INTRODUÇÃO
O sarampo é uma doença exantemática contagiosa, causada pelo vírus do sarampo, Measles morbillivirus (família Paramyxoviridae, gênero Morbillivirus, ordem Mononegavirales), com distribuição universal. A transmissão ocorre de forma direta, por meio de secreções nasofaríngeas expelidas ao tossir, espirar, falar ou respirar, por dispersão de aerossóis com partículas virais no ar em ambientes fechados. Apresenta um quadro clínico de hipertermia, exantema maculopapular geralmente associado à tosse, coriza, conjuntivite e às manchas de Koplik na mucosa oral, após manifestações prodrômicas de dois a quatro dias, podendo evoluir com complicações graves. Não existe tratamento específico, a vacinação é o melhor modo de prevenção1,2.
No Brasil, o vírus do sarampo deixou de circular em 2001, com registros de casos importados de outros países das Américas e de outros continentes, principalmente da África, sendo identificados os genótipos D4, D8 e B33.
A recomendação para sustentar altos níveis de imunidade e interromper a cadeia de transmissão do sarampo é manter a cobertura vacinal (CV) homogênea de 95%. O Ministério da Saúde (MS) do Brasil preconiza o uso da vacina tríplice viral (SCR: sarampo, caxumba e rubéola) aos 12 meses de idade, primeira dose (D1) da vacina, e entre 15 meses e 4 anos de idade, uma dose de tetra viral (SCR-V: sarampo caxumba, rubéola e varicela), que corresponde à segunda dose (D2) da vacina. Se a pessoa não recebeu a vacina adequadamente e tem entre 5 e 29 anos de idade, deverá realizar duas doses da SCR, com intervalo de 30 dias; e se tiver entre 30 e 49 anos de idade, apenas uma dose da SCR4. Mesmo com um adequado programa de imunização, o acúmulo de suscetíveis pode ocorrer após alguns anos, devido à vacina não promover a soroconversão ou essa não ser duradoura, caracterizando as falhas vacinais primárias (FVP) e falhas vacinais secundárias (FVS), respectivamente5.
Em 2010, ocorreram três casos confirmados de sarampo em Belém, estado do Pará, em estudantes com idade entre 18 e 26 anos, sem histórico vacinal, com identificação do genótipo viral D46. De 2013 a 2015, o Brasil enfrentou uma epidemia com ocorrência de casos confirmados laboratorialmente em vários estados, com maior frequência nos estados de Pernambuco e Ceará. Foram registrados 220 casos em oito estados em 2013, 876 em quatro estados em 2014 e 214 em três estados em 20157, pela circulação do genótipo D8, o mesmo detectado na América Latina e Caribe (2010-2015)7. Com vacinação e vigilância constantes, os casos foram contidos, não sendo registrado qualquer caso após 12 meses. Em setembro de 2016, a Organização Mundial da Saúde (OMS) certificou a eliminação do sarampo no Brasil8.
Estratégias globais para a eliminação do sarampo evitaram aproximadamente 21,1 milhões de óbitos. Em de 2017, a OMS divulgou a ocorrência de 6,7 milhões de casos e 110.000 óbitos no mundo9. Entretanto, devido à baixa CV, em 2018 ocorreu o ressurgimento em todas as regiões do mundo, sendo confirmados 328.689 casos nas regiões: Europeia, 84.468; Sudeste Asiático, 83.647; África, 55.394; Mediterrânea Oriental, 57.960; Pacífico Ocidental, 30.531; e Américas, 16.689 casos10,11.
Em fevereiro de 2018, o Brasil registrou surtos que iniciaram pelo estado de Roraima, sendo reportados 12 óbitos. Desses, quatro ocorreram em Roraima, em crianças menores de 5 anos de idade (uma brasileira, duas venezuelanas e uma coreana); seis ocorreram no estado do Amazonas, sendo quatro em menores de 1 ano de idade, um na faixa etária de 40-49 anos e um em maior de 50 anos de idade; e dois registrados no Pará, na cidade de Belém, correspondendo a venezuelanos/indígenas menores de 1 ano de idade12. A Venezuela enfrentava um surto de sarampo desde julho de 2017, sendo a maioria dos casos provenientes do estado de Bolívar. Devido à situação sociopolítica econômica que o país enfrentou, ocorreu um intenso movimento migratório que colaborou para a propagação do vírus para outras áreas geográficas12.
Ainda em 2