INTRODUÇÃO
A hemoglobinúria paroxística noturna (HPN) é uma desordem clonal de células-tronco hematopoiéticas rara, que surge principalmente pela mutação somática do gene glicosilfosfatidilinositol (GPI - glycophosphatidylinositol) classe A (PIGA) e resulta no bloqueio precoce da síntese da âncora de GPI, responsável por manter aderidas à membrana plasmática dezenas de proteínas com funções específicas1,2,3. A deficiência de GPI leva à ausência de ligação das proteínas normalmente ancoradas a ela, como o inibidor da lise reativa da membrana (CD59) e o fator acelerador do decaimento (CD55), que regulam a atividade lítica do complemento3,4, gerando alterações clínicas associadas à hemólise intravascular crônica, falência medular e trombose4,5,6.
Essas alterações têm sido também associadas ao surgimento de certo grau de instabilidade ao DNA das células comprometidas e à gênese de várias doenças hematológicas, como anemia aplásica, síndromes mielodisplásicas e alguns tipos de leucemias agudas1,2,4,5,6,7.
Estudos recentes têm fornecido novas perspectivas acerca do mecanismo patogenético da expansão clonal dos pacientes portadores de HPN. Tais estudos têm mostrado que, nesses pacientes, além da mutação do gene PIGA, também são observadas mutações somáticas em outros genes que frequentemente estão associados ao crescimento, à diferenciação celular e à regulação do processo de apoptose, de forma similar ao que é observado na gênese das neoplasias hematológicas. Tais resultados sugerem que essas mutações associadas à HPN poderiam estar envolvidas na manutenção, expansão e evolução do clone HPN e, possivelmente, na transformação maligna de leucemias4,6,7,8,9.
Assim, o objetivo deste estudo foi evidenciar a presença de clones de HPN em pacientes submetidos ao diagnóstico para leucemias agudas e/ou em acompanhamento terapêutico, após o início do tratamento, mesmo sem sinais de hemólise, trombose ou qualquer outra alteração associada à presença de clones de HPN, buscando estabelecer qual a melhor estratégia de anticorpos para caracterizar a presença desses clones em portadores de leucemias agudas.
MATERIAIS E MÉTODOS
CASUÍSTICA
Estudo prospectivo de série de casos com 41 pacientes, ambos os gêneros, atendidos no Hospital Ophir Loyola e no Hospital Oncológico Infantil Dr. Octávio Lobo, em Belém, estado do Pará, Brasil, entre fevereiro e julho de 2015, para diagnóstico de leucemia aguda ou em acompanhamento terapêutico. Para esses pacientes, mesmo sem sinais de hemólise, trombose ou qualquer outra alteração associada à HPN, foi realizada a pesquisa de clones de HPN em amostras de medula óssea e sangue periférico, as quais foram encaminhadas a um laboratório particular de Belém.
Este estudo recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Pública Estadual Hospital de Clínica Gaspar Vianna, parecer n° 732.668, em 22 de maio de 2014.
IMUNOFENOTIPAGEM
Foram confeccionados esfregaços para análise morfológica e posterior processamento das amostras para diagnóstico das leucemias pela adição de 100 µL de amostra em tubos cônicos, acrescido de 7 µL de diferentes combinações de anticorpos monoclonais comerciais - pan-hematopoiético: CD34, CD45, HLA-DR; linfócitos B: CD19, CD10, CD20, CD22, CD79a, TdT, IgG1, IgG1, IgM, anti-kappa e anti-lambda; linfócitos T e NK: CD5, CD7, CD2, CD1a, CD3, CD4, CD8, CD56; ou mieloides: CD13, CD33, CD117, CD61, CD14, CD64, CD11b, Glicoforina A, CD42a, MPO - marcados com FITC, PE, Percyp e APC, mais lise e/ou permeabilização, incubação no escuro, centrifugações e lavagens, com aquisição e análise de 10.000 eventos em citômetro de fluxo BD FACSCaliburTM, com BD CellQuestTM Pro software (BD, San Jose, CA, EUA), para quatro cores.
