CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os olhares sobre os estudos e a produção científica disponível que contextualizam a relação do homem com sua atividade de trabalho e as repercussões sobre sua condição de saúde permitem, com facilidade, uma ampla análise multidisciplinar aplicada ao processo produtivo em saúde1,2. Apesar da pluralidade de olhares que convergem sobre a relação homem, saúde e trabalho, a análise sobre o risco existente no processo de trabalho em saúde precisa, ainda hoje, ser mais bem compreendida e evidenciada quando se tem, como objeto central de estudo, o cenário da pesquisa científica em saúde na Amazônia.
Considera-se, portanto, que estudos que promovam a compreensão sobre a especificidade das tarefas realizadas nas pesquisas de campo e a diversidade dos elementos que emergem desse processo de trabalho sejam importantes para sustentar questionamentos e argumentações sobre a identificação, análise e controle dos riscos existentes.
Segundo dados do Serviço Florestal Brasileiro do Ministério do Meio Ambiente, referentes aos anos de 2005 a 2010, a Amazônia é um bioma que ocupa cerca de 30% de todas as florestas tropicais existentes no mundo, de complexa biodiversidade, com 53 tipos de grandes ecossistemas, mais de 600 tipos diferentes de habitats terrestres e aquáticos, com uma cobertura florestal de 354.626.516 ha, representando 69,6% da cobertura florestal no Brasil. Essa área de floresta tropical amazônica abrange nove países da América do Sul, sendo que mais de 50% de toda essa área se encontra em território nacional3,4.
Para o pesquisador alemão Gerd Kohlhepp5, em face das características de seus ecossistemas, como também de sua ocupação e exploração econômica, as pesquisas científicas na Amazônia, em sua maior diversidade, devem considerar, como tarefa inicial, tanto as condições naturais subjacentes desse meio como sua estrutura funcional. Não é possível, por esse aspecto, simplesmente aplicar protocolos de biossegurança em situações de campo onde as condições ambientais e o próprio processo de trabalho se definem de forma diversa daquela que realmente sustenta a racionalidade do protocolo. Um olhar próprio, que considere todas as condições subjacentes do ambiente do trabalho de campo na Amazônia, deve ser lançado para o melhor planejamento das expedições de pesquisa, almejando, com isso, uma adequada identificação, avaliação e aplicação das medidas de controle e mitigação do risco.
É nesse contexto de adversidades e riscos, de falta de parametrizações e da própria razoabilidade técnica e costumeira do trabalho laboratorial, que as pesquisas de campo são desenvolvidas por instituições de ensino, pesquisa e de saúde da região ou de outras partes do Brasil e do mundo. Além disso, os obstáculos com os quais os primeiros desbravadores da ciência e da saúde pública na Amazônia brasileira se depararam no passado centenário ecoam ainda presentes nos dias de hoje. Os pesquisadores, técnicos e colaboradores, em recentes missões de pesquisa, da mesma forma, ingressam em florestas, rios, comunidades longínquas, muitas vezes isoladas, sem comunicação ou recursos de emergência. E, por essa análise, enfrentando ainda os mesmos desafios do passado6,7.
Com isso, a problemática aqui apresentada, se traduz no objetivo de realizar uma revisão narrativa sobre as características da pesquisa de campo em saúde na Amazônia, considerando a identificação do processo de trabalho desenvolvido, os principais riscos existentes e as medidas de controle aplicáveis. Essa revisão foi realizada por meio de levantamento de publicações históricas sobre a pesquisa de agentes infecciosos na Amazônia, a partir do início do século XX, e de publicações disponíveis em bases de dados eletrônicas que refletem, em menor ou maior evidência, o risco nesse processo de trabalho específico.
A importância em debater esse tema se dá pelas escassas referências sobre o risco no trabalho de campo, bem como ausências de políticas de saúde do trabalhador eficazes o bastante para responder às demandas vertentes ao processo de trabalho das pesquisas de campo em saúde na Amazônia.
A REFERÊNCIA HISTÓRICA E O RISCO NO TRABALHO DE CAMPO
As primeiras referências, bem documentadas, sobre as expedições científicas em saúde na Amazônia reportam-se para duas expedições científicas lideradas por Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, entre os anos de 1910 e 1913, que levaram a produção do importante e histórico "Relatorio sobre as condições medico-sanitarias do Valle do Amazonas". É possível, já nesses relatos, perceber as adversidades desse ecossistema e também um pouco sobre a forma rudimentar de vida do povo da Amazônia, seja às margens dos rios ou mesmo imerso nas florestas6,7,8,9,10.
No entanto, registra-se, no início do século XX, na Cidade de Belém, Estado do Pará, a presença de pesquisadores da Liverpool School of Tropical Disease, que desembarcaram na Cidade em agosto de 1900. Basicamente, o intuito da expedição científica em solo amazônico foi de consolidar estudos sobre a recente confirmação do papel dos mosquitos na transmissão da febre amarela. Nesse mesmo período, o naturalista e zoólogo suíço Emílio Goeldi (1859-1917), durante sua estadia na mesma Cidade, contribuiu com estudos entomológicos nessa área. Sua obra "Os mosquitos no Pará", publicada em 1905, descreveu as principais espécies de mosquitos da Amazônia. Por outro lado, os pesquisadores ingleses tiveram que abandonar a expedição em menos de seis meses, diante da morte do chefe da expedição, Walter Myers, por febre amarela, e também pelo adoecimento de outros membros da equipe11.
