INTRODUÇÃO
Os flebotomíneos apresentam uma elevada riqueza de espécies na Região Amazônica1, com altos índices de diversidade local em florestas de terra firme2. Das mais de 230 espécies de Lutzomyia já identificadas no Brasil, 122 podem ser encontradas na Amazônia. Mais de 20 espécies picam o ser humano e, consequentemente, várias delas têm importância como vetores de leishmaniose3,4,5.
A composição da fauna de flebotomíneos do gênero Lutzomyia é bem estudada no Estado do Pará. Até o presente momento, tem-se registro da existência de pelo menos 117 espécies6 para as quais existe chave regional de identificação7. Esse conhecimento deriva principalmente de estudos do papel desses insetos como vetores de Leishmania, o que contribuiu para desvendar alguns aspectos da ecoepidemiologia das leishmanioses na Amazônia brasileira8,9,10,11. Entretanto, os estudos de levantamentos faunísticos sistematizados e duradouros ainda são incipientes. Nas áreas silvestres, tem-se conhecimento de trabalhos que estudaram a fauna de mata de terra firme e várzea das margens do rio Capim, Município de Paragominas12; inquéritos entomológicos na Serra do Carajás, Mesorregião do Sudeste Paraense13; e na Floresta Nacional do Tapajós, Município de Belterra, no Baixo Amazonas14. Em áreas antropizadas, há alguns estudos sobre a riqueza, abundância e distribuição horizontal da fauna em áreas urbanas e rurais15,16. Outros levantamentos foram realizados em fragmentos florestais da área metropolitana de Belém17. Esses estudos confirmam a grande diversidade e abundância de flebotomíneos presentes na Região Amazônica.
A existência de uma rica fauna de flebotomíneos no Pará justifica a situação endêmica das leishmanioses nesse território. Sabe-se que tanto a leishmaniose tegumentar (LT) como a leishmaniose visceral (LV) vêm adquirindo importância em números de casos e de municípios afetados. Essa situação decorre, entre outros fatores, da rápida ocupação dos territórios por diversas razões, incluindo a implantação de projetos agrícolas e minerários18, pois a composição e a riqueza das populações de vetores são resultados de interações ecológicas e fatores geográficos em uma área19. Assim, mudanças no ambiente afetam a dinâmica das populações de flebotomíneos, alteram sua composição, seus hábitos e o comportamento das diferentes espécies, bem como a sua capacidade vetorial20.
No oeste do Pará, a riqueza mineral da região do Tapajós atrai, da parte de investidores, empresas nacionais e estrangeiras, grande atenção para essa área amazônica. Nessa região, destaca-se o Município de Juriti, que possui uma das maiores reservas de bauxita do mundo, com projeção de extração para os próximos 45 anos21. A construção de um empreendimento pela mineradora Alcoa S/A se deu em 2006, quando também se iniciaram estudos sobre as leishmanioses22,23 como incentivos do seu plano de controle ambiental, em virtude do aumento do número de casos de LT registrados na época. Como exemplo, cita-se a taxa de incidência, que era de 38,6 casos/100.000 habitantes em 2003, elevando para 65, em 2004, e para 138 em 2005. Inquéritos entomoepidemiológicos, realizados por Garcez et al23 em Juruti, revelaram a presença de reservatórios domésticos infectados e alta abundância de Lutzomyia longipalpis no peridomicílio de áreas periurbanas desse Município. Neste trabalho, estudou-se a fauna de flebotomíneos de duas localidades periurbanas de Juruti, com os objetivos de se determinar a abundância e a diversidade de espécies e de se discutirem aspectos ecológicos relacionados à transmissão da leishmaniose nessa área.
MATERIAIS E MÉTODOS
ÁREA DE ESTUDO
O Município de Juruti situa-se no Estado do Pará, na divisa com o Estado do Amazonas. Possui uma população estimada de 53.989 habitantes e 8.304 km² de área24.
