INTRODUÇÃO
Os rotavírus (RV) são os principais agentes virais causadores de gastroenterite (GE) aguda com desidratação grave em nível global. Estima-se que, em 2008, ocorreram 453.000 óbitos entre crianças menores de 5 anos de idade devido à diarreia causada por esse agente em todo o mundo1.
O mecanismo de transmissão mais frequente é pela via fecal/oral, diretamente de pessoa à pessoa, ou indiretamente através de fômites. Os sintomas associados à infecção por RV são principalmente diarreia e vômitos, resultantes da ação do vírus nos enterócitos maduros do ápice das vilosidades do intestino delgado, o que ocasiona a lise das células responsáveis pelo mecanismo de absorção e secreção intestinal, desencadeando-se o processo diarreico2.
Desde 6 de março de 2006, a vacina de origem humana monovalente, designada comercialmente Rotarix(r) (GlaxoSmithKline Biologicals), é utilizada no Programa Nacional de Imunizações do Brasil sob a denominação de vacina oral de rotavírus humano (VORH), sendo administrada a lactentes em duas doses, por via oral, aos 2 e aos 4 meses de idade3.
Em Belém, Estado do Pará, ao se compararem as hospitalizações por GE de qualquer etiologia entre crianças menores de 5 anos de idade, antes (1998-2005) e após (2007) a introdução da vacina no sistema público de saúde, observou-se redução de 31,3%; particularmente naquelas crianças menores de 1 ano de idade, a redução foi de 48,2%4. No Brasil, Costa et al5 observaram redução sustentável nos óbitos relacionados à GE por RV na faixa etária inferior a 1 ano e entre 1 e 5 anos de idade, depois da introdução da vacina contra RV em larga escala, fornecendo evidência adicional do benefício direto e indireto da vacinação.
Embora ainda prevaleça o conceito de que as rotaviroses constituem doenças puramente entéricas, diversos estudos demonstram a ocorrência de antigenemia/viremia nas infecções em animais e seres humanos, podendo ser responsáveis por manifestações clínicas extraintestinais, como otites, quadros respiratórios, hepatite transitória, intussuscepção e enterite necrotizante6,7,8,9,10,11.
O objetivo deste estudo foi avaliar a intensidade dos sintomas de GE aguda causada por RV associada à possível antigenemia entre crianças hospitalizadas em uma clínica infantil em Belém.
MATERIAIS E MÉTODOS
No período de 2012 a 2015, foram incluídos neste estudo pacientes nascidos após 6 de março de 2006 (data da introdução da vacina contra RV no calendário oficial de imunizações do Brasil) e com pelo menos 12 semanas de idade, hospitalizados devido à GE aguda em um hospital infantil de Belém.
Após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto Evandro Chagas (IEC), sob protocolo nº 0039/2011 - amostras de fezes e sangue foram obtidas até 48 h após a hospitalização.
Considerou-se como um caso de GE a ocorrência de diarreia (passagem de três ou mais evacuações de consistência mais amolecida que o normal dentro de 24 h). Foram excluídos da pesquisa pacientes com sintomas de diarreia crônica (mais de 14 dias de doença) e diarreia nosocomial, bem como aqueles que não coletassem amostras pareadas de fezes e soro ou cuja coleta desses espécimes ultrapassasse 48 h de hospitalização.
As análises laboratoriais foram realizadas na Seção de Virologia do IEC, adotando-se o método imunoenzimático (ELISA), com base no kit RIDASCREEN(r) (R-Biopharm AG, Darmstadt, Alemanha), para a pesquisa do antígeno de RV nas fezes e no soro, com a utilização de anticorpos monoclonais para o produto do sexto genoma viral, qual seja, a proteína VP6, seguindo-se as recomendações do fabricante, incluindo-se determinação das densidades óticas (DOs) com espectrofotômetro utilizando filtro de 450 nm.
Com relação às DOs das amostras do soro, observou-se o preconizado por Ray et al6, Blutt et al8, Chitambar et al9 e Patel et al11, adotando cerca de 20 amostras de fezes e de sangue (soro/plasma) com resultado negativo para RV a fim de estabelecer a validação local do método. Foram definidas como positivas as amostras de sangue cujas DOs mostrassem 2-3 desvios-padrão acima da média da DO obtida nas amostras negativas de sangue.