Já o pioneirismo da pesquisa em saúde na Amazônia oriental é marcado pela criação do Instituto de Pathologia Experimental do Norte (Ipen) em Belém, em 10 de novembro de 1936, pela Lei Estadual N° 59, assim como pelas missões científicas do Instituto Oswaldo Cruz e dos trabalhos de saneamento da Amazônia, iniciados na região de Abaetetuba, Estado do Pará, liderados pelo jovem pesquisador Evandro Chagas, filho de Carlos Chagas. O ofício da pesquisa de agravos, até então pouco estudados (como a leishmaniose visceral), bem como as investigações sobre outras endemias locais (como malária, leishmaniose tegumentar, bouba, filariose e outras parasitoses), elencaram os estudos nos primeiros anos de atividade da equipe de pesquisa do Ipen entre os anos de 1936 e 19408,12.
O pesquisador dr. Leônidas Deane, membro da equipe de Evandro Chagas, em depoimentos à Revista de Manguinhos (Fundação Oswaldo Cruz), realizados entre 1987 e 1988, retratou o curso da primeira viagem de expedição do Ipen, em dezembro de 1936, à Abaetetuba, então denominada apenas como Abaeté13. Por sua fala, pode-se reconhecer um pouco do processo de trabalho de campo e os riscos que aquela equipe enfrentou. Havia a intenção e necessidade de chegar às comunidades isoladas e, para isso, os obstáculos se caracterizavam por diversos deslocamentos terrestres por meio de picadas* na floresta, grande quantidade de equipamentos a serem transportados sem auxílio de veículos, acampamentos precários, banhos em igarapés† e laboratório de campo improvisado em instalações de lona. Além dessas adversidades, a exposição ao risco de adoecimento pelos agentes infecciosos, objetos de pesquisa, e o risco de acidentes por ataque de animais selvagens e peçonhentos constituíam um cenário de risco ainda preservado nos dias de hoje. Nessa entrevista, dr. Deane comentou sobre o primeiro dia de acampamento na localidade de Cachoeira do Rio Abaeté:
[...] Nessa primeira noite nós não dormimos, eu e meu irmão‡; de vez em quando chamávamos, perguntando o que o outro estava vendo, sentindo ou ouvindo, etc. Na manhã seguinte, quando meu irmão foi calçar sua bota, tinha uma cobra dentro dela. Começou assim.
Nesses primeiros anos de atividade de pesquisa na Amazônia, na primeira metade do século XX, as investigações laboratoriais e os estudos entomológicos eram nitidamente voltados para a elucidação da transmissão de doenças que afetavam as populações rurais, ribeirinhas e de comunidades da floresta da região. Para isso, as equipes de pesquisadores adentravam em regiões mais afastadas dos centros urbanos. Nas pesquisas lideradas por Evandro Chagas, o uso de aviões era comum para dinamizar o transporte da metrópole, Belém, aos polos de pesquisa no interior, e as condições dessas aeronaves eram questionáveis. Foi, inclusive, num acidente aéreo, na Cidade do Rio de Janeiro, que Evandro Chagas veio a falecer aos 35 anos de idade; e, a partir de sua morte, o Ipen viria a ser renomeado para Instituto Evandro Chagas (IEC)8.
Não há de fato registros históricos, mais claros e específicos, sobre acidentes ou mortes relacionadas às pesquisas de campo na Amazônia. Por outro lado, entende-se que a imersão de pesquisadores em regiões endêmicas tem se caracterizado como uma condição de vulnerabilidade diante do risco de se contrair doenças infecciosas e transmissíveis. A exposição ao risco e a suscetibilidade do indivíduo, quando adentra na floresta14, é variada, podendo ser reconhecida em menor ou maior grau, dependendo do contexto de uma expedição e da área explorada. No caso da empreitada da construção da ferrovia Madeira-Mamoré, no Estado de Rondônia, em seus quase 40 anos de obras, estimou-se 6.028 mortes de um total de 21.817 trabalhadores contratados, grande parte dessas provocada por malária e febre amarela silvestre10,14,15. E, levando-se em consideração que os trabalhos científicos nas florestas são caracterizados também pela captura e manejo de animais silvestres, como mamíferos, aves e dípteros hematófagos, evidencia-se uma condição natural de risco biológico16. Para os pesquisadores Stéphanie Richard e Anne Oppliger17, do Institute for Work and Health da University of Lausanne, na Suíça, a maioria dos agentes biológicos responsáveis por doenças zoonóticas pode ser considerada como um agente de risco ocupacional, desde que exista a relação com o ambiente de trabalho.
Nas referências encontradas, a exposição ao agente biológico no trabalho de campo acontecia na manipulação de animais vivos, na coleta de material biológico de carcaças encontradas e no processamento de vísceras e sangue desses animais. Muitos inquéritos sorológicos e o isolamento de agentes biológicos foram realizados também a partir de amostras provenientes das populações ribeirinhas e da floresta amazônica, e confirmaram a veiculação de uma variedade de agentes virais, protozoários e helmintos com capacidade patogênica ao homem12,16,18. Os relatórios técnicos de pesquisa da época e a própria tecnologia disponível demonstravam que, além do risco biológico, as equipes de campo enfrentavam riscos das mais diversas naturezas6,7,13,15,19,20.
Com o Plano de Saneamento da Amazônia (1941-1942) e a criação do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), durante o governo do Presidente Getúlio Vargas, no ano de 1942, as expedições científicas na Amazônia foram novamente reforçadas. Em 1954, a Fundação Rockfeller (EUA), em parceria com o governo brasileiro, iniciou, com maior robustez, inquéritos sorológicos e levantamentos na área da virologia na Região Aamazônica. A execução dessas pesquisas estava a cargo do IEC, que, na época, era vinculado ao SESP16,21.
