INTRODUÇÃO
No século XX, ocorreram muitos avanços no campo da biologia molecular, por meio de técnicas que possibilitaram o mapeamento do genoma humano e de doenças monogênicas, as quais serviram de base para o desenvolvimento da terapia gênica1. No final da década de 1970 e começo dos anos 1980, iniciaram-se pesquisas com subclonagem de genes de mamíferos em plasmídeos e bacteriófagos2. Nesse mesmo período, foram desenvolvidas técnicas de transferências de genes para células de mamíferos utilizando retrovírus como vetores virais. Essas pesquisas e estudos clínicos foram os precursores da terapia gênica em humanos2.
Com o conhecimento de que muitas doenças provinham de alterações genéticas e com o advento da tecnologia do DNA recombinante, surgiu a ideia de tratar as doenças manipulando e alterando a sequência do ácido nucleico das células doentes. Em 1978, David Baltimore, um microbiologista americano, afirmou que seria "o triunfo da medicina se os genes defeituosos pudessem ser silenciados"3.
A terapia gênica foi considerada uma alternativa para tratar doenças, cujos procedimentos clínicos já adotados não estavam se mostrando eficazes ou eram inexistentes4. Enquanto a terapia convencional procurava aliviar os sintomas de forma transitória, a terapia gênica apresentava como proposta tratar a base genética das doenças5.
A princípio, a terapia gênica tinha como objetivo tratar doenças monogênicas recessivas6. Com o avanço das pesquisas, muitos ensaios começaram a explorar o potencial da terapia gênica também em doenças adquiridas, como câncer, doenças cardiovasculares e infecciosas7.
Nas doenças monogênicas, a terapia gênica atuaria introduzindo a cópia de um gene funcional para substituir o gene defeituoso. Nas doenças poligênicas ou adquiridas, o tratamento seria utilizado para modificar informações celulares, estimular respostas terapêuticas, como produção de enzimas, proteínas e receptores, e inibir ou estimular respostas imunes4.
Um ponto importante era demonstrar, por meio de resultados de pesquisas, que os benefícios da terapia gênica para tratar doenças percebidas pela população como não fatais, mesmo que altamente limitantes, como artrite reumatoide e doenças cardiológicas, superariam os riscos e aumentariam a qualidade de vida desses pacientes8.
Para levar o material genético terapêutico às células-alvo, a terapia gênica utiliza veículos conhecidos como vetores, que são divididos em virais e não virais9. Esses vetores são moléculas de DNA com capacidade de carrear, transferir e expressar genes heterólogos para células-alvo do hospedeiro10.
Os vetores não virais utilizados na terapia gênica são os lipoplexos, poliplexos e lipopoliplexos, que são partículas químicas produzidas com o objetivo de transportar o DNA plasmidial até as células de interesse. Por muito tempo, esse tipo de vetor foi ignorado, devido a sua baixa eficiência na entrega dos genes de interesse; porém, atualmente, várias técnicas e novos compostos são investigados para melhorar a entrega do material terapêutico, como lipossoma catiônico, polímero catiônico, eletroporação e esonoporação11,12. Além desses vetores, existem também os virais, que estão sendo usados com maior frequência em ensaios clínicos de terapia gênica. Dentre eles, os mais comuns são os vetores retrovirais, adenovirais, vírus adenoassociados, herpesvirais e os poxvirais8,12.
Neste trabalho de revisão, são explorados os aspectos mais relevantes no uso de vetores virais na terapia gênica, abordando, de forma breve, os vetores não virais para, então, de forma mais específica, discorrer sobre as características gerais e as aplicações dos principais vetores virais.
VETORES NÃO VIRAIS
Os vetores não virais são compostos de partículas biológicas sinteticamente produzidas, nas quais o plasmídeo de DNA, contendo o transgene terapêutico, é encapsulado ou ligado a um composto químico e, em seguida, liberado no alvo no momento da entrega. Além de DNA, os vetores não virais são capazes de transportar compostos sintéticos, como fragmentos de RNA13.
Os plasmídeos são fragmentos de DNA circular, os quais possuem uma existência independente nas células bacterianas, podendo ser transfectados de uma bactéria para outra. A incorporação de fragmentos de DNA heterólogo no plasmídeo vetorial permite a expressão e a tradução da proteína de interesse em células-alvo10.
