INTRODUÇÃO
O câncer é uma doença crônico-degenerativa, caracterizada pelo crescimento descontrolado e desordenado de células que impedem o funcionamento normal do organismo; é de etiologia multifatorial, desencadeada principalmente por alterações genéticas, fatores ambientais e estilos de vida1. Atualmente, o câncer é um problema de contexto mundial que vem ganhando cada vez mais atenção devido a eventos variados, como o envelhecimento populacional e fatores próprios do mundo contemporâneo, a exemplo de alimentação e estilo de vida inadequados2. No Brasil, estimou-se a ocorrência de 596.070 novos casos de câncer entre 2016 e 20173.
As possibilidades de cura do câncer geralmente estão relacionadas ao tempo e ao estágio da doença, ou seja, quanto mais precoce o diagnóstico, mais chances do tratamento promover a cura4. Como nem sempre esse diagnóstico é feito precocemente, a doença acaba sendo descoberta em estágio avançado, com chance reduzida e até mesmo sem possibilidade de cura, o que torna essencial a inserção de cuidados paliativos, que objetivam amenizar sinais e sintomas e são realizados por uma equipe multidisciplinar para promover o bem-estar do paciente5.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, o cuidado paliativo é um tipo de abordagem que objetiva proporcionar qualidade de vida não só aos pacientes, mas também aos familiares, diante de problemas associados a doenças que ameacem a vida, promovendo a prevenção e o alívio do sofrimento, por meio de identificação precoce, avaliação correta, tratamento da dor e de outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual5.
O Hospital Ophir Loyola (HOL) é pioneiro na implantação dos cuidados paliativos oncológicos no estado do Pará, oferecendo esse serviço há mais de uma década aos pacientes e seus familiares6. Caracterizar o perfil desses pacientes é importante, porque permite conhecer a população que tem vivenciado o câncer avançado e a terapia paliativa no Estado. Esses dados são subsídios para a implantação de ações de promoção, prevenção, diagnóstico e tratamento precoce da doença.
Portanto, este estudo objetivou descrever o perfil sociodemográfico dos pacientes em cuidados paliativos no HOL, referência em oncologia no Pará, Brasil.
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de um estudo retrospectivo, descritivo e transversal, realizado de abril a novembro de 2016, utilizando dados dos prontuários de pacientes oncológicos admitidos entre janeiro de 2010 e dezembro de 2014, na Clínica de Cuidados Paliativos Oncológicos do HOL. De acordo com a Divisão de Arquivo Médico e Estatístico do HOL, 627 pacientes foram admitidos na referida Clínica nesse período. Após a realização do cálculo amostral, com nível de confiança de 95% e erro amostral preditivo de 5%, chegou-se ao quantitativo de 239 prontuários a serem analisados.
Os dados dos prontuários foram inseridos em formulário pré-estruturado, com 11 questões fechadas sobre aspectos sociodemográficos (sexo, faixa etária, naturalidade, procedência, escolaridade, ocupação, estado civil, religião, tabagismo, etilismo e antecedentes familiares).
A análise estatística foi realizada utilizando-se métodos descritivos, inferenciais e teste qui-quadrado. As variáveis com valor p ≤ 0,05 foram consideradas estatisticamente significantes. Para a edição e formatação das tabelas e gráficos, foram utilizados os programas Microsoft Excel e Microsoft Word 2007; e, para a análise estatística, foi usado o BioEstat v5.3.
Todos os dados obtidos nesta pesquisa foram analisados respeitando-se as normas de pesquisa envolvendo seres humanos, contidas na Resolução Nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde7. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HOL em 7 de março de 2016, sob o parecer n° 1.440.565.
RESULTADOS
Dos 239 prontuários analisados, houve predominância de pacientes do sexo feminino (59,41%). Quanto à distribuição por idade, predominou a faixa etária de maiores de 60 anos (38,91%). Em relação à proveniência, observou-se que 46,44% dos pacientes eram naturais da Mesorregião Metropolitana de Belém e 93,72% internaram após atendimentos de urgência/emergência na triagem do HOL (Tabela 1).
