INTRODUÇÃO
Após mais de um século da descoberta da doença de Chagas (DC) por Carlos Chagas (1909), essa patologia ainda representa uma das mais importantes doenças negligenciadas no mundo1. A DC é uma antropozoonose causada pelo protozoário flagelado Trypanosoma cruzi, que é transmitido ao homem pelas fezes dos insetos vetores, principalmente dos gêneros Triatoma, Panstrongylus e Rhodnius2. A transmissão também ocorre pelas vias transfusional, transplacentária e oral3.
Estima-se que 65 milhões de indivíduos vivem sob o risco da infecção em países endêmicos das Américas, sendo 12.000 infectados anualmente4. Entre os anos de 2003 a 2018, foram notificados 4.556 casos de DC aguda (DCA) no Brasil. Até o ano de 2007, a maioria ocorreu na Região Nordeste; contudo, a partir da constatação da transmissão oral3, esse cenário mudou, passando a Região Norte a apresentar a maior incidência5.
A DCA é considerada endêmica na Região Amazônica, com frequentes surtos epidêmicos entre membros de uma mesma família, ocorrendo em áreas urbanas e rurais6,7,8. No período de 2006 a 2014, o estado do Pará registrou 884 casos da doença e, desses, 25,7% (227) eram da Região Metropolitana de Belém e 21,1% (187) de Abaetetuba; 26,9% (238) foram registrados no arquipélago do Marajó, dos quais 44,5% (106) eram de Breves4.
No Pará, novos casos agudos vêm sendo notificados de forma crescente, razão pela qual os serviços de vigilância epidemiológica estão cada vez mais em alerta, mantendo contínua atenção em populações de maior risco e, sobretudo, estimulando o envolvimento dos profissionais que atuam na atenção a saúde, para que novos casos sejam prontamente diagnosticados e tratados, buscando, assim, a melhoria desse cenário que tem desfechos muitas vezes incapacitantes se não houver um atendimento eficaz e imediato9.
A DC apresenta curso clínico bifásico, composto por uma fase aguda, por vezes não identificada, evoluindo para a fase crônica. É considerada aguda quando o indivíduo apresenta febre prolongada (por mais de sete dias), acompanhada ou não de edema de face ou de membros, exantema, adenomegalia, hepatomegalia, esplenomegalia, cardiopatia aguda (taquicardia, sinais de insuficiência cardíaca), manifestações hemorrágicas, icterícia, sinal de Romaña ou chagoma de inoculação10.
O potencial epidêmico da DC no Pará justifica a importância de estudos epidemiológicos de base populacional que possam auxiliar no planejamento estratégico de atividades de vigilância a saúde visando o controle da doença. Nesse cenário, objetivou-se descrever o perfil clínico-epidemiológico de portadores da DCA nos municípios de Abaetetuba, Belém e Breves, no estado do Pará.
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de um estudo transversal retrospectivo, baseado em dados secundários, obtidos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) do Ministério da Saúde do Brasil (MS)11. Foram incluídos 696 casos de DCA, com confirmação laboratorial e/ou epidemiológica, que residiam nos municípios de Abaetetuba, Belém e Breves, no período de 2007 a 2015.
O município de Abaetetuba situa-se no nordeste do Estado (Latitude 01º43'05" Sul; Longitude 48º52'57" Oeste) e possuía ± 153.380 habitantes (hab.) no ano de 2017; Belém, capital do Estado (Latitude: 1º27'18" Sul; Longitude: 48 30' 9" Oeste), tinha uma população estimada de ± 1.452.275 hab. no mesmo ano; e Breves, considerado o maior arquipélago do Marajó, possuía ± 99.896 hab. também naquele ano12 (Figura 1).
Foram analisadas as seguintes variáveis: i) perfil epidemiológico: município e zona de residência, gênero, faixa etária, raça/cor da pele, escolaridade, mês e ano do diagnóstico/notificação, critério de confirmação, evolução do caso, modo provável de infecção, tratamento para assintomáticos e sintomáticos e diagnóstico laboratorial (gota espessa, Strout/micro-hematócrito e Quantitative Buffy Coat); ii) perfil clínico: edema de face/membros, meningoencefalite, poliadenopatia, febre persistente, hepatomegalia, sinais de insuficiência cardíaca congestiva (ICC), astenia, esplenomegalia e chagoma de inoculação/sinal de Romaña.