O Instituto Butantã, uma importante instituição de pesquisa na área biomédica e na produção de imunobiológicos, por todo o século XX, realizou expedições de campo na Região Amazônica com o objetivo de levantar e catalogar espécies de animais peçonhentos, bem como aprimorar o conhecimento sobre o ofidismo no Brasil. Algumas dessas expedições ocorreram de forma integrada a programas governamentais ou em parcerias com outras instituições de pesquisa, a exemplo da participação no Plano de Saneamento da Amazônia e ações em conjunto com o Instituto Oswaldo Cruz, respectivamente22.
A partir de 1970, outras instituições§ de pesquisa em saúde na Amazônia, além do IEC23,24, passaram a compor o cenário da pesquisa de campo. A captura de animais vertebrados e invertebrados em áreas de florestas e comunidades ribeirinhas e rurais continuou sendo referenciada como ponto fundamental para a elucidação do ciclo das doenças que afetam a população amazônida25 e de outras regiões do Brasil. Na verdade, as técnicas de desbravamento na floresta, utilizadas pelas equipes de pesquisa de campo na primeira metade do século XX, continuaram pouco referenciadas no segundo cinquentenário desse período. Muito se perdeu na história não contada, e outras evidências são apenas percebidas em palavras não ditas, vistas como uma "silhueta de verdade" por intermédio de um registro fotográfico de uma antiga publicação, ou ainda ouvida nos contos dos mais antigos pesquisadores ainda vivos10,16,21,26. Por esse aspecto, a preservação da memória das pesquisas de campo em saúde na Amazônia também é a preservação da memória dos riscos e dos desafios enfrentados pelas equipes nesse processo de trabalho.
O PROCESSO DE TRABALHO DE CAMPO NO ECOSSISTEMA AMAZÔNICO
Pouco se tem evidenciado sobre os passos no processo de trabalho de campo em pesquisa em saúde na Amazônia que possibilite verificar, com clareza e fundamentação, as questões que afetam diretamente a segurança no trabalho e a proteção à saúde do trabalhador.
Embora se tenha observado um avanço na política de saúde do trabalhador, nos últimos anos no Brasil27,28,29, bem como um incremento técnico e normativo regulamentador30 nessa área, podem ser encontrados, no campo das pesquisas científicas em saúde pública da região amazônica, determinantes geográficos, sociais e econômicos3,5 sobre o processo de trabalho que têm afetado diretamente a segurança e a saúde do trabalhador, a exemplo de pesquisas desenvolvidas pelo IEC, da Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde.
As transformações históricas e as novas formas de organização do trabalho, além da própria reestruturação produtiva do trabalho em saúde nos últimos anos, ainda não possibilitaram um real diagnóstico sobre o contexto de risco dos trabalhadores de saúde. As informações e os dados sobre acidentes e adoecimentos são incompletos e, muitas vezes, inconsistentes, pela falta de um sistema de vigilância em saúde do trabalhador capaz de integrar as informações de trabalhadores com regimes contratuais diferentes. Além disso, os dados disponíveis sobre acidentes e adoecimento de profissionais da saúde acabam sendo mais relacionados aos estabelecimentos de assistência em saúde do que ao ambiente de pesquisa em laboratório e, menos ainda, ao trabalho de campo2,27,28,29,31,32.
Assim como um sistema de informação e vigilância em saúde integrado se faz necessário, o reconhecimento dos diversos processos de trabalho em saúde é fundamental para que as ações de prevenção e proteção à saúde do trabalhador sejam adequadamente adotadas. Atualmente, descreve-se o processo de trabalho das pesquisas de campo em saúde na Amazônia englobando as áreas de influência antrópica e/ou áreas com menor influência das ações do homem. Nesse ambiente de trabalho, as atividades desenvolvidas pelas equipes de campo estão, geralmente, inseridas em pesquisas de desenhos variados25,33,34,35,36, como: estudos ecoepidemiológicos; isolamento e identificação de agentes biológicos; inquéritos sorológicos em humanos e animais; diagnóstico biológico envolvendo levantamento faunístico; diagnósticos ambientais; e outros. Nesse processo de trabalho específico, algumas atividades são bem descritas e presentes em muitas pesquisas, e incluem: captura de artrópodes em solo; captura de artrópodes em copa de árvores; captura de artrópodes por isca luminosa (CDC); captura de artrópodes (triatomíneos) em copa de palmeiras; captura de artrópodes peridomiciliar e domiciliar em comunidades rurais; captura de mamíferos terrestres; captura de aves; captura de morcegos; captura de peixes; coleta de amostras de água; coleta de amostras de solo; e coleta de amostra de material humano25,34,37.
A EXPOSIÇÃO AO AGENTE BIOLÓGICO
Os inquéritos e investigações ecoepidemiológicas de doenças infecciosas de origem viral, parasitológica, bacteriana e até mesmo fúngica55, quando realizados em áreas de floresta amazônica, comunidades rurais e ribeirinhas, podem ser considerados processos de trabalho com exposição da equipe ao agente biológico pesquisado, seja propriamente por sua inserção em área endêmica38, seja pela elevação do risco de exposição devido à atividade relacionada à captura e manejo de animais silvestres que servem de reservatório ou constituem vetores de transmissão para determinados agentes.
