INTRODUÇÃO
A hepatite C é causada por um vírus da família Flaviviridae, gênero Hepacivirus, que foi descrito por Choo et al.1 como o principal agente etiológico das hepatites conhecidas como não A, não B (NANB). Esse vírus caracteriza-se por ser uma partícula viral esférica, com tamanho entre 40 e 100 nm de diâmetro; seu material genético é constituído por um RNA de fita simples composto por um envoltório e um nucleocapsídeo icosaédrico2,3,4,5.
A principal via de transmissão do vírus da hepatite C (HCV) é parenteral e, assim, estão sob maior risco usuários de drogas injetáveis (atualmente, considerado o principal fator de risco para aquisição de hepatite), hemofílicos, pacientes em hemodiálise, profissionais de saúde com história de acidente percutâneo e indivíduos que receberam hemotransfusão, sobretudo antes de 1994. Além desses, configuram via de transmissão: compartilhamento de objetos de higiene pessoal, como lâminas de barbear, escovas de dente e instrumentos para pedicure/manicure; procedimentos estéticos e culturais, como tatuagem, piercing e acupuntura; e procedimentos odontológicos. A transmissão sexual ocorre em pessoas com múltiplos parceiros, com práticas sexuais desprotegidas e quando há coexistência de infecções sexualmente transmissíveis (IST). O HCV também pode ser transmitido verticalmente, o que está relacionado com a elevada carga viral da mãe, parto prolongado e coinfecção HCV/HIV4,6,7,8.
O HCV é prevalente em todo o mundo e possui uma ampla distribuição geográfica. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), aproximadamente 1% da população mundial está infectada pelo HCV, existindo cerca de 71 milhões de pessoas infectadas cronicamente. Ainda segundo a OMS, estima-se que, em 2015, ocorreram cerca de 400.000 óbitos decorrentes de doenças hepáticas relacionadas com a hepatite C, devido principalmente a complicações como cirrose e carcinoma hepatocelular9.
O HCV possui uma grande variedade de genótipos de 1 a 7, com diferentes subtipos, apresentando distribuição mundial de acordo com a população estudada e fatores de transmissão viral envolvidos na infecção. A nível global, o genótipo 1 é o mais comum, com 46,2% de todos os casos de hepatite C, predominando os subtipos 1a e 1b, seguido do genótipo 3, correspondendo a 30,1%. Os genótipos 2, 4 e 6 apresentam prevalência de 9,1%, 8,3% e 5,4%, respectivamente; enquanto que o genótipo 5 corresponde a menos de 1% de todos os casos de hepatite C no mundo. No Brasil, os genótipos 1 e 3 são os mais prevalentes, sendo que de 50 a 70% dos casos de hepatite C são causados pelo tipo 17,8,10,11,12,13.
No panorama mundial de hepatite C, o país com maior prevalência da infecção é o Egito, com cerca de 15% da população. Nesse caso, a principal razão para essa elevada prevalência pode ser a utilização de agulhas não esterilizadas nos programas para o tratamento da esquistossomose endêmica. Na África, a maior prevalência ocorre nas Regiões Central, Ocidental e Subsaariana. Nos países da América Latina e Caribe, estima-se que existam entre 7 e 9 milhões de adultos positivos para anti-HCV, enquanto que, nos países da América do Norte, há baixas taxas de prevalência da hepatite C12,14,15,16.
O Brasil é um país de endemicidade intermediária para a infecção de hepatite C, com taxas de prevalência de 1,4 a 2,5%17. No período de 1999 a 2011, o número total de casos notificados da doença, no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), foi 82.041 e 75% desses casos foram registrados em indivíduos na faixa etária de 30 a 59 anos, sendo mais prevalente no sexo masculino. A maioria dos casos notificados foi nas Regiões Sudeste (67%) e Sul (22%). Nesse mesmo período, na Região Centro-Oeste, foram notificados 2.737 casos confirmados de hepatite C, o que representa 3,3% dos casos notificados no Brasil, a maioria dos quais no estado de Goiás (43%), seguido pelo Distrito Federal (23,8%) e pelos estados do Mato Grosso do Sul (18,8%) e Mato Grosso (14,4%)12. Acredita-se que esse número seja subnotificado, pois se estima que, no Brasil, a prevalência de pessoas vivendo com HCV seja de aproximadamente 1.450.000 casos, configurando a hepatite C como um relevante problema de saúde pública18.