Os vetores não virais são organizados em três tipos. O primeiro é o lipoplexo, à base de lipídios ou biodegradável, no qual o DNA plasmídeal é coberto por um lipídio, que pode ser catiônico, neutro ou aniônico, considerando que a carga superficial é uma propriedade físico-química importante. Até o momento, os vetores do tipo lipoplexos catiônicos são os mais utilizados, uma vez que as cargas opostas de plasmídeos, os quais são aniônicos e lipídios catiônicos, atraem-se eletrostaticamente, tornando o sistema mais estável. Uma carga final positiva aumenta a fixação do sistema aos proteoglicanos presentes na superfície de células-alvo e consequente condução para a endocitose. Vetores dos tipos neutros ou aniônicos tendem a ser menos estáveis que as partículas carregadas, devido à agregação entre eles e a fraca interação com as células, o que pode acarretar na liberação do sistema no espaço extracelular. Os vetores lipoplexos possuem vantagens de maior segurança e baixa citotoxicidade14,15.
Como desvantagem, os vetores lipoplexos tendem a se agregar sob condições fisiológicas, o que limita sua circulação e seu tempo de vida. Para contornar esse problema, uma das técnicas consiste em incorporar polietilenoglicol na superfície do lipoplexo, promovendo a redução da agregação e protegendo-o da opsonização por proteínas plasmáticas. A outra abordagem consiste em utilizar nanopartículas lipídicas sólidas para diminuir a agregação13.
O segundo tipo de vetor não viral é o poliplexo ou vetor inorgânico. A maioria dos poliplexos consiste num complexo nanomérico formado entre um polímero catiônico e ácidos nucleicos. Esses complexos nanoméricos são estáveis, protegem o ácido nucleico da degradação e são competentes para entrar em células, geralmente por endocitose. A diferença entre poliplexo e lipoplexo é que o vetor poliplexo não é capaz de liberar a sua carga de DNA para o citoplasma, sendo necessária a cotransfecção com agentes endossoma-líticos12,14,15. Entre os poliplexos, a polietilenimina se destaca pela elevada eficiência de transfecção; contudo, o uso clínico desse poliplexo é limitado, devido aos seus efeitos citotóxicos. Com isso, buscam-se alternativas como o quitosano, um polímero biocompatível, porém com transfecção inferior à polietilenimina. Pesquisas utilizando quitosano com enxerto de nanopartículas de polietilenimina demonstraram o aumento da eficiência desse polímero sem diminuir seu perfil de segurança13.
Além dos vetores citados acima, existem também os vetores lipopoliplexos, que são produzidos unindo-se as propriedades vantajosas dos lipoplexos e dos poliplexos. Os lipopoliplexos são mais estáveis, apresentam maior reprodutibilidade e eficiência de transfecção16.
Para melhorar a transferência de genes por vetores não virais, como plasmídeos, são utilizadas técnicas de entrega do gene de interesse, como: os métodos químicos chamados de lipossoma catiônico, polímeros; e os métodos físicos, como as técnicas eletromecânicas de eletroporação e de biobalística8,12.
Os vetores não virais apresentam como vantagens: ausência de patogenicidade; baixo custo; facilidade de produção; e maior segurança em relação às abordagens virais14,17,18.
Como limitações, tais vetores apresentam: baixa eficiência de entrega do material genético; dificuldade em manter sua integridade no meio extracelular, por sofrerem degradação pelas nucleases; e dificuldade em manter a expressão do gene terapêutico13.
VETORES VIRAIS
Os vírus evoluem desenvolvendo estratégias aprimoradas para alcançar e penetrar em células-alvo específicas, onde eles sequestram a maquinaria celular para expressar seus genes e produzir sua progênie. Essa habilidade de entrar e expressar seus genes dentro das células é a base para o uso dos vírus como vetores19.
Os vetores virais, como o próprio nome sugere, são vetores produzidos a partir de vírus com genomas de DNA ou RNA. Para construí-los, é preciso identificar as sequências virais necessárias para replicação e empacotamento do genoma viral, sendo também importante conhecer os mecanismos possíveis para entrega do gene de interesse (transgene) à célula-alvo20.