Para o pesquisador e diretor do IEC, dr. Pedro Vasconcelos33,38, o território amazônico possui condições favoráveis à manutenção dos arbovírus na natureza por reunir, nesse bioma, uma quantidade variada de espécies de dípteros hematófagos (mosquitos, flebotomíneos, maruins), assim como animais silvestres, que servem de reservatório para aproximadamente 200 diferentes espécies de arbovírus e, ainda, a presença de pessoas em contato direto com os focos enzoóticos. Esse último grupo inclui tanto os povos da floresta, as comunidades rurais, ribeirinhas ou periurbanas, como também todos aqueles indivíduos em trânsito pelas áreas endêmicas, constituindo-se, portanto, nos mais expostos e suscetíveis à infecção por esses agentes38,39.
As pesquisas de arboviroses silvestres, a exemplo da febre amarela, expõem a equipe de pesquisadores invariavelmente a esse ambiente de risco, seja em áreas de floresta, em periurbana ou ainda nas comunidades rurais e ribeirinhas. Essas equipes podem permanecer períodos de 20 a 30 dias em áreas afetadas. No Brasil, em 1996, por exemplo, dos 15 casos diagnosticados de febre amarela silvestre, 14 ocorreram no Estado do Amazonas, em sua maioria, acometendo a população rural que possuía contato íntimo com a floresta, nos quais a letalidade foi de 86,7% (13/15)37.
Outros arbovírus, como Oropouche, Mucambo, Ilheus, Caraparu e Mayaro foram também evidenciados em pesquisas de campo na Amazônia e podem, em maior ou menor grau, determinar o adoecimento. A presença de um vírus selvagem, e sua capacidade adaptativa de infectar outros hospedeiros, é algo que também deve ser considerado para agentes ainda pouco estudados38,39,41,42,43.
Dessa forma, a presença da equipe de campo em áreas endêmicas para doenças infecciosas e a própria natureza das atividades desenvolvidas caracterizam a proximidade íntima desses trabalhadores com o risco biológico. Ainda no exemplo da febre amarela silvestre, a investigação relacionada à mortandade de macacos obriga a equipe a entrar em áreas de floresta para a captura de artrópodes vetores da doença, levantar e coletar material de carcaças de macacos e também coletar material humano de moradores da área para inquérito sorológico e/ou isolamento viral37. Esse processo de trabalho ocorre também no monitoramento de outras epizootias e nas pesquisas de agentes infecciosos na Amazônia.
A técnica utilizada para a captura de vetores da febre amarela, como o Haemagogus janthinomys, principal responsável pela transmissão da doença na Amazônia brasileira, se dá pela atração humana direta (isca humana), situação na qual os membros da equipe de campo se inserem na área endêmica, expondo-se para atrair as fêmeas de dípteros hematófagos44.
A própria nomenclatura da técnica de atração dos artrópodes hematófagos, intitulada "isca humana"45, pode ser questionada do ponto de vista ético e da própria segurança no trabalho. Apesar desse termo vir sendo substituído por outras nomenclaturas, como "captura em solo" ou "captura em copa", os cuidados relacionados à técnica não foram alterados, ou seja, a atração continua sendo humana, ocorrendo a partir do calor (temperatura corporal) e do dióxido de carbono (CO2) eliminado pelo homem. Dessa forma, ao se aproximar da "isca", os vetores são capturados com o auxílio de um puçá e, em seguida, sugados pelo capturador até um reservatório. Capturadores à base de sucção são utilizados para se obter espécimes de artrópodes em solo ou copa de árvores, assim como em áreas peridomiciliar e domiciliar de comunidades rurais e ribeirinhas da Amazônia44.
Outra técnica utilizada na captura de artrópodes é a armadilha luminosa (CDC), dotada de um sistema de exaustão que aspira os dípteros atraídos pela luz para um reservatório. Essa técnica, apesar de não ser muito seletiva, é bastante eficaz e seu posicionamento se dá a 0,5 m, 1 m, 5 m, 10 m, 20 m ou 30 m de altura do solo, permanecendo ativa por 12 h, das 18 h às 6 h do dia seguinte. É utilizada na captura de flebotomíneos transmissores da leishmaniose tegumentar americana (LTA) e da leishmaniose visceral americana (LVA), obrigando as equipes a iniciarem suas atividades nas matas em horário crepuscular, antes das 6 h e a partir das 17 h25,44,46.
O risco da equipe de campo contrair leishmaniose na instalação e monitoramento das armadilhas, ou ainda na coleta de material de humanos que vivem em áreas endêmicas de vetores desse agravo, é evidente47. Guerra et al48 descreveram 48 casos de LTA em 98 militares que participaram de um treinamento em selva, no período de 16 a 23 de novembro de 1994, nas proximidades de Manaus, no Estado do Amazonas.
Um estudo realizado por Garcez et al49 em áreas rurais de Santa Maria e em áreas periurbanas de Capiranga, ambas em Juruti, um município minerário do Estado do Pará, descreve, por meio da análise de espécimes coletadas de cães domésticos e do levantamento entomológico em ambas localidades, fatores de risco para LVA humana a partir do reservatório canino e do vetor flebotomíneo ali existentes.
A doença de Chagas, na Região Amazônica, expressa mais importância na sua forma aguda50,51 relacionada com a transmissão oral do que na forma clássica com a transmissão percutânea e evolução crônica do quadro. E, para compreender melhor a ecologia e a circulação do Trypanosoma cruzi nos triatomíneos da Região, as equipes de campo desenvolvem técnicas específicas de captura diante do habitat dos reservatórios e vetores desse agente.
