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Revista Pan-Amazônica de Saúde

versión impresa ISSN 2176-6215versión On-line ISSN 2176-6223

Rev Pan-Amaz Saude v.7 n.esp Ananindeua dic. 2016

http://dx.doi.org/10.5123/s2176-62232016000500006 

ARTIGO HISTÓRICO

Jorge Boshell Manrique (1903-1976) e as doenças emergentes

Jorge Boshell Manrique (1903-1976) and the emerging diseases

Jorge Boshell Manrique (1903-1976) y las enfermedades emergentes

Gilberta Bensabath,1  , Heloisa Marceliano Nunes1  , Manoel do Carmo Pereira Soares1 

1Instituto Evandro Chagas/SVS/MS, Seção de Hepatologia, Belém, Pará, Brasil

RESUMO

Este artigo trata de aspectos biográficos e da trajetória profissional de Jorge Boshell Manrique (1903-1976). É descrita a atuação de Boshell no âmbito de estudos das doenças emergentes nos trópicos, com ênfase no período em que trabalhou no Instituto Evandro Chagas, como membro do Belém Virus Laboratory, vinculado à Fundação Rockfeller.

Palavras-chave: Biografia; Epidemias; História da Medicina

ABSTRACT

This article presents biographical and professional trajectory aspects of Jorge Boshell Manrique (1903-1976), and his work is described in studies of emerging diseases in the tropics with emphasis on the period he worked at Instituto Evandro Chagas as a member of the Belém Virus Laboratory linked to Rockfeller Foundation.

Keywords: Biography; Epidemics; History of Medicine

RESUMEN

Este artículo trata de aspectos biográficos y de la trayectoria profesional de Jorge Boshell Manrique (1903-1976). Se describe la actuación de Boshell en el ámbito de estudios de enfermedades emergentes en los trópicos, con énfasis en el período en que trabajó en el Instituto Evandro Chagas, como miembro de Belém Virus Laboratory, vinculado a la Fundación Rockfeller.

Palabras clave: Biografía; Epidemias; Historia de la Medicina

Jorge Boshell Manrique dedicou a maior parte de sua vida profissional aos estudos das doenças transmissíveis virais de origem silvestre. Impressionado com a ocorrência sob a forma de surtos, a alta letalidade e os aspectos obscuros da transmissão dessas enfermidades em populações de áreas rurais, dedicou-se à pesquisa epidemiológica. Foi um epidemiologista de campo, aliando à sua formação de cientista o empenho de um missionário (Figura 1).

Figura 1 - À esquerda, fotografia de Jorge Boshell Manrique, em 1943, retirada de sua ficha consular de qualificação; à direita, fotografia de Boshell apresentada em palestra sobre a história e primórdios de virologia na Amazônia, por Jack Woodall, ICB/CCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 2004 

Nasceu em 3 de outubro de 1903, na fazenda de sua família La Yegüera, próxima à Cidade de Subachoque, Departamento de Cundinamarca, Colômbia, filho de Jorge Boshell Brusch, médico graduado pela Universidade da Colômbia, e de Mary Manrique Convers, ambos descendentes de ingleses chegados à Colômbia no século XIX como representantes de instituições britânicas. Por essas condições, em 1905, seu pai foi designado embaixador da Colômbia junto aos governos da Bélgica e da Suíça. Ele e sua família (pais e mais três irmãos) residiram em Bruxelas até 1914, quando se mudaram para Friburgo, na Suíça. Na Bélgica, chegou a iniciar a high school, que concluiu em Friburgo, no Collège Saint-Michel do século XVI. Após, foi admitido na Universidade de Lausanne, que lhe conferiu o grau de médico a 12 de julho de 1928. Logo a seguir, ingressou no curso de especialização de saúde pública da Escola de Medicina Tropical de Bruxelas, na Bélgica. Nessa época, casou com Vera Pavlov, filha do fisiologista russo Petrovich Pavlov, prêmio Nobel de medicina. Após o curso, passou a exercer a medicina no Congo Belga até 1933, quando decidiu regressar à Colômbia. São escassas as informações sobre esse período de sua vida1,2.