Nessa perspectiva, o genoma viral pode ser reorganizado visando a eliminar genes essenciais à replicação e à patogenicidade do vetor, para substituí-los por genes heterólogos e abrir espaço para a inserção do transgene21. Esse rearranjo torna o vírus parenteral apenas um transportador do material genético, ou seja, um vetor viral. Essa transferência genética tem como objetivos: estudar genes funcionais, corrigir defeitos genéticos, expressar proteínas terapêuticas e desenvolver vacinas para combater tumores e agentes infecciosos19.
Apesar de sua eficácia para transportar o material genético, alguns vírus apresentam um papel patogênico e, assim, os riscos de infecção e genotoxicidade devem ser levados em consideração, no que diz respeito à segurança do vetor de escolha13. Quando se projeta um vetor viral, é importante buscar características como: ausência de toxicidade para as células e de resposta imune contra o vetor e o transgene; capacidade de integração sítio-específico; estabilidade e expressão do gene em longo prazo20.
Cada vetor viral apresenta vantagens e limitações específicas, e a escolha do mesmo dependerá dos objetivos que se pretende alcançar10.
VETORES BASEADOS EM RETROVÍRUS
Os retrovírus são vírus envelopados, constituídos de um genoma de fita simples de RNA, de polaridade positiva, com cerca de 7 a 11 kb (kilobase)20. Após a entrada na célula-alvo, o genoma de RNA é transcrito em uma fita dupla de DNA, a qual é integrada no genoma celular22. Todos os genomas retrovirais possuem dois terminais longos de repetição (LTR) nas extremidades 5' e 3' que flanqueiam os genes gag, pol e env, os quais codificam as proteínas estruturais, as transcriptases, as integrases e as proteases19.
A localização da maioria das sequências atuantes em cis (do inglês cis-acting), na região terminal desses vírus (sítio de ligação do iniciador, região polipurínica e sinais de empacotamento), tem permitido a construção de retrovetores simples e eficientes, sendo amplamente utilizados para terapia gênica23. Nesse tipo de vetor, pode-se utilizar DNAs exógenos de até 8 kb para serem inseridos no lugar dos genes virais24.
Dentre os retrovírus, um deles tem sido amplamente estudado e utilizado para a construção de retrovetores: os lentivírus. Esses vírus possuem um genoma complexo e, além dos genes gag, pol e env, codificam dois genes regulatórios, tat e rev, essenciais para a expressão do genoma, além de um conjunto de genes acessórios22. Os lentivírus apresentam um melhor perfil de segurança referente à ativação de proto-oncogenes quando comparados a outros retrovírus13. Estudos mostraram que os vetores lentivirais têm uma menor tendência a se integrarem ao genoma do hospedeiro em locais que potencialmente podem causar câncer20.
É importante ressaltar que os vetores lentivirais apresentam comportamentos diferentes com relação às células-alvo. Em células não divisíveis, como neurônios, hepatócitos e fibras musculares, os vetores mantêm-se estáveis em uma forma não integrada ao genoma do hospedeiro. Nas células com capacidade de divisão, os vetores se integram ao genoma da célula e são duplicados com o DNA do hospedeiro, representando então um risco de oncogênese, mesmo que menor em relação a outros retrovírus25.
Dentre os lentivírus, o vírus da imunodeficiência humana (HIV) é o que mais se destaca para construção de vetores. Os vetores baseados em HIV-1 foram desenvolvidos, sobretudo, com o objetivo de transduzir células não mitóticas. Outra vantagem desses vetores é a expressão prolongada nas células transduzidas26.
Os vetores de HIV estão entre os sistemas de transdução considerados mais eficientes in vivo e ex vivo; contudo, devido ao potencial de patogenicidade residual dos vetores de HIV, outros vetores estão sendo pesquisados, como o vírus da imunodeficiência felina, o vírus da anemia infecciosa equina e o vírus da imunodeficiência bovina19.
