INTRODUÇÃO
As comunidades que se organizam em ocupações irregulares nas grandes cidades são, muitas vezes, removidas para locais de menor interesse econômico, em função da exploração imobiliária e viária. Esse foi o caso da Vila Dique de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, Brasil, que iniciou sua formação na década de 1960, com famílias oriundas de diversas partes do interior do Estado1. O local não tinha saneamento e apresentava poluição ambiental severa devido à deposição no ambiente de resíduos sólidos e esgoto doméstico2, com um número expressivo de moradores que eram catadores de materiais recicláveis3. O depósito inadequado dos resíduos sólidos domésticos em aglomerados urbanos constitui um ambiente favorável à atração de ratos (Rattus norvegicus), que trazem consigo microrganismos, como Leptospira sp., causadores de doenças. Esses resíduos, em condições de umidade, mantêm as leptospiras, eliminadas pela urina dos roedores, por mais tempo no ambiente3,4. Os animais domésticos, silvestres e sinantrópicos5,6 podem ser reservatórios e fontes dessa bactéria, sendo potenciais transmissores de doenças para os humanos7. No ambiente urbano, o cão tem implicações em saúde pública, pois o animal pode ser responsável pela transmissão de várias zoonoses, dentre elas a leptospirose8. O baixo grau de instrução das pessoas que habitam locais sem saneamento as torna vulneráveis à leptospirose, indicando a necessidade de educação ambiental e sanitária para que as comunidades possam ter autonomia no cuidado com a saúde9,10,11. A Vila Dique apresentava muitos casos de leptospirose humana3. O objetivo do trabalho foi avaliar a frequência de soropositividade à Leptospira sp. nos cães dessa comunidade urbana reassentada, e os fatores de risco para leptospirose canina envolvendo a percepção de seus moradores sobre a transmissão da enfermidade e os cuidados sanitários com o ambiente e com os cães.
MATERIAIS E MÉTODOS
A pesquisa foi realizada em um novo reassentamento urbano, para o qual seus residentes foram transferidos de uma área periférica da cidade que fora ocupada irregularmente na década de 1960 (Vila Dique de Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul). O novo conjunto habitacional, com saneamento adequado, conta com infraestrutura urbana, como: central de triagem de materiais recicláveis, centro comunitário, creche, unidade básica de saúde e escola de ensino fundamental.
Trata-se de um estudo transversal desenvolvido por meio de entrevistas domiciliares e análises sorológicas nos cães da comunidade no período de novembro de 2011 a dezembro de 2012. Os moradores foram visitados e responderam a um questionário com 26 perguntas estruturadas sobre a presença de animais sinantrópicos dentro dos domicílios e medidas de controle; percepções quanto a possíveis zoonoses transmitidas pelos cães; perguntas sobre leptospirose humana, cuidados e posse responsável dos cães (animal com acesso à rua); presença de ectoparasitos; e segregação e acúmulo de resíduos sólidos domésticos. Os critérios de inclusão para responder ao questionário foram: possuir pelo menos um cão no domicílio e ser maior de 18 anos de idade. Todos os entrevistados assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, redigido em duas vias, permanecendo uma via com o entrevistado, conforme as normas expressas na Resolução CNS/MS nº 466 de 201212. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul sob o nº 20648.
Análises sorológicas antileptospira foram realizadas nos cães dos 89 moradores entrevistados, tendo sido realizadas 142 coletas de sangue com a autorização do proprietário do animal. Os proprietários informaram que os animais não haviam recebido nenhum tipo de vacina previamente. As análises foram realizadas no Laboratório de Leptospirose do Instituto de Pesquisas Veterinárias Desidério Finamor (FEPAGRO Saúde Animal), localizado em Eldorado do Sul, estado do Rio Grande do Sul. A técnica utilizada pelo Laboratório foi a soroaglutinação microscópica, sendo utilizados no diagnóstico 18 sorovares de Leptospira interrogans: Australis, Autumnalis, Ballum, Canicola, Copenhageni, Celledoni, Cynopteri, Hardjo, Icterohaemorrhagiae, Javanica, Panama, Pyrogenes, Pomona, Tarassovi, Wolffi, Castelonis, Bataviae e Saxkoebing. A técnica utilizada determinou quantitativamente o título dos anticorpos para cada uma das sorovariedades da bactéria, sendo considerados positivos os animais que apresentaram títulos iguais ou superiores a 100, conforme proposto pela Organização Internacional para Saúde Animal, pela Organização Pan-Americana da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde13. Foram avaliadas as frequências de animais soropositivos e as frequências das sorovariedades encontradas.