As taxas brutas de incidência foram calculadas e padronizadas pela população mundial e apresentadas por 100.000 hab. Para o cálculo da sazonalidade, os casos notificados e confirmados foram contados e agrupados pelo mês da data dos primeiros sintomas, considerando os 12 meses dos anos da série estudada, utilizando a função lógica do Microsoft Excel. A sazonalidade, na série temporal, foi suavizada pela média móvel simples. Para a análise estatística inferencial, aplicou-se o teste qui-quadrado de aderência de proporções iguais e esperadas para a análise da distribuição de frequências utilizando o software BioEstat v5.013. Os dados foram apresentados em tabelas e gráficos produzidos no Microsoft Excel 2013.
RESULTADOS
Dos 696 casos de DCA investigados, 40,66% (283/696) residiam em Belém, 35,63% (248/696) em Abaetetuba e 23,71% (165/696) em Breves. O gênero masculino foi predominante em 51,61% (128/248) dos casos de Abaetetuba e em 56,36% (93/165) dos casos de Breves; em Belém, as mulheres foram as mais afetadas, representando 50,53% (143/283) dos casos. A faixa etária de 30 a 59 anos foi a mais acometida, sendo 35,89% (89/248) em Abaetetuba e 53,71% (152/283) em Belém; o que diferiu em Breves, onde 32,73% (54/165) tinham entre de 0 a 14 anos de idade. A maioria dos investigados declararam ser pardos, sendo 78,23% (194/248) de Abaetetuba, 68,90% (195/283) de Belém e 89,70% (148/165) de Breves. A baixa escolaridade prevaleceu entre os casos: 42,74% (106/248) e 63,64% (105/165) dos investigados possuíam Ensino Fundamental incompleto em Abaetetuba e Breves, respectivamente, e 17,69% (50/283) cursou até o Ensino Médio em Belém. Destaca-se o alto percentual de sub-registro da escolaridade de 34,63% (98/283) em Belém. Na área urbana, residiam 56,45% (140/248) e 96,11% (272/283) dos casos de Abaetetuba e Belém, respectivamente; em Breves, 66,06% (109/165) dos casos ocorreram na zona rural (Tabela 1).
Variáveis | Abaetetuba | Belém | Breves | |||
---|---|---|---|---|---|---|
N = 248 | % | N = 283 | % | N = 165 | % | |
Gênero | ||||||
Masculino | 128 | 51,61 | 140 | 49,47 | 93 | 56,36 |
Feminino | 120 | 48,39 | 143 | 50,53 | 72 | 43,64 |
Faixa etária | ||||||
0-14 | 64 | 25,80 | 26 | 9,19 | 54 | 32,73 |
15-29 | 65 | 26,21 | 66 | 23,32 | 46 | 27,88 |
30-59 | 89 | 35,89 | 152 | 53,71 | 48 | 29,09 |
≥ 60 | 30 | 12,10 | 39 | 13,78 | 17 | 10,30 |
Cor da pele | ||||||
Branca | 41 | 16,53 | 24 | 8,48 | 9 | 5,45 |
Preta | 6 | 2,42 | 2 | 0,71 | 3 | 1,82 |
Amarela | - | - | - | - | 1 | 0,61 |
Parda | 194 | 78,23 | 195 | 68,90 | 148 | 89,70 |
Indígena | - | - | - | - | 2 | 1,21 |
Ignorado | 4 | 1,61 | 53 | 18,73 | 2 | 1,21 |
Sem informação | 3 | 1,21 | 9 | 3,18 | - | - |
Escolaridade | ||||||
Sem escolaridade | 8 | 3,23 | 2 | 0,71 | 22 | 13,33 |
Ensino Fundamental incompleto | 106 | 42,74 | 47 | 16,61 | 105 | 63,64 |
Ensino Fundamental completo | 24 | 9,68 | 46 | 16,25 | 6 | 3,64 |
Ensino Médio | 50 | 20,16 | 50 | 17,67 | 9 | 5,45 |
Ensino Superior | 4 | 1,61 | 17 | 6,01 | - | - |
Ignorado | 9 | 3,63 | 98 | 34,63 | 3 | 1,82 |
Não se aplica | 29 | 11,69 | 8 | 2,82 | 16 | 9,70 |
Sem informação | 18 | 7,26 | 15 | 5,30 | 4 | 2,42 |
Zona de residência | ||||||
Urbana | 140 | 56,45 | 272 | 96,11 | 53 | 32,12 |
Periurbana | 1 | 0,40 | 1 | 0,35 | 2 | 1,21 |
Rural | 96 | 38,71 | 7 | 2,48 | 109 | 66,06 |
Ignorado | - | - | 1 | 0,35 | - | - |
Sem informação | 11 | 4,44 | 2 | 0,71 | 1 | 0,61 |
Fonte: SINAN/MS; Secretaria de Estado de Saúde Pública (SESPA), 2017.