A pesquisa de antígenos de RV foi realizada nas fezes e no soro dos pacientes. Foram obtidos dados demográficos, sintomas da doença e dados vacinais por meio de entrevista com os pais e/ou consulta ao prontuário médico local.
Os dados coletados foram comparados entre os grupos com e sem antigenemia. A análise dos dados clínicos foi realizada adotando-se o escore universal de Ruuska e Vesikari12, sendo a intensidade classificada em moderada, grave e muito grave, ao serem atingidas as pontuações 1-10, ≥ 11 e ≥ 15, respectivamente.
Para a realização das análises estatísticas, foi utilizado o programa BioEstat v5.0. A avaliação das proporções, envolvendo os parâmetros citados e a presença de antígeno viral nas fezes e/ou soro, compreendeu análise "bivariada", aplicando-se os testes do Qui-quadrado (χ2), com intervalo de confiança correspondendo a 95%. O nível de significância adotado foi expresso por p ≤ 0,05 (α = 5%).
RESULTADOS
Foram incluídos no estudo 566 pacientes hospitalizados com GE em um hospital infantil de Belém, dos quais foram coletadas 452 amostras pareadas de fezes e soro. A pesquisa de RV nas fezes (ELISA) revelou-se positiva em 24% (109/452) das amostras testadas (Figura 1).
A maioria (58%) das crianças cuja amostra de fezes foi positiva para a pesquisa de RV apresentava idade inferior a 2 anos (63/109). O estado vacinal quanto à imunização contra RV estava disponível em 96 pacientes; desses, 84% (81/96) haviam recebido pelo menos uma dose da vacina e 70% receberam o esquema de vacinação completo (duas doses).
A antigenemia foi detectada em 37,5% (41/109) dos pacientes cujas amostras de fezes foram positivas para RV. A intensidade dos sintomas apresentados pelos pacientes, de acordo com o escore de Ruuska e Vesikari12, foi classificada como muito grave em 70% dos que apresentaram antigenemia e em 55% daqueles sem antígenos de RV circulantes no soro; entretanto, não houve diferença estatisticamente significativa entre ambos os grupos (Tabela 1).
*Análise de variância, teste Qui-quadrado (χ2); † Escore 20 pontos Ruuska e Vesikari12, 1990; ‡ Não disponível para cinco pacientes; § Não disponível para sete pacientes; || Não disponível para um paciente.
Ao se analisarem os sintomas de GE isoladamente, observou-se diferença quanto ao número de episódios e duração dos vômitos, maiores nos pacientes com antigenemia (p = 0,015 e p = 0,002, respectivamente) comparativamente àqueles sem antigenemia e com positividade para RV nas fezes. Não foi observada diferença entre os grupos quanto ao número de episódios e duração da diarreia (Tabela 1).
Em ambos os grupos analisados, 70% dos pacientes apresentaram febre (≥ 37,5° C), porém não foi detectada relação entre antigenemia e a presença de febre.
A duração média da hospitalização foi de cinco dias, tanto no grupo com antigenemia quanto naquele sem antigenemia, e a maioria dos pacientes apresentou contagem de leucócitos/mm3 até 10.000 em ambos os grupos (70% e 80%, respectivamente).
Registrou-se que 80% dos participantes da pesquisa não haviam sido hospitalizados anteriormente devido à GE, sendo o episódio atual o primeiro de intensidade grave. O tempo de doença decorrido, entre o início dos sintomas da GE e a coleta de soro, foi em média de 3,4 dias nos pacientes com antigenemia e 2,95 dias naqueles sem antigenemia, não havendo diferença significativa entre os grupos.
DISCUSSÃO
No atual contexto, duas vacinas orais contra RV, Rotarix(r) e RotaTeq(r), são comercializadas em diversos países do mundo e, dada a possibilidade de que a antigenemia esteja relacionada à maior gravidade clínica da doença diarreica e à presença de manifestações extraintestinais, faz-se necessário compreender melhor o achado de antigenemia em populações vacinadas.
Desde 2006, a vacina oral contra RV humano (VORH) está disponível no calendário básico de imunização do Brasil, alcançando 83% de cobertura vacinal na Região Norte (2015)13. No presente estudo, 84% das crianças receberam pelo menos uma dose da vacina contra RV, 70% receberam duas doses, e não se observou diferença estatisticamente significativa quanto ao estado vacinal entre crianças com e sem antigenemia.