Para avaliar os fatores associados entre a soropositividade e a percepção da leptospirose e cuidados com os cães, foram realizados dois modelos de regressão logística para dados correlacionados. Como as coletas foram efetuadas no período de um ano, e a sazonalidade pode influenciar a ocorrência de leptospirose canina, uma estrutura de correlação entre as amostras, em cada data de coleta, foi incluída. Dois modelos de regressão foram construídos: 1) incluindo dados relativos ao animal (idade, sexo, porte), saúde (presença de ectoparasitos) e comportamento (hábito de caçar ratos e acesso à rua); e 2) incluindo dados sobre a presença de animais sinantrópicos nos domicílios, hábito de deixar restos de comida no prato do cão, costume de acumular materiais recicláveis em casa, segregação dos resíduos sólidos domésticos, conhecimento de alguém que já teve leptospirose e conhecimento de que o cão pode transmiti-la.
Inicialmente foi aplicado um modelo univariado incluindo as variáveis independentes acima citadas. Todas as variáveis com p < 0,20 foram selecionadas para a construção de um modelo multivariado. O modelo foi construído pelo processo forward, sendo que somente as variáveis com p < 0,05 permaneceram no modelo final. O modelo mais ajustado foi selecionado pelo valor de QIC (critério de quase-verossimilhança). A variável idade dos cães foi testada como confundidor, e, se a inclusão da idade alterasse os estimadores das outras variáveis dependentes (> 20%), essa seria mantida no modelo. Todas as variáveis pré-selecionadas foram testadas para correlação. As análises foram realizadas utilizando-se o pacote estatístico SAS e procedimento PROC GENMOD.
RESULTADOS
Dos animais analisados, 18,3% (26) foram soropositivos para Leptospira sp. As frequências das sorovariedades encontradas nas amostras de sangue dos cães foram: Icterohaemorrhagiae (12); Canicola (sete); Pomona (quatro); Autumnalis (quatro), Copenhageni (três) e Pyrogenes (dois). No presente estudo, as titulações na prova de soroaglutinação variaram de 100 a 400. As titulações de 100 ocorreram em 25 reações (80,6%), de 200 em cinco reações (16,1%) e 400 em apenas uma reação (3,2%).
Na primeira análise com as variáveis dos cães, como idade, sexo, porte e possíveis fatores de risco (acesso à rua, hábito de caçar ratos, presença de ectoparasitoses), apenas as variáveis "hábito de caçar ratos" e "acesso à rua" foram significativamente associadas à soropositividade (p < 0,05) no modelo univariado. O modelo multivariado não resultou em significância estatística quando da inclusão dessas duas variáveis. De acordo com o critério de ajuste dos modelos (menor QIC), a variável que mais explicou a soropositividade foi "hábito de caçar ratos"; a inclusão da idade não alterou substancialmente o estimador dessa variável. Os cães com o hábito de caçar ratos apresentaram uma chance maior de serem soropositivos comparados com os que não possuíam esse hábito (OR = 1,20; IC 95%: 1.002-1.459).
Os resultados da segunda análise indicaram que apenas a segregação dos resíduos domiciliares foi mais próxima de estar associada à maior frequência de soropositividade (p = 0,06; estimate = 0,133). Para as demais variáveis independentes, obteve-se um valor de p não significativo.
Com relação às zoonoses, foi questionado aos moradores se eles conheciam alguém da comunidade que tivesse sido acometido por leptospirose: 40% deles responderam afirmativamente. Quando foi perguntado se a pessoa sabia que o cão pode transmitir leptospirose, 71% responderam que não sabiam. Foi observado, nas respostas das entrevistas, que 100% das residências apresentavam pelo menos um tipo de animal sinantrópico, sendo que a maioria dos moradores convivia com mais de um tipo: 63% das casas tinham carrapatos; 61% tinham ratos; 50% tinham pombos; 47% tinham mosquitos; e 39% das casas tinham pulgas. Com relação ao controle de animais sinantrópicos dentro dos domicílios, 27% das residências não realizavam nenhum tipo de controle.
DISCUSSÃO
A frequência de soropositividade Leptospira sp. neste estudo foi de 18,3% (26 cães). A alta prevalência de ratos nos domicílios (61%) corrobora a frequência de soropositividade antileptospira nos cães. A frequência total de soropositivos se assemelha a vários estudos epidemiológicos realizados em outras regiões urbanas do país14,15,16. Contudo, o que varia entre os estudos são as sorovariedades mais incidentes. A sorovariedade Icterohaemorrhagiae apresentou uma frequência de 46% nas amostras de soro canino avaliadas no presente estudo, o que indica um risco à saúde pública, pelo fato de ser essa a sorovariedade responsável pelos quadros mais graves para as pessoas. A segunda sorovariedade mais prevalente foi a Canicola, com 27%.