Ignorado: o investigado não sabia ou não podia informar; Sem informação: dado não registrado; Não se aplica: característica não aplicável ao investigado; Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero, não resultante de arredondamento.
O diagnóstico laboratorial foi realizado em 94,35% (234/248) dos casos em Abaetetuba, 97,88% (277/283) em Belém e 88,48% (146/165) em Breves (p < 0,0001). A maioria dos investigados sobreviveu à infecção e recebeu alta para acompanhamento posterior ao tratamento específico. Desses, 97,17% (241/248) eram de Abaetetuba, 92,94% (263/283) de Belém e 98,18% (162/165) de Breves (p < 0,0001). Os três municípios notificaram óbitos, sendo 1,21% (3/248) em Abaetetuba, 2,12% (6/283) em Belém e 0,61% (1/165) em Breves. A taxa de letalidade foi de 1,43% nos três municípios. A infecção pela via oral ocorreu em 85,08% (211/248) dos casos de Abaetetuba, 71,38% (202/283) em Belém e 96,97% (160/165) em Breves (p < 0,0001). O tratamento específico para os assintomáticos foi realizado em 98,39% (244/248), 96,11% (272/283) e 93,33% (154/165) dos casos de Abaetetuba, Belém e Breves, respectivamente. Entre os sintomáticos, receberam tratamento 60,08% (149/248) dos casos de Abaetetuba, 6,36% (18/283) de Belém e 49,09% (81/165) de Breves. Quanto ao diagnóstico laboratorial, a gota espessa foi realizada em 66,13% (164/248) dos casos em Abaetetuba e 71,52% (118/165) em Breves. Diferentemente, o micro-hematócrito foi o exame mais realizado em Belém, em 45,58% (129/283) dos casos (Tabela 2).
