INTRODUÇÃO
Triatoma pintodiasi Jurberg, Cunha & Rocha, 2013 (Hemiptera, Reduviidae, Triatominae) é uma espécie críptica do subcomplexo Triatoma rubrovaria que apresenta grande semelhança morfológica com a Triatoma circummaculata (Stål, 1859). Suas principais diferenças, em relação à T. circummaculata e à Triatoma carcavalloi Jurberg, Rocha & Lent, 1998, estão na pigmentação do lobo posterior do pronoto, na morfologia da genitália do macho, nas proporções morfométricas da cabeça e na dosagem de proteínas presentes na hemolinfa1. Essas três espécies neotropicais são simpátricas, podendo ser encontradas vivendo em rochedos e pedregais no estado do Rio Grande do Sul, Brasil, sendo raramente observadas no intra e peridomicílio, e, até o momento, somente a T. circummaculata foi encontrada naturalmente infectada pelo Trypanosoma cruzi1,2.
No processo de identificação e classificação desses vetores da doença de Chagas, o conhecimento taxonômico adequado é fundamental para a delimitação interespecífica das espécies. Devido ao processo de especiação contínuo, existem dificuldades ou até impedimentos para a delimitação de determinados táxons3,4, e, por isso, algumas ferramentas vêm sendo incorporadas à taxonomia morfológica clássica, a fim de auxiliar na identificação de caracteres que servirão como parâmetros para a delineação correta de uma espécie. Dentre as abordagens, pode-se citar o estudo comparativo da morfologia das genitálias dos machos e as técnicas bioquímicas, moleculares e estatísticas1,5,6,7. Nesse contexto, a microscopia eletrônica de varredura (MEV) tornou-se uma grande aliada da taxonomia no estudo da Triatominae devido a sua eficácia, demonstrando excelentes resultados por meio da análise estrutural de uma superfície, atribuindo-lhe maior resolução, possibilitando observar estruturas que não são vistas à microscopia óptica e, assim, auxiliando para a descrição de novas espécies e estudos taxonômicos8,9,10,11,12.
Uma análise morfológica comparativa, elaborada por Barata13, detalhou as características macroscópicas e exocoriais de 10 espécies do gênero Rhodnius Stål, 1859, observadas por meio da técnica de MEV, possibilitando a organização de uma chave para as mesmas. Os resultados de tal estudo corroboraram as teses de Pinto14 e de Galliard15, dentre os primeiros a estabelecerem que a ornamentação do exocório dos ovos de triatomíneos poderia ser usada na identificação de algumas espécies.
Com o objetivo de ampliar o conhecimento e a caracterização da espécie T. pintodiasi, a morfologia dos ovos foi descrita, utilizando-se as técnicas de microscopia óptica e de MEV, incluindo a caracterização do seu perfil morfométrico e a comparação da sua configuração exocorial com a T. circummaculata.
MATERIAIS E MÉTODOS
Cinco machos e sete fêmeas foram separados para a formação de colônia e consequente obtenção de ovos. Esses espécimes eram oriundos de colônias do insetário existente no Laboratório Nacional e Internacional de Referência em Taxonomia de Triatomíneos do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e eram provenientes de coletas no Rio Grande do Sul, na localidade do Rincão dos Ventura, na cidade de Santa Maria. As colônias foram mantidas em cristalizadores de vidro, com suporte de madeira e papel filtro em seu interior para aumentar a superfície de contato e diminuir a umidade. A temperatura e umidade foram registradas duas vezes ao dia (manhã e tarde).
Para a microscopia óptica, foram selecionados 12 ovos logo após a postura, que foram observados através da lupa estereoscópica ZEISS STEMI SV 11, para visualização das estruturas e aferição das medidas. Para morfometria, foi utilizada escala em lâmina micrométrica, posteriormente processada no software Microsoft Office Excel 2007 para obtenção de média e desvio padrão (DP). Para a análise estrutural, foram selecionados 10 ovos limpos, fixados em fita dupla face em stubs metálicos, posteriormente metalizados com ouro e levados ao MEV modelo JEOL JSM - 6390LV, para seleção das áreas e observações de suas estruturas. Com o intuito de minimizar a fração de erros na contagem e na mensuração das estruturas, o corpo do ovo foi dividido em três áreas (Figura 1 A) com contagem das perfurações em três células de cada área.
A: Divisão do exocório - (a) primeiro terço, (b) segundo terço, (c) terço final; B: Visão geral do ovo - (ex) exocório, (op) opérculo.
Todo o material citado nos resultados encontra-se depositado na Coleção Herman Lent (IOC/Fiocruz).
RESULTADOS
MICROSCOPIA ÓPTICA
Os ovos apresentaram estrutura simétrica e ausência de "colo" e "colarinho". Denotaram coloração levemente alaranjada após a postura, alterando-se de acordo com a maturação do embrião, transpassando à pigmentação levemente avermelhada. Mediram, em média, 1,51 mm (DP = 0,03) de comprimento e 0,89 mm (DP = 0,02) de largura (Tabela 1), apresentando 25% de incidência de chanfradura lateral (achatamento lateral).
