INTRODUÇÃO
A infecção causada pelo protozoário Toxoplasma gondii é uma protozoose de ampla distribuição mundial que afeta animais homeotérmicos e humanos1. Nesses, a toxoplasmose é adquirida principalmente pela via oral, por meio da ingestão de cistos presentes em carnes consumidas cruas ou mal cozidas, ou de oocistos excretados nas fezes de felídeos infectados e que podem contaminar frutas e verduras, água e solo2,3,4.
A toxoplasmose, apesar de ocorrer em diferentes partes do mundo, apresenta prevalência variável, sendo mais elevada em regiões tropicais, onde as condições ambientais e epidemiológicas são favoráveis ao desenvolvimento e à transmissão do parasito5. No Brasil, estudos soroepidemiológicos realizados em diferentes grupos populacionais têm demonstrado que a prevalência da infecção pode alcançar índices de até 80%6. Além disso, devido a questões provavelmente relacionadas à diversidade genética de cepas do parasito, há a tendência de maior severidade das diferentes formas clínicas da doença no Brasil7,8.
Em vários países, incluindo o Brasil, surtos de toxoplasmose aguda têm sido descritos, estando esses relacionados tanto à via hídrica quanto a possíveis fontes alimentares9,10,11. Entre essas ocorrências, destaca-se o surto de doença aguda relatado em áreas da floresta amazônica da Guiana Francesa, onde foram verificados casos graves com envolvimento ocular e multivisceral em indivíduos imunocompetentes, inclusive com registro de óbito. O referido surto foi associado à ingestão de água e/ou de carne de animais silvestres e com o envolvimento de cepas atípicas e altamente virulentas de T. gondii12.
Na Região Amazônica brasileira, alguns estudos demonstraram que, por suas características ecoepidemiológicas, a prevalência da infecção é alta13,14,15 e, ainda assim, surtos de toxoplasmose aguda têm ocorrido eventualmente. Em 2004, em Monte Dourado, no Estado do Pará, foi relatado um surto envolvendo 40 indivíduos com perfil clínico e sorológico compatível com a toxoplasmose aguda, cuja transmissão foi, provavelmente, por ingestão de alimentos e/ou a inalação de poeira contaminada com oocistos de T. gondii16. Em 2011, uma investigação realizada pelo Ministério da Saúde (MS) em três Municípios do Estado de Rondônia (Ji-Paraná, Ouro Preto do Oeste e Jaru), registrou um surto com pelo menos 141 casos identificados, nos quais a provável fonte de infecção foi o consumo de suco preparado com polpa de açaí contaminada com oocistos do parasito17.
Em maio de 2013, a partir da identificação de cinco indivíduos (pacientes índices) procedentes de Ponta de Pedras, no Arquipélago do Marajó, Estado do Pará, com perfil clínico (síndrome febril-linfadenopática) e laboratorial (IgG e IgM reagentes) compatíveis com a infecção aguda por T. gondii, atendidos no Setor de Atendimento Médico Unificado do Instituto Evandro Chagas (IEC) e pelo relato da existência de outros indivíduos que apresentavam quadro semelhante, levantou-se a suspeita da ocorrência de surto de toxoplasmose no referido Município. Após as devidas notificações às Secretarias de Saúde do Município e do Estado e ao MS, foi realizada uma investigação prévia no local para esclarecer a ocorrência, objetivando descrever as características clínicas, laboratoriais e epidemiológicas desse evento.
MATERIAIS E MÉTODOS
ÁREA INVESTIGADA
A investigação foi realizada no Município de Ponta de Pedras, localizado no sudoeste do Arquipélago do Marajó (mesorregião do Marajó, microrregião do Arari), Estado do Pará (01°23'42"S e 48°52'18"W) (Figura 1). O Município possui população estimada de 25.999 habitantes18 e área de 3.365.148 km².