Embora a maioria dos estudos6,7,8,9,11,14,15,16,17,18,19 demonstrasse índices de antigenemia mais elevados (entre 50% e 90% dos casos) no soro de crianças com GE aguda, neste estudo a detecção de antígenos de RV no soro ocorreu em 37,5% dos pacientes que também o apresentavam nas fezes, corroborando a hipóstese da disseminação dos RV para a corrente sanguínea em crianças com diarreia aguda.
Sabendo-se que a infecção primária causada por RV costuma ser mais grave e que sucessivas infecções promovem imunidade protetora, conferindo caráter mais brando às infecções subsequentes20, seria razoável postular que a grande proporção de crianças vacinadas incluídas nesta análise possa ter influenciado na frequência com que a antigenemia foi detectada.
A vacinação realizada em fases iniciais da vida (2 a 4 meses de idade) seria responsável pela exposição prévia e precoce aos RV, o que poderia ser um fator protetor contra a antigenemia no presente estudo, uma vez que a maioria das crianças avaliadas não possuía histórico de GE anterior. Tal hipótese é sustentada por achados que demonstraram uma correlação negativa entre antigenemia e títulos de anticorpos específicos de fase aguda contra RV no sangue8,14,21.
Entre outros possíveis determinantes de proteção, acredita-se que os anticorpos presentes no soro, de origem materna ou produzidos a partir de uma exposição anterior, atuariam eventualmente tolhendo uma disseminação hematogênica viral e limitando a infecção ao intestino6. Questiona-se, entretanto, se a ligação de anticorpos a antígenos dos RV no sangue seria realmente capaz de prevenir a antigenemia ou apenas influenciaria na habilidade para se detectar o antígeno por ELISA8.
Estudos publicados6,16,19 relataram maior ocorrência de antigenemia entre crianças menores de 2 anos de idade, corroborando os achados desta pesquisa, cuja maior frequência de antigenemia foi proporcionalmente maior entre os lactentes.
Estudos adicionais em populações vacinadas são necessários e talvez possibilitem uma melhor compreensão do papel exercido por anticorpos séricos frente à antigenemia causada por RV.
Os resultados obtidos neste estudo não detectaram associação entre antigenemia causada por RV e a gravidade clínica de acordo com o escore de Ruuska e Vesikari12; entretanto, outros estudos16,19 correlacionaram a antigenemia à doença mais grave ao observarem escores de gravidade12 significativamente mais elevados entre crianças com antígenos de RV no sangue, porém não vacinadas contra esse agente viral.
Por ocasião deste estudo, não se demonstrou qualquer associação estatisticamente significativa entre antigenemia e a maior ocorrência de febre, havendo compatibilidade com os resultados de outros estudos15,22. Entretanto, a significativa associação entre a antigenemia e o maior número de episódios e a duração dos vômitos, por si só, indica maior gravidade clínica, visto que a presença de vômitos repetidos dificulta a terapia de reidratação oral e a alimentação continuada e encontra-se relacionada à maior ocorrência de distúrbios eletrolíticos (particularmente a hipernatremia), levando à maior necessidade de reidratação endovenosa, tratamento intensivo e hospitalização prolongada23,24,25,26.
No tocante à contagem de leucócitos, os resultados indicam que a antigenemia não se correlaciona com eventual incremento da leucocitose (> 10.000/mm³), fato também observado por Yu et al22.
Nenhuma manifestação extraintestinal foi observada, apesar de todas as crianças incluídas apresentarem GE classificada como grave ou muito grave, sugerindo que o possível comprometimento de outros órgãos e sistemas não estaria acentuado na presença de antigenemia associada à infecção causada por RV9,16,22.
A propósito, nesta análise não houve diferença significativa em relação ao tempo de hospitalização, quando comparadas crianças com e sem antigenemia, fato que se contrapõe aos achados de Yu et al22, que demonstraram tempo de hospitalização significativamente maior entre crianças com antigenemia. Acrescente-se que todas as crianças avaliadas apresentavam melhora dos sinais e sintomas por ocasião da alta hospitalar.
A presente investigação é pioneira no País, ao avaliar a antigenemia causada por RV no cenário após a introdução da VORH no calendário básico de imunizações; entretanto, estudos, abrangendo análises moleculares nas amostras obtidas, são necessários para um melhor entendimento acerca da patogenia dos RV, especialmente em crianças vacinadas. Nesse contexto, destaque-se a necessidade de avaliar se os genótipos de RV concomitantemente detectados em espécimes fecais e nos soros reservam especificidades equivalentes ou distintas.