INTRODUÇÃO
A Amazônia Tocantina, área geográfica do Estado do Pará localizada entre a Amazônia Central e a Amazônia Oriental, é considerada a segunda região hidrográfica mais importante do Brasil, sendo superada em sua magnitude apenas pela bacia do rio Amazonas. Esse território, cujas dimensões se assemelham, ou até superam, o tamanho de países, é constituído pelos Municípios de Abaetetuba, Acará, Baião, Barcarena, Cametá, Igarapé-Miri, Limoeiro do Ajuru, Mocajuba, Moju, Oeiras do Pará e Tailândia. Ocupando uma extensão territorial de 36.024,20 km², esse importante território congrega uma população estimada em 739.881 habitantes1.
Assim como em todo o estuário da Bacia Amazônica, na região tocantina, o ecossistema predominante é formado pelas várzeas. De acordo com o Portal Tom da Amazônia2, a várzea amazônica é um ecossistema rico e complexo, que tem solo fértil em nutrientes e com pH próximo ao alcalino, ao contrário da maioria dos solos da Amazônia, usualmente ácidos e pobres, sendo que sua característica marcante é estar inundada, parte do ano, nas cheias dos rios1.
Levando em consideração o seu caráter dinâmico, a várzea amazônica, "além de estar intimamente conectada com os rios, também possui uma relação bastante complexa com a terra-firme adjacente"3. Nessa perspectiva, é possível considerar que as várzeas amazônicas são formações que se apresentam como estruturas ecológicas diversas.
A extrema importância das áreas de várzea destaca a sua condição de abrigo para um grande número de espécies vegetais adaptadas à inundação e uma interação dinâmica entre as cadeias alimentares dos rios. Estudos apontam para o fato de que as áreas de várzea possuem alta produção de biomassa, sendo a mata uma rica fonte de alimento para os peixes dos rios e lagos, 90% desses frugívoros. Estudos estimam que 25 km² são cobertos por ecossistemas de mata inundável, dos quais 88% estão submetidos a um regime de inundações frequentes. Assim, o sistema de cheia e vazante verificado nas áreas de várzea contribui para a constituição de um ambiente singular de fertilidade4.
No processo histórico de ocupação das várzeas amazônicas, é possível afirmar que a ocorrência de produtividade biológica, biodiversidade e recursos naturais foram decisivos para que populações percebessem as vantagens da fixação nessas regiões5. Ainda discorrendo sobre as potencialidades da ocupação das várzeas, Reis5 salienta que nessas áreas há a possibilidade de ocupação relativamente intensa, com a conservação do ecossistema e sua biodiversidade.
Negligenciadas ao longo de décadas pelo Estado Brasileiro, enquanto espaço geográfico de extrema importância nos cenários social, econômico e ambiental amazônico, as áreas de várzea passaram a despertar o interesse institucional para fins de regularização fundiária a partir do ano de 2003, quando da promulgação do II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). O II PNRA reconhece a importância das populações tradicionais das várzeas no contexto de direito à posse de suas terras de modo oficial. Esse plano se destaca por sinalizar uma reforma agrária que se adequa às múltiplas realidades da estrutura social, aos vários biomas brasileiros, bem como sua singular atenção às populações nativas e tradicionais, determinando legalmente, por meio do Termo de Autorização de Uso, o acesso e a posse de recursos de bens comuns às populações ribeirinhas6.
A luta de movimentos sociais ribeirinhos e as várias articulações de instituições acadêmicas e organizações não governamentais (ONGs) culminaram na celebração de acordos de cooperação técnica entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e a Secretaria do Patrimônio da União, objetivando a regularização das terras bem como o manejo nas ilhas estuárias da bacia Amazônica6. Foi o início da implantação de projetos de assentamento ambientalmente diferenciados no cenário das várzeas amazônicas, cujo expoente mais significativo é o Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE)6.
De acordo com o INCRA, o cenário da nova regularização fundiária para a Amazônia Tocantina traz, para esse espaço ecossistêmico das várzeas, a figura dos PAEs, incorporando o sistema de cogestão na Região Amazônica7. Ainda, segundo a cartilha de metodologia de criação desse modelo de reconhecimento fundiário, o PAE é uma nova modalidade de assentamento que visa atender as populações tradicionais, por meio de atividades economicamente viáveis e ecologicamente sustentáveis, com especial atenção à dimensão ambiental das atividades agroextrativistas. Essas áreas de domínio público serão administradas pelas populações assentadas por sua forma organizativa, que receberá a concessão de direito real de uso8.