INVESTIGAÇÃO PRÉVIA
Apesar dos primeiros casos terem sido identificados no mês de maio de 2013, a primeira etapa da investigação, conduzida pela equipe do Laboratório de Toxoplasmose (LABTOXO) do IEC; foi iniciada, somente em 24 de junho de 2013, com a identificação, coleta de amostras biológicas (sangue), avaliação clínica e confirmação laboratorial dos casos.
DESCRIÇÃO CLÍNICA, LABORATORIAL E EPIDEMIOLÓGICA
Por meio do banco de dados da Secretaria Municipal de Saúde de Ponta de Pedras, criado especificamente para a investigação desse surto, foi feita a busca ativa dos indivíduos classificados inicialmente como casos suspeitos, ou seja, aqueles que apresentavam sintomas e/ou resultados sorológicos semelhantes aos apresentados pelos pacientes índices identificados no IEC. Aproveitando a estratégia de amostragem, foi feita a inclusão de outros indivíduos para posterior identificação de casos assintomáticos com perfil sorológico compatível com infecção aguda/recente.
Todos os indivíduos sintomáticos e assintomáticos foram inicialmente avaliados clinicamente por médicos infectologistas e oftalmologistas, integrantes da equipe de investigação. Em seguida, a equipe esclareceu sobre os objetivos e a importância da investigação, e aqueles que aceitaram colaborar assinaram um termo de consentimento, no qual manifestavam a concordância para coleta de sangue e de informações sobre identificação, hábitos alimentares, de exposição e comportamentais. Tais informações foram inseridas em um questionário padronizado para a investigação.
De cada indivíduo investigado, foram coletadas amostras de sangue por punção endovenosa em tubos de coleta a vácuo, para posterior obtenção de alíquotas de soro. Dos indivíduos sintomáticos, foram obtidas também amostras de sangue total coletadas com anticoagulante (EDTA), para posterior análise molecular.
A análise sorológica realizada pelo LABTOXO/IEC consistiu na pesquisa de anticorpos IgG e IgM anti-T. gondii pelo ensaio imunoenzimático indireto e de imunocaptura, respectivamente, utilizando kits comerciais (Symbiosys(r), São Paulo, Brasil). Nessa análise, os indivíduos soropositivos para IgM e para IgG, independente de apresentarem ou não sintomas, foram considerados casos suspeitos; a confirmação foi feita pela determinação do índice de avidez de IgG pelo ensaio imunofluorimétrico, automatizado (VIDAS(r), bioMérieux, Marcy-l'Étoile, França). Foram considerados casos confirmados os indivíduos soropositivos para ambas as imunoglobulinas e com baixa avidez de IgG.
Os indivíduos com ou sem sintomas, mas com soropositividade somente para IgG, mais os casos suspeitos apresentando alta avidez de IgG, foram reavaliados e, com a manutenção do resultado sorológico, considerados "descartados" por apresentarem perfil de infecção pregressa. Os soronegativos para ambas as imunoglobulinas formaram o grupo controle.
Após a confirmação dos casos, a partir das amostras de sangue total de alguns deles, foi realizada a extração de DNA genômico utilizando o kit comercial QIAamp DNA Blood Mini Kit (QUIAGEN). As amostras de DNA foram posteriormente submetidas à reação em cadeia da polimerase (Nested-PCR), tendo como alvo o fragmento do gene B1 do parasito e protocolo realizado conforme descrição de Okay et al19.
Algumas informações epidemiológicas que poderiam estar associadas à infecção toxoplásmica no Município foram levantadas durante essa primeira etapa de investigação. Tais informações foram organizadas em tabelas de contingência e analisadas em relação ao número de casos confirmados pelo teste de qui-quadrado com correção de Yates, o teste exato de Fischer e o cálculo da razão de chances (odds ratio), para medir a magnitude da associação (análise univariada). Para todas as análises, utilizou-se o programa BioEstat v5.020 e considerou-se o nível de significância α = 0,05.