Predominam na região florestas densas dos baixos platôs e campos cerrados. As temperaturas anuais variam de 22,5º C a 31º C, com médias de 25,6º C. As chuvas são irregulares. Contudo, os meses de dezembro a maio correspondem à estação chuvosa, e de junho a novembro, à estação seca, conhecidas, respectivamente, como inverno e verão amazônico. A precipitação anual acumulada chega a 2.000 mm e a umidade relativa apresenta valores acima de 80% em quase todos os meses do ano24. Para as capturas entomológicas, foram selecionadas duas localidades situadas em uma área indiretamente impactada pelo empreendimento supracitado, na interface urbano-rural, distante 12 km da sede do Município: Santa Maria (2º11'17,5"S; 56º00'42,7"W) e Paraense (2º09'14,7"S; 56º00'29,6"W).
Na localidade de Santa Maria, com aproximadamente 303 habitantes, predominavam utensílios e organização de cultura indígena e quilombola, com espaços mais abertos e pouca vegetação entre as casas, matas e água. No entorno da comunidade, a ocupação do solo era destinada principalmente para a agricultura de subsistência. Já na localidade de Paraense, com apenas 94 habitantes, predominava vegetação do tipo secundária, com casas construídas em áreas de capoeiras abertas. Os terrenos eram sombreados por uma grande quantidade de árvores frutíferas e os abrigos de animais construídos nas proximidades das residências (< 10 m). Nas casas, à beira do rio, havia a presença de vãos entre o assoalho e o terreno, que podiam ser utilizados como abrigos pelos animais domésticos e insetos vetores. Nessa localidade, os moradores disseram ter visto reservatórios silvestres.
CAPTURAS ENTOMOLÓGICAS E DETERMINAÇÃO DA INFECÇÃO NATURAL
Em cada localidade, utilizando critérios recomendados pelo Ministério da Saúde25, cinco pontos (residências) foram selecionados para a realização das capturas mensais de flebotomíneos (julho/2009 a junho/2011) (Figura 1). Nessas residências, foram instaladas duas armadilhas luminosas tipo CDC: uma no intradomicílio e outra no peridomicílio, a uma altura de 1,5 m do chão. As armadilhas foram instaladas das 18 às 6 h, durante três noites consecutivas. Os insetos capturados foram separados em frascos de vidro e encaminhados ao laboratório. Todos os espécimes foram conservados em álcool etílico (70%), para posterior montagem em lâmina com solução de Berlese e identificação, de acordo com a chave de identificação de Young e Duncan1. Para determinação da taxa de infecção natural, foram dissecadas fêmeas de flebotomíneos a fresco em solução. O intestino foi examinado ao microscópio óptico, em aumento de 400 x, para visualização de possíveis parasitos26.
ANÁLISE ESTATÍSTICA
Os perfis de diversidade pela série de Rényi, que fornece diferentes medidas de diversidade para comparar, de forma equivalente, os locais de captura, foram calculados utilizando o pacote Vegan do programa estatístico R.2.1027, sendo o valor de diversidade igual ao número de espécies da amostra quando o parâmetro α = 0. Para α = 1, o valor da diversidade corresponde ao índice de Shannon; e, se considerado α = 2, ao índice de Simpson28. A análise de ordenação NMDS (Escalonamento Multidimensional Não Métrico), usando-se o índice de dissimilaridade Bray-Curtis, foi utilizada para comparar a composição da fauna de flebotomíneos entre os pontos de captura. No programa BioEstat v5.029, foi realizado o teste Kruskal-Wallis para avaliar diferenças na abundância de indivíduos entre os diferentes locais de captura, e determinada a correlação entre a abundância de flebotomíneos capturados e os valores mensais da precipitação pluviométrica por meio da correlação linear de Pearson (α = 0,01).
RESULTADOS
RIQUEZA E DIVERSIDADE DE ESPÉCIES
Considerando as duas localidades, foi capturado um total de 32 espécies, sendo a riqueza maior em Paraense (31) do que em Santa Maria (15) (Tabela 1). O perfil Rényi revelou que, embora a riqueza (α = 0) tenha sido maior no peri e no intradomicílio de Paraense, respectivamente, os índices de Shannon (α = 1) e Simpson (α = 2) revelaram que a maior diversidade foi encontrada no peridomicílio de Santa Maria (Figura 2).