Inicialmente, instalou-se na área rural da Colômbia, na cidade de Choachi, Cundinamarca, como médico clínico, passando a conhecer os problemas de seu país, entre os quais os socioeconômicos, inclusive os de saúde. Porém, já em 1934, mudou-se para Villavicencio, capital do Departamento de Meta, onde iniciou sua carreira de cientista da medicina tropical na América Latina e também sua fase de administrador, como Director Intendencial de Higiene. Nessa região de alta temperatura e umidade, passou a ter contato com as questões referentes à febre amarela sem Aedes aegypti, ou seja, a febre amarela silvestre, objeto de estudo da Seção de Estudos Especiais do então Departamento Nacional de Higiene da Colômbia, que era parcialmente sustentado pela Fundação Rockfeller1.

O interesse em outros aspectos da transmissão da febre amarela, cujo ciclo homem-mosquito (A. aegypti)-homem era bem conhecido, começou a ser despertado pela descoberta de casos, e até surtos da doença, onde não havia A. aegypti, na metade da década de 1930, com relevância para os observados no Brasil e na Colômbia. Daí, tais países terem instituído esses estudos, possibilitados pelos avanços no conhecimento do agente etiológico, o vírus da febre amarela, no final da década de 19201,3. O trabalho de Stokes et al4, ao investigar a febre amarela na África, demonstrou a suscetibilidade do macaco rhesus ao vírus amarílico e, em consequência, dos macacos da África e da América do Sul, como possíveis reservatórios silvestres do vírus amarílico.

Boshell, então, junto com outros pesquisadores da Seção de Estudos Especiais, dedicou-se aos estudos ecoepidemiológicos da febre amarela silvestre. Devido à sua habilidade em trabalhar na floresta, pôde esclarecer a ecologia dos mosquitos do gênero Haemagogus e sua existência na parte alta da floresta, além da associação biológica com os macacos. Com o advento do uso do camundongo suíço como animal de estudo do vírus da febre amarela3, foi possível estabelecer todo o ciclo por meio do isolamento dos vírus a partir de Haemagogus. Segundo Groot1, esses trabalhos foram objeto de várias publicações, porém há um que cobre, de maneira integral, os aspectos mais relevantes da epidemiologia da febre amarela silvestre na Colômbia, publicado simultaneamente em inglês, com a autoria de Bugher, na ocasião, diretor da Seção de Estudos Especiais, Boshell, Roca e Osorno; a edição em espanhol teve a autoria de Boshell, Bugher, Roca e Osorno. A edição em inglês apareceu em janeiro de 1944 no American Journal of Hygiene, e a versão em espanhol, em agosto de 1944, na Revista da Faculdade Nacional de Medicina, escolhida para figurar entre os clássicos.

Como quase todos os pesquisadores nascidos em áreas em desenvolvimento, Boshell se dedicou à formação de pessoal necessário às atividades de saúde, mesmo que isto implicasse também no exercício de atividades administrativas. Em Bogotá, foi diretor do Instituto Samper Martínez e assessorou Hernando Groot no planejamento de uma Escola de Saúde Pública e, principalmente, na implantação da Escola Nacional de Enfermaria na Universidade da Colômbia1.

Em 1953, retornou ao seu interesse pela epidemiologia de febre amarela, estudando as epidemias dessa doença na América Central, em colaboração também com Hernando Groot. Ainda nessa década, voltou às atividades administrativas no programa de erradicação da malária1.

No período de 1960 a 1964, como integrante da Divisão de Saúde da Fundação Rockefeller, retornou aos estudos dos vírus transmitidos por artrópodes, em Poona, Índia, onde se dedicou ao estudo do vírus da doença da floresta de Kyasanur (grupo B dos arbovírus complexo Russian Tick-borne virus), que, segundo Groot1, é considerada clássica no seu gênero.

Ainda como integrante da Fundação Rockfeller, em julho de 1965, chegou a Belém, Estado do Pará, Brasil, para fazer parte do staff do Belém Virus Laboratory, como seu diretor em substituição a Robert Ellis Shope. Esse laboratório era mantido por convênio da Fundação Rockfeller com a Fundação Serviço Especial de Saúde Pública (FSESP), com sede em Belém, no campus do Instituto Evandro Chagas (IEC), órgão de pesquisa e formação de pessoal de laboratório para saúde pública da instituição convenente brasileira. Porém, Boshell se identificava com a pesquisa de campo e com os aspectos que nortearam Max Theiller, Wilbur Downs e outros cientistas da Fundação Rockfeller a sugerirem a implantação de seis laboratórios no mundo para estudo permanente de arbovírus, sob o argumento de que, além do vírus da febre amarela, deveriam existir outros tão ou mais perigosos, o que viria a se confirmar5.

