INTRODUÇÃO
Segundo o Ministério da Saúde do Brasil, os envenenamentos envolvendo animais peçonhentos representam um sério problema de saúde pública, em particular os ofídicos, devido a sua gravidade e frequente ocorrência1. No país, quatro gêneros de serpentes são responsáveis por envenenamento: Bothrops, Crotalus, Lachesis e Micrurus2. Nacionalmente, ocorrem, por ano, cerca de 20.000 casos envolvendo serpentes, e a Região Norte concentra o maior número desses1,2,3, com o gênero Bothrops representando o grupo mais importante, afetando principalmente áreas rurais4,5.
O veneno botrópico possui ação proteolítica ou inflamatória, coagulante e hemorrágica, com manifestações locais e sistêmicas1,2,5,6. Segundo o Ministério de Saúde, o tratamento específico é feito com o soro antibotrópico (SAB), e dosagem de acordo com a gravidade do envenenamento1,2,6. Dependendo da gravidade, o acidente é classificado como leve, moderado e grave, o qual está intimamente relacionado com a quantidade de peçonha inoculada1,2,6. No Brasil, os critérios de gravidade são classificados como: leve (dor, edema ou parestesia local); moderado (dor local, edema local e ascendente, sangramento local e sistêmico discreto); e grave (além dos sintomas e sinais do moderado, edema intenso com presença de bolha, necrose no segmento atingido, podendo ocorrer sangramento sistêmico abundante, oligúria, anúria e choque). Em todas as gravidades, o tempo de coagulação pode ser normal ou alterado6,7.
A espécie Bothrops marajoensis Hoge, 19668 é encontrada na Ilha de Marajó, estado do Pará, e responsável por vários acidentes nessa região3,5,9,10. Essa espécie faz parte do complexo Bothrops atrox, popularmente conhecido como jararaca, surucucurana e comboia.
Na Ilha de Marajó, dados epidemiológicos sobre envenenamentos são escassos e subestimados9,11. Na literatura, são encontrados os relatos de acidentes por cascável, nos municípios de Ponta de Pedras12 e Cachoeira de Arari13; e por botrópico, em Anajás, que levou ao acidente vascular cerebral hemorrágico de uma criança7. Para contribuir com o conhecimento sobre os acidentes ofídicos nessa região do Brasil, buscou-se relatar um caso de envenenamento grave por serpente botrópica no município de Afuá, na Ilha de Marajó.
DESCRIÇÃO DO CASO
Paciente menor de 15 anos de idade, sexo masculino, residente em Afuá, na Ilha de Marajó, no estado do Pará (latitude 00º09'24" sul e longitude 50º23'12" oeste). Foi picado por uma cobra do gênero Bothrops na face lateral superior da perna esquerda (entre joelho e tornozelo), enquanto realizava a extração da palmeira Euterpe oleracea Mart. (açaizeiro) para retirada do palmito, aproximadamente às 18:00 h do dia 8 de maio de 2015, na zona rural do Município. Chegou à Unidade de Saúde de Afuá, por volta de 01:00 h, do dia 9 de maio de 2015, acompanhado dos pais, referindo que o animal agressor era uma cobra "comboia". Ao receber atendimento na Unidade de Saúde, a vítima apresentava as seguintes manifestações locais: dor intensa, edema ascendente até a coxa, equimose, bolhas e sangramento local (Figura 1). As principais manifestações sistêmicas apresentadas foram: náuseas, vômitos, epigastralgia, pirose e urina com coloração avermelhada. Na admissão, foram realizados exames laboratoriais, cujos resultados encontram-se na tabela 1. Com base nos parâmetros clínicos e laboratoriais, o envenenamento foi compatível com acidente botrópico e classificado como grave. As bolhas romperam-se espontaneamente, evoluindo para um tecido necrótico cutâneo com presença de secreção purulenta.