GEORREFERENCIAMENTO
Em setembro de 2013, o Laboratório de Geoprocessamento (LabGeo) do IEC realizou o mapeamento das residências dos casos confirmados ao longo da área urbana e rural do Município. Foram também mapeados os locais de abastecimento de água dos bairros, o matadouro municipal e os principais pontos de venda de suco de açaí na época do surto. Após o levantamento das coordenadas geográficas, foi elaborado um banco de dados geográficos (BDGeo) constituído pelos principais itens de dados: código e endereço do caso, código e endereço do ponto de açaí, código e endereço do sistema de abastecimento de água, código e endereço do matadouro, latitude, longitude, ponto do GPS e altitude. Após a criação do BDGeo, foram agregados, ao mesmo, arquivos dos dados georreferenciados e o mosaico de imagens de satélites obtido do software Google Earth, tecnicamente tratado e geometricamente corrigido, para que fossem desenvolvidas análises de distribuição espacial dos casos. Os mapas foram gerados a partir do estimador de densidade de Kernel, que possibilita a estimação da intensidade de ocorrências dos eventos amostrados em uma determinada área em relação a sua distância de uma posição referencial. Para a análise, foram adotados, para os pontos coletados relacionados aos casos positivos do Município, um raio de 80 m e uma distância de 500 m; para análise de casos positivos com os pontos de venda de açaí, um raio de 80 m e uma distância de 300 m; enquanto que nas análises de casos positivos na área urbana e na área rural, foi utilizado um raio de 80 m para ambos e uma distância de 250 m e 200 m, respectivamente. Para a avaliação da possibilidade de autocorrelação espacial entre as variáveis georreferenciadas em campo, foi utilizado o cálculo do índice global de Moran (IGM)21,22.
RESULTADOS
Durante o período da investigação prévia, foram avaliados 270 indivíduos e desses, 73 (27,04%) foram definidos como casos confirmados. Foram sororreagentes para IgG e IgM, porém com alto índice de avidez de IgG, 16 indivíduos (5,92%), os quais não foram considerados casos confirmados. Os demais (181, 67,04%) foram descartados por apresentarem perfil sorológico de infecção pregressa ou de suscetibilidade (ausência de infecção).
Entre os 73 casos confirmados, a idade variou de 11 meses a 64 anos, 36 (49,3%) pertenciam ao sexo masculino e 37 (50,7%) ao feminino. Em relação à distribuição dos casos no Município, 54 (74%) eram oriundos da zona urbana e 19 (26%) da zona rural.
Na avaliação clínica dos casos confirmados, foi verificado que todos apresentavam sintomas sugestivos de toxoplasmose aguda. As principais manifestações foram: febre (94,5%), cefaleia (86,3%), linfadenomegalia (84,9%) e perda de peso (71,2%) (Figura 2). No período dessa etapa de investigação, apesar de 45,2% dos casos relatarem manifestações oculares, como dor, fotofobia, visão turva, entre outras, na análise fundoscópica nenhum caso foi detectado de indivíduos com lesão ocular sugestiva de toxoplasmose (retinocoroidite). Da mesma forma, também não foram identificadas mulheres gestantes com perfil sorológico de infecção recente, casos graves com envolvimento multivisceral ou registro de óbitos. Alguns indivíduos relataram a persistência de sintomas por mais de um mês, principalmente o enfartamento ganglionar.
De acordo com essa primeira etapa de investigação, foi construída uma curva epidêmica prévia, baseada nas informações referentes ao início da manifestação dos sintomas pelos 73 casos identificados. Segundo relato dos indivíduos,o primeiro caso manifestou os sintomas em 22 de abril e o último em 26 de maio de 2013, com o pico do surto ocorrendo entre os dias 28 de abril e 15 de maio do referido ano (Figura 3).
Entre os casos confirmados, foi possível realizar a Nested-PCR em amostras de DNA extraídas de sangue total de 57 casos confirmados. O DNA de T. gondii foi identificado nas amostras de sangue de 52 indivíduos (91,2%) (Figura 4).