Assim, com a chegada de Jack Woodall, também em 1965, como membro do staff da Fundação Rockfeller, as atividades administrativas do Belém Virus Laboratory ficaram a seu cargo, e Boshell se dedicou, durante os cinco anos subsequentes de sua permanência nesse laboratório, às atividades de pesquisa epidemiológica de campo, tanto de caráter etiológico como de transmissão5.

Com esses objetivos, já em outubro daquele mesmo ano, fez parte da expedição do IEC, em companhia de Francisco de Paula Pinheiro, Gilberta Bensabath e técnicos de laboratório, ao Município de Lábrea, Estado do Amazonas. O objetivo era estudar os surtos de uma doença com aspectos clínicos semelhantes aos da febre amarela, que os histopatologistas posteriormente denominariam hepatite de Lábrea, e cujos estudos de campo de Shope e Bensabath haviam iniciado no ano anterior. Desde então, a sua participação nas pesquisas sobre aspectos etiológicos, clínicos e epidemiológicos dessa nosologia foi constante e decisiva, incluindo a preocupação de delimitá-la no espaço amazônico. No mês seguinte à expedição, já em Belém, ao tomar conhecimento de mais um óbito em uma família na qual, no mesmo ano, já havia ocorrido dois óbitos, e que havia sido examinada na viagem anterior, de outubro, Boshell retorna a Lábrea com Francisco Pinheiro, em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB), trazendo a família e internando-a na Santa Casa de Misericórdia do Pará, em Belém. Essa decisão foi muito importante, pois duas das crianças dessa família adoeceram em Belém, e uma delas veio a falecer. Assim, houve a oportunidade de estudar a evolução clínica e de realizar exames que permitiram descartar, como agentes etiológicos, plasmódio, vírus da febre amarela e outros vírus replicáveis em cultura de tecidos e camundongos suíços recém-nascidos e adultos5.

Com o objetivo de definir o espaço geográfico da hepatite de Lábrea e obter mais informações que auxiliassem na formulação de hipótese sobre a sua etiologia, em abril de 1966, com Pinheiro e uma equipe de técnicos, fizeram uma expedição a Porto Velho, Estado de Rondônia, para verificar a ocorrência de doenças com características semelhantes àquele agravo. O trabalho seria concentrado no estudo das fichas hospitalares que infelizmente não foram encontradas, havendo apenas uma lista de casos em um livro de atestados de óbito, ambos com deficiências de informações. Em seu relatório, Boshell afirmou que tudo que se podia dizer é que havia uma óbvia endemia de hepatite viral em Porto Velho e nas áreas circunvizinhas à exploração de borracha (seringais), de castanha (castanhais) e de mineração, que ocorria, em relação à idade, diferentemente da ocorrência observada na região do Purus. No ano seguinte (1967), de 24 de fevereiro a 24 de março, com informações de novas ocorrências de casos de hepatite de Lábrea, com a mesma equipe, retorna a Rondônia. Nessa ocasião, foram expostos animais sentinela e realizado um inquérito soroepidemiológico para arboviroses6,7.

Várias outras expedições se sucederam. O interesse desse pesquisador pelas doenças com possíveis ligações aos ecossistemas silvestres o fez participar, durante a sua permanência no Belém Virus Laboratory, de quase todas as expedições realizadas pelo IEC no interior da Amazônia.

Ainda em 1965 (dezembro), ano de sua chegada a Belém, com Jack Woodall, visitou, a convite da FAB, as aldeias dos índios Kayapó-Gorotire que vivem nos rios Xingu e Araguaia, para realizar inquéritos soroepidemiológicos sobre arbovírus, incluindo febre amarela5.

Em fevereiro de 1968, com Gilberta Bensabath, deslocou-se até o km 69 da Estrada Belém-Brasília para investigar um surto com óbitos, cuja etiologia precisava esclarecer. Em maio desse ano, fez parte da investigação do surto de encefalite equina do leste em cavalos em Bragança, Estado do Pará. De junho a agosto, em companhia de Woodall, realizou trabalhos sobre arbovírus na base de campo da expedição da Royal Society/Royal Geographical Society8. Ainda nesse mês de agosto, fez parte, com Bensabath, de uma expedição a Monte Dourado, Município de Almeirim, Pará, para estudar a etiologia de um surto de meningococcemia em trabalhadores de uma empresa de produção de celulose. No ano seguinte, também participou de expedições similares8.