Exame | 09/05/2015 | 10/05/2015 | Valores de referência |
Hemograma | |||
Hemácias | 3,77 u³ | 3,69 u³ | 4,5-5,9 u³ |
Hemoglobina | 10,02 g % | 10 g % | 13,5-17,5 g % |
Hematócrito | 28,00 % | 27,50 % | 41,0-53,0 % |
Leucócitos | 18.000 / mm³ | 19.330 / mm³ | 3.600-11.000 / mm³ |
Plaquetas | 140.000 / mm³ | 153.000 / mm³ | 140.000-400.000 / mm³ |
Coagulograma | |||
Tempo de coagulação | 20 min e 40 s | 7 min e 9 s | 5 a 8 min |
Tempo de sangramento | 8 min e 35 s | 3 min e 28 s | 1 a 4 min |
Urina rotina | |||
Cor | Amarelo escuro | ||
Aspecto | Turvo | ||
pH | 6,5 | ||
Densidade | 1.015 | ||
Proteínas | + | ||
Glicose | Negativo | ||
Corpos cetônicos | Traços | ||
Leucócitos | ++ | ||
Hemoglobina | ++ | ||
Urobilinogênio | Negativo | ||
Piócitos | Frequentes | ||
Hemácias | 12-15 / Campo | ||
Bacteriúria | 8-12 / Campo | ||
Cristais | Ausência | ||
Cilindros | Ausência |
Foi administrada a pré-medicação (prometazina, cimetidina e hidrocortisona), conforme manual de normas e rotinas, como medida preventiva a reações de anafilaxia ao antiveneno6. Após 20 min, foram administradas 12 ampolas de SAB pentavalente, do Instituto Vital Brazil, diluídas em 200 mL de solução fisiológica 0,9%1,2,6. O paciente apresentou boa evolução clínica após a administração do antiveneno e não manifestou qualquer reação adversa ao medicamento durante ou após a introdução do SAB. As alterações de coagulação normalizaram em menos de 48 h; entretanto, em decorrência do processo infeccioso local, foi necessária a administração de antibioticoterapia parenteral, com uso de metronidazol e cloranfenicol. O edema ascendente até a coxa regrediu lentamente a partir do 7º dia de internação. O ferimento apresentou boa resposta à antibioticoterapia, com importante redução dos sinais de infecção local. O paciente recebeu alta hospitalar, após nove dias de tratamento, em bom estado geral; entretanto, ainda apresentando edema local.
DISCUSSÃO
A descrição deste caso se deve à frequência com que ocorrem acidentes ofídicos em Afuá14,15. De janeiro a dezembro de 2015, o Município notificou 69 acidentes por animais peçonhentos e, desses, 55 foram provocados por serpentes, sendo o gênero Bothrops responsável por 100% dos casos14. De acordo com informações coletadas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação da Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará, no ano de 2015, foram registrados 4.605 acidentes envolvendo serpentes em todo o Estado, sendo 4.556 envenenamentos por serpentes peçonhentas e 49 por não peçonhentas15.
O acidente objeto deste relato ocorreu enquanto a vítima realizava a extração de palmito da palmeira do açaí, que é uma importante fonte de renda para agricultores e familiares da zona rural. Pardal et al.7 relatou um caso grave de envenenamento em um menor de 10 anos de idade enquanto o mesmo realizava atividade semelhante de extração vegetal em Anajás, município também localizado na Ilha de Marajó7. A literatura sugere que trabalhos relacionados às atividades agropastoril e extrativista favorecem a exposição a animais peçonhentos, principalmente serpentes16.
O processo inflamatório agudo, caracterizado pela dor e pelo edema até a coxa, é um dos principais sintomas/sinais induzidos pelo envenenamento botrópico, em geral de instalação precoce, onde, na maioria dos casos, o edema pode progredir nas primeiras 24 h após a picada, mesmo em pacientes que recebem soroterapia adequada2,5,10,11. Se não for controlado, pode levar ao aparecimento da síndrome compartimental e/ou evoluir para necrose tecidual, ocasionando a perda de função da região afetada ou até mesmo a amputação do membro2,11.
A formação de bolhas, presente neste caso, é atribuída inicialmente à ação proteolítica e tem patogênese complexa. Possivelmente, decorrem das atividades de proteases, hialuronidases e fosfolipases, da liberação de mediadores da resposta inflamatória, da ação das hemorraginas sobre o endotélio vascular e da ação pró-coagulante do veneno. O veneno botrópico pode também levar a alterações da função plaquetária bem como plaquetopenia. Essas alterações na coagulação sanguínea são as principais características dos envenenamentos por serpentes da família Viperidae2,17,18,19.