Variáveis | Abaetetuba | Belém | Breves | |||
---|---|---|---|---|---|---|
N = 248 | % | N = 283 | % | N = 165 | % | |
Critério de confirmação | ||||||
Clínico e epidemiológico | 14 | 5,65 | 4 | 1,42 | 18 | 10,91 |
Clínico | - | - | 1 | 0,35 | 1 | 0,61 |
Laboratorial | 234 | 94,35* | 277 | 97,88* | 146 | 88,48* |
Sem informação | - | - | 1 | 0,35 | - | - |
Evolução do caso | ||||||
Vivo | 241 | 97,17* | 263 | 92,94* | 162 | 98,18* |
Óbito por DCA | 3 | 1,21 | 6 | 2,12 | 1 | 0,61 |
Óbito por outra causa | - | - | 1 | 0,35 | - | - |
Ignorado | 2 | 0,81 | 6 | 2,12 | - | - |
Sem informação | 2 | 0,81 | 7 | 2,47 | 2 | 1,21 |
Modo provável de infecção | ||||||
Transfusional | - | - | 4 | 1,42 | - | - |
Vetorial | 27 | 10,89 | 3 | 1,06 | 4 | 2,42 |
Vertical | 1 | 0,40 | - | - | - | - |
Oral | 211 | 85,08* | 202 | 71,38* | 160 | 96,97* |
Ignorado | 9 | 3,63 | 67 | 23,67 | 1 | 0,61 |
Sem informação | - | - | 7 | 2,47 | - | - |
Tratamento específico | ||||||
Sim | 244 | 98,39 | 272 | 96,11 | 154 | 93,33 |
Não | 3 | 1,21 | 6 | 2,12 | 3 | 1,82 |
Sem informação | 1 | 0,40 | 5 | 1,77 | 8 | 4,85 |
Tratamento sintomático | ||||||
Sim | 149 | 60,08 | 18 | 6,36 | 81 | 49,09 |
Não | 91 | 36,69 | 77 | 27,21 | 67 | 40,60 |
Ignorado | 0 | 0,00 | 12 | 4,24 | 1 | 0,61 |
Sem informação | 8 | 3,23 | 176 | 62,19 | 16 | 9,70 |
Exame a fresco/gota esp./esfregaço | ||||||
Positivo | 164 | 66,13 | 65 | 22,97 | 118 | 71,52 |
Negativo | 75 | 30,24 | 51 | 18,02 | 26 | 15,76 |
Não realizado | 6 | 2,42 | 122 | 43,11 | 17 | 10,30 |
Sem informação | 3 | 1,21 | 45 | 15,90 | 4 | 2,42 |
Strout/micro-hematócrito/QBC | ||||||
Positivo | 2 | 0,81 | 129 | 45,58 | 5 | 3,03 |
Negativo | 39 | 15,72 | 86 | 30,39 | 36 | 21,82 |
Não realizado | 201 | 81,05 | 28 | 9,90 | 118 | 71,52 |
Sem informação | 6 | 2,42 | 40 | 14,13 | 6 | 3,63 |
Fonte: SINAN/MS; SESPA, 2017.
Ignorado: o investigado não sabia ou não podia informar; Sem informação: dado não registrado; Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero, não resultante de arredondamento; Teste qui-quadrado de aderência; * p < 0,0001.
Apresentaram sintomas 94,35% (234/248) dos casos de Abaetetuba, 89,40% (253/283) de Belém e 95,75% (158/165) de Breves. A febre persistiu em 91,93% (228/248) dos investigados de Abaetetuba, 93,64% (265/283) de Belém e 93,33% (154/165) de Breves. Astenia esteve presente com frequência acima de 75% dos casos nos três municípios. Edema de face/membros, meningoencefalite e hepatomegalia foram evidenciados em 42,05% (119/283), 1,06% (3/283) e 7,77% (22/283) dos casos de Belém, respectivamente. Esplenomegalia foi observada em 4,84% (12/248) nos casos de Abaetetuba, 4,59% (13/283) em Belém e 13,33% (22/165) em Breves; e taquicardia persistente/arritmias foram notados em 20,16% (50/248) dos casos em Abaetetuba, 13,78% (39/283) em Belém e 16,97% (28/165) em Breves. Poliadenopatia foi observada em 1,61% (4/248) dos casos de Abaetetuba; e a presença de chagoma ocorreu em 2,42% (4/164) dos casos de Breve (Tabela 3).