Porém, durante a sua permanência no Belém Virus Laboratory, o maior interesse e dedicação de Boshell foram sempre relacionados à hepatite de Lábrea, com o objetivo de obter informações epidemiológicas mais amplas e descobrir indícios para o levantamento de uma hipótese etiológica, objetivos só alcançáveis, no seu entender, por meio do seu contato direto com a população atingida. Para a consecução desses objetivos, enfrentou diferentes logísticas, à medida que as utilizadas mostravam-se infrutíferas. Essas expedições temporárias prolongaram-se de maio de 1966 a 1968. Na expedição de maio de 1966, retornou ao Purus, tencionando alugar transporte fluvial local, que se mostrou logisticamente deficiente, pela indisponibilidade em datas e locais planejados. Durante essa expedição que terminou a 30 de junho, foram visitadas cidades situadas às margens do rio Purus, Lábrea, Terruan, Canutama, Tapauá e alguns locais próximos sobre os quais havia informações da ocorrência recente de febre negra. Ainda naquele ano, empreendeu uma segunda expedição iniciada a 9 de novembro e interrompida a 5 de fevereiro de 1967, utilizando a lancha Carlos Chagas da FSESP, que também veio a apresentar problemas logísticos, tendo que ser abandonada; a expedição prosseguiu com as embarcações locais disponíveis. Nessa expedição, percorreu trechos do rio Solimões e do Baixo Purus, visitando as localidades de Manacapuru, Costa do Paratari, Jaratuba, Paruri, Itapu, Canutama, Rio Paciá, Santa Cruz e Lábrea6,7,8.

Em continuação, ainda em 1967, a expedição em avião da FAB, iniciada a 16 de maio, que tinha como objetivo desenvolver trabalhos em Lábrea, foi interrompida em 24 de maio em Manaus, Estado do Amazonas, onde o cientista aproveitou seu tempo para acompanhar parte de uma família em que havia ocorrido casos suspeitos. Também encontrou, em Manaus, um jovem do Seringal Bom Futuro (foz do rio Ituxi, no rio Purus) que se sentira indisposto ao chegar a Manaus no dia 7 de março, continuando suas atividades escolares até 17 de abril. No dia seguinte, esse paciente sentiu desconforto abdominal, dor de cabeça e sonolência, e foi hospitalizado no dia 19 de abril, quando apresentou vômitos e excitação, falecendo no dia 20. O diagnóstico histopatológico, feito pelo patologista Mário Morais, do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia, foi de quadro similar à hepatite de Lábrea7.

No ano seguinte (1968), realizou três expedições: a primeira de 2 a 24 de janeiro, ao aceitar o convite para monitorar a expedição do Projeto Rondon, realizada na corveta Solimões, da Marinha Brasileira. Esse projeto era constituído de professores e alunos da área médica do Sudeste, com o objetivo de torná-los conhecedores da realidade das áreas distantes e mais desassistidas do Brasil. Mais uma vez, constatou a dificuldade de conciliar os seus objetivos com os da expedição, mas, assim mesmo, realizou algumas coletas em Lábrea e Canutama8.

Os obstáculos encontrados, como as dificuldades de transporte até as sedes municipais, pois a aviação comercial para Lábrea fora suspensa, a precária prestação de serviço de saúde que resultava na obtenção de informações incompletas e imprecisas, na falta de material patológico ou de dados laboratoriais e na impossibilidade de se ter uma estatística detalhada, não o desanimaram. Tais problemas, no entendimento de Boshell, não deviam ser desculpas para a indiferença e inação em face de um problema médico tão grave, e, então, sugeriu que fosse adquirida uma lancha própria do IEC, propondo reunir esforços da Fundação Rockefeller, da FSESP e da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPEVEA). Em uma reunião em Belém, em agosto daquele ano, com representantes do Ministério da Saúde do Brasil, dr. Manoel Ferreira, da Organização Mundial da Saúde, H. Torloni, e o superintendente da FSESP, Nelson Moraes, conseguiu financiamento por intermédio da SPEVEA, o que veio a concretizar-se na segunda metade do ano de 1969.

A despeito dos obstáculos, foram obtidas informações que permitiram formular hipóteses que seriam tomadas como base para investigações futuras, que incluíram aspectos etiológicos e epidemiológicos.

As informações, até então obtidas, permitiram-no afirmar não existir febre negra na ausência de hepatite viral endêmica. Os casos agudos pareciam ser uma complicação da hepatite endêmica prevalente; sendo que os poucos casos a sobreviver desenvolviam, posteriormente, um conjunto de sintomas muito semelhantes aos de convalescença de casos de hepatites e, posteriormente, cirrose6.