A glicoproteína do envelope viral dita o tropismo das partículas virais para células de um determinado hospedeiro, pela interação com os receptores nas células-alvo. O mecanismo de montagem (empacotamento) dos retrovírus permite a construção de vetores com substituição da proteína do envelope viral pela proteína de um vírus diferente, em um processo denominado de pseudotipagem, permitindo aumentar ou mudar o tropismo celular desses vetores27. Desse modo, a glicoproteína G do vírus da estomatite vesicular tem sido utilizada, por exemplo, para aumentar o tropismo de retrovetores na transdução de neurônios e células da glia28,29. Visando redirecionar o tropismo dos retrovetores para as células epiteliais do trato respiratório, a pseudotipagem foi utilizada com a glicoproteína M2 do influenza e a proteína F do vírus Sendai, observando-se uma melhora de 5% da eficiência na transdução de células ciliadas das vias respiratórias30.
Outra abordagem utilizando retrovírus tem sido a construção de vetores autoinativantes (self-inactivating - SIN). Os vetores do tipo SIN são construídos por meio da exclusão da sequência da região U3 do 3' LTR e, com isso, inativando o promotor endógeno do provírus26. O sistema de autoinativação visa diminuir os riscos de uma possível replicação viral desordenada e evita a codificação de sequências celulares adjacentes ao local de integração, reduzindo o risco de oncogênese de inserção31. Porém, mesmo com o uso de vetores SIN e promotores reguladores, ainda há o risco da ativação de genes próximos ao local de inserção, uma vez que a integração do DNA retroviral é um processo pseudoaleatório na célula hospedeira17.
Para diminuir esse efeito, alguns estudos têm abordado o uso do isolamento do genoma em torno do local de inserção (região flanqueada). Utilizam-se isoladores, pequenos elementos de DNA, que agem como barreira impedindo que elementos promotores e modificadores da cromatina influenciem na expressão de genes vizinhos. O isolador mais pesquisado é o cHS4, derivado do locus β-globina da galinha (Gallus gallus domesticus)3.
A deficiência da adenosina desaminase (ADA) resulta no acúmulo de substâncias tóxicas de metabólitos intra e extracelulares (trifosfatos de desoxiadenosina e de adenosina), comprometendo o desenvolvimento de linfócitos T, linfócitos B e células natural killers32. Alguns estudos foram realizados utilizando vetores retrovirais para tratamento da ADA. Na década de 1980, a transferência dos genes foi realizada em células do cordão umbilical, ex vivo. A resposta foi insuficiente, devido ao reduzido número de células transduzidas33. Em 2000, 40 pacientes oriundos da Itália, do Reino Unido e dos Estados Unidos foram submetidos à terapia, utilizando vetores retrovirais para codificar o gene G-ADA34. Houve melhora do quadro de imunodeficiência e nenhum paciente desenvolveu leucemia, apenas uma pequena atividade de transcrição foi observada em clones de células T26. Em um ensaio clínico francês, células CD34+ foram infectadas com vetor retroviral para a entrega do transgene, com resultados não satisfatórios. Três pacientes evoluiram com leucemia após dois anos do procedimento, devido à ativação do proto-oncogene LMO23. Entre 2003 e 2004, no Japão, duas crianças desenvolveram células gene-T corrigidas, porém em quantidade insuficiente para recuperação imune32.
Vetores baseados em retrovírus também foram utilizados para tratamento da imunodeficiência combinada grave ligada ao X1 (SCID-X1). A doença é causada por uma mutação no gene IL2RG, que conduz a uma expressão deficiente da cadeia gama comum, uma subunidade compartilhada por receptores de citoquinas, incluindo interleucinas 2, 4, 7, 9, 15 e 21, que desempenham importante papel no desenvolvimento e função dos linfócitos34. Os portadores da imunodeficiência apresentam desenvolvimento deficiente de células natural killers e células T, além de células B não funcionais26. Em 2000, na França, 10 crianças portadoras de SCID-X1 foram submetidas à terapia gênica; no entanto, dois anos após o tratamento, duas crianças que haviam sido tratadas com altos níveis de material transgênico desenvolveram leucemia. Ficou comprovado que a inserção do vetor retroviral próximo ao promotor proto-oncogene LMO2 promoveu a expressão desordenada do referido promotor31,33.