A infestação de triatomíneos em babaçus (Orbignya speciosa (Mart.) Barb. Rodr.), uma palmeira comum na Região Amazônica, chegou a 85%, com positividade de 23,7% para T. cruzi (n = 652), segundo estudo realizado por Massaro et al34 em Monte Negro, no Estado de Rondônia. Embora não se tenha evidência da contaminação de profissionais, em face à exposição na captura dos triatomíneos, foram registradas infecções por T. cruzi em trabalhadores de laboratório52, o que indica o risco no manuseio de espécimes, amostras e nos procedimentos diagnósticos.
A circulação de agentes infecciosos na população amazônida é uma evidência de suscetibilidade individual para o adoecimento no trabalho de campo que pode ser verificada em diversas referências. Um estudo epidemiológico de Sousa et al53 demonstrou que, no Brasil, foram notificados 5.074.292 casos de malária, entre o período de 2000 a 2011, sendo que, desses, 99,7% ocorreram em território amazônico. Em outro estudo, um inquérito sorológico realizado em 473 habitantes de Acrelândia, um município rural do Estado do Acre, foi possível identificar alta suscetibilidade para malária, com 72,2% dos indivíduos relatando doença prévia; 3,6% apresentavam doença ativa e 42,6% apresentavam ainda anticorpos para Alphavirus, Orthobunyavirus e/ou Flavivirus54.
O contato e manejo de animais domésticos e silvestres determinam um importante fator de risco para várias zoonoses. Cruz et al39, em inquérito sorológico por inibição da hemaglutinação com 85 amostras de animais silvestres (aves, roedores e marsupiais), encontraram uma positividade de 8,2% (7/85) para os flavivírus Cacipacore, Saint Louis, febre amarela, Ilheus e Rocio.
A circulação de uma grande diversidade de espécies de carrapatos, nos Estados de Rondônia, no norte do Mato Grosso e no Pará, sugere também o risco de exposição a infecções por Rickettsia nas equipes de trabalhos de campo que capturam e manipulam animais silvestres20,56.
As evidências de circulação de arbovírus de importância médica, entre animais domésticos e de produção rural, como cavalos e búfalos, repercutem tanto para a suscetibilidade da população da região, como também para os pesquisadores que coletam e manipulam essas amostras36,40,57.
Outro desdobramento sobre a suscetibilidade individual ocorre no monitoramento da circulação do vírus da raiva, no qual se observa tanto o risco de exposição ao agente biológico em si, como também a exposição a outros riscos relacionados ao próprio trabalho de campo noturno para captura de morcegos. Existem, na Amazônia brasileira, 164 espécies diferentes de quirópteros, muitos deles com importância na transmissão desse vírus. E, embora a raiva seja uma doença imunoprevenível e com esquema profilático conhecido, a exposição ao agente pode representar maior importância para os indivíduos membros das equipes de campo que não apresentem uma resposta sorológica efetiva à vacina antirrábica (≥ 0,5 UI/mL)58,59.
A leptospirose é outra antropozoonose também endêmica na Região Amazônica, causada por uma bactéria do tipo espiroqueta do gênero Leptospira que tem como reservatório diversas espécies de roedores. Comunidades ribeirinhas, moradores de áreas rurais e periurbanas tornam-se expostos à Leptospira devido a condições ambientais desfavoráveis, como os altos índices pluviométricos da região, aliado à falta de condições de saneamento e baixo nível socioeconômico. Do mesmo modo, o contato da equipe de campo com áreas alagadas, sem infraestrutura sanitária e com ocorrência de casos da doença, remete à necessidade de se tomar cuidados redobrados com a presença de ferimentos que possam servir de porta de entrada para a infecção60,61.
Apesar da Região Amazônica ser considerada uma região pouco vulnerável à circulação de hantavírus62, um levantamento ecoepidemiológico realizado por Nunes et al63, no Município de Capixaba, Estado do Acre, identificou a circulação de uma espécie de hantavírus patogênica ao homem em roedores capturados. O risco elevado da exposição a esse vírus é motivado pela aerossolização a partir da saliva ou excretas de roedores infectados, ou mesmo pelo contato direto com esses e outros fluídos orgânicos provenientes do animal. Deve-se, portanto, alertar as equipes de campo quanto ao risco de infecção ocupacional, adoecimento e do prognóstico de gravidade associada à hemorragia pulmonar e à insuficiência renal, que podem, inclusive, levar a óbito o infectado64.
Dessa forma, verifica-se que a circulação de agentes patogênicos na Amazônia não se restringe a artrópodes hematófagos. Os mamíferos são também reservatórios e vetores de diversas doenças e, portanto, considerados como uma fonte potencial de risco ocupacional para pesquisadores e assistentes técnicos, que por ofício se submetem ao seu habitat.
Por outro lado, a exposição ao agente biológico, no trabalho de campo, não tem relação apenas com o ciclo zoonótico de um determinado agente infeccioso. Nesse contexto, a equipe está suscetível também a contaminar-se por meio do consumo de alimentos mal conservados, devido à falta de estrutura, ou pelo consumo de água não tratada65. O monitoramento de gastroenterites bacterianas realizado pelo IEC já identificou surtos de diarreia em comunidades ribeirinhas em Estados da Região Norte37. Em muitos casos, a fonte de infecção tem relação com o consumo de água contaminada e, se uma equipe não estiver preparada para poder tratar a água antes de ser consumida, ou ainda não dispor de uma fonte de água segura, é provável que, quando inseridos no contexto de risco, a suscetibilidade à infecção seja a mesma daquela população exposta e investigada. Além da coleta de material humano para cultura, seja por swab retal, ou fezes in natura, é prevista, em determinados casos, a coleta de água para pesquisa e isolamento microbiano. Em todas essas situações, o risco de contaminação é real.