Para a pesquisa de clones de HPN em pacientes na fase de investigação diagnóstica, foi utilizada a população de blastos leucêmicos e hemácias; já para os pacientes em acompanhamento terapêutico, foram estudadas as populações de blastos leucêmicos e hemácias ou de granulócitos, monócitos, linfócitos e hemácias, nos casos de pacientes livres de doença. O processamento das amostras seguiu o mesmo protocolo nos dois casos. Inicialmente, para os primeiros 10 pacientes foi feita a combinação dos anticorpos CD55FITC/CD59PE/CD45Per-Cy5 (leucócitos) e CD235FITC/CD59PE/CD45Per-Cy5 (hemácias). E, diante dos resultados obtidos, os autores modificaram o painel para a combinação FLAER/CD59PE/CD45Per-Cy5 (blastos), mais os painéis propostos por Borowitz et al.10, FLAER/CD15PE/CD45Per-Cy5/CD24APC (granulócitos), FLAER/CD14PE/CD45Per-Cy5/CD64APC (monócitos) e CD235FITC/CD59PE/CD45Per-Cy5 (hemácias), com aquisição e análise de 250.000 eventos.
RESULTADOS
Do total analisado, 23/41 (56,1%) pacientes estavam em fase de investigação diagnóstica para leucemia aguda e foram submetidos à pesquisa de HPN, e 18/41 (43,9%) pacientes já se encontravam em acompanhamento terapêutico, quando então foram submetidos à pesquisa de HPN.
As características mais prevalentes na população estudada foram: o gênero masculino foi o mais frequente (24/41; 58,5%); a maioria dos indivíduos encontrava-se na faixa etária de 0-10 anos (17/41; 41,5%) e acima dos 25 anos de idade (13/41; 31,7%).
Entre os pacientes em fase de diagnóstico (23/41; 56,1%), as doenças com maior número de casos foram a leucemia linfoblástica aguda (LLA) de células pré-pré-B (B comum) (10/23; 43,5%) e a leucemia mieloide aguda (LMA) (6/23; 26,1%). Em relação aos pacientes em acompanhamento terapêutico (18/41; 43,9%), a maioria, 12/18 (66,7%), encontrava-se em remissão para a doença de base (Tabela 1).
Quanto aos pacientes que apresentaram clones de HPN em blastos leucêmicos, observou-se que 3/41 (7,4%) estavam em fase de investigação diagnóstica para leucemias agudas. Desses, 2/3 (66,7%) eram portadores LMA e 1/3 (33,3%) eram portadores de LLA pré-T. Já para pacientes em acompanhamento terapêutico sem recaída, observou-se a presença de clones de HPN, em granulócitos e monócitos, em apenas 1/41 (2,4%) paciente portador de LLA pré-pré-B (B comum).
Quanto à análise da estratégia de combinação de anticorpos, para caracterizar a presença de clones de HPN em blastos e linfócitos de pacientes em fase de diagnóstico, a combinação dos anticorpos FLAER/CD59PE/CD45Per-Cy5 mostrou-se melhor para caracterizar esses clones (3/41; 7,3%), em comparação à combinação CD55FITC/CD59PE/CD45Per-Cy5, onde nenhum caso positivo foi observado para a presença desses clones quando essa combinação foi testada em 10 pacientes.
Também para os pacientes em acompanhamento terapêutico, sem a presença de blastos na amostra, a combinação dos anticorpos FLAER/CD15PE/ CD45Per-Cy5/CD24APC para granulócitos e FLAER/ CD14PE/CD45Per-Cy5/CD64APC para monócitos mostrou melhores resultados para caracterizar a presença de clones HPN nesses grupamentos celulares (1/41; 2,4%) do que a combinação CD55FITC/CD59PE/CD45Per-Cy5, para a qual não foi observada a presença desses clones de HPN quando essa combinação foi testada em 10 pacientes. Já a pesquisa de clones HPN em hemácias, utilizando a combinação de anticorpos CD235FITC/CD59PE/CD45Per-Cy5, não se mostrou eficaz em qualquer das situações investigadas.