A doença granulomatosa crônica, que é uma doença rara, hereditária, autossômica, recessiva e que provoca uma deficiência na função dos neutrófilos, devido à mutação no sistema NADPH oxidase, também foi alvo de terapia gênica26. Os dois primeiros testes realizados nos Estados Unidos, em 1995 e 1998, com um total de 10 pacientes, utilizaram vetores retrovirais. Em todos os pacientes, o número de neutrófilos corrigidos persistiu por alguns meses, todavia não resultou em benefício clínico em longo prazo34. Em 2006, em um ensaio clínico franco-suíço, foram inseridas células CD34 modificadas com vetor retroviral em três pacientes, com diminuição de recidivas de infecções por dois anos. Após esse período, um dos pacientes morreu por sepse, devido à reativação da doença, o que evidenciou a diminuição da expressão do transgene31.
Embora amplamente utilizados, os vetores baseados em retrovírus apresentam algumas desvantagens, como o alto risco de mutagênese de inserção, a baixa estabilidade e a transdução apenas em células em divisão. Por outro lado, é preciso considerar a possibilidade de integração do genoma do vetor dentro do genoma do hospedeiro, o que pode ser importante para algumas patologias, além do fato de que é pouco imunogênico e as partículas virais podem ser produzidas em altos títulos19.
VETORES BASEADOS EM ADENOVÍRUS
O uso de adenovírus humanos (HAdV) recombinante recebeu especial atenção, como veículo para transferência de genes, quando foi utilizado para infectar células do epitélio respiratório no tratamento de doenças como a fibrose cística. Desde então, foi rapidamente observado que tais vetores seriam os mais eficientes sistemas para a transferência de genes considerando uma ampla variedade de tecidos22.
Embora existam mais de 50 diferentes sorotipos de HAdV reportados, os vetores são primariamente derivados dos sorotipos 2 e 5, os mais comuns, aos quais a maioria dos adultos tem sido exposta19.
Os adenovírus (AdV) são vírus não envelopados, com genoma de DNA de fita dupla35. Durante seu processo de replicação, os genes da região precoce 1 (E1) são rapidamente transcritos e servem como reguladores transcricionais para o processo de replicação do genoma. Os genes E1 (E1A e E1B), em combinação com os genes E2 e E4, são necessários para a replicação do genoma viral. O gene E3 é um gene sem função essencial para o vírus. Tardiamente na replicação, os genes que codificam as proteínas estruturais são transcritos, permitindo o empacotamento dos genomas recém-produzidos19,36.
Na primeira geração de vetores virais baseados em HAdV, o gene precoce E1A era deletado, inibindo a replicação viral e abrindo espaço para a inserção do transgene. No entanto, para reduzir o risco de reversão do mecanismo de replicação, o qual poderia ocorrer devido à recombinação com outros componentes do genoma viral ou celular, novos vetores passaram a ser produzidos, com deleção dos genes E1B e E3, os quais apresentam um importante papel na modulação da imunidade específica para HAdV37.
Assim como todos os vetores que são incompetentes na replicação por terem tido genes essenciais para a replicação deletados, as partículas de HAdV recombinantes só poderão ser produzidas a partir das chamadas linhagens celulares de empacotamento35,36,38. A nova geração de vetores baseados em HAdV é desprovida da maioria dos genes virais, contendo apenas os terminais de repetição e os sinais de empacotamento e sendo produzidos em células de empacotamento que expressam estavelmente a maioria dos genes virais necessários para a montagem do vírus39.
Estudos iniciais focavam no uso de vetores baseados em HAdV para o trato respiratório, alvo principal da infecção por HAdV. Atualmente, com o refinamento das técnicas de engenharia genética, esses vetores são capazes de infectar uma grande variedade de células pós-mitóticas, incluindo as células presentes em tecidos altamente diferenciados, como músculo esquelético, pulmão, cérebro e coração40.
Vetores baseados em HAdV foram utilizados na terapia gênica para a deficiência da ornitina transcarbamilase (OTC). Nessa doença ocorre um defeito no gene OTC que codifica a enzima OTC, responsável por converter a amônia, produto de excreção hepática, em ureia. O paciente evolui com hiperamonemia, provocando sintomas variados, como letargia, vômitos, convulsões, encefalopatia e cirrose. Em 1999, em um ensaio clínico utilizando vetor de HAdV, um paciente foi a óbito, devido à resposta inflamatória provocada pelo vetor. Além disso, as investigações revelaram que houve descumprimento do protocolo aprovado, sub-registro de eventos adversos e divulgação insuficiente de conflitos de interesse41.