Outro apontamento interessante, em relação às infecções ocupacionais com exposição a agentes biológicos no trabalho de campo, é que o risco de contaminação ocorre por vias não naturais do ciclo do agente, assim como no próprio ambiente de laboratório66. Com isso, a exposição ao agente biológico pode estar associada diretamente com a atividade laboratorial realizada, mesmo quando essa ocorre em condições de campo. Determinadas tarefas que envolvem o manuseio de material biológico, como a dissecção e a coleta de vísceras de animais realizadas no "laboratório de campo"63, podem determinar uma contaminação ao manipulador. E, além do risco estar atrelado ao contato direto e indireto (ex.: borrifos) com as vísceras de animais capturados, a aerossolização de agentes também é uma importante via a se considerar, uma vez que a dispersão de bioaerossóis tem relação com o uso de técnicas de maceração ou ainda na transferência de material biológico por meio de seringas (flush) para recipientes ou tubos66,67,68.
A ESTRUTURA DO TRABALHO DE CAMPO E A CARACTERIZAÇÃO DE OUTROS FATORES DE RISCO
Além do agente biológico despertar grande preocupação pelo risco de exposição às equipes de campo, como visto anteriormente, é possível também observar condições potenciais e reais de riscos de outras naturezas no processo de trabalho. Não obstante, sugere-se que esses riscos possam ser mais bem evidenciados a partir de métodos específicos de identificação e avaliação e por estudos observacionais sobre o processo de trabalho de campo.
A primeira consideração no planejamento de uma excursão de campo é analisar questões que possam afetar o desempenho das atividades e a saúde do indivíduo, buscando, com isso, identificar as características necessárias da equipe para a função e as condições de saúde mínimas para a atividade. Indivíduos sem aptidão de saúde para enfrentar cargas físicas, psíquicas e mentais; sem habilidade para execução das tarefas; e sem o treinamento necessário tornam-se mais suscetíveis ao risco de adoecimento69,70.
Esforços físicos e a exigência de posturas inadequadas, durante o transporte manual de materiais, são potenciais causadores de lombalgias, cervicalgias e outras doenças osteomusculares, caracterizando, com isso, o risco ergonômico71. No trabalho de campo, evidenciam-se também fatores de carga psíquica e mental relacionados ao estresse e à atenção exigida no desenvolvimento de atividades adaptadas a cenários onde o operador não tem controle sobre os elementos de risco ali existentes. Sob esse prisma, o risco de acidentes com animais peçonhentos ou ataque de animais selvagens, por exemplo, representariam também uma carga psíquica e mental que condiciona o risco ergonômico, ou seja, um risco potencializando o outro.
O risco de quedas (em mesmo nível e/ou em altura), com possibilidade de geração de fraturas, contusões e escoriações diversas, tem relação direta com o deslocamento das equipes em terrenos irregulares, na abertura de picadas na mata e, principalmente, no trabalho em altura. A escalada em copas de árvores, para captura de artrópodes, destaca-se como risco evidente de quedas e como potencial de graves acidentes24.
O manuseio de ferramentas manuais e utensílios - como facões, terçados, facas, gaiolas e armadilhas - são potenciais fontes de acidentes, pois podem ocasionar cortes lacerantes e puncturas, principalmente nos membros superiores69. O risco de acidentes corto-contusos relacionados ao manuseio de ferramentas, como facões e machados, foi verificado em pesquisas relacionadas à captura de triatomíneos em palmeiras Orbignya speciosa (babaçus), pois existe a necessidade de se cortar seu terço superior, as axilas das folhas e as brácteas que envolvem os pendões para a captura dos vetores da doença de Chagas34.
Picadas de cobras, escorpiões, aranhas e outros animais peçonhentos, o ataque de animais de grande e pequeno porte, os quais possuem seu habitat no ambiente de floresta, constituem um risco com um alto nível de probabilidade de ocorrência e alta severidade individual se medidas de prevenção não forem tomadas72,73.
Um estudo realizado por pesquisadores do Museu Paraense Emílio Goeldi na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Itatupã-Baquiá, localizada no Município de Gurupá, Estado do Pará, no período de 11 a 16 de julho de 2006, descreveu a captura de culicoides (maruins), potenciais vetores de doenças infecciosas. Essa espécie é conhecida pela voracidade de suas picadas que podem levar a uma resposta inflamatória cutânea caracterizada por eritema cutâneo, prurido e dor. Nesse estudo, as coletas foram realizadas com o uso da atração humana e por armadilha luminosa, tendo sido necessária, para isso, a entrada da equipe em área de várzea74.
A partir desse cenário, pode-se extrair sumariamente alguns riscos. A coleta de artrópodes hematófagos em estudos de entomofauna, além de caracterizar a exposição evidente da equipe ao agente biológico em si, expõe seus membros a cargas físicas relacionadas ao transporte e deslocamento de equipamentos (risco ergonômico), como as armadilhas luminosas, e também ao risco de acidentes relacionados ao manuseio de facões, ao transporte fluvial e ao deslocamento em áreas de várzeas24,25,34,37.
A pesquisa de campo na área de saúde ambiental na Região Amazônica chama a atenção para o risco de acidentes relacionados aos deslocamentos de barco, como naufrágios e afogamentos, devido ao uso de embarcações de pequeno porte, com ou sem propulsão de motores75. A inserção em áreas de garimpo e áreas indígenas isoladas, para investigação de contaminação de mercúrio ou de qualidade biológica da água, com coleta de água, solo e peixes, são parte do expediente de campo da saúde ambiental37.