De acordo com vários estudos, as prevalências das sorovariedades mudam de acordo com os fatores ambientais, ecológicos, demográficos e geográficos de cada estudo5,16,17,18,19,20. Essas variações nos índices de soropositividade que ocorrem em diferentes ambientes fazem com que se confirme que a contaminação por Leptospira sp. está condicionada a uma grande diversidade de situações e fatores ambientais, tais como temperatura e pluviosidade21, reservatórios, altitude e bacias hidrográficas22, características da organização espacial, dos ecossistemas e das condições de vida e trabalho da população23.
No presente estudo, as titulações positivas na prova de soroaglutinação variaram de 100 a 400, sendo 100 (80,6%), 200 (16,1%) e 400 (3,2%). Titulações de 100 e 200 são consideradas baixas e podem significar título residual de infecção prévia ou de infecção recém-instalada24. Por se tratar de uma comunidade de baixo poder econômico, os animais que tiveram amostras de sangue analisadas não haviam recebido nenhum tipo de vacina, portanto esses títulos foram produzidos pelo contato com a bactéria no ambiente. Destaca-se que nem todos os cães que tiveram amostras de sangue coletadas eram provenientes da antiga Vila Dique; alguns cães mais novos foram adquiridos no novo local. No entanto, a soropositividade para leptospira apresenta duração variável, sendo provável que esses cães soropositivos tenham entrado em contato com a leptospira no novo ambiente. Ainda deve ser ressaltado que existem reações cruzadas entre sorovariedades que se assemelham entre si, como é o caso da Icterohaemorrhagiae e a Pyrogenes, que são sorovariedades muito semelhantes em termos antigênicos. Por isso, os resultados da sorologia devem ser analisados com cautela25.
Cães que possuíam o hábito de caçar ratos e acesso à rua apresentaram chances maiores de serem soropositivos que os cães que não caçavam ratos. Esse resultado também foi encontrado em outro estudo17, observando-se que os cães com acesso à rua apresentaram um risco 2,57 vezes maior de se infectarem em relação àqueles que não tiveram acesso à rua. Nesse mesmo estudo, foi encontrado um risco 4,22 vezes maior de serem soropositivos aqueles que possuíam o hábito de caçar roedores. Em outro estudo, Silva et al.26 constataram que cães com acesso à rua apresentaram títulos sorológicos mais altos, comparados aos animais domiciliados. O hábito de caçar ratos já foi identificado por Fraga19 como fator de risco para a infecção canina por leptospirose.
Os resultados da segunda análise de risco indicaram que a segregação dos resíduos domiciliares foi mais próxima de estar associada à maior frequência de soropositividade para leptospirose nos cães (p = 0,06; estimate = 0,133). Para as demais variáveis independentes, obteve-se um valor de p não significativo. A comunidade estudada apresentava um grande número de pessoas que se dedicavam à catação de resíduos sólidos3 e tinham por hábito acumular esses materiais recicláveis em sua área residencial. Essa prática atrai animais sinantrópicos e, com eles, uma maior probabilidade de contaminação dos cães por leptospirose. O fato de 61% das residências apresentarem ratos no seu interior acentua a possibilidade da contaminação dos cães também nessas residências ou em seus pátios. O mesmo foi descrito por Santos et al.27 numa comunidade de catadores na periferia de Brasília, Distrito Federal, em que 90% dos domicílios estudados tinham ratos e baratas.
As zoonoses, em especial a leptospirose, são enfermidades bastante frequentes em comunidades sem acesso ao saneamento básico ou em condições de vulnerabilidade ambiental e social28. Foi observado, pelas respostas das entrevistas, que 40% das pessoas conheciam alguém que havia sido acometido por leptospirose e 29% dos respondentes reconheceram o cão como possível transmissor dessa doença. Na maioria dos casos, apenas o rato é reconhecido como o causador da leptospirose, enfermidade popularmente chamada como "doença do rato"3.
CONCLUSÃO
A frequência de soropositividade nos cães deste estudo não foi muito diferente da de outros trabalhos publicados em distintos contextos nas diversas partes do país, porém a maior prevalência da sorovariedade Icterohaemorrhagiae alerta para o risco à saúde das pessoas desta comunidade. As condições ambientais encontradas naquela população reassentada são favoráveis à disseminação da leptospirose, devido ao acúmulo de resíduos sólidos nas casas e alto índice de roedores nas residências. Ações de educação ambiental são necessárias em comunidades de áreas sem saneamento básico ou provenientes delas, na forma de educação não formal, introduzindo novos conhecimentos como meios de proteção à saúde dessas pessoas. O trabalho de educação e conscientização ambiental para as comunidades reassentadas pode ser um efetivo instrumento de prevenção de zoonoses, sendo essas atividades parte da promoção e vigilância em saúde.