Variáveis | Abaetetuba | Belém | Breves | |||
---|---|---|---|---|---|---|
N = 248 | % | N = 283 | % | N = 165 | % | |
Assintomático | ||||||
Sim | 14 | 5,65 | 8 | 2,83 | 6 | 3,64 |
Não | 234 | 94,35 | 253 | 89,40 | 158 | 95,75 |
Ignorado | - | - | 3 | 1,06 | - | - |
Sem informação | - | - | 19 | 6,71 | 1 | 0,61 |
Edema de face/membros | ||||||
Sim | 67 | 27,02 | 119 | 42,05 | 34 | 20,61 |
Não | 166 | 66,93 | 141 | 49,82 | 124 | 75,15 |
Ignorado | - | - | 5 | 1,77 | - | - |
Sem informação | 15 | 6,05 | 18 | 6,36 | 7 | 4,24 |
Meningoencefalite | ||||||
Sim | 2 | 0,81 | 3 | 1,06 | - | - |
Não | 228 | 91,93 | 222 | 78,45 | 157 | 95,15 |
Ignorado | 3 | 1,21 | 30 | 10,60 | 1 | 0,61 |
Sem informação | 15 | 6,05 | 28 | 9,89 | 7 | 4,24 |
Poliadenopatia | ||||||
Sim | 4 | 1,61 | 3 | 1,06 | 3 | 1,82 |
Não | 216 | 87,10 | 218 | 77,03 | 154 | 93,33 |
Ignorado | 13 | 5,24 | 32 | 11,31 | 1 | 0,61 |
Sem informação | 15 | 6,05 | 30 | 10,60 | 7 | 4,24 |
Febre persistente | ||||||
Sim | 228 | 91,93 | 265 | 93,64 | 154 | 93,33 |
Não | 6 | 2,42 | 10 | 3,53 | 3 | 1,82 |
Ignorado | - | - | - | - | - | - |
Sem informação | 14 | 5,65 | 8 | 2,83 | 8 | 4,85 |
Hepatomegalia | ||||||
Sim | 24 | 9,68 | 22 | 7,77 | 23 | 13,94 |
Não | 200 | 80,65 | 220 | 77,74 | 135 | 81,82 |
Ignorado | 8 | 3,22 | 13 | 4,59 | - | - |
Sem informação | 16 | 6,45 | 28 | 9,90 | 7 | 4,24 |
Sinais de ICC | ||||||
Sim | 6 | 2,42 | 16 | 5,65 | 5 | 3,03 |
Não | 225 | 90,72 | 206 | 72,79 | 152 | 92,12 |
Ignorado | 3 | 1,21 | 33 | 11,66 | 1 | 0,61 |
Sem informação | 14 | 5,65 | 28 | 9,90 | 7 | 4,24 |
Taquicardia persistente/arritmias | ||||||
Sim | 50 | 20,16 | 39 | 13,78 | 28 | 16,97 |
Não | 171 | 68,95 | 194 | 68,55 | 131 | 79,39 |
Ignorado | 12 | 4,84 | 26 | 9,19 | - | - |
Sem informação | 15 | 6,05 | 24 | 8,48 | 6 | 3,64 |
Astenia | ||||||
Sim | 187 | 75,40 | 223 | 78,80 | 127 | 76,97 |
Não | 45 | 18,14 | 44 | 15,55 | 30 | 18,18 |
Ignorado | 2 | 0,81 | 1 | 0,35 | - | - |
Sem informação | 14 | 5,65 | 15 | 5,30 | 8 | 4,85 |
Esplenomegalia | ||||||
Sim | 12 | 4,84 | 13 | 4,59 | 22 | 13,33 |
Não | 211 | 85,08 | 229 | 80,92 | 136 | 82,43 |
Ignorado | 9 | 3,63 | 12 | 4,24 | - | - |
Sem informação | 16 | 6,45 | 29 | 10,25 | 7 | 4,24 |
Chagoma de inoculação/sinal de Romaña | ||||||
Sim | 2 | 0,81 | 2 | 0,70 | 4 | 2,42 |
Não | 228 | 91,93 | 244 | 86,22 | 152 | 92,12 |
Ignorado | 3 | 1,21 | 8 | 2,83 | - | - |
Sem informação | 15 | 6,05 | 29 | 10,25 | 9 | 5,46 |
Fonte: SINAN/MS; SESPA, 2017.
Ignorado: o investigado não sabia ou não podia informar; Sem informação: dado não registrado. Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero, não resultante de arredondamento.