Os vetores baseados em HAdV também têm sido desenvolvidos e estudados para o tratamento de doenças não monogênicas, como câncer42,43,44,45, artrite reumatoide8 e aids26.
Uma das principais desvantagens no uso desses vetores está na alta imunidade estimulada por eles, com casos já relatados de morte devido à severa resposta antivetor gerada pela excessiva inoculação do vetor. Diante disso, novos vetores, baseados em AdV derivados de vírus parentais que raramente circulam em humanos, estão sendo desenvolvidos19.
VETORES BASEADOS EM VÍRUS ADENOASSOCIADOS
O vírus adenoassociado (AAV) possui um genoma constituído por DNA linear de fita simples, com cerca de 4,7 kbp, protegido por um capsídeo icosaédrico. O genoma desse vírus é composto de dois genes: rep, replicase requerida para a replicação do genoma viral; e cap, o qual codifica proteínas estruturais. Os genes são flanqueados por duas sequências palindrômicas denominadas ITRs (repetições terminais invertidas)13.
Para a sua replicação, o AAV precisa da coinfecção com vírus auxiliares, como os vírus herpes simples, AdV e vírus do papiloma humano (HPV). Na falta de um vírus auxiliar, o genoma do AAV pode persistir no hospedeiro como um epissoma (unidade replicadora que atua de forma independente) e pode se integrar em local específico no genoma do hospedeiro, no cromossomo 19, sendo esse processo mediado pela proteína rep46.
Após a reativação por infecção com um vírus auxiliar, ocorre um conjunto de eventos que conduz à produção de partículas infecciosas. Esses eventos incluem a ativação precoce do gene rep, o resgate do genoma do AAV e, finalmente, a geração de formas replicativas de DNA que também servem como modelos para a síntese de proteínas rep e cap47.
Para desenvolver vetores baseados em AAV, os genes rep e cap são deletados e fornecidos in trans. Em vetores de AAV recombinante (rAAV), os genes virais são substituídos por um transgene que carrega o promotor, o gene de interesse e o local pA18. Inicialmente, essa função era realizada pelos adenovírus auxiliares, que possuíam os genes importantes para o empacotamento e para a replicação do AAV recombinante. No entanto, devido aos problemas de produção, no qual se tornava difícil separar o vírus auxiliar do vetor recombinante no produto final, os adenovírus foram substituídos por plasmídeos que expressam os genes ausentes19,20,48.
Em 2004, Nathwani et al.49 reportaram o uso de vetores de AAV para tratamento da hemofilia B ou doença de Christmas, que é hereditária, recessiva e ligada ao X, na qual ocorre deficiência do fator IX ou fator Christmas, uma das principais proteínas da cascata da coagulação49. Apesar da existência da hemofilia A, que é decorrente da deficiência do fator VIII, as pesquisas se concentram no tipo B, pois as regiões e sequências reguladoras do fator IX podem ser facilmente codificadas no vetor viral adenoassociado50. A hemofilia B caracteriza-se por episódios recorrentes de sangramentos. No referido estudo49, foi realizado um ensaio clínico com 10 pacientes portadores de hemofilia B, utilizando vetores de AAV, sorotipo self-complementary 8 (AAV8), para aumentar os níveis do fator IX por um período de até 16 meses. Os resultados foram promissores, pois observou-se redução dos episódios hemorrágicos e do uso profilático de concentrados de fator IX.
Esse tipo de vetor também tem sido estudado para o tratamento da deficiência familiar da lipoproteína lipase, uma doença hereditária autossômica, recessiva, causada por mutação no gene da lipoproteína lipase (LPL), o qual codifica uma enzima produzida no tecido adiposo, no músculo esquelético e no músculo cardíaco e é responsável pelo metabolismo de lipoproteínas ricas em triglicerídeos51. Após várias pesquisas, três ensaios clínicos, com um total de 27 pacientes, utilizaram vetor AAV1 para expressar uma variante do LPL transgene, denominado alipogene tiparvovec, com excelentes resultados52.
Dentre as doenças não monogênicas, nas quais vetores adenoassociados têm sido reportados, estão a artrite reumatoide53 e a doença de Parkinson25,31,54.