Este estudo teve por objetivo caracterizar o perfil epidemiológico dos casos de hepatite C investigados pelo Núcleo de Vigilância Epidemiológica do Hospital de Doenças Tropicais Dr. Anuar Auad (HDT/HAA) em Goiânia, estado de Goiás, no período de 2012 a 2015.
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de um estudo epidemiológico transversal, de abordagem quantitativa, realizado a partir dos casos notificados e confirmados de hepatites virais no período de 2012 a 2015, obtidos do Sinan e que foram investigados pelo Núcleo de Vigilância Epidemiológica do HDT/HAA, um hospital de média e alta complexidade com 130 leitos, sendo referência em assistência especializada em doenças infectocontagiosas e dermatológicas para a população adulta e pediátrica em Goiás.
Para a definição do grupo com hepatite C (grupo 1), foram considerados os casos notificados e confirmados de hepatite C que compreenderam o período de estudo. E para o grupo sem hepatite C (grupo 2), foram considerados os casos notificados e confirmados com classificação etiológica de outros tipos de hepatites virais.
Para a coleta e análise de dados, foi analisada a ficha de notificação de hepatites virais; porém, neste estudo, somente as variáveis sociodemográficas (sexo, faixa etária, raça e escolaridade), genótipos e condições de saúde (coinfecção com HIV e outras IST) foram utilizadas. Os dados foram tabulados no programa TabWin v3.6 e analisados no Epi Info™ v7.0, para calcular frequência, média e desvio padrão.
Foi realizada a comparação das condições de saúde em relação à coinfecção pelo HIV e outras IST. Para a análise, os 738 casos notificados de hepatites que constavam no banco de dados formaram o grupo 1, com 293 casos, e o grupo 2, com 445 casos. O teste Qui-quadrado foi utilizado para comparar as proporções e verificar se havia uma associação entre portadores de hepatite C e coinfecção pelo HIV e outras IST, tendo sido considerado o nível de significância de p < 0,05. Os dados ignorados e/ou em branco não foram considerados para a realização do teste nem para a elaboração do gráfico dos genótipos.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HDT/HAA (certificado de apresentação para apreciação ética nº 51801315.4.0000.0034 e parecer de aprovação nº 1390536, 19 de janeiro de 2016).
RESULTADOS
De acordo com os dados coletados, foram notificados, no período de janeiro de 2012 a dezembro de 2015, 738 casos de hepatites virais, dos quais 293 pertenciam ao grupo 1. Nesse grupo, a média de idade foi de 50,7 anos (DP ± 12,4), com maior prevalência da faixa etária de 50 a 64 anos (41,98%), do sexo masculino (54,95%), da raça parda (75,09%) e de indivíduos que possuíam de cinco a nove anos de estudo (34,81%) (Tabela 1).
Variáveis | N | % |
---|---|---|
Média de idade | 50,7 (43-81) | DP ± 12,4 |
Faixa etária (anos) | ||
< 4 | 3 | 1,02 |
15-19 | 4 | 1,37 |
20-34 | 32 | 10,92 |
35-49 | 109 | 37,20 |
50-64 | 123 | 41,98 |
>65 | 22 | 7,51 |
Sexo | ||
Feminino | 132 | 45,05 |
Masculino | 161 | 54,95 |
Escolaridade (anos de estudo) | ||
0 | 5 | 1,71 |
<4 | 20 | 6,82 |
5-9 | 102 | 34,81 |
10-12 | 86 | 29,35 |
>12 | 29 | 9,90 |
Ignorado | 51 | 17,41 |
Raça | ||
Branca | 41 | 13,99 |
Preta | 11 | 3,75 |
Amarela | 1 | 0,34 |
Parda | 220 | 75,09 |
Indígena | 1 | 0,34 |
Ignorado | 19 | 6,49 |
Fonte: Sinan, 2016.
DP: Desvio padrão.
Em relação aos genótipos, o total de casos ignorados/brancos foi 162 (55,29%). Por conseguinte, a proporção dos genótipos dos 131 casos informados foi de 101 casos (77,10%) para o tipo 1, dois casos (1,53%) para o tipo 2, 26 casos (19,84%) para o tipo 3 e dois casos (1,53%) para o tipo 4 (Figura 1).