A distribuição mensal de casos de DCA registrou uma curva epidêmica de sazonalidade. Foi observado um discreto aumento no mês de fevereiro, em Belém (15 casos) e Abaetetuba (10 casos), seguindo uma tendência decrescente, e posterior aumento de grande amplitude a partir do mês de julho, nos três municípios estudados. Para Abaetetuba, a alça ascendente foi contínua e registrou um pico epidêmico em novembro (81 casos), decrescendo acentuadamente em dezembro (30 casos). Para Belém, a alça ascendente iniciou em abril (um caso) e registrou pico epidêmico em outubro (70 casos), regredindo posteriormente até dezembro (28 casos). Para Breves, as notificações começaram a partir de julho (sem registro de casos), seguindo posteriormente para dois picos epidêmicos, o maior em setembro (39 casos) e o menor em novembro (28 casos) (Figura 2).
Abaetetuba apresentou três picos epidêmicos nos anos de 2009 (77,24/100.000 hab.), 2012 (44,29/100.000 hab.) e 2014 (22,86/100.000 hab.), com tendência linear em discreto decréscimo (R2 = 0,0267), o que pode ser observado na figura 3 (linha pontilhada). Belém apresentou a menor taxa de incidência entre os municípios estudados e apresentou tendência linear estável (R 2 = 0,0011). Em Breves, foram evidenciadas duas ondas epidêmicas, uma em 2009 (27,98/100.000 hab.) e outra em 2015 (63,38/100.000 hab.), registrando alta tendência linear crescente (R2 = 0,2504) mostrada também na figura 3 (linha pontilhada).
DISCUSSÃO
As ações de controle vetorial e a intensa vigilância na triagem de doadores de sangue e órgãos, realizada a partir de 1975, reduziram substancialmente o número de casos de DCA no Brasil14. No entanto, a partir da década de 1990, a Região Norte, área anteriormente considerada não endêmica, adquiriu importância em saúde pública, em virtude das inusitadas condições epidemiológicas de transmissão concorrentes (oral, indireta), que desencadearam a retomada da notificação obrigatória de casos agudos em 200015. A obrigatoriedade da notificação trouxe à tona um problema de saúde pública negligenciado há décadas na Amazônia. De 2007 a 2019, o Pará registrou uma média de 187,38 casos de DCA. Dos 154 surtos registrados no Brasil, no período de 2007 a 2016, 132 ocorreram no Pará, distribuídos em 20 dos seus municípios15. Barcarena, município localizado no nordeste do Estado, teve a maior prevalência da doença no Brasil, no período de 2007 a 201416. Ao relatar a ocorrência de 283/696 casos de DCA em Belém, 248/696 em Abaetetuba e 165/696 em Breves, a presente série histórica reforça esse contexto epidemiológico e a inquestionável magnitude da doença na região.
Neste estudo, a DCA não mostrou preferência por gênero e faixa etária. Em Abaetetuba e Breves, os homens representaram a maioria dos casos e, em Belém, as mulheres foram as mais acometidas. Os adultos (30-59 anos de idade) foram os mais infectados pelo T. cruzi em Abaetetuba e Belém, e os jovens (0-14 anos), em Breves. Acredita-se que a exposição às diversas rotas de transmissão é o que provavelmente determina a infecção17. Isso é bem exemplificado com a falta de consonância quanto à distribuição do sexo e a idade dos infectados documentados no país6,7,16,17. A predominância da cor parda declarada resulta por ocasião do Censo de 2010, quando 76,5% das pessoas se autodeclararam negros e/ou pardos18, o que justifica a prevalência dos pardos entre os infectados nos três municípios estudados e corrobora um estudo realizado no município de Barcarena16. O perfil sociodemográfico dos casos de DCA em Abaetetuba, Belém e Breves se assemelha ao observado no país. Dos 3.060 casos de DCA registrados no período de 2007 a 2019, os homens representaram 53,56% dos casos, a média de idade foi de 32 anos (DP ± 20,15) e 77,81% se declararam pardos15.
Os resultados deste estudo demonstraram que tanto o meio rural quanto o urbano apresentam impactos frente à DCA. Os casos foram notificados em grandes centros urbanos, como Belém, capital do Estado (40,66%), e em cidades menores ou mesmo em áreas rurais, como observado em Abaetetuba (35,63%) e Breves (23,71%), respectivamente. A emergência e reemergência da DCA em áreas urbanas e rurais resulta da combinação de diversos fatores como: correntes migratórias, desequilíbrio ecológico, aspectos socioculturais e político-econômicos19,20.