No entanto, os vetores possuem algumas desvantagens, como a capacidade de clonagem limitada e imprópria para a maioria dos genes terapêuticos. Como o AAV requer a conversão da fita simples de DNA em fita dupla de DNA antes que a expressão do gene comece, isso o torna um vetor de expressão muito lenta para algumas aplicações in vivo48. Dentre as vantagens para o uso dos vetores de AAV, pode-se citar a baixa imunogenicidade, o amplo tropismo celular, o uso de vírus parental não patogênico para o hospedeiro e a capacidade de transdução em células que estejam ou não em divisão. Os vetores AAV podem ser utilizados em uma ampla variedade de células, incluindo células musculares, células do sistema nervoso central e hepatócitos, sendo o vetor de escolha em cerca de 100 ensaios clínicos com terapia gênica para doenças monogênicas55.
VETORES BASEADOS EM HERPESVÍRUS
Os herpesvírus humanos (HHV) fazem parte da família Herpesviridae, são vírus de DNA envelopados e causam infecções líticas, latentes e/ou persistentes ou recorrentes35. O HHV é de particular interesse para investigadores da terapia gênica, em especial o herpesvírus do tipo 1 (HHV-1), um vírus de DNA neurotrópico que abriga mais de 80 genes categorizados entre essenciais e não essenciais, de acordo com sua necessidade de replicação7.
A presença dos muitos genes não essenciais permite ao vírus um espaço de cerca de 30 a 50 kbp para a inserção de genes heterólogos, o que os torna excelentes vetores para a terapia gênica56.
Durante o processo de replicação, os HHV codificam três grandes grupos de proteínas35:
a) Proteínas iniciais imediatas (α), que consistem em proteínas importantes na regulação da transcrição gênica e controle da célula;
b) Proteínas iniciais (β), que consistem em mais fatores de transcrição e enzimas, incluindo a DNA polimerase;
c) Proteínas tardias (γ), que consistem principalmente em proteínas estruturais geradas após o início da replicação do genoma viral.
Atualmente, três diferentes classes de vetores são derivadas de HHV-1: vetores atenuados competentes em replicação; vetores recombinantes incompetentes em replicação; e amplicons (vetores dependentes de vírus defectivo-auxiliares). Para desenvolver os vetores atenuados competentes em replicação, são deletados os genes não essenciais para a replicação. Os vetores incompetentes em replicação são desenvolvidos pela deleção de um ou mais genes iniciais imediatos, os quais são fornecidos in trans por uma cepa de HHV competente em replicação, por um plasmídeo ou por células que expressam constitutivamente o gene deletado. A terceira classe de vetores, os amplicons, são os mais seguros por carregarem o mínimo de sequências virais e apresentarem baixa toxicidade e imunogenicidade57.
A geração de HHV geneticamente construídos tem sido utilizada principalmente para o tratamento de doenças neuronais. Além das células não proliferativas, como as células neuronais, os vetores baseados em HHV também são desenvolvidos para transduzir células em divisão, como as células da glia do sistema nervoso central13.
O principal obstáculo no uso dos vetores baseados em HHV é a imunidade pré-existente, que eficientemente inativa as partículas vetoriais e elimina células transduzidas que expõem, em sua superfície, proteínas do HHV codificadas pelo vetor ou empacotadas na partícula. Outro fator preocupante seria a recombinação entre o vetor de HHV e o genoma selvagem do vírus presente na forma latente em células do hospedeiro19.
Como vantagens no uso desse tipo de vetor, reporta-se o amplo tropismo celular, a possibilidade de inserção de DNA heterólogo grande (até 50 kbp), o tropismo natural por células neuronais (vetores de HHV) e células B (vetores de vírus Epstein Barr), a boa adequação como vetores oncolíticos (altamente tóxicos para alguns tumores proliferativos) e a produção de partículas em altos títulos35,56.
Muitos estudos demonstraram uma expressão transgênica estável em longo prazo no sistema nervoso quando utilizados vetores baseados em HHV-1. Os estudos pré-clínicos, utilizando modelos de doença neurológica, como glioma, neuropatia periférica, dor crônica e neurodegeneração, reportaram resultados promissores58,59,60.