Foram analisadas variáveis relacionadas a hábitos alimentares e comportamentais (contato com animais ou solo) dos casos confirmados, porém, nessa etapa de investigação, não foi observada nenhuma associação estatisticamente significativa (Tabela 1).
* Todos os indivíduos relataram consumir a carne desses animais sempre bem cozida; † Número de casos que responderam a pergunta referente a essa variável; %: Frequência relativa de casos expostos às referidas variáveis; OR: Odds ratio; IC: Intervalo de confiança; IND: Indeterminado.
Em setembro de 2016, já haviam sido registrados pela Secretaria de Saúde do Município mais 17 casos confirmados, totalizando 90 casos associados ao surto de toxoplasmose. A partir de então, foi possível fazer o mapeamento geográfico do local de residência de 95,5% (86/90) desses casos, e, com a obtenção das respectivas coordenadas geográficas, foi gerado um mapa com o estimador de densidade de Kernel, confirmando a ampla distribuição dos casos no Município, com maior concentração na área urbana (Figura 5).
Com os dados obtidos a partir do mapeamento das residências dos casos e dos prováveis pontos de interesse para o surto, foi demonstrada a evidência da relação espacial entre a concentração do número de casos de toxoplasmose e a distribuição dos principais pontos de venda de suco de açaí durante o surto, conforme relato dos pacientes. Na figura 5, é possível observar a estimativa da densidade de Kernel para os casos confirmados e sua proximidade espacial com os pontos de venda mais citados (estabelecimentos A e B na área urbana e estabelecimento Z na área rural). Na sequência, foi gerado o índice de autocorrelação espacial IGM, entre as duas variáveis (caso e ponto de comercialização citado), em cada uma das áreas isoladamente e os valores observados foram 0,820054 (p = 0,01) e 0,456959 (p = 0,02) para área urbana e rural, respectivamente.
DISCUSSÃO
A partir dos critérios clínicos e laboratoriais observados, ficou demonstrado que o surto ocorrido em Ponta de Pedras estava associado à infecção aguda/recente pelo protozoário T. gondii. O referido surto foi caracterizado pelo número elevado de pessoas acometidas, total de 90 casos, ao contrário do que foi observado na maioria dos outros surtos registrados no Brasil11,23. Apesar disso, ficou abaixo dos casos registrados nos surtos ocorridos em Santa Isabel do Ivaí, no Estado do Paraná, em 2001-2002 (426 casos)9 e em municípios do Estado de Rondônia (141 casos)17.
Assim como foi observado em outros surtos no Brasil9,10,17, inclusive no próprio Pará16, a maioria dos pacientes era sintomática, com predomínio de quadro febril acompanhado de cefaleia e linfadenopatia, principalmente na região cervical, quadro clínico clássico em casos de toxoplasmose aguda. No entanto, outros sintomas pouco comuns na doença, como mialgia e manifestações respiratórias, também foram frequentes. Apesar dos vários sintomas manifestados, a gravidade da doença foi considerada aparentemente moderada, inclusive, não sendo registrados casos de mulheres gestantes com infecção aguda com consequente transmissão congênita, indivíduos com manifestações multiviscerais graves ou com lesões oculares, como observado nos surtos ocorridos na Guiana Francesa e em localidades da Região Amazônica brasileira10,16,17.
Apesar da ausência de casos graves durante o surto, a diversidade e a exuberância clínica apresentadas pelos pacientes, bem como a persistência de alguns desses sintomas por período superior a um mês, sugerem que cepas com genótipos atípicos do parasito estejam associadas ao surto, visto que estudos genéticos já evidenciaram a circulação dessas cepas na região24. Na presente investigação, não foi possível realizar o isolamento de cepas do parasito em espécimes biológicos humanos, porém, as amostras que apresentaram positividade pela Nested-PCR, serão posteriormente caracterizadas para determinação dos genótipos das cepas envolvidas.