As áreas pesquisadas, muitas vezes, caracterizam-se como inóspitas e isoladas25,37, distantes de regiões que possuam uma infraestrutura de saúde para o atendimento a situações de emergências. Além disso, há ainda a dificuldade de comunicação com pontos de apoio, o que pode ocasionar a impossibilidade para acionamento de socorro em situações emergenciais, fator esse que também afeta diretamente a segurança da equipe de campo.
A captura de aves exige a entrada da equipe na floresta antes do amanhecer, em torno de 5 h. Para a instalação das redes de nylon, tipo Netmist, é necessário abrir trilhas nas matas e fixar hastes de suporte para a colocação da rede. Essa atividade caracteriza o trabalho noturno, muitas vezes desenvolvida em área de mata fechada. A abertura de trilhas na mata também representa o risco de acidentes com facões. Já a captura de mamíferos, como roedores e marsupiais, entre outros, ocorre pela instalação de armadilhas do tipo Tomahawk, destinadas a animais de médio porte, e armadilhas Sherman, para animais de pequeno porte34,37. Da mesma forma, o trabalho noturno no campo está presente em estudos ecoepidemiológicos voltados à captura de roedores na investigação da circulação de hantavírus. As armadilhas são montadas tanto em áreas de cultivo (ex.: cana-de-açúcar), pastagem e também de floresta nativa63. A captura de morcegos no monitoramento da circulação do vírus da raiva exige também a montagem de armadilhas no período noturno, como abordado anteriormente.
No planejamento das expedições de campo, é necessário ainda avaliar o risco de acidentes relacionados aos veículos terrestres utilizados para o deslocamento das equipes. A falta de manutenção desses veículos, as condições das estradas e o risco de colisões são fatores que afetam a segurança das expedições e da equipe de pesquisadores70.
A utilização de contêineres de nitrogênio líquido para armazenamento de amostras biológicas representa um risco físico. O manuseio dessa substância expõe o indivíduo a baixas temperaturas, principalmente os membros superiores (dedos, mãos, antebraços), podendo ocasionar queimaduras por contato. A manipulação de substâncias químicas, durante a realização de ensaios, testes e análises executadas em laboratório de campo, com uso de amostras de material biológico e ambiental, pode expor os pesquisadores e assistentes técnicos a diversos agentes químicos perigosos76.
Outro ponto a ser considerado é que os laboratórios de campo comumente apresentam características improvisadas, proporcionando menor condição de controle de riscos52,77. Assim, observa-se que existem diversos fatores, próprios da estrutura de trabalho nas pesquisas de campo, que determinam riscos de diversas naturezas, os quais podem afetar o indivíduo e representar, isoladamente ou em conjunto com outros riscos, uma condição para o adoecimento.
MEDIDAS DE MITIGAÇÃO E CONTROLE DO RISCO
Levando-se em consideração as diversas variáveis existentes sobre as atividades de campo, as quais perpassam por condições complexas e adversas no curso de uma expedição, deve-se somar ainda a possibilidade de potencialização dos fatores de riscos ocupacionais associados. Nessas condições complexas e adversas, torna-se imperativa a adoção de medidas de controle dos riscos de forma antecipada e planejada, estabelecendo previamente ações de controle necessárias para cada processo69.
A norma europeia que trata do Sistema de Gestão do Risco Biológico em Laboratório (CWA 15793:2011) apresenta-se como uma forte referência para a gestão do risco nos trabalhos de campo, pois prevê o processo de avaliação de risco e o uso de metodologias para sua identificação, avaliação e controle78. Outros modelos mais genéricos podem ser também aplicados no processo de trabalho da pesquisa de campo, como análise preliminar do risco, análise de modo de falhas e efeitos, análise de árvore de falhas, entre outros. A partir da compreensão do risco no processo de trabalho, é possível estabelecer as medidas de controle e mitigação necessárias79.
As medidas de controle buscam neutralizar ou mitigar as possibilidades de um dano ocorrer mediante a exposição aos riscos existentes. Tais medidas podem possuir características de antecipação do risco, isto é, serem adotadas antes mesmo do risco existir, e podem também ter características preventivas, onde serão adotadas ações para prevenir a possibilidade de um dano diante da exposição a um risco já conhecido79,80,81.
A avaliação da capacidade fisiológica para a atividade por um médico do trabalho (física, psíquica e mental); a devida imunização das equipes; o treinamento prévio e contínuo; o fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPI) e ferramentas necessárias à atividade; e a própria organização do trabalho a partir de procedimentos estabelecidos formam um conjunto de medidas preliminares necessárias à proteção da equipe de trabalho de campo. Essas medidas são bem descritas em guidelines de sistemas de gestão em biossegurança e de saúde e segurança do trabalho, sendo fundamentais para um planejamento efetivo e seguro da atividade67,68,80.
Considerando que as expedições a campo congregam riscos de acidentes diversos em etapas diferentes do processo de trabalho, é necessário observar todas as fases, desde o início do planejamento da expedição até o final, com o retorno da equipe e dos materiais coletados. O uso dos veículos terrestres ou aquáticos, por exemplo, oferece possibilidade de acidentes com lesões variadas (contusões, lacerações, fraturas, queimaduras, afogamentos, dentre outras), exigindo, com isso, medidas preventivas que necessitam abranger, não somente a capacitação dos indivíduos condutores dos veículos, como também um planejamento de ações prévias que congregam programas de manutenções preventivas e corretivas nos veículos, assim como a checagem de documentos comprobatórios das condições adequadas dos mesmos70,80.