Variáveis | Frequência | |
N = 239 | % | |
Sexo | ||
Feminino | 142 | 59,41 |
Masculino | 97 | 40,59 |
Faixa etária (anos) | ||
19-28 | 8 | 3,35 |
29-39 | 32 | 13,39 |
40-50 | 56 | 23,43 |
51-60 | 50 | 20,92 |
> 60 | 93 | 38,91 |
Naturalidade | ||
Mesorregião Metropolitana de Belém | 111 | 46,44 |
Mesorregião do Nordeste Paraense | 75 | 31,38 |
Mesorregião do Marajó | 24 | 10,04 |
Mesorregião do Sudeste Paraense | 7 | 2,93 |
Mesorregião do Baixo Amazonas | 6 | 2,51 |
Mesorregião do Sudoeste Paraense | 1 | 0,42 |
Outros Estados | 15 | 6,28 |
Procedência | ||
Triagem | 224 | 93,72 |
Transferência | 8 | 3,35 |
Domicílio | 7 | 2,93 |
Escolaridade | ||
Analfabeto | 38 | 15,90 |
Ensino fundamental completo | 30 | 12,55 |
Ensino fundamental incompleto | 93 | 38,91 |
Ensino médio completo | 32 | 13,39 |
Ensino médio incompleto | 4 | 1,67 |
Superior completo | 11 | 4,60 |
Superior incompleto | 2 | 0,84 |
Sem informação | 29 | 12,14 |
Ocupação | ||
"Dona de casa" | 66 | 27,62 |
Autônomo | 49 | 20,50 |
Lavrador/Agricultor/Pescador | 27 | 11,30 |
Ferreiro/Carpinteiro/Pedreiro/Pintor/Marceneiro | 17 | 7,11 |
Profissionais de nível médio | 16 | 6,69 |
Funcionário público/Aposentado | 12 | 5,02 |
Segurança/Zelador/Vigilante | 8 | 3,35 |
Profissionais de nível superior | 8 | 3,35 |
Estivador/Serviços gerais | 3 | 1,25 |
Sem informação | 33 | 13,81 |
Estado civil | ||
Casado/União estável | 122 | 51,05 |
Solteiro | 62 | 25,94 |
Viúvo | 26 | 10,88 |
Divorciado | 10 | 4,18 |
Sem informação | 19 | 7,95 |
Religião | ||
Católico | 83 | 34,73 |
Evangélico | 73 | 30,54 |
Espírita | 2 | 0,84 |
Outras | 11 | 4,60 |
Sem informação | 70 | 29,29 |
Tabagismo | ||
Sim | 136 | 56,90 |
Não | 82 | 34,31 |
Sem informação | 21 | 8,79 |
Etilismo | ||
Sim | 128 | 53,56 |
Não | 89 | 37,24 |
Sem informação | 22 | 9,20 |
Antecedentes familiares | ||
Sim | 95 | 39,75 |
Não | 98 | 41,00 |
Sem informação | 46 | 19,25 |
* p ≤ 0,05 no teste qui-quadrado.
Observaram-se baixos níveis de escolaridade, visto que 38,91% dos pacientes tinham apenas o ensino fundamental incompleto. Sobre a ocupação/profissão, 27,62% afirmaram ser "donas de casa". Quanto ao estado civil, 51,05% eram casados ou viviam em união estável. Sobre a religião, 34,73% dos pacientes declararam ser católicos (Tabela 1).
Em relação à dependência química, 56,90% possuíam algum histórico de tabagismo e 53,56%, de etilismo. Observou-se ainda que 41,00% declararam não possuir antecedentes familiares de neoplasias malignas (Tabela 1).
DISCUSSÃO
Neste estudo, foi verificado que a maioria dos pacientes oncológicos em cuidados paliativos no HOL eram mulheres, resultado semelhante ao encontrado na literatura. Em países em desenvolvimento, como o Brasil, é esperado o predomínio de câncer no sexo feminino, devido aos altos índices de detecção de neoplasias específicas a esse gênero, como o câncer de colo uterino8,9. Em países desenvolvidos, a ocorrência de câncer tende a incidir de forma similar em ambos os sexos, devido aos programas de prevenção em massa desenvolvidos por esses países8. Souza et al.10 afirmaram ainda que a maior concentração do sexo feminino com câncer avançado também pode ser reflexo da população feminina ser maior em determinadas regiões demográficas.
A faixa etária mais frequente no período analisado foi de > 60 anos. Em um estudo realizado por Ciałkowska-Rysz et al.11, também houve predominância de pacientes nessa faixa etária, fato que estaria relacionado ao aumento da expectativa de vida e à queda na taxa de natalidade, ou seja, predomínio da população de idosos, o que pode resultar no aumento de doenças crônico-degenerativas, como o câncer. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística12, em 2030, o Brasil terá mais idosos do que crianças e jovens, e a mortalidade por câncer terá crescido 45%. Há uma diminuição progressiva na capacidade de regeneração e divisão celular em idosos e muitos apresentam alguma comorbidade além da neoplasia maligna, o que pode influenciar diretamente no prognóstico da doença e, assim, levá-los à necessidade de cuidados paliativos oncológicos13.
Quanto à região de procedência dos pacientes analisados neste estudo, observou-se que 46,44% residiam na Mesorregião Metropolitana de Belém. A alta incidência nas regiões metropolitanas se deve provavelmente ao estilo de vida adotado nessas regiões. As alterações feitas no meio ambiente, a dieta e o estilo de vida das pessoas podem determinar o surgimento de câncer nas populações e mostram ainda que a exposição aos agentes de poluição estão diretamente ligados ao desenvolvimento de neoplasias malignas, as quais, se não diagnosticadas precocemente, podem se apresentar como uma doença já sem possibilidade de cura14,15.