VETORES BASEADOS EM POXVÍRUS
Os poxvírus, incluindo o vírus da varíola (VARV), são partículas envelopadas complexas, com um genoma grande de DNA de fita dupla, de aproximadamente 190 kbp de comprimento61. Outro importante fator a ser considerado, é que esses vírus apresentam um alto número de genes (cerca de 250) e muitos deles podem ser deletados por serem dispensáveis para a replicação62.
O vírus Vaccinia (VACV) é o membro protótipo da família Poxviridae e, por isso, a maioria das pesquisas, utilizando vetores de poxvírus, tem sido focada em sua utilização. Assim como para todos os poxvírus, o VACV tem um ciclo completo de replicação dentro do citoplasma da célula hospedeira, apesar de ser um vírus de DNA63.
O VACV pode abrigar genes heterólogos de até 25 kbp, tornando-os muito úteis para a expressão de genes maiores. Devido a sua capacidade de alta expressão do transgene e suas propriedades citolíticas, os vetores de poxvírus são mais utilizados para a produção de proteínas recombinantes, terapia contra o câncer e vacinação64.
Para a construção de vetores baseados em poxvírus recombinantes, é necessário considerar dois pontos: os locais de inserção no genoma do VACV e os genes repórteres introduzidos. O genoma do VACV tem cerca de sete locais de inserção conhecidos, onde genes heterólogos podem ser inseridos. O local de inserção escolhido depende principalmente da aplicação futura dos vírus recombinantes46,63,65.
Os vetores baseados em VACV desenvolvidos atualmente são altamente atenuados, restritos ao hospedeiro e utilizam cepas com quase nenhuma capacidade de replicação. As cepas mais utilizadas incluem o vírus Vaccinia Ankara modificado (MVA), a cepa NYVAC derivada da cepa Copenhagen, Avipoxvirus ALVAC e TROVAC (infectam aves)66. O perfil de eficácia, quanto à capacidade de ativação da resposta imune, parece ser variado entre as diferentes cepas, sendo MVA a cepa que parece eliciar uma menor resposta imune67.
Os vetores baseados em VACV são capazes de eliciar um efeito antitumoral em tumores hipóxicos. Esses tumores sólidos são caracterizados por regiões de baixo aporte de oxigênio, com consequente surgimento de áreas intratumorais mal vascularizadas, sendo resistentes à radioterapia ou à quimioterapia. Os vetores baseados em VACV são atrativos para tumores hipóxicos de difícil tratamento, como os tumores pancreáticos68. Uma das abordagens utilizadas para a construção de mutantes de poxvírus oncolíticos consiste na deleção do gene de timidina quinase do genoma viral. Um estudo demonstrou o uso, em ensaios clínicos de fase II, do vetor oncolítico denominado JX-594 para tratamento de pacientes com câncer de fígado. Para tal propósito, o gene heterólogo GM-CSF (fator estimulador de colônias de granulócitos e macrófagos) foi inserido no lócus de timidina quinase, gerando um vetor seletivo para o tumor69.
Os vetores poxvírus apresentam, como principal vantagem, os múltiplos locais para a inserção do transgene. No entanto, como desvantagens, esses vetores são potencialmente citotóxicos, apresentam uma expressão transiente do transgene e são altamente imunogênicos19.
CONCLUSÃO
O elemento essencial para a terapia gênica são os vetores, veículos de entrega do material gênico, que são divididos, quanto à forma de construção, em virais e não virais. Até o presente momento, os vetores virais são considerados mais eficientes e frequentemente utilizados nas pesquisas e ensaios clínicos, por isso foram o objeto de estudo deste trabalho.
O tratamento de muitas doenças, por meio da terapia gênica com vetores virais, vem sendo pesquisado, alcançando-se bons resultados; porém, houve casos em que ocorreram toxicidade, mutações oncogênicase até mesmo óbito do paciente, gerando preocupaçãoperante as pesquisas.
Os vetores virais são eficazes para entregar o agente terapêutico, todavia apresentam risco de infecção e de estimular respostas imunes e oncogênicas. É importante aumentar os esforços nas pesquisas que visem o desenvolvimento de novas metodologias, assim como aprimorar o padrão de eficiência e segurança dos vetores virais já existentes.