Fonte: Sinan, 2016.
Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero, não resultante de arredondamento.
Na análise entre as condições de saúde e agravos associados (Tabela 2), dos 266 casos de portadores de HCV, 30 mostraram positividade para HIV, que resultou em uma frequência de 11,27% de coinfecção; assim, verificou-se uma associação significativa da presença de coinfecção com HIV e portadores de HCV (p < 0,001). No que diz respeito à presença de IST, não foi observada associação significativa com portadores de HCV (p = 0,11).
Variáveis | Grupo 1 (N = 293) | Grupo 2 (N = 445) | p valor* | ||
---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | ||
HIV | |||||
Sim | 30 | 4,06 | 121 | 16,40 | |
Não | 236 | 31,98 | 289 | 39,16 | < 0,001 |
Ignorados | 27 | 3,66 | 35 | 4,74 | |
Outras IST | |||||
Sim | 5 | 0,68 | 17 | 2,30 | |
Não | 249 | 33,74 | 378 | 51,22 | 0,11 |
Ignorados | 39 | 5,28 | 50 | 6,78 |
Fonte: Sinan, 2016.
%: Calculado pelo total de casos de hepatites virais (738); * Os dados ignorados não foram considerados para o cálculo do p valor.
DISCUSSÃO
A predominância de casos notificados na faixa etária de 50 a 64 anos (41,98%) e a média de idade de 50,7 anos, observadas neste estudo, corroboram os resultados dos estudos de Mello et al.19, realizado em um hospital filantrópico da Região Sul do Brasil, no qual a faixa mais acometida foi de 50 a 60 anos, e de Oliveira et al.20, realizado em uma unidade de referência regional no estado de Minas Gerais, onde a predominância foi da faixa de 50 a 59 anos. É válido destacar que a média de idade dos casos de hepatite C no Brasil, para ambos os sexos, é de 46,3 anos18.
É importante salientar, que a hepatite C é uma infecção latente e muitas vezes silenciosa, com apresentação do quadro clínico tardio e, provavelmente por isso, a maior prevalência dos casos esteja em indivíduos com idade superior a 50 anos, sugerindo infecção em passado distante5,21.
O fato da média de idade dos portadores de hepatite C deste estudo estar acima da média nacional pode ser devido à dificuldade de acesso aos serviços de saúde ou à falta de tecnologia eficaz para o diagnóstico da infecção na rede assistencial.
Em relação à variável sexo, foi observada maior frequência da infecção por hepatite C no sexo masculino (54,95%), fato evidenciado por outros estudos8,20. De acordo com Gomes et al.22, ao analisarem a vulnerabilidade da população para a hepatite C, a partir do perfil dos portadores do vírus, constataram que os homens têm mais atitudes que os deixam mais expostos ao vírus como, por exemplo, uso de drogas injetáveis ou inaláveis, consumo de álcool e a prática de relações sexuais sem uso de preservativo.
Em relação à raça, observou-se que 75,09% eram pardos, dado que diverge do encontrado por Cruz et al.23, cuja maioria era branca (84%), e por Alves et al.24, que encontraram 42% pardos, 32,1% brancos e 12,5% negros. O predomínio de pardos no estudo em questão é, provavelmente, devido à maioria da população goiana declarar-se como parda, conforme referido no último censo25.
Quanto ao nível de escolaridade, verificou-se que 34,81% possuíam de 5 a 9 anos de estudo e 29,35%, de 10 a 12 anos. Moia et al.26 detectaram que 50% dos indivíduos apresentava cerca de 13 anos de estudo, inferindo que o nível de escolaridade, considerado regular, não foi protetor no sentido de evitar a infecção pelo HCV ou de favorecer a aquisição de informações que a evitasse; portanto, outras variáveis teriam influenciado na aquisição do vírus.
Com relação aos genótipos, o tipo 1 foi o mais frequente, com 77,10%, seguido do genótipo 3, com 19,84%. Essa frequência já foi encontrada em diversos locais do País, como demonstrado pelos estudos de Araújo et al.21, em Manaus, estado do Amazonas; de Alvarado-Mora et al.27, no estado do Pernambuco; de Oliveira et al.20, no interior do estado de Minas Gerais; e de Paraboni et al.8, em cidades do interior do Sul do Brasil.