O INCRA, em seus relatórios de implantação de projetos de assentamento, informa que foram criados, desde o ano de 2006, 122 PAEs no ambiente das várzeas da Amazônia Tocantina. O manejo adequado dos recursos naturais e a busca da sustentabilidade, em áreas legalmente reconhecidas pelo Estado Brasileiro, são características marcantes dos PAEs.
A dinâmica de implantação dos PAEs na Amazônia Tocantina trouxe consigo a intensificação do sistema produtivo com a oferta de um conjunto de medidas e de incentivos, que visam garantir o desenvolvimento econômico das comunidades beneficiadas. Porém, a alteração do ambiente com a adoção de modos de vida urbanos desenvolvimentistas, visando o crescimento mercantil, quer seja no ambiente específico dos projetos ambientalmente diferenciados de regularização fundiária, quer seja no conjunto do território do qual fazem parte, também proporcionaram a ocorrência de preocupantes problemas ambientais para suas populações.
Nessa perspectiva, identificar e analisar os principais problemas ambientais atualmente existentes nas comunidades das várzeas da região tocantina, tomando como objeto de estudo um recorte no Projeto de Assentamento Agroextrativista São João Batista II, Abetetuba, Estado do Pará, possibilita o estudo sobre o conjunto das causas desses desequilíbrios do meio físico, bem como oportuniza uma estrutura epistemológica capaz de fomentar ações governamentais e não governamentais que tenham como meta o desenvolvimento sustentável praticado de forma planejada, tendo como foco, nesse processo, tanto o crescimento econômico como o ambiental.
Assim, a importância primordial desse estudo consiste em uma intensa reflexão sobre os processos de crescimento econômico nas comunidades das várzeas do estuário amazônico, a sustentabilidade na utilização dos bens naturais dessas áreas e a garantia das condições básicas de vida saudável e socialmente digna às populações ribeirinhas.
MATERIAIS E MÉTODOS
Integrando o conjunto de modelos de projetos de reconhecimento fundiário, criados no ano de 2006, como forma de dinamizar as ações econômicas e ambientais nas áreas de várzea historicamente ocupadas por populações tradicionais, o PAE São João Batista II teve sua criação oficializada no dia 15 de setembro de 2006, por meio da Portaria INCRA/SR-01/Nº 32, publicada no Diário Oficial da União em 20 de setembro de 2006. Suas limitações e confrontações são: ao norte, com o Furo do Açaqueira e rio Arumanduba; ao sul, com a Costa da Maratauíra; ao leste, com o rio Arumanduba; e, a oeste, com o Furo Maracapucu e o rio Maracapucu9.
O PAE São João Batista II compreende uma área territorial de 3.250,0139 ha, o que corresponde a 32,500 km², com uma população de 466 Unidades de Produção Familiar (UPFs), situando-se a oeste do Município de Abaetetuba, com coordenadas UTM E 729.663.68 m, e N 9.806.274.26 m Costa Maratauíra (Figura 1). O Município de Abaetetuba integra a mesorregião do Nordeste Paraense e está situado na microrregião de Cametá e, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística10, tem uma população estimada para 2016 de 151.934 habitantes e um território geográfico de 1.610,408 km². Por via rodofluvial, localiza-se a 62 km de Belém, capital do Estado do Pará; enquanto que, por via rodoviária, essa distância aumenta para 100 km. Em sua composição territorial, o Município de Abaetetuba tem 72 ilhas, situadas na confluência do rio Tocantins com o rio Pará, cujas várzeas são cobertas por sedimentos aluviais11.
Em uma análise da formação e da composição geográfica do PAE São João Batista II, o Instituto de Desenvolvimento e Assistência Técnica da Amazônia (IDATAM) apresenta duas classificações para os solos que compõem essa comunidade: solos de várzea e de terra firme. Para o IDATAM12, os solos de várzeas, localizados nas margens dos rios, recebem adubação e drenagem de forma natural, proporcionadas pelas enchentes periódicas; possuem quantidades significativas de húmus (matéria orgânica) devido às aluviões que se depositam nas suas margens; podem ser aproveitados em culturas temporárias, como arroz, juta, malva e cana-de-açúcar, mas não apresentam condições adequadas para utilização de maquinário. Os solos de terra firme, presentes na área, são mais destinados a culturas permanentes ou de ciclos longos, como cupuaçu, cacau, graviola, abacate, entre outras.
Os solos das ilhas em Abaetetuba, onde se encontra o PAE São João Batista II, são predominantemente os solos Gleis eutróficos e distróficos e aluviais eutróficos e distróficos, textura indiscriminada13.