Baseado no período médio de incubação da doença e nas datas do surgimento dos primeiros sintomas, estimou-se que o surto tenha iniciado na segunda quinzena do mês de abril de 2013, porém, a maioria das pessoas apresentaram sintomatologia no início do mês seguinte. Além disso, é possível inferir que a origem do surto ocorreu por uma fonte comum, visto que os indivíduos suscetíveis foram expostos em um determinado período a essa fonte que foi esgotada, pois não houve registro de casos novos. Tal situação assemelha-se à observada em outros surtos associados à infecção pelo T. gondii9,25,26.
Na análise de diferentes variáveis epidemiológicas que poderiam estar associadas à transmissão da toxoplasmose, nenhuma apresentou associação significativa, principalmente aquelas relacionadas com o consumo de água não tratada (fervida e filtrada) e outros alimentos de origem animal e vegetal, possibilidades clássicas na cadeia de transmissão e consideradas como fontes de infecção em outros surtos registrados9,10,17,26,27.
Apesar da maior concentração dos casos ter ocorrido na zona urbana, o surto foi caracterizado por apresentar casos dispersos em todo o Município. O cenário epidemiológico observado, a princípio, assemelhava-se ao observado no surto de Santa Isabel do Ivaí9; dessa forma, aventou-se a possibilidade da veiculação hídrica de oocistos esporulados de T. gondii como possível fonte de origem do surto. Apesar de não ter sido possível fazer associações epidemiológicas entre os casos confirmados no momento em que a investigação prévia foi realizada, as características dos sistemas de captação e distribuição de água potável mostraram que, nas localidades rurais, a água oferecida era captada de poços profundos e sem nenhuma interligação com o sistema da área urbana. Além disso, em ambas as áreas, os sistemas aparentemente não apresentavam falhas estruturais que os tornassem vulneráveis à contaminação com formas infectantes do parasito. Posteriormente, um estudo caso-controle, realizado por equipes do MS (EpiSUS), da Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará (SESPA) e de técnicos do Município, corroborou essa evidência e descartou a possibilidade do surto ter se originado a partir da veiculação hídrica de oocistos do parasito (dados não publicados)28.
Durante a investigação, foram levantadas suspeitas por parte da mídia e da população sobre o possível envolvimento da carne consumida no Município como fonte de origem do surto. Apesar de ser uma variável importante na cadeia de transmissão da toxoplasmose, essa possibilidade foi inicialmente descartada, pois, apesar de ser frequentemente consumida na região, em especial a bovina, em Ponta de Pedras, de 90 a 100% dos casos referiram não fazer consumo de qualquer tipo de carne crua ou mal cozida, forma clássica de transmissão da toxoplasmose pela via do carnivorismo2. Esse fato também foi confirmado no estudo caso-controle realizado posteriormente no Município (dados não publicados)28.
No Arquipélago do Marajó e na Região Amazônica, um dos alimentos mais frequentemente consumidos pela população é o açaí na forma de suco. Esse fato, somado à ampla dispersão dos casos e aos relatos prévios do possível envolvimento do açaí como fonte de outros surtos de toxoplasmose, o consumo desse alimento foi considerado como uma das possibilidades. Como já era esperado, quase 100% dos munícipes investigados, entre eles os casos confirmados e os indivíduos suscetíveis, relataram ter consumido esse alimento no período, ou seja, a princípio poderia ser uma possibilidade descartada. Contudo, análises por métodos de geoestatística demonstraram forte correlação entre a distribuição espacial dos casos e os estabelecimentos que concentravam a venda do produto durante o desencadeamento do surto, aqui denominados estabelecimento A e B na zona urbana e Z na zona rural do Município, fornecendo, assim, evidências que apontavam o consumo do açaí como provável fonte que originou o surto, fato corroborado posteriormente no estudo caso-controle realizado pelas outras instituições envolvidas na investigação (dados não publicados)28.