ABUNDÂNCIA RELATIVA
O estudo resultou na captura de um total de 36.408 flebotomíneos nas duas localidades. A espécie mais abundante foi Lu. longipalpis, com 27.951 espécimes (76,7%), seguida por Lutzomyia walkeri (7.256; 19,9%). Essas duas espécies somaram 96,6% do total de flebotomíneos capturados durante o período amostral. O restante (3,4%) ficou distribuído entre 30 espécies. Em Santa Maria, foram capturados 11.061 flebotomíneos pertencentes a 15 espécies. A mais abundante foi Lu. walkeri (6.906; 62,4%), seguida de Lu. longipalpis (4.073; 36,8%) (Tabela 1). Em Paraense, foram capturados 25.347 flebotomíneos de 31 espécies, sendo Lu. longipalpis a mais abundante (23.878; 85%), seguida de Lutzomyia antunesi (554; 2,2%) (Tabela 1). Além da alta abundância de Lu. longipalpis, em Paraense, foi observada a presença de seis das oito espécies de flebotomíneos envolvidas na transmissão de LT na Amazônia5: Lu. antunesi, Lutzomyia flaviscutellata, Lutzomyia ubiquitalis, Lutzomyia wellcomei, Lutzomyia ayrozai e Lutzomyia paraensis. Já em Santa Maria, em menor frequência, foram identificadas apenas as espécies Lu. antunesi, Lu. flaviscutellata e Lu. ubiquitalis (Tabela 1). Conforme a figura 3, utilizando-se a ordenação dos pontos amostrais por NMDS, verificou-se que houve diferença entre as duas localidades tanto na composição das espécies (F = 4,91; p < 0,001) como na abundância relativa das populações (F = 3,3; p < 0,05). O teste Kruskal-Wallis detectou diferenças significativas na abundância dos flebotomíneos entre os ambientes intra e peridomiciliar (H = 37,9; p < 0,001) e os pontos de captura (H = 18,801; p < 0,001), sendo maior no peridomicílio do que no intradomicílio, tanto em Paraense (85,5%; 14,5%) quanto em Santa Maria (60,2%; 39,8%). Neste estudo, o número de machos superou o de fêmeas em todo o período amostral, mas essa variação não foi considerada estatisticamente significante.
DISTRIBUIÇÃO SAZONAL
Os flebotomíneos predominaram na estação chuvosa nas duas localidades (Figura 4). Em Paraense, 15 espécies ocorreram nas duas estações; 13 só foram encontradas na estação chuvosa; e três apenas na seca. Em Santa Maria, oito espécies ocorreram nas duas estações; quatro somente na chuvosa; e três apenas na seca. O teste de Kruskal-Wallis detectou diferenças significativas na abundância dos flebotomíneos entre as estações (H = 26,85; p < 0,001) para a localidade de Paraense, na qual a abundância de Lu. longipalpis esteve correlacionada positivamente aos níveis de precipitação pluviométrica mensais (r = 0,82; p < 0,01) (Figura 5).
INFECÇÃO NATURAL
Durante os 24 meses de capturas, foram dissecadas 1.933 fêmeas de flebotomíneos - 1.348 de Paraense e 585 de Santa Maria. Foram encontradas três fêmeas infectadas com Leishmania sp. no intradomicílio de Paraense, sendo um exemplar de Lu. longipalpis e dois de Lu. antunesi, o que representou uma taxa de infecção de 0,12% e 1,16%, respectivamente.
DISCUSSÃO
Neste estudo, a riqueza de espécies foi considerada elevada, confirmando observações anteriores em áreas florestais da Amazônia paraense12,13,15,16. Apesar da grande riqueza, a maioria das espécies contribuiu com um número baixíssimo de indivíduos. Apenas duas foram consideradas dominantes: Lu. longipalpis, no peridomicílio de Paraense; e Lu. walkeri, no intradomicílio de Santa Maria. Resultados semelhantes foram descritos em ambiente florestal da Amazônia maranhense30. Essa baixa frequência de indivíduos estaria relacionada à interação de um conjunto de fatores, mas principalmente à ausência de fontes alimentares sanguíneas específicas para os flebotomíneos e à presença dos seus criadouros e abrigos no raio de atração das armadilhas31. Por outro lado, algumas espécies poderiam estar em fase inicial de adaptação ao ambiente peridoméstico. Tais espécies, ainda que aparentemente raras (Tabela 1) e sem importância conhecida na epidemiologia das leishmanioses, seriam passíveis de adaptação e de virem a desempenhar funções vetoriais32.