O desmatamento das áreas rurais e o crescimento desordenado das cidades, devido à migração populacional de áreas rurais para as urbanas, têm facilitado a urbanização do vetor9,21. A maior proporção de casos de DCA registrados na região urbana de Abaetetuba e Belém é justificada por essa expressiva migração populacional. Simões et al.22 estimaram que 500.000 pessoas infectadas por T. cruzi deslocaram-se para as grandes cidades durante as últimas três décadas. Ao se fixar nos centros urbanos, a população vive em condições de extrema pobreza e saneamento básico precário, o que propicia o aumento do risco de infecção, o crescimento e a permanência de doenças negligenciadas23.
No Pará, o desmatamento recorrente há décadas contribui para a diminuição do habitat de animais silvestres, que atuam como reservatório natural do T. cruzi. O desequilíbrio ecológico causa a aproximação do homem com os reservatórios, facilitando a transmissão do protozoário pelo vetor e a contaminação de alimentos (açaí) que não são processados obedecendo às boas práticas de manipulação dos mesmos24. Essa cadeia de transmissão da doença foi demonstrada nos resultados do presente estudo. A via oral foi o modo provável de infecção da maioria dos investigados (p < 0,0001). Breves, o município com a menor taxa de desenvolvimento entre os municípios estudados e com a maior cobertura vegetal, apresentou a maior taxa de infecção pela via oral (96,97%), seguido por Abaetetuba (85,08%) e Belém (71,38%). No entanto, o registro da infecção por doação de sangue/órgãos infectados somente em Belém (1,42%) mostrou a necessidade da implementação e/ou fortalecimento de uma hemovigilância integrada15.
A falta de acesso a bens e serviços pela precariedade social e econômica foi retratada nos dados deste estudo. Nos três municípios estudados a maioria dos infectados por T. cruzi tinha baixa escolaridade (Ensino Fundamental ou Médio). Em Belém, 6,01% (17/283) dos acometidos cursaram o Ensino Superior; em Abaetetuba, esses indivíduos representaram 1,61% (4/248); e, em Breves, esse dado não foi registrado, talvez devido à dificuldade ao acesso à educação superior. Tais dados demonstram que indivíduos com maior grau de escolaridade têm maior possibilidade de acesso a informações sobre a doença, o que leva à mudança de hábitos, diminuição da contaminação e consequente atenuação do número de casos, conforme relatado por Sanmartino e Crocco25.
A taxa de letalidade da doença em Abaetetuba (1,21%) e em Breves (0,61%) foi semelhante à taxa de letalidade anual no Brasil (1,54%) e no Pará (1,40%) para o período de 2007 a 201915. Em Belém, a taxa de letalidade foi superior (2,12%) quando comparada aos demais municípios avaliados, ao estado e ao país. Isso decorre devido a Belém atuar como o maior polo de atendimento hospitalar para casos de DCA no Pará e, por vezes, registrar o contingente de casos que evoluem a óbito oriundos de outros municípios. A implementação da assistência à pessoa com DCA nos municípios mais longínquos e vulneráveis da Amazônia é de extrema urgência. Tal serviço viabilizaria uma intervenção preventiva, ou seja, as ações ocorreriam antes do surgimento das complicações da doença aguda. A oportunidade de diagnóstico precoce seguramente é outro ponto de extrema importância, pois interfere no prognóstico dos casos e, de forma expressiva, na letalidade da doença4. A falta de investimentos para o diagnóstico da DCA nos municípios estudados foi demonstrada quando o esfregaço (baixo custo) foi o método mais utilizado para o diagnóstico da doença em Abaetetuba (66,13%) e Breves (71,52%), e o micro-hematócrito, em Belém (45,58%). Cabe lembrar, que não existem critérios clínicos que possibilitem definir, com exatidão, a cura de pacientes com DCA, o que reforça não somente a importância do diagnóstico precoce, mas também o diagnóstico (sorológico) para o monitoramento da doença26.