A maioria dos pacientes era oriunda de triagem/emergência. Mierendorf e Gidvani16 evidenciaram que pessoas com doenças crônicas, principalmente aquelas com câncer em estágio avançado, necessitam frequentemente do serviço de emergência. Gulini et al.17 relataram que, para muitos profissionais, principalmente os que trabalham nos serviços de urgência/emergência, é difícil saber quando determinados procedimentos devem ser mantidos ou suspensos. Para Lourençato et al.18, a falta de preparo nas situações de urgência/emergência pode submeter o paciente em cuidado paliativo a tratamentos desproporcionais a sua condição de saúde, gerando sofrimento a ele, a seus familiares e à própria equipe assistencial. Diante desse quadro, observa-se a necessidade de uma equipe multidisciplinar treinada e qualificada para esse tipo de serviço. Além disso, vê-se a importância da elaboração de protocolos que auxiliem e facilitem a tomada de decisões em relação a quais tratamentos devem ou não ser implementados17,18.
Quanto à escolaridade, a maioria dos pacientes apresentava apenas o ensino fundamental incompleto. Estudos realizados por Noce e Rebelo19 e por Schneider e d'Orsi20 mostraram a relação entre aspectos socioeconômicos e o diagnóstico feito quando não existe mais possibilidade de cura, o que pode ser resultante da dificuldade de acesso aos programas preventivos e assistenciais de saúde. A baixa escolaridade também está associada a piores padrões de cuidados à saúde, levando a uma maior possibilidade de sofrimento e uma pior qualidade de vida na fase de finitude19,20.
Rushton et al.21 destacaram que muitos trabalhadores podem ser expostos a vários carcinógenos durante suas atividades laborativas. Neste estudo, a ocupação predominante foi a de "dona de casa"; entretanto, essa variável não pôde ser associada como um fator de risco para o câncer e nem para o paciente se encontrar em cuidados paliativos.
Foi identificado que 51,05% dos pacientes pesquisados eram casados ou viviam em união estável, o que mostrou que a associação entre estado civil e paciente em cuidados paliativos não é significativa. Dugno et al.22 também não conseguiram estabelecer relação entre o estado civil e a ocorrência de câncer avançado e sem possibilidade de cura em um estudo conduzido no sul do Brasil. No entanto, outros estudos demonstraram que pacientes com câncer e que vivem em união estável têm mais chances de sobrevivência do que aqueles que vivem só21,22.
No presente estudo, a maioria declarou algum tipo de religião, tendo havido predominância de pacientes que se declararam católicos. Mesquita et al.23, em um estudo sobre a utilização do enfrentamento espiritual por pacientes com câncer, mostraram que mais de 90% dos mesmos consideravam a religião muito importante. King et al.24, analisando as crenças espirituais na fase final de vida, verificaram que houve tendência a diminuir a prescrição analgésica em pacientes com crenças espirituais, indicando que essas estão ligadas a menores níveis de ansiedade e depressão.
Sobre a dependência química, houve predominância de pacientes com histórico de tabagismo (56,90%). Park et al.25 verificaram que o tabagismo foi responsável por 32,9% das mortes por câncer em homens adultos na Coreia, e que aproximadamente uma em cada três mortes por câncer seria potencialmente evitável pelo controle adequado do tabagismo. Em relação ao etilismo, 53,56% dos pacientes apresentaram histórico de consumo de bebidas alcoólicas. Segundo Connor26, o consumo de álcool pode estar relacionado à ocorrência de câncer em cerca de sete regiões distintas: orofaringe, laringe, esôfago, fígado, colón, reto e mama feminina. Esse autor relata ainda que o consumo excessivo é o maior problema, embora o baixo consumo também possa predispor ao risco de ocorrência da doença. Wünsch Filho27 afirmou que cerca de 4% dos óbitos em todo o mundo são atribuídos ao consumo de bebidas alcoólicas, e mais da metade desse valor tem ligação com doenças crônicas não transmissíveis, como o câncer.
Quanto aos antecedentes familiares de câncer, a maioria dos pacientes investigados não apresentou esse fator e, por isso, não foi possível fazer associação entre genética e o câncer avançado sem possibilidade de cura. Palmero28, avaliando a relação entre hereditariedade e câncer de mama, afirmou que famílias que apresentam muitos casos de câncer, neoplasias bilaterais de mama ou tumores descobertos em indivíduos muito jovens deveriam ser avaliadas cuidadosa e rigorosamente, visto que esses fatores são indicadores importantes de risco para o câncer hereditário.
CONCLUSÃO
Conhecer o perfil desses pacientes contribui para a compreensão das peculiaridades desses indivíduos, auxiliando a equipe multidisciplinar da clínica de cuidados paliativos no planejamento da assistência prestada. Ao se delinear e sugerir intervenções aos pacientes em cuidados paliativos, é fundamental que se considere os recursos, a linguagem utilizada na orientação dos cuidados e o tipo de população mais afetada pela doença. Além disso, pode ajudar o poder público na implementação de campanhas e ações de promoção, prevenção, diagnóstico e tratamento precoce, na tentativa de modificar positivamente o cenário da estimativa do câncer avançado e sem possibilidade de cura no Pará.