As informações sobre a formação geológica do PAE São João Batista II ajudam a compreender a manifestação de inúmeras espécies de palmeiras nas várzeas, cujo cultivo e produção auxiliam substancialmente a economia do Município. Nessa estrutura, pode-se encontrar o açaí (Euterpe oleracea), miriti (Mauritia flexuosa) e a bacaba (Oenocarpus bacaba). Os produtos florestais madeireiros encontrados nessa região também são de grande valor, como é o caso da ucuúba (Virola surinamensis), andiroba (Carapa guianensis), mangueiro (Rhizophora mangle L.), faveira (Vatairea guianensis Aubl.) e louro de várzea (Nectandra amazonicum). Além das espécies não madeireiras, casos da manga (Mangifera indica), coco (Cocos nucifera), laranja (Citrus sinensis), e as plantas medicinais verônica (Veronica spicata), babatimão (Stryphnodendron) e cachiguba (Ficus adhatodifolia)12.
Quanto à formação específica da flora no PAE São João Batista II, as áreas de várzea que compõem toda a região das ilhas onde esse projeto está instalado são formadas por floresta ombrófila latifoliada, sendo essa uma incidência típica dos ecossistemas de várzeas14.
O clima na área de influência do PAE São João Batista II, pela classificação de Kôppen, é o Ami, apresentando uma média mensal, com temperatura mínima de 18º C, numa estação de curta duração, mas com umidade suficiente para a manutenção da floresta e amplitude térmica não ultrapassando os 5º C15. Com uma ligeira mudança do clima para o tipo Aw nessa região, as chuvas apresentam maior intensidade entre os meses de fevereiro e abril. A temperatura do ar apresenta-se elevada, com média de 27º C, chegando facilmente à máxima de 32,4º C e tendo como mínima 24,1º C. Quanto à umidade relativa do ar, encontra-se sempre acima de 80%, sendo que a precipitação pluviométrica anual é de 2.537 mm15.
Estruturada enquanto estudo de caso, a pesquisa teve como parâmetro uma abordagem quantitativo-qualitativa, numa perspectiva de salientar os aspectos dinâmicos, holísticos e individuais, corroborando um trabalho de explicação e compreensão da dinâmica das relações do homem com a natureza, aspectos científicos inerentes à fundamentação de variáveis16.
Ainda sobre a importância da pesquisa com a utilização de enfoque metodológico misto, considera-se que estudos dessa natureza conseguem melhores compreensão e instrumentalização de resultados17. Dessa forma, o levantamento feito no PAE São João Batista II procura, por meio da combinação de métodos, aumentar a validade e a credibilidade das inferências, gerando, assim, interpretações avançadas e abrangentes de fenômenos socais complexos.
Para obtenção dos dados, foram utilizados questionários semiestruturados contendo questões-chaves sobre aspectos sociais, ambientais e infraestrutura local, bem como entrevistas em profundidade, aplicados a uma população alvo de 466 UPFs, por meio de trabalho integrado com o IDATAM, objetivando traçar um diagnóstico socioeconômico e ambiental da comunidade em estudo. No período de 1 a 30 de outubro de 2015, foram feitas visitas in loco no sentido de melhor análise e compreensão da realidade local no que concerne aos problemas ambientais apontados pela população alvo.
A utilização de questionários semiestruturados configura-se na tradução dos próprios objetivos da pesquisa em questões específicas, sendo que as informações adquiridas da população estudada são fundamentais para a sua caracterização e, sobretudo, indispensáveis para a compreensão do fenômeno em estudo18.
Realizou-se também uma pesquisa bibliográfica na Universidade Federal do Pará (UFPA), no Museu Paraense Emílio Goeldi e no INCRA/Superintendência Regional no Estado do Pará/Belém (SR-01), tendo em vista que essas instituições congregam conhecimentos acumulados e relacionados aos projetos agroextrativistas na Amazônia e, especificamente, ao PAE São João Batista II.
O estudo caracterizou-se como pesquisa institucional com vistas à aplicação de políticas públicas de regularização fundiária na Amazônia com base em levantamento de Assistência Técnica. Dessa forma, não foi submetido previamente a um comitê de ética em pesquisa. Contudo, sua estrutura e procedimentos seguiram rigorosamente as determinações do item III da Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, no que se refere ao atendimento dos preceitos éticos e científicos envolvendo seres humanos. Assim, os dados e resultados obtidos não abrangem a identificação dos indivíduos participantes do estudo, resguardando sua integridade pessoal e intelectual.