DISCUSSÃO
Vários estudos têm associado a desordem clonal de células tronco-hematopoiéticas com a presença de mutação do gene PIGA1,2,3. Ainda, sugerem o surgimento de certo grau de instabilidade ao DNA em células comprometidas na HPN com a gênesis de várias doenças hematológicas, como forma de evolução rara da HPN para leucemia aguda1,2,4,5,6,7,11.
Caracterização epidemiológica | Investigação diagnóstica | Em acompanhamento terapêutico | Total (N = 41) | |||
N | % | N | % | N | % | |
Faixa etária (anos) | ||||||
0-10 | 11 | 64,7 | 6 | 35,3 | 17 | 41,5 |
11-17 | 4 | 44,4 | 5 | 55,6 | 9 | 21,9 |
18-25 | 1 | 50,0 | 1 | 50,0 | 2 | 4,9 |
> 25 | 7 | 53,8 | 6 | 46,2 | 13 | 31,7 |
Gênero | ||||||
Masculino | 14 | 58,3 | 10 | 41,7 | 24 | 58,5 |
Feminino | 9 | 52,9 | 8 | 47,1 | 17 | 41,5 |
Pesquisa de HPN | ||||||
Normal | 20 | 54,1 | 17 | 45,9 | 37 | 90,2 |
Deficiente | 3 | 75,0 | 1 | 25,0 | 4 | 9,8 |
Tipo de leucemia aguda | ||||||
LLA pré-pré-B | 10 | 71,4 | 4 | 28,6 | 14 | 34,2 |
LMA | 6 | 85,7 | 1 | 14,3 | 7 | 17,1 |
LLA pré-T | 2 | 100,0 | - | - | 2 | 4,9 |
LLA pró-T | - | - | 1 | 100,0 | 1 | 2,4 |
LLA T cortical | 1 | 100,0 | - | - | 1 | 2,4 |
Bilinhagem B e T | 2 | 100,0 | - | - | 2 | 4,9 |
Bilinhagem B e mieloide | 1 | 100,0 | - | - | 1 | 2,4 |
Ausência de blastos na amostra | 1 | 7,7 | 12 | 92,3 | 13 | 31,7 |
Fonte: Laboratório de Patologia Clínica Dr. Paulo C. Azevedo.
N: valores absolutos; %: valores relativos; LLA: leucemia linfoblástica aguda; LMA: leucemia mieloide aguda; HPN: hemoglobinúria paroxística noturna. Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero, não resultante de arredondamento.
Para Araten e Luzzatto12 e Araten et al.13, a presença de mutação no gene PIGA gera clones de HPN em células-tronco hematopoiéticas; porém, isso não garante vantagem de replicação ou expansão clonal a essas células, quando comparadas a células normais, diferentemente do que se acreditava. Contudo, ainda segundo os mesmos autores, quando é observada a expansão clonal em células que sofreram mutações no gene PIGA, essa ocorre de maneira extrínseca à mutação nesse gene, isto é, sendo frequentemente associada a mutações adicionais em um ou mais genes na mesma população celular. Como já relatado por Inoue et al.14, mutações no gene PIGA estão associadas a mutações em outros genes, como HMGA2, JAK2V617F e N-RAS15, e, mais recentemente, foi demonstrado que estariam ainda associadas ao BCR-ABL16.
Para Traulsen et al.17 e Dingli et al.18, essa segunda mutação em uma célula tronco hematopoiética no gene PIGA forneceria uma vantagem de adequação necessária para a expansão clonal; contudo, a ocorrência desse fenômeno parece ser a exceção e não a regra. Estudos recentes, porém, têm sugerido que essas mutações adicionais são tipicamente vistas na síndrome mielodisplásica ou na leucemia19.