Considerou, então, inevitável a hipótese da ocorrência de outros fatores, inclusive a associação entre entidades patológicas, investigando qual seriam esses fatores, capazes de modificar uma hepatite endêmica em uma proporção anormal de casos fulminantes. Os fatores listados por Boshell foram os seguintes: 1) exposição aos vírus, especialmente aos arbovírus; 2) ataque de insetos; 3) malária e parasitoses intestinais; e 4) condições nutricionais e hábitos alimentares.

Apesar de não haver deficiência nutricional no Purus, a disponibilidade de alimentos não era contínua. Havia períodos ou locais de escassez, especialmente nos chamados centros, o que levava principalmente a se "comer qualquer coisa". Boshell, então, sugeriu que a castanha mal acondicionada da coleta anterior poderia levar ao envenenamento pela aflatoxina e outras micotoxinas. O mesmo poderia ocorrer com outros alimentos gordurosos, como frutas, peixes e quelônios.

Quanto aos aspectos etiológicos, naquela altura, considerando-os extremamente complexos, entrou em contato com patologistas dos Estados Unidos e Jamaica. Enviou, então, espécimes de fígado de três pacientes que adoeceram em 1965, 1966 e 1967 para o dr. Donald Svoboda, patologista da Universidade do Kansas, EUA, que compartilhou esses espécimes com Hans Popper, Edward A. Gall e Gerrit Bras, também patologistas. A opinião de consenso desses especialistas era que as alterações histopatológicas observadas naqueles fígados não eram compatíveis com as observadas nas hepatites virais, confirmando o primeiro pronunciamento de Klatskin (1965). As lesões sugeriam que um agente tóxico estaria envolvido7.

Com tão abalizadas informações, Boshell justificou as pesquisas em novas linhas, principalmente as toxinas (tal como aflatoxina), o que ele incluiria nos anos seguintes, pois, no princípio de agosto 1967, deixou Belém, em ano sabático, retornando em dezembro daquele ano.

Por sua sugestão e seu empenho, em abril de 1968, a Direção do IEC autorizou a instalação de um laboratório para análises cromatográficas, o qual empregaria as técnicas de camada fina em sílica gel. Como, em Belém, análises cromatográficas eram utilizadas pelos exportadores de castanha-do-brasil, também conhecida como castanha-do-pará, daí se conseguiu parte do equipamento, até que fosse adquirido equipamento com orçamento da Fundação Rockefeller. Devido às dificuldades para conseguir padrões de aflatoxina, obteve o padrão do Tropical Products Institute, de Londres, por meio da dra. Zéa Constante Lins-Lainson, pesquisadora do IEC, então em estágio na Universidade de Londres. Boshell fez uma visita, ainda em 1968, ao Massachusetts Institute of Tecnology, em Boston, para discutir análises cromatográficas de aflatoxina. Também nesse ano, apresentou dados sobre a febre negra no VIII Congresso Internacional de Medicina Tropical e Malária, em Teerã, visitando inclusive Gênova, Lyon e Londres.

O desenvolvimento das atividades laboratoriais planejadas para a aflatoxina, já com um profissional contratado, e a supervisão da construção da lancha foram as suas principais atividades até setembro de 1969, quando a embarcação ficou pronta (Figura 2), sendo denominada "Orlando Costa", em homenagem ao professor da Faculdade de Medicina do Pará, pesquisador do IEC e seu diretor no período de 1945 a 1954. Fez sua viagem inaugural nos arredores de Belém, no dia 24 de setembro, e teve como convidados o dr. Eleyson Cardoso, delegado federal do Ministério da Saúde, e pesquisadores do IEC. A lancha, com tripulação da FSESP, que incluía um técnico de laboratório, Guilherme Brígido Nunes, viajou com destino ao Purus na semana seguinte; Boshell, no dia 14 de outubro, viajou para Manaus, onde nela embarcou, na qual permaneceu até junho de 1970 (Figura 3). Esses oito meses, sem interrupção, nos rios do sudoeste da Amazônia, foram descritos por Boshell em um relatório, entregue às entidades administrativas participantes.