Os genótipos do HCV apresentam distribuição geográfica distinta. Assim, Messina et al.11 verificaram que o genótipo 1 é o responsável pela maioria dos casos de HCV (83,4 milhões - 46,2%), comum em 85 dos 117 países analisados, sendo mais de um terço dos casos oriundos do Leste Asiático. O genótipo 3 é o segundo mais prevalente (54,3 milhões - 30,1%), ocorrendo principalmente no Sul da Ásia. Nesse estudo, também foi observado que o genótipo 2 é dominante na África Ocidental; o genótipo 4, na África Central e do Norte; o genótipo 5, na África do Sul; e o genótipo 6, no sudeste da Ásia.
De acordo com Petruzziello et al.28, os países da América Latina apresentam prevalência estimada de 1,4% HCV, com taxa virêmica de hepatite C de 76,4%. O genótipo mais representativo é o tipo 1 (74,3%), seguido do 3 (14,2%) e do 2 (10,4%), havendo baixa soroprevalência de casos pelos genótipos 4 e 5. Não há relatos de HCV pelo tipo 6.
A distribuição global do genótipo 1 pode estar relacionada à disseminação internacional de sangue e de produtos sanguíneos contaminados (transfusão sanguínea), muito comum antes da descoberta do HCV em 198929. A alta circulação do genótipo 3 possivelmente está relacionada à associação do subtipo 3a e ao uso de drogas injetáveis30.
No presente estudo, os genótipos 2 e 4 apresentaram frequências de 1,53% cada. Essa baixa proporção também foi relatada em outros estudos11,27. Entretanto, essa frequência está abaixo da encontrada nos estudos de Oliveira et al.20 e de Paraboni et al.8.
No Brasil, a prevalência da coinfecção por HIV/HCV varia de 3,3 a 82,4%31. Neste estudo, observou-se uma frequência de 11,27%. Essa proporção é maior do que a encontrada nos estudos de Brandão et al.32, em Goiânia, que mostrou uma prevalência de 9,7%, e de Freitas et al.33, no Mato Grosso do Sul, cuja taxa foi de 6,9%, ambos na Região Centro-Oeste do Brasil. É sabido que o HIV altera a história natural do HCV e acelera a progressão da doença hepática, levando ao aumento das taxas de morbidade e mortalidade34.
Alguns estudos demonstraram que a presença da coinfecção por HCV/HIV poderia ser explicada pela semelhante forma de transmissão dos dois vírus, sobretudo em pessoas que receberam transfusão de sangue antes de 1994, em usuários de drogas injetáveis, em indivíduos que fizeram tatuagem antes do diagnóstico e nos que praticam relação sexual desprotegida26,33.
No protocolo terapêutico preconizado pelo Ministério da Saúde7, é obrigatório a genotipagem dos pacientes portadores de HCV antes do início do tratamento; porém, verificou-se neste estudo que, para 55% dos pacientes, não havia registro do genótipo. Isso supostamente se deve à demora na realização do exame ou ao não retorno do paciente à unidade de saúde até o prazo de conclusão da investigação.
É pertinente ressaltar que o Sinan consiste de um sistema passivo e que convive com subnotificações e incompletude de dados. Por conseguinte, os resultados devem ser avaliados com cautela, pois o viés de seleção da amostra não é representativo da população geral e levanta a questão da importância da qualidade dos dados do sistema de informação e dos desafios para a vigilância em saúde.
O Brasil é um país com dimensões continentais e, por isso, apresenta variabilidade na distribuição do HCV em suas diferentes regiões, o que torna essencial o conhecimento da frequência e da distribuição desse vírus, a fim de subsidiar a implementação de medidas de controle e, assim, combater a infecção. Dessa forma, ressalta-se a importância do preenchimento correto e da completude dos campos da ficha de notificação no momento da investigação epidemiológica, uma vez que a vigilância epidemiológica é uma ferramenta imprescindível para o entendimento da dinâmica de epidemias por HCV.
CONCLUSÃO
O perfil epidemiológico e a frequência dos genótipos encontrados para os portadores de HCV, em um hospital de referência em doenças infectocontagiosas de Goiás, são semelhantes aos relatados no mundo. Os resultados do presente estudo também mostram que há uma associação significativa de infecção por HIV nesses portadores.