Entre as localidades, a riqueza e abundância das espécies foram diferenciadas. Isso sugere que fatores ambientais ou geográficos devem estar determinando a estruturação diferente das comunidades. Assim, as maiores riqueza e abundância de flebotomíneos em Paraense podem ser justificadas pelo fato de essa localidade manter suas características rurais, com presença de vasta vegetação secundária, por exemplo; ao contrário de Santa Maria, que é mais urbanizada e apresenta áreas com solo exposto utilizado para a agropecuária. Além disso, deve-se considerar também o estilo das habitações humanas e das atitudes e práticas dessa comunidade. As casas construídas em áreas de capoeiras abertas para abrigar residências, os terrenos sombreados por uma grande quantidade de árvores frutíferas e os abrigos de animais construídos perto das residências (< 10 m), bem como a ausência de segregação dos espaços de trabalho dentro das casas, são fatores importantes, que podem contribuir para a manutenção de criadouros e fonte de alimentos para os vetores.
A dominância de Lu. longipalpis em relação às demais espécies foi demonstrada em diversos estudos já realizados no Pará33, Amazonas34, Minas Gerais35, Rio Grande do Norte36 e Mato Grosso37,38. O alto grau de adaptação de Lu. longipalpis ao ambiente peridoméstico de áreas antropizadas é influenciado, principalmente, pela presença de animais domésticos36,39,40. Alexander et al41 demonstraram o importante papel que galinhas possuem para atrair Lu. longipalpis para a proximidade do peridomicílio. No entanto, em Paraense, além da criação de galinhas, observada em todos os pontos monitorados, em um ponto, que capturou 56% do total de flebotomíneos dessa localidade (14.424/25.355), havia, também, um chiqueiro de porcos. Santini et al42 relataram que a existência de abrigos de animais no peridomicílio aumenta três vezes a chance de haver maior abundância vetorial nesse ambiente.
Em Paraense, apenas 14,5% das espécies foram capturadas no intradomicílio. Em Santa Maria, esse número foi elevado a 39,4%, principalmente devido à grande quantidade de machos de Lu. walkeri nesse ambiente. Lu. walkeri já foi descrita em áreas, de floresta na Amazônia43,44,45 e no Nordeste do pais46, mas nenhuma importância epidemiológica lhe foi atribuída.
Os inquéritos entomológicos levados a efeito no Estado do Pará, enfocando ocorrência temporal10,12,15,16, revelaram que os flebotomíneos podem ser encontrados em qualquer época do ano. Entretanto, a maior abundância de indivíduos no período chuvoso corrobora os estudos realizados em várias regiões do Brasil47,48,49,50. De acordo com Rutledge e Ellenwood51, as chuvas agem modificando e prejudicando as condições dos criadouros no solo, mas aumentam a umidade do ar, favorecendo as atividades dos adultos.
O estudo da infecção por Leishmania sp. revelou positividade em Lu. longipalpis e Lu. antunesi, duas espécies de flebotomíneos relacionadas com a transmissão de LV e LT, respectivamente. Esse resultado sugere que a leishmaniose estava sendo transmitida dentro da própria localidade. A julgar pelo ambiente onde os exemplares foram encontrados infectados, a transmissão pode ocorrer, inclusive, dentro de casa. Convém mencionar que, em Paraense, além de Lu. longipalpis, vetor da LV, foi observada a presença de seis das oito espécies de flebotomíneos implicadas na transmissão de LT na Amazônia5.
CONCLUSÃO
A maior abundância e riqueza de espécies de flebotomíneos foram encontradas em Paraense. Nessa localidade, Lu. longipalpis foi a espécie mais abundante e dominante e sua distribuição sazonal foi correlacionada ao aumento dos níveis de precipitação pluvial. A abundância e a presença de vetores naturalmente infectados chamam atenção para a possibilidade de aumento do número de casos de LV e LT, não apenas nessa localidade, mas também em outras áreas rurais expostas ao impacto direto de transformações ambientais resultantes de atividades minerárias. Os resultados orientam ações de vigilância, prevenção e controle das leishmanioses em Juruti, intensificadas, principalmente, nos meses que antecedem as chuvas (setembro a novembro).