RESULTADOS
DEMOGRAFIA, ESCOLARIDADE E COMPOSIÇÃO PRODUTIVA
O PAE São João Batista II tem seu território formado por nove comunidades/localidades: Arumanduba, Maracapucu, Sagrado Coração de Jesus, Santa Maria, São José, Assacueira, Biribá, Guajarazinho e Sarapuquara. Tomando como objeto de análise as 466 famílias pesquisadas, num total de 1.845 habitantes, a maior parcela era do sexo masculino, com 968 indivíduos, o que corresponde a 52,47% dos moradores; enquanto que a população do sexo feminino representava 47,53% da comunidade, num total de 877 indivíduos.
Foi constatado que 64% dos moradores encontravam-se na faixa etária de 15 a 59 anos, correspondendo a um grande percentual da população economicamente ativa. O estudo mostrou que a população na faixa etária de 0 a 4 anos representava 6,16% dos indivíduos. Na faixa etária de 5 a 14 anos, esse percentual foi de 22,05%. Os habitantes entre 15 e 29 anos somavam 28,65% dos moradores. Os indivíduos de 30 a 59 anos representavam 35,14% dessa população. Por fim, os indivíduos situados na faixa etária acima de 60 anos representavam 8% do total da população estudada.
O estudo também abrangeu o aspecto educacional da população do PAE São João Batista II, a fim de se analisar a posteriori o cenário da problemática ambiental a partir dos atores sociais constituintes desse meio físico. Dessa forma, verificou-se que 11% dos indivíduos pesquisados não eram alfabetizados ou nunca frequentaram a escola formal. A população matriculada na Educação Infantil correspondia a 5,3% do total; o número de matriculados no Ensino Fundamental menor, que compreende o período do 1º ao 4º ano, era de 47%; e, no Ensino Fundamental maior, que compreende o período do 5º ao 9º ano, era de 23% dos entrevistados. Com relação ao Ensino Médio, o estudo utilizou duas categorias de análise: aqueles que iniciaram esse nível de estudo e não o concluíram ou ainda estavam cursando, e aqueles que já tinham concluído. Nesse caso, 2% dos entrevistados possuíam Ensino Médio incompleto e 10% já haviam concluído. No Ensino Superior, também foram adotadas duas categorias de análise: Superior incompleto e Superior completo. Assim, 1% da população pesquisada possuía Ensino Superior incompleto, e outros 0,7% tinham concluído o Ensino Superior.
No PAE São João Batista II, o processo produtivo é composto por quatro grandes eixos: produção extrativa, com destaque para o açaí (Euterpe oleracea), o buriti (Mauritia flexuosa) e a andiroba (Carapa guianensis); produção pesqueira, com ênfase na produção de pescada (Cynoscion spp.), sarda (Pellona flavipinnis), filhote (Brachyplatystoma filamentosum), mapará (Hypophthalmus marginatus) e dourada (Brachyplatystoma rousseauxii); culturas anuais, com maior incidência para a mandioca (Manihot esculenta), a cana-de-açúcar (Saccharum officinarum), o milho (Zea mays), o jambu (Acmella oleracea), o maxixe (Cucumis anguria) e perenes, dentre os quais destacam-se a manga (Mangifera indica), a banana (Musa spp.), o limão (Citrus limon), o coco (Cocos nucifera), o cupuaçu (Theobroma grandiflorum), o cacau (Theobroma cacao) e o taperebá (Spondias mombin L.); e produção animal, com a criação de galinha caipira (Gallus gallus domesticus), pato (Cairina moschata momelanotus) e frango de granja (Gallus gallus domesticus).
DINÂMICA DA PERCEPÇÃO DOS PROBLEMAS AMBIENTAIS
A deposição de resíduos sólidos às margens do rio é uma das grandes preocupações dos moradores do PAE São João Batista II, que, em entrevista, afirmaram que esse problema era acentuado pelo descarte feito por feirantes que transitam ou trabalham nas feiras e mercados da orla de Abaetetuba. De acordo com os habitantes pesquisados, esses resíduos trazidos da cidade acumulavam-se em quantidades extremas, dificultando a retirada de forma devida12.
Com relação ao lixo inorgânico, 90% das famílias pesquisadas afirmaram realizar queima como destinação mais apropriada; 4% destinavam o lixo inorgânico para o sistema de coleta de Abaetetuba; 1% descartava o lixo nos rios e igarapés; 3% enterravam esses resíduos; e 2% utilizavam formas diversas de destinação, como reciclagem e venda.