Dessa maneira, pelo princípio da antecipação do risco, da prevenção e controle, pode-se conceber que todos os veículos a serem utilizados em viagens de campo, além de possuírem sistema de comunicação com os membros da equipe, devem ter um programa de manutenção preventiva e corretiva criterioso, preferencialmente executado por oficina especializada.
O planejamento das viagens deve envolver ainda uma articulação prévia com a aplicação de termos de cooperação entre a instituição pesquisadora e instituições que possam servir de apoio nas expedições de campo. As prefeituras, as secretarias de saúde da localidade visitada, fazendas e lideranças comunitárias podem oferecer um importante apoio logístico. Outras corporações militares e não militares, como o Exército, o Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil estadual, podem servir de suporte necessário às intercorrências e às emergências, com ações de resgates por acidentes diversos, como quedas em altura, mal súbito, acidentes ofídicos, entre outros70.
Um sistema de radiocomunicação deve oferecer condições de alcance de transmissão que permitam o contato entre os membros de todas as equipes que estiverem na área de trabalho, bem como com os motoristas e com uma base de apoio. Havendo localidades distantes, telefones via satélite podem ser disponibilizados para impedir a ausência de comunicação entre os que estiverem fora de uma área de cobertura dos rádios comuns70.
Sugere-se ainda que, na organização do trabalho de campo em pesquisa na Amazônia, a quantidade de pessoas a ingressar em uma área isolada não seja menor que três membros. Embora não haja evidências publicadas que respaldem essa orientação, entende-se que, diante do adoecimento de um dos membros da equipe e/ou em caso de acidente, essa condição se mostra mais efetiva e dinâmica para o socorro (dados não publicados).
Treinamentos específicos para deslocamento e sobrevivência em selva, uso de ferramentas manuais, posicionamento em trilhas e em terrenos irregulares, utilização correta de equipamentos de segurança e primeiros socorros devem ser ministrados de forma inicial e contínua àqueles que participam dos trabalhos de campo69,70,79. Essas observações são fundamentadas principalmente na experiência do Serviço Florestal Brasileiro, órgão do Ministério do Meio Ambiente70, que, por meio do "Manual de campo: procedimentos para a coleta de dados biofísicos e socioambietais", oferece um bom delineamento para o planejamento de uma pesquisa de campo. Constata-se, contudo, a necessidade de reunir protocolos em guidelines específicos, para que os pesquisadores da saúde possam se sentir melhor amparados para a execução de suas atividades de campo. Treinamentos específicos, como aqueles voltados para o trabalho em altura, com técnicas para escalada e construção de plataformas em copas de árvores, devem ser adaptados para as atividades de campo e fornecidos por profissionais ou empresas habilitadas, atendendo, inclusive, requisitos dispostos na Norma Regulamentadora Nº 35, do Ministério do Trabalho e Emprego82.
E, por fim, as adequações de estruturas, com adaptações para montagem de laboratórios de campo, devem oferecer condições mínimas de segurança. A discussão sobre os requisitos necessários para um laboratório de campo é muito vaga e pouco referenciada, mas, independente da falta de evidências sobre a estrutura mínima e procedimentos específicos no laboratório de campo, a avaliação de risco sempre será o primeiro passo para aplicação de medidas de contenção, mitigação e controle77,78.
Para melhor compreensão, apresenta-se, no quadro 1, a relação de atividades desenvolvidas no processo de trabalho de campo com os fatores de riscos identificados e as medidas de mitigação e controle indicadas.
CONCLUSÃO
A evolução do processo de trabalho em saúde, as políticas de saúde do trabalhador, a evidência de risco nas atividades de pesquisas de campo em saúde e o fato das medidas de controle não serem totalmente eficazes são considerações que congregam elementos determinantes sobre a condição de saúde e a segurança de indivíduos que se submetem às expedições de campo em áreas de floresta, comunidades rurais, ribeirinhas ou áreas periurbanas existentes no território amazônico.
Quando se pensa na biossegurança pertencendo à gestão do risco biológico nos processos de trabalho na área da microbiologia médica, e na própria segurança do trabalho como responsável em reconhecer os riscos existentes no ambiente laboral, pode-se perceber que uma equipe de campo, em pesquisa em saúde na Amazônia, enfrenta um cenário complexo de exposição ao risco, não encontrando, muitas vezes, o respaldo necessário nessas duas grandes áreas.
Considerando que a descontextualização do trabalho de campo em relação ao desenvolvido em um ambiente mais controlado, como um laboratório de microbiologia ou mesmo uma instituição de assistência à saúde, infere-se a necessidade do pesquisador responsável, com o devido apoio institucional, buscar a devida regulação ao processo laboral a ser desenvolvido.
Dessa forma, as pesquisas de campo em saúde na Amazônia, em seu planejamento, passariam então a considerar, como requisitos fundamentais na organização do trabalho: a estrutura de transporte da equipe; a disponibilidade de equipamentos de segurança; o atestado de saúde ocupacional para a atividade de cada membro da equipe; o treinamento adequado da equipe; as condições climáticas e de terreno da pesquisa; os EPI e ferramentas; a distância do ponto de apoio; e o plano de contingência e emergência em caso de acidentes.
Apesar da abordagem aqui realizada ter buscado levantar as evidências do risco nas pesquisas de campo em saúde na Amazônia, é necessário que sejam realizados maiores estudos para uma melhor compreensão do risco nesse processo de trabalho.