmam que indivíduos com menor grau de instrução possuem mais dificuldade de acesso aos serviços de saúde e menos percepção dos fatores de risco que favorecem maior incidência de câncer nesse grupo populacional32,33.
Houve maior incidência das atividades relacionadas à agricultura como profissão relatada pelos pacientes. Substâncias químicas usadas por agricultores podem atuar como agentes cancerígenos em cânceres ocupacionais e, além disso, a utilização e o manejo dos agrotóxicos na agricultura têm trazido uma série de consequências para o ambiente, tanto para a saúde do trabalhador rural e na agricultura familiar, como pela contaminação intradomiciliar e processos de descarte inadequados de embalagens vazias34,35. Neste sentido, são importantes estudos que identifiquem a relação do uso de agrotóxicos com o desenvolvimento de neoplasias hematológicas.
Quanto à procedência dos sujeitos da pesquisa, a maioria (56%) residia na área metropolitana de Belém. Dentre os principais fatores relacionados à elevação da incidência de câncer, estão a urbanização e a industrialização. O agrupamento populacional em grandes centros favorece a exposição aos fatores de risco ambientais, como tabagismo, poluição ambiental, desigualdades socioeconômicas, aos quais são atribuídos aproximadamente 80% dos casos de câncer36.
Por outro lado, deve-se considerar que os dados coletados nos prontuários podem não refletir a realidade, uma vez que estão baseados em relatos dos pacientes e alguns destes, por ausência de atendimento especializado no interior, declararam como endereço residencial as casas de parentes ou casas de apoio localizadas na Região Metropolitana de Belém.
Observou-se que os LNH e as LLA tiveram as mais elevadas taxas de letalidade. A LLA é uma doença de evolução rápida, podendo levar ao óbito em poucos meses, merecendo diagnóstico e tratamento precoces. Na criança, o êxito do tratamento quimioterápico ocorre em torno de 80% dos casos, o que não acontece nos adultos com LLA, que respondem mal à quimioterapia padrão e suas variantes, bem como ao transplante da medula óssea, cujos resultados não são satisfatórios37.
Os linfomas difusos de grande célula B são responsáveis por 30% a 40% de todos os casos de LNH, sendo o tipo mais comum de LNH agressivo38. Nesta casuística, observou-se que 22,2% dos LNH corresponderam às formas agressivas e podem ter contribuído para que os casos de LNH tenham sido responsáveis pela maioria dos óbitos.
As taxas de letalidade observadas nas LLC e nos LH demostraram frequências relativamente menores, quando comparadas com as das LLA e dos LNH. A literatura relata que a maioria dos pacientes com LLC é assintomática e apresenta considerável qualidade de vida, sem necessidade de tratamento39, enquanto nos indivíduos com LH a idade mais elevada é um dos fatores que contribui para o pior prognóstico40. A idade mais jovem dos indivíduos com LH, do presente estudo, pode ter contribuído para a menor frequência de óbitos verificada nesse grupo.
A identificação das características gerais das neoplasias inclusas nesta pesquisa contribui para melhorar o conhecimento sobre o perfil das doenças linfoproliferativas no Estado do Pará, permitindo a adoção de condutas que promovam o melhor atendimento e assistência ao paciente com neoplasia. Neste sentido, ações institucionais para melhorar os registros clínicos em documentos médico-hospitalares e sistematização de manejo dos meios de diagnóstico, fazem-se necessárias para aprimorar a subclassificação das doenças linfoproliferativas. Segundo dados do INCA2, as taxas de mortalidade por neoplasias podem ser reduzidas se a detecção do câncer e o tratamento forem realizados na fase inicial da doença. Desse modo, é importante, ainda na atenção básica, promover a capacitação de profissionais da área da saúde para que reconheçam os sintomas iniciais dos diversos tipos de câncer.
Outro ponto importante é garantir à população presteza na realização dos exames necessários para identificar neoplasias em fase inicial, permitindo que os pacientes sejam encaminhados aos serviços especializados para tratamento adequado e eficaz, aumentando a expectativa de sobrevida e diminuindo o índice de mortalidade por câncer no Brasil.
Além disso, é necessário implementar ações de divulgação dos fatores de risco para neoplasias, por meio de linguagem acessível a todas as camadas sociais, pricipalmente aos menos favorecidos, que, segundo dados deste estudo, são os que apresentam maior incidência de doenças linfoproliferativas no Estado do Pará.
CONCLUSÃO
Os casos de doenças linfoproliferativas em jovens e adultos atendidos no CACON de Belém, entre 2005 e 2011, ocorreram em pessoas provenientes da capital e do interior do Estado do Pará, de média a baixa escolaridade. Existe a necessidade de melhor elucidação nos diagnósticos das doenças linfoproliferativas, frente à grande quantidade de casos de leucemias e de linfomas que não possuíam registro do tipo celular ou que não apresentaram o subtipo histológico definido, respectivamente. Foi demonstrada letalidade significativamente elevada entre os casos de LLA e LNH, frente aos de LLC e LH. Além disso, os resultados evidenciam também que um considerável número de pacientes oncológicos afirmou desenvolver atividades relacionadas à agricultura, o que suscita a necessidade de investigação de uma possível exposição ocupacional aos agentes cancerígenos relacionados a esta ocupação.