A apresentação clínica foi acompanhada com maior frequência por síndrome febril e astenia. Estudos anteriores apontaram que a febre foi a manifestação clínica predominante na quase totalidade dos casos27,28,29. O edema, embora em menores proporções nos indivíduos infectados dos municípios de Abaetetuba (27,02%) e Breves (20,61%), foi observado em 42,05% dos casos de Belém, concordando com pesquisa realizada em Manaus, que identificou 31% dos casos com edema de membros inferiores e 34,5% com edema de face29. Os baixos percentuais de ocorrência de chagoma de inoculação/sinal de Romanã registrados nos municípios analisados resultam da diminuição das taxas de infeção pela via vetorial. Mais de 93% dos casos notificados nos três municípios estudados receberam tratamento específico (indivíduos assintomáticos) assegurado pelo SUS, com o objetivo de reduzir a casuística por meio da cura da infecção, da prevenção de lesões orgânicas ou ainda da evolução das mesmas30; entretanto, não há indícios de acompanhamento dos casos após a alta medicamentosa, por pelo menos cinco anos, para verificar a evolução, considerando a possibilidade de cronificação da doença.
A análise do comportamento temporal da DCA configura um importante mecanismo para a compreensão do perfil epidemiológico dessa enfermidade, que pode servir de base para melhorar as medidas de educação em saúde e atividades de proteção específica, objetivando a redução da ocorrência de casos. A distribuição mensal de casos de DCA para os três municípios registrou curva epidêmica de sazonalidade, com um aumento discreto no segundo mês do ano para Abaetetuba e Belém; e posterior aumento na frequência de casos de julho a outubro, período em que são registrados os menores índices pluviométricos, os quais favorecem a maior mobilidade de triatomíneos e o que pode facilitar a contaminação do ambiente e de frutos alimentícios com fezes infectadas. Esse período também coincide com a safra do açaí, o que aumenta o consumo do suco e o risco de infecção31.
A maior taxa de incidência da doença foi observada em Breves, por apresentar razão de crescimento de tendência (R2= 0,2504) e por ter apresentado dois picos epidêmicos, um em 2009 e outro em 2015. Em Abaetetuba, a incidência da doença teve tendência linear em discreto decréscimo (R2= 0,0267), ainda que tenham sido evidenciados três picos epidêmicos em 2009, 2012 e 2014. Belém chamou a atenção ao apresentar tendência linear estável (R 2 = 0,0011) e a menor taxa de incidência entre os municípios estudados, apesar do pico epidêmico registrado no mês de outubro, que cursou até dezembro. A diferença da incidência da doença em Abaetetuba, Belém e Breves está intimamente relacionada ao grau de desenvolvimento socioeconômico e às políticas públicas de controle e combate da doença em cada localidade. Historicamente, os povos e comunidades tradicionais (agricultores familiares, trabalhadores rurais, populações ribeirinhas, comunidades quilombolas e indígenas) que enfrentam situações de desigualdades, violência e violação de direitos são os mais afetados pela doença15.
CONCLUSÃO
O presente estudo descreveu o perfil epidemiológico dos casos de DCA notificados nos municípios de Abaetetuba, Belém e Breves, sendo indivíduos de ambos os sexos, jovens e adultos e residentes de áreas rurais e urbanas. A vulnerabilidade da população negligenciada mostrou-se o fator preponderante para o aumento do risco de infecção, seguido da destruição do meio ambiente, que favorece a transmissão do T. cruzi pelo vetor e a contaminação de alimentos (açaí), e da fragilidade ou ausência de uma vigilância sanitária integrada. A curva epidêmica de sazonalidade foi marcante entre os meses de agosto e novembro; e o município de Breves apresentou a maior taxa de incidência da doença, seguido de Abaetetuba e Belém. Considerando as relações das variáveis estudadas, os dados obtidos foram satisfatórios para a construção do cenário epidemiológico, o qual pode auxiliar os gestores em saúde com informações voltadas para a vigilância contínua e sistemática, que garanta o acesso universal como direito.