Pesquisa clínica e pesquisa translacional
Em 1996, Donald Stokes publicou um livro que traz uma análise crítica bem interessante sobre a dicotomia ciência básica x ciência aplicada. Esse livro foi reeditado em 2005 pela Unicamp1. O livro, além de trazer uma excelente resenha da história da ciência, inova ao trazer uma classificação sobre o conhecimento básico e o conhecimento aplicado em uma tabela 2 x 2, como aquela que todo epidemiologista ama.
No primeiro quadrante, o superior esquerdo, que o autor chamou de quadrante de Bohr, há a busca de conhecimento, mas sem considerações evidentes sobre seu uso. No quarto quadrante, ou quadrante inferior direito, que denominou de quadrante de Edson, há a preocupação predominante com o uso do conhecimento existente. O terceiro quadrante, ou quadrante inferior esquerdo, Stokes reservou para as pesquisas particulares, em que não há uma motivação clara para a busca de novos conhecimentos e nem de seu uso. Mas aquela que foi mais explorada na sua tese é o segundo quadrante, ou quadrante superior direito, que caracterizou como quadrante de Pasteur, pois existe aí a busca de conhecimentos novos, mas inspirada pelo uso.
Assim, a obra procura caracterizar o trabalho de Pasteur como paradigmático de um trabalho guiado pela inovação e desenvolvimento de um conhecimento aplicado às necessidades da vida real. Poderia se dizer que esse é o lugar também da pesquisa clínica, ao buscar traduzir ou, para usar um termo da moda, translacionar o conhecimento básico em produtos e aplicações para a vida real.
Na verdade, a chamada pesquisa translacional em Medicina apresenta um escopo bem ampliado, pois busca focar em uma unificação de pesquisas voltadas para a tradução de conhecimentos de várias fontes com intervenções que visem uma melhoria na qualidade de saúde em um nível coletivo. Desse modo, ela representaria uma evolução no sentido de um mundo melhor, tornando o conhecimento originado seja na pesquisa básica seja na pesquisa clínica um conhecimento voltado à ação.
A epidemiologia translacional representa a pesquisa translacional derivada de estudos epidemiológicos, sejam estudos clínicos ou não, mas derivando deles e integrando-os em busca de intervenções em Medicina ou Saúde Pública. Nesse sentido, ela estende as estacas da pesquisa clínica.
Duas etapas distintas, mas complementares, da pesquisa translacional são: a tradução da pesquisa básica e dos conhecimentos sobre mecanismos de doença para a pesquisa clínica; e a tradução da pesquisa clínica para a atenção, prevenção e promoção da saúde por meio de ações destinadas à população. Essas etapas, embora complementares, podem se tornar competitivas na prática. Um desses aspectos pode ser ilustrado através da competição pelo financiamento de pesquisas.
Fica então claro o papel da pesquisa clínica como o meio através do qual a tradução da pesquisa se converte do conhecimento novo para o conhecimento aplicado à melhoria da saúde pública. A ponte que une os dois polos da pesquisa translacional é edificada com a argamassa da pesquisa clínica, que está representada claramente no quadrante de Pasteur de Stokes.
Pesquisa clínica e a epidemiologia translacional
A epidemiologia translacional, entendida como fonte de intervenções populacionais a partir de estudos epidemiológicos, na verdade nasce com a Epidemiologia como ciência moderna, quando John Snow, que era um dos médicos da rainha Vitória, na época em que "o sol nunca se punha sobre o império britânico", ao investigar a fonte da epidemia de cólera que assolou Londres, entre os anos 1854-1855, apontou para a necessidade de fechar algumas bombas d'água, pois estavam no epicentro de clusters da doença em algumas áreas da cidade. O trabalho investigativo de Snow, trazendo evidências de que a água era o veículo de transmissão da cólera e a água do rio Tâmisa a fonte da epidemia, foi tão importante que tornou possível a existência das grandes cidades através dos cuidados de saneamento básico necessários para uma vida saudável2.
A epidemiologia translacional está presente também nos estudos epidemiológicos que trouxeram impacto sobre estilos de vida de toda a população, trazendo evidências de que o fumo deveria estar ausente dos ambientes fechados ou de que era efetivo o tratamento medicamentoso da hipertensão arterial de um ponto de vista da saúde pública3.
Pesquisa clínica e a Medicina baseada em evidências
A epidemiologia clínica pode ser entendida como a ciência dos estudos epidemiológicos que estudam desfechos de relevância para a tomada de decisões na esfera da clínica, como, por exemplo, os estudos que mostraram que se deveria fornecer antirretrovirais a gestantes infectadas pelo HIV, mas sem a doença aids, para se prevenir a transmissão vertical do vírus, da mãe para o bebê.
A Medicina baseada em evidências preocupou-se, então, em classificar os estudos epidemiológicos quanto ao nível de evidências que eles geravam a partir de uma avaliação dos estudos quanto ao grau de validade interna e externa dos mesmos. Isso apontou para um processo de decisão, classificando as evidências em níveis, de I a IV, e categorias de intervenção, de A a E.
Pesquisa clínica e o amor ao mundo
A filósofa e escritora Hanna Arendt, uma das figuras mais influentes do século XX, cuja obra-prima em trilogia, "As origens do totalitarismo"4, marcou toda uma geração pós-guerra, deixou em seus escritos algumas pérolas. Entre elas a sua reflexão de que há um momento na vida em que é preciso decidir se amamos o mundo. É nesse sentido que a escolha do quadrante de Pasteur e da pesquisa clínica inspirada por um desejo de inovação, comprometido com uma vida real saudável acessível e um mundo melhor, seria uma decisão de que amamos o mundo.