O processo infeccioso local é ocasionado por bactérias existentes na boca do animal ou na pele do acidentado, contaminando assim o ferimento. De acordo com a literatura, os ferimentos causados por picadas de serpentes são potencialmente contaminados e, dessa forma, predispostos à necrose e infecção bacteriana, que pode ser agravada pelo uso de torniquete17,18. Embora ainda seja rotineiro o uso de antibióticos como profilaxia, o mesmo só deverá ser indicado quando houver evidência de infecção1,2,6. Um estudo recente20 avaliou a eficácia do uso de antibiótico profilático nas infecções bacterianas secundárias a mordidas de serpentes e concluiu que o uso preventivo do atibiótico de amplo espectro, amoxicilina + clavulanato de potássio, não foi capaz de prevenir as infecções secundárias e a formação de abcessos por mordidas de serpentes do gênero Bothrops.
Os sintomas locais e sistêmicos apresentados neste estudo são compatíveis com as características da peçonha botrópica descritas na literatura que estão diretamente relacionadas com ações inflamatórias, hemorrágicas e coagulantes1,2,3,4,5,9,10; entretanto, a vítima apresentou manifestações vagais que, segundo a literatura1,2,6, são mais evidentes em envenenamento por serpentes do gênero Lachesis. Segundo Silva21, manifestações vagais semelhantes a esse caso também estiveram presentes em vários acidentes ocasionados por serpentes Bothrops em uma microrregião na Ilha de Marajó.
As alterações de coagulação normalizaram-se em menos de 48 h. Segundo Pardal e Gadelha6, tais alterações são normalizadas em menos de 24 h após sorologia específica na dose adequada. A realização da análise do tempo de coagulação é de grande importância para avaliar a eficácia da soroterapia e determinar a administração ou não de doses adicionais do antiveneno. Esse é um exame simples e de fácil execução que pode também ser realizado em locais que não dispõem de laboratório1,2,6.
Embora a maioria dos casos de envenenamento botrópico, ocorridos na Ilha de Marajó, estejam associados à jararaca-do-norte (Bothrops atrox)6,7,9,21, é possível observar, em diversos estudos5,7,8,21,22,23, importantes diferenças de intensidade e gravidade nas atividades proteolítica, coagulante e hemorrágica, variando em cada vítima.
Um estudo feito por Ribeiro e Jorge23 constatou que, em acidentes por Bothrops jararaca em São Paulo, houve diferenças no veneno dessa espécie, conforme a idade das serpentes. As adultas causaram maior destruição tecidual, com formação de bolhas, abscesso e necrose; enquanto os filhotes, mais incoagulabilidade sanguínea. No presente caso, presume-se que o animal agressor era jovem, pois a vítima apresentou importante manifestação inflamatória em todo o membro afetado, além de sintomatologia vagal que não é uma manifestação comum em acidentes botrópicos. Caso clínico semelhante ocorreu com uma paciente de 59 anos de idade, vítima de envenenamento botrópico no estado do Amazonas22, que, mesmo com o uso do antiveneno específico e terapia inespecífica empregada, evoluiu a óbito.
Pardal et al.7 relataram o primeiro caso registrado no Brasil de acidente vascular cerebral hemorrágico em uma criança, associado a um acidente ofídico, ocorrido na cidade de Anajás, Ilha de Marajó, provocado por uma serpente identificada como B. marajoensis, em que, além das manifestações sistêmicas, a criança também apresentou importante manifestação local em todo o membro afetado, mesmo com a administração do soro antiofídico.
Sugere-se assim que os acidentes ofídicos, provocados por serpente da espécie B. atrox com maior potencial de complicação, podem estar intimamente relacionados a envenenamentos por uma subespécie denominada B. marajoensis, cujo acidente é pouco descrito na literatura24.
É válido ressaltar que as alterações de coagulação, neste estudo, apresentaram resposta satisfatória quando da administração do soro antiofídico, e as manifestações vagais sofreram uma evolução clínica favorável diante do tratamento inespecífico. O soro antibotrópico conseguiu neutralizar muito bem os efeitos sistêmicos do veneno da jararaca, porém não conseguiu reverter os efeitos locais, como o edema ascendente e bolhas, porque os mesmos se estabelecem rapidamente9,16,17. Entretanto, a soroterapia precoce continua sendo o método mais eficaz para o sucesso do tratamento de acidentes botrópicos.
CONCLUSÃO
A descrição do caso serve para dar conhecimento à comunidade científica e aos profissionais de saúde sobre as manifestações clínicas e alterações laboratoriais ocasionadas pelo envenenamento com serpentes do complexo Bothrops, encontradas na Ilha de Marajó, que são semelhantes as de outras espécies do Brasil.