Espécie | Comprimento/Largura | Perfurações por células | Formato das células | Células do opérculo/ Formato do opérculo |
---|---|---|---|---|
T. pintodiasi | 1,51/0,89 mm | 21-35 | Poligonais; existência de algumas pentagonais, com maioria hexagonais | Abauladas, levemente proeminente |
T. circummaculata (Cardozo-de-Almeida et al.11) | 1,47/0,87 mm | 35 | Hexagonais | Abauladas, levemente proeminente |
T. circummaculata (Rosa et al.16) | 1,55/0,90 mm | Numerosas | Poligonais; existência de algumas pentagonais, com maioria hexagonais | Superfície estofada, circular convexa |
A morfometria dos ovos foi apresentada de forma elucidativa, devido à diferença de softwares empregados nos estudos supracitados.
MICROSCOPIA ELETRÔNICA DE VARREDURA
Corpo com exocório (Figura 1 B) no primeiro terço da extensão do ovo, apresentando células poligonais, com variação de pentagonais a hexagonais. Essas apareceram, em maioria, pouco delimitadas quando próximas da borda (Figura 2) e com ausência de colo. No segundo terço do ovo, a arquitetura exocorial dispunha de células pentagonais e hexagonais (Figura 3 A). As células do corpo apresentaram perfurações esparsas, variando entre 21-35 orifícios em cada célula (Figura 3 B). Opérculo (Figura 1 B) do tipo verdadeiro, levemente proeminente, formado por células poligonais abauladas (Figura 4 A), em sua maioria hexagonais, apresentando perfurações distribuídas em todas as células e linhas limitantes bem aparentes com aspecto de sulco (Figura 4 A). Opérculo apenso à borda do ovo, com evidente fenda na junção (Figura 4 B). Borda com formato regular em toda sua extensão (Figura 5 B), presença de aerópilas (Figura 5 A) e micrópilas (Figura 5 B) em todo seu contorno.
Linha limitante perde distinção à medida que se aproxima da borda: (a) Linha limitante pouco distinta; (b) Linha limitante bem distinta.
A: Ultraestrutura das células no segundo terço da extensão do ovo; B: Estrutura do exocório do último terço do corpo do ovo formada por células
A: Opérculo com células poligonais com aspecto abaulado e levemente proeminentes, evidenciando perfurações em algumas células; B: Opérculo apenso à borda do ovo, com evidente fenda na junção.
A: Borda do ovo com presença de aerópilas; B: Borda do ovo com formato regular em toda sua extensão e, em destaque, as micrópilas bem aparentes na borda do ovo.
Comparando as características obtidas por meio da MEV dos ovos de T. pintodiasi com as discriminadas por Rosa et al.16 e Cardozo-de-Almeida et al.11 para T. circummaculata, foi possível destacar as similaridades encontradas na configuração exocorial das células do opérculo, juntamente com as do corpo do ovo, realçando a inespecificidade na quantidade das perfurações presentes nas células, ressaltando que esta é a primeira descrição morfológica pelo uso de MEV e morfométrica para ovos de T. pintodiasi.
A observação de estruturas características, como aerópilas e micrópilas, em torno da borda, mostrou que essas estão distribuídas de forma regular, com existência de fenda na junção do opérculo com a borda do ovo. Também foi observada a ausência de colo e colarinho.
DISCUSSÃO
Desde que Galliard, em 1935, demonstrou a importância das estruturas exocoriais, por variarem de espécie para espécie, os triatomologistas tiveram acesso a uma nova ferramenta no rol dos elementos a serem analisados para caracterizar uma espécie. Dessa forma, foi possível ampliar o conceito específico e aumentar as condições de controle desses vetores da doença de Chagas que possuem ciclos biológicos característicos, dependendo de temperatura, umidade e fontes alimentares.
A caracterização da ornamentação do exocório, tamanho, forma e a presença ou ausência de determinadas estruturas servem de parâmetros para a definição ou diferenciação de algumas espécies17. Barata13 evidenciou a importância dessas estruturas para a diferenciação de 10 espécies do gênero Rhodnius, criando uma chave dicotômica baseada nas características morfológicas dos ovos. Posteriormente, Gonçalves et al.18, Rosa et al.16 e Santos-Mallet et al.10 também evidenciaram a importância dessas estruturas na caracterização de espécies do gênero Triatoma.
T. pintodiasi é uma espécie críptica em relação à T. circummaculata e faz parte do subcomplexo T. rubrovaria, que é composto por mais cinco espécies: T. carcavalloi; Triatoma klugi Carcavallo, Jurberg, Lent & Galvão, 2001; Triatoma limai Del Ponte, 1929; Triatoma oliveirai (Neiva, Pinto & Lent, 1939); e T. rubrovaria (Blanchard, 1843).
O perfil morfométrico, obtido por meio da mensuração das dimensões dos ovos, permitiu a observação da diferença nas médias quando comparadas diretamente com os trabalhos de Rosa et al.16 e Cardozo-de-Almeida et al.11 sobre T. circummaculata. Porém, neste estudo, não pôde ser realizada uma análise estatística comparativa, devido à ausência dos dados brutos originais dos autores supracitados e homogeneidade de software, onde qualquer análise feita de forma aleatória poderia fornecer uma falsa significância.
A T. pintodiasi apresentou similaridades em relação à T. circummaculata quando comparada com os estudos de Rosa et al.16 e Cardozo-de-Almeida et al.11; porém, a configuração exocorial, no primeiro terço da borda, apresentou morfologia diferente entre as espécies.
CONCLUSÃO
A morfologia dos ovos de T. pintodiasi foi observada, pela primeira vez, utilizando-se a técnica de MEV e apresentou similaridades estruturais na configuração exocorial com T. circummaculata, sendo a configuração no primeiro terço da borda uma característica importante que pode servir de base para estudos mais aprofundados sobre essas espécies.