Mon Père et al.20 apresentaram um modelo estocástico de dinâmica de células-tronco hematopoiéticas em relação às mutações no gene PIGA e à probabilidade dessas levarem ao fenótipo HPN. Esses resultados permitiram estimar a incidência da doença em uma população, o tamanho médio do clone e a probabilidade de extinção do mesmo, com resultados semelhantes aos observados na prática clínica. Nesse mesmo estudo, os autores mostraram, matematicamente, que o tamanho do clone aumenta não só a probabilidade de expansão clonal para as células que sofreram mutação, mas também é determinante para a apresentação clínica da doença, isto é, formas de HPN clínica, subclínica ou probabilidade de extinção do clone.
Os resultados do presente estudo mostram, ainda de forma preliminar, que pacientes portadores de leucemias agudas podem apresentar clones de HPN "silencioso", sem que fosse possível, para o momento, caracterizar qual o papel desses clones de HPN nesses pacientes, e mesmo se esses clones mantêm sua atividade depois de iniciada a quimioterapia. Contudo, em um estudo ainda em andamento (dados não publicados), já é possível dizer que alguns pacientes que apresentam clones HPN ao diagnóstico, em blastos, mantêm a atividade desses clones em granulócitos e monócitos, mesmo após iniciada a quimiterapia, demonstrando que, no futuro, será necessário definir se, para esses pacientes, além da quimioterapia tradicional, será necessário também introduzir tratamento específico para o clone HPN.
Para Lanza et al.11, em seu relato de caso de paciente masculino, 62 anos de idade, inicialmente diagnosticado com síndrome mielodisplásica, que durante o curso da doença apresentou clone grande de HPN e evolução para neoplásica rara (linfoma difuso de grandes células B), os autores revelaram ter sido obrigatório o tratamento desse paciente com Eculizumab em associação à quimioterapia para o linfoma, visando evitar os riscos de trombose e melhorar a qualidade de vida do mesmo.
A hipótese da presença de um clone "silencioso" de HPN, em pacientes com leucemias agudas, pode ser sustentada pelas perspectivas fornecidas acerca do mecanismo patológico da expansão clonal dos pacientes portadores de HPN. Nesses pacientes, além da mutação do gene PIGA, também são observadas mutações somáticas em outros genes que frequentemente estão associados ao crescimento, à diferenciação celular e à regulação de apoptose, de forma similar ao que é observado na gênese das leucemias, como já mencionado. Assim, essas mutações ligadas à HPN poderiam estar associadas à transformação leucêmica nesses pacientes6,7,8,9.
Quanto à melhor combinação de anticorpos para a identificação de clones de HPN, tanto em blastos leucêmicos, independente da sua ontogenia, quanto em granulócitos, monócitos, linfócitos e hemácias, foi observado que os anticorpos CD55 e CD59 não foram bons marcadores para mostrar a presença de clones de HPN. Quanto ao tipo de célula a ser investigada, ficou claro, através dos painéis testados, que a presença de clones de HPN é mostrada com maior precisão em granulócitos e monócitos10; porém, é possível também evidenciar a presença desses clones em blastos leucêmicos com a mesma precisão; e ainda que as hemácias talvez não sejam células adequadas para caracterizar a presença desses clones.
CONCLUSÃO
Neste estudo, foi possível mostrar, ainda que preliminarmente, a presença de clones de HPN em pacientes portadores de leucemias agudas (LMA, LLA pré-T e LLA de células B comum), independente da ontogenia celular, ao diagnóstico ou em acompanhamento terapêutico. A melhor estratégia de escolha de anticorpos para a identificação de clones HPN em blastos leucêmicos, independente da sua ontogenia, foi a combinação dos anticorpos FLAER e CD45. As hemácias não se mostraram adequadas para caracterizar a presença desses clones nos pacientes analisados.