Quanto ao lixo orgânico, contatou-se que 82% das famílias destinavam esses resíduos para a alimentação de animais; 11% realizavam sua queima (não havia processos de decomposição e nem destinação à alimentação de animais); 4% realizavam processo de compostagem; 2% descartavam-nos no rio; e 1% afirmou enterrá-los.
O tratamento dos dejetos humanos foi investigado em 100% das UPFs, como forma de verificar as condições do esgotamento e sua contribuição no contexto dos problemas ambientais na comunidade em estudo. Também foi pesquisada, nessa etapa, a questão do abastecimento e tratamento da água, em função da consolidação das discussões sobre sua possível contaminação em nível superficial e a afetação dessa condição sobre a população do PAE São João Batista II.
Na tabela 1, são apresentados os resultados das informações referentes aos dejetos humanos e suas formas de tratamento pelas UPFs do PAE São João Batista II. Os números constatados levaram em consideração a verificação da utilização de três formas de unidade de tratamento primária de esgoto ou a não utilização de qualquer delas.
Formas de tratamento de dejetos humanos | Nº de UPFs | % de residências |
---|---|---|
Fossa incompleta/Fossa negra | 23 | 5,0 |
Fossa simples | 74 | 16,0 |
Fossa séptica | 5 | 1,0 |
Sem tratamento | 364 | 78,0 |
Total | 466 | 100,0 |
Fonte: Levantamento de Campo Integrado - Pesquisador/IDATAM, 2015.
Os dados da tabela 2 evidenciam os resultados do levantamento dos locais que as UPFs utilizavam na captação de água para sua subsistência e a distribuição do uso desses locais entre elas. A indissociável relação entre o tratamento dos dejetos humanos e as fontes de abastecimento de água utilizadas pelas UPFs, no PAE São João Batista II, subsidiaram a construção das cinco categorias básicas de análise.
Fontes de abastecimento de água | Nº de UPFs | % de residências |
---|---|---|
Poços artesianos | 22 | 4,7 |
Nascente ou vertente com poços | 5 | 1,1 |
Rios/córregos/igarapés | 436 | 93,6 |
Cacimbas | 2 | 0,4 |
Outros | 1 | 0,2 |
Total | 466 | 100,0 |
Fonte: Levantamento de Campo Integrado - Pesquisador/IDATAM, 2015.
Os resultados apresentados na tabela 3 levam em consideração o levantamento das características no tratamento da água nas UPF pesquisadas no PAE São João Batista II, tendo como base seis categorias nesse item do estudo. O levantamento objetivou integrar a análise conjuntural dos problemas ambientais na cadeia sequencial das ações antrópicas, a partir da poluição causada pelos resíduos sólidos produzidos na comunidade em estudo e as condições dos dejetos humanos encontradas nesse ambiente.
Formas de tratamento da água | Nº de UPFs | % de residências |
---|---|---|
Cloração | 201 | 43,0 |
Fervura | 11 | 2,3 |
Filtragem simples | 108 | 23,0 |
Decantação química | 14 | 3,0 |
Outros | 31 | 7,2 |
Nenhum tratamento | 101 | 21,5 |
Total | 466 | 100,0 |
Fonte: Levantamento de Campo Integrado - Pesquisador/IDATAM, 2015.
Os dados de diagnóstico também consideraram as informações sobre as condições das margens do PAE São João Batista II e a ocorrência de assoreamento progressivo em virtude de retirada de mata ciliar (Figura 2) e fluxo de embarcações motorizadas.
DISCUSSÃO
Ao se analisar os resultados da escolaridade da população no PAE São João Batista II, é possível perceber a necessidade de ações institucionais e não institucionais, no sentido da elevação do nível de escolaridade dos indivíduos dessa região, bem como de dinamizar sua educação não formal como instrumento integrador do currículo escolar. Para Pinheiro19, as baixas condições de escolaridade observadas nas comunidades ribeirinhas da Amazônia Tocantina refletem sobremaneira a perpetuação da condição de exploração dos povos das florestas. A autora ainda argumenta que, nas comunidades da Floresta Amazônica, pode-se perceber um acentuado grau de insatisfação ocasionado pelo acesso tardio à escola ou, até mesmo, pela falta de políticas públicas voltadas para a educação formal das comunidades ribeirinhas na Amazônia19.
Acerca da importância da estrutura produtiva em comunidades tradicionais das ilhas na Amazônia Tocantina, análises demonstraram que o sistema de produção nessas regiões, aliado a sua comercialização, representam um mecanismo primordial no conjunto de significados dessas populações, bem como a garantia da adequação dessa produção ao seu consumo20.
Os dados populacionais, educacionais e produtivos representam um importante conjunto de fatores sociais que ajudam a compreender os processos que culminaram no surgimento de problemas ambientais significativos e preocupantes no PAE São João Batista II. Os principais problemas ambientais identificados na comunidade estudada referem-se à poluição/contaminação das áreas de várzea, rios/córregos e igarapés, bem como seu assoreamento.
Nas discussões acerca da ocorrência de problemas ambientais, não se pode deixar de observar que esses problemas são eminentemente sociais, fruto da geração de processos humanos não alheios às estruturas ambientais criadas pelos atores de um sistema vivo21. Portanto, os problemas ambientais são estados desordenados de um meio ambiente que sofreu alterações, causando, como consequência, problemas de saúde, uma vez que afetam os seres humanos e a sociedade em vários aspectos e dimensões22.
Nas incursões in loco, alguns aspectos ambientais foram verificados, os quais podem ser considerados chaves na configuração dos problemas existentes no meio físico do PAE São João Batista II. A primeira constatação singular, no que tange às causas dos problemas ambientais na comunidade estudada, diz respeito ao tratamento do lixo. Foi constatada uma quantidade significativa de lixo inorgânico depositado às margens do rio em grande extensão da comunidade. Por se encontrar próximo ao centro urbano da Cidade de Abaetetuba, parte do lixo é deslocado pelas correntes fluviais e depositado nas áreas de várzea.
Um fator importante demonstrado pelo diagnóstico das famílias do PAE São João Batista II é que a maioria dos moradores tinha consciência sobre a problemática do lixo, reconhecendo que os impactos causados por esses resíduos nas várzeas são mais significativos. A questão do lixo na sociedade moderna é um desafio a se enfrentar23, porém, ao se analisar a natureza da sociedade capitalista, o lixo, em sua gênese, constitui-se de uma série de produtos inevitavelmente indispensáveis para a civilização em nossa era moderna. Desde seu aparecimento enquanto agrupamento de seres humanos, a sociedade tem produzido resíduos, uma vez que há grande utilização de produtos de caráter alimentício, higiênico e muitos outros industrializados.
As alternativas para se viver em um ambiente no qual o lixo não seja o protagonista de graves problemas ambientais perpassam pela adoção de incentivo e estimulação de mudança de hábitos de consumo da população, procurando despertar o interesse e a conscientização acerca da melhoria dos processos a ele relacionados, destacando-se, nesse contexto, a questão da coleta seletiva, da redução do consumo exacerbado de produtos industrializados, constituídos de embalagens ambientalmente desnecessárias, bem como o melhoramento das técnicas de processamento desses resíduos sólidos.
Nessa perspectiva, ações e educação ambiental estão sendo desenvolvidas no PAE São João Batista II, no intuito de sensibilizar os habitantes dessa comunidade a respeito da importância do tratamento do lixo produzido em seu meio físico e a busca de alternativas para minimizar ou mesmo solucionar o problema dos resíduos trazidos pelas correntes fluviais e depositados à beira do rio. Por meio de palestras, oficinas e coleta de resíduos, o IDATAM, cumprindo contrato firmado junto ao INCRA (Chamada INCRA SR-01 Nº 01/2014), está realizando o trabalho de educação ambiental junto às famílias do PAE São João Batista II desde outubro de 2015.
A importância da educação ambiental, enquanto mecanismo de mudança de valores e hábitos das populações frente à questão do lixo, caracteriza-se enquanto condição intrínseca na geração de novos valores para a construção da racionalidade ambiental. A inserção de novos processos educativos provocará, por meio da educação ambiental, um olhar mais cuidadoso em relação aos atuais padrões de consumo, procurando despertar uma crescente preocupação no que se refere à geração de quantidades cada vez menores de lixo, evitando desperdícios, valendo-se cada vez mais do reuso de embalagens que seriam facilmente descartadas. Essa mudança de atitude desponta como consequência de uma educação ambiental de caráter permanente, o que ocasionará efeitos benéficos sobre a qualidade de vida da população24.
Outro fator importante no estudo dos problemas ambientais no PAE São João Batista II diz respeito aos efluentes sanitários. A tabela 1 mostra que, em 78% das residências estudadas, não há qualquer forma de tratamento dos dejetos humanos; 16% das residências possuem fossas simples; 5% utilizam fossa incompleta ou negra; e 1% se vale de fossa séptica. De acordo com dados já levantados pelo IDATAM, nessa comunidade, as famílias ribeirinhas não são contempladas com serviço de saneamento e sofrem diante de condições precárias de esgotamento sanitário e abastecimento de água12.