Figura 2 - Lancha "Orlando Costa", 1969-1970 

Figura 3 - Locais visitados pelo dr. Jorge Boshell em sua expedição de 1969 a 1970 

Em 1969, Boshell havia sido aposentado pela Fundação Rockefeller com homenagens, inclusive um jantar oferecido por essa instituição, mas permaneceu na Amazônia durante todo o tempo em que a instituição exerceu suas atividades com sede em Belém, que foram encerradas em dezembro de 19709.

Com a descoberta do antígeno Austrália (publicada em 1965) e, posteriormente, sua associação com as hepatites virais (1968), foi da iniciativa de Boshell o envio de soros, em 1969, inclusive de pacientes de hepatite de Lábrea acometidos em 1965, para McCollum, do Departamento de Epidemiologia da Universidade de Yalle, Estados Unidos. O objetivo era para serem examinados pelas técnicas imunosorológicas, então incipientes, para a detecção do mencionado antígeno e seu respectivo anticorpo. Os resultados positivos para os soros dos casos fatais e negativos para os soros de outra origem motivaram a decisão de serem examinados os soros coletados na expedição 1969/1970, o que foi efetuado ainda em 1970, por Gilberta Bensabath, em New Haven, Estados Unidos, na Universidade de Yale8,10. Esses resultados só foram publicados em 197311.

Em 1971, regressou à Colômbia, onde participou, no Instituto Nacional de Saúde, de um programa sobre vírus, sobretudo de dengue e encefalites. Porém, algumas vezes convidado pela Pan American Health Organization, visitou o Panamá, principalmente em 1974, para estudar epidemias de febre amarela. Nessa ocasião, teve problemas coronários agravados por fraturas, e lhe foi colocado um stent no Hospital do Panamá. Regressou a Bogotá, onde faleceu em 6 de março de 19761,2.

De Jorge Boshell Manrique fica a lembrança, como diz Groot1 em sua biografia, de um investigador infatigável, inteligente e capaz, exemplo do trabalho de campo que deve ser feito em profundidade, convivendo com os problemas; e de como devia dar-se trato integral e completo a cada passo do processo investigativo e epidemiológico, o que para ele foi fácil, dada a sua vasta cultura e a sua versatilidade, tanto em ciências como em humanidades. A isso acrescenta-se a ausência de vaidades e a disposição em ajudar os colegas no crescimento da sabedoria.

REFERÊNCIAS

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2 Boshell, Jorge. Jorge Boshell Manrique: abstract of a selected aspect of his life for Gilberta Bensabath [Internet]. Mensage to: Gilberta Bensabath. 2016 Feb 5 [cited 2016 Jun 21 ]. [1 paragraph]. [ Links ]

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4 Stokes A, Bauer JH, Hudson NP. The transmission of yellow fever to Macacus rhesus: preliminary note. JAMA. 1928;90(4):253-4. Doi: 10.1001/jama.1928.02690310005002 [Link] [ Links ]

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6 Belém Virus Laboratory. 1966 annual report of the Belém Virus Laboratory, Belém, Pará, Brazil. Belém: Belém Virus Laboratory; 1966. [ Links ]

7 Belém Virus Laboratory. 1967 annual report of the Belém Virus Laboratory, Belém, Pará, Brazil. Belém: Belém Virus Laboratory; 1967. [ Links ]

8 Belém Virus Laboratory. 1968 annual report of the Belém Virus Laboratory, Belém, Pará, Brazil. Belém: Belém Virus Laboratory; 1968. [ Links ]

9 Belém Virus Laboratory. 1969 annual report of the Belém Virus Laboratory, Belém, Pará, Brazil. Belém: Belém Virus Laboratory; 1969. [ Links ]

10 Bensabath G, Soares MCP. A evolução do conhecimento sobre as hepatites virais na região amazônica: da epidemiologia e etiologia à prevenção. Rev Soc Bras Med Trop. 2004;37 supl 2:14-26. Doi: 10.1590/S0037-86822004000700003 [ Link] [ Links ]

11 Bensabath G, Boshell J. Presença do antígeno "Austrália" (Au) em populações do interior do Estado do Amazonas - Brasil. Rev Inst Med Trop. 1973 set-out;15(5):284-8. [Link] [ Links ]

Recebido: 21 de Junho de 2016; Aceito: 30 de Junho de 2016

Correspondência: Gilberta Bensabath. Instituto Evandro Chagas/SVS/MS, Seção de Hepatologia. Av. Almirante Barroso, 492. Bairro: Marco - CEP: 66093-020 - Belém, Pará, Brasil - Tel.: +55 (91) 3214-2193. E-mail: gilbertabensabath@iec.pa.gov.br

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