O Município de Ponta de Pedras é um dos principais produtores de açaí do Estado do Pará; porém, é importante ressaltar que o surto ocorreu no período em que a produção local de açaí é praticamente nula (entressafra)29,30. Nesse período, para garantir a demanda da população, os vendedores de açaí adquirem o fruto de outras localidades onde a safra está mantida. Tal fato sugere que o fruto que chegou ao Município foi contaminado com formas infectantes do parasito (oocistos) durante as etapas de produção que envolvem colheita, transporte e distribuição dos frutos, ou mesmo durante o processamento e consumo final do suco. Dessa forma, a hipótese sugerida é que esse alimento, por ter sido amplamente consumido por indivíduos suscetíveis de áreas urbana e rural, pode ter desencadeado o surto da doença. É importante atentar para o fato de que, caso tal situação seja verdadeira, existe um alto risco de dispersão de cepas de T. gondii entre diferentes localidades da Região Amazônica, o que pode levar à ocorrência de novos surtos e a formas mais graves da doença. Sendo assim, vale destacar que as boas práticas para o manuseio na colheita, transporte e processamento da polpa do açaí devem ser sempre recomendadas aos produtores pelos órgãos de fiscalização e vigilância sanitária da região.
Uma revisão recente acerca de surtos associados ao T. gondii, descritos no Brasil e em outras localidades do mundo, demonstrou que surtos originados pela veiculação hídrica de oocistos geralmente apresentam maior número de casos, como os ocorridos em Greater Victoria, no Canadá31 e em Santa Isabel do Ivaí, no Brasil9. Já em relação a surtos desencadeados pela via alimentar, seja pelo consumo de carne e/ou derivados contendo cistos teciduais ou por outros alimentos contaminados com oocistos esporulados, normalmente o número de casos é menor, estando limitado a grupos familiares, participantes de festas, empregados de empresas, entre outros10,11,25,32.
Nos surtos registrados em Rondônia17 e em Ponta de Pedras, onde a fonte alimentar que desencadeou o evento, no caso o consumo do açaí, que seria a maior suspeita, o padrão relacionado ao número elevado e à ampla dispersão de casos difere dos demais surtos de grande magnitude. Contudo, na situação específica de Ponta de Pedras, é importante ressaltar que não foi possível realizar experimentos que viabilizassem o isolamento ou detecção do parasito em amostras daquele alimento, devido ao intervalo de tempo entre o período do surto e o início da investigação, aproximadamente dois meses, que impossibilitou a obtenção de amostras durante a ocorrência do evento. A dificuldade para se determinar a fonte de surtos causados pelo T. gondii, devido à demora da notificação e do início da investigação, é uma realidade demonstrada em outros surtos de toxoplasmose investigados no Brasil24,32.
Com o esclarecimento da etiologia do surto, o tratamento específico foi disponibilizado para todos os casos, até então, identificados. Apesar de não terem sido registradas gestantes infectadas, atualmente o IEC, em colaboração com a Secretaria Municipal de Saúde de Ponta de Pedras, realiza o acompanhamento sorológico das mulheres gestantes cadastradas no Programa de Assistência Pré-Natal, incluindo o monitoramento das soronegativas. Além disso, os indivíduos que foram confirmados como casos do surto têm realizado avaliações oftalmológicas periódicas, a fim de evitar o comprometimento ocular associado à retinocoroidite ocasionada pela infecção por T. gondii, visto que ainda há a possibilidade de evolução para possíveis lesões oculares em período de até um ano após a infecção aguda33. Somando-se a isso, estudos na área continuam sendo realizados pelo LABTOXO IEC, a fim de melhor esclarecer a epidemiologia da toxoplasmose e de tentar o isolamento e caracterização genotípica das cepas circulantes na região.
CONCLUSÃO
As características clínicas e laboratoriais observadas nesta investigação confirmaram que o protozoário T. gondii foi o agente responsável pelo surto de doença aguda ocorrido no primeiro semestre de 2013 em Ponta de Pedras. As características epidemiológicas e as análises baseadas em dados geoestatísticos sugerem que a origem do surto estaria associada ao consumo de suco de açaí contaminado com oocistos do parasito durante a coleta, transporte ou processamento desse produto.