A questão dos efluentes ou dejetos humanos, em áreas de várzeas, representa um sério problema para esse ambiente, visto que essas áreas sofrem alagamento constante e, em sua grande maioria, esses resíduos sanitários são lançados diretamente ao solo sem o devido tratamento25. Dessa forma, os dejetos humanos despejados nas superfícies, onde ocorrem o carregamento em águas superficiais por ação das marés e o lançamento direto em igarapés naturais, contribuem negativamente para a saúde da população. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário12, nas comunidades das várzeas amazônicas e especificamente no PAE São João Batista II, "a mesma água que entra em contato com os dejetos humanos é a mesma utilizada para suprir as necessidades mais básicas dos habitantes".
Os problemas causados pelos dejetos humanos nas áreas de várzea poderiam ser solucionados com a utilização de fossas sépticas adaptadas a essas áreas. Assim, com saneamento básico coerente e estudos voltados às áreas de várzea na Amazônia, que mantenham, principalmente, a atenção às normas de proteção de recursos hídricos, poder-se-ia pensar em um desenvolvimento das comunidades ribeirinhas numa perspectiva de sustentabilidade.
Levando-se em conta que a relação das comunidades ribeirinhas na Amazônia com as águas dos rios é vital em seu relacionamento com o meio ambiente, o estudo também verificou as condições de utilização e tratamento dessas águas e seu tratamento no PAE São João Batista II. Foi observado que 93,4% das famílias da comunidade utilizavam a água do rio e igarapés para alimentação e higiene, o que demonstrou uma captação sem tratamento devido. Enquanto que 4,7% dos habitantes utilizavam o abastecimento de água proveniente de poços artesianos, 1,1% utilizava a água oriunda de nascentes ou vertentes, 0,4% utilizava água proveniente de cacimba, e 0,2% informou utilizar água engarrafada (Tabela 2).
É necessário ter atenção especial quando o assunto é o abastecimento de água para uso doméstico, pois a garantia da utilização dessa fonte mineral de forma saudável perpassa pela apresentação de características sanitárias e toxicológicas adequadas26. Segundo Zancul26, a água para consumo humano não pode apresentar organismos que causem doenças graves aos seres humanos, nem possuir substâncias tóxicas a fim de "prevenir danos à saúde e promover o bem estar das pessoas".
Ainda considerando-se que a água representa um aspecto primordial quando se trata de problemas ambientais, foram também levantadas, junto às famílias pesquisadas, as formas de tratamento que elas utilizavam e que consideravam adequadas para torná-la consumível. A tabela 3 demonstra que 201 famílias, correspondendo a 42,9% dos entrevistados durante a aplicação dos diagnósticos no PAE São João Batista II, realizavam o tratamento geralmente com hipoclorito de sódio (NaClO), que visa a eliminação dos microrganismos patógenos, e 3% das famílias o fazíam com sulfato de alumínio (Al2(SO4)3 - decantação química), utilizado para retirar as impurezas da água, o que, por sua vez, se realizado de maneira errônea, pode causar danos à saúde, como ressecamento e dermatites leves.
No PAE São João Batista II, 23% das casas realizavam o processo de filtragem da água, mas essas representavam exceções. O sistema de filtragem simples não é um processo eficaz, por não matar os microrganismos presentes na água. Uma das alternativas para matar os microrganismos pelo processo de filtragem é o método de desinfecção solar da água ou método SODIS, que se caracteriza pela utilização da radiação solar na purificação da água contaminada por microrganismos. De acordo com pesquisas feitas pelo Instituto Federal Suíço de Ciência e Tecnologia Aquática (EAWAG)27, esse método é considerado muito simples e ecologicamente sustentável, partindo do princípio que microrganismos capazes de produzir doenças em seus hospedeiros são frágeis a dois efeitos da luz solar: à radiação no espectro da luz ultravioleta - A, correspondente a um comprimento de onda de 320-400 nm, e ao calor, com significativo aumento de temperatura da água. Nessas condições específicas e simultâneas, a mortalidade dos microrganismos aumenta, contribuindo sobremaneira para sua erradicação27.
Os últimos aspectos apontados como causas de problemas ambientais pelos participantes da pesquisa, na comunidade do PAE São João Batista II e analisados neste estudo, dizem respeito à destruição da mata ciliar em virtude do desmatamento desordenado das encostas e o acentuado fluxo de embarcações nos rios que cortam essa área. O principal problema ocasionado por esses dois fatores é o assoreamento dos rios. A derrubada das árvores nativas, principalmente a retirada dos miritizeiros (Mauritia flexuosa), mangueiras (Mangifera indica), jambeiros (Eugenia ssp.), entre outras, causa o enfraquecimento das encostas e, em consequência, a erosão e a deposição de grandes quantidades de sedimentos no leito dos rios. No PAE São João Batista II, o desmatamento está ligado ao manejo errôneo de algumas culturas, tendo como principal expoente o açaizeiro (Euterpe oleracea), constatado em determinadas áreas da comunidade.
A grande preocupação na questão do assoreamento é a drástica redução no volume de água do rio ao longo do tempo, ocasionando turbidez e, dessa forma, impedindo a entrada de água, grave fator que impossibilita a renovação do oxigênio que os peixes e outros organismos precisam para sobreviver28.
As famílias participantes da pesquisa do PAE São João Batista II também ressaltaram que o assoreamento estaria se acentuando devido à contribuição do fluxo de embarcações que transitam nos rios e furos dos igarapés. Esse fluxo de embarcações provoca o choque contínuo das maresias nas marginais, sendo observado tal fato principalmente no rio Maracapucu (um dos rios que integram a rede hidrográfica na comunidade) que, por se tratar de um furo, sofre constantemente com o tráfego das grandes embarcações. Os habitantes da comunidade também foram enfáticos ao afirmar que o tráfego fluvial na região causa poluição ao PAE, em virtude do descarte de resíduos sólidos diretamente nos rios feito pelos tripulantes das embarcações.
Com relação à intensa navegação existente no PAE São João Batista II e sua contribuição para o problema do assoreamento, é salutar que estudos mais aprofundados e específicos devam ser realizados, a fim de confirmar ou não essa hipótese.
Na comunidade PAE São João Batista II, é importante reconhecer que, em meio às adversidades sociais e principalmente ambientais, essa população usa de sua experiência de vida com as áreas de várzea amazônicas, buscando adaptar-se à dinâmica ambiental dessas áreas e superar, a seu modo, os problemas ocorrentes nesse ecossistema29.
Assim, ações de educação ambiental, pautadas em pilares de transformação individual e social, em que a mudança nas relações entre os homens e a natureza seja o foco primordial, alcançarão as reais transformações de atitudes e de comportamentos frente às questões dos problemas ambientais30.
CONCLUSÃO
A análise dos principais problemas ambientais vivenciados no PAE São João Batista II possibilitou a identificação de elementos capazes de gerar ações direcionadas e planejadas especificamente para garantir o desenvolvimento sustentável das populações ribeirinhas das várzeas. É possível, por meio do trabalho conjunto entre os saberes locais e ações interinstitucionais, melhorar a qualidade de vida dos habitantes, com a implantação de políticas públicas ambientalmente efetivas.
O estudo também comprovou que iniciativas de conservação estão sendo tomadas por parte da comunidade do PAE São João Batista II, na perspectiva da conciliação entre crescimento econômico, conservação e desenvolvimento sustentável. Dessa forma, foram identificados trabalhos como consórcio de culturas, a adubação orgânica e a cobertura morta.
A mitigação dos problemas ambientais encontrados no PAE São João Batista II, que representam graves consequências à saúde dos seus habitantes, perpassa pela intensificação e fortalecimento do trabalho de educação ambiental não apenas no ambiente específico da comunidade, mas, acima de tudo, no contexto geográfico de toda a região que compõe esse meio físico. As ações voltadas para a conscientização ambiental, desenvolvidas pelo IDATAM, representam um importante passo para o enraizamento da concepção de vida sustentável, enquanto consequência do comprometimento sociopolítico e ambiental.
No que consiste ao diagnóstico ambiental no PAE São João Batista II, pode-se inferir que há potencialidades para solucionar muitos dos problemas ambientais identificados e diminuir consideravelmente outros. Vale ressaltar que a implantação de uma cooperativa de resíduos sólidos será de ajuda significativa na questão dos resíduos lançados nos rios e igarapés da região. A implantação de estruturas de abastecimento de água tratada será uma iniciativa singular para mitigar os problemas relativos à falta de abastecimento de água potável. Quanto à questão do assoreamento, uma intensa ação de conscientização para a recomposição da mata ciliar contribuirá significativamente para diminuir os impactos do acúmulo de sedimentos nos leito dos rios e igarapés.
A mudança nas estruturas de pensamento dos indivíduos, acerca de sua convivência harmoniosa com o meio ambiente, permitirá sua formação enquanto cidadão socioambiental; um novo homem formado a partir de valores e posturas capazes da construção de níveis mais elevados de atuação ambientalmente significativa no contexto da vida nas comunidades das várzeas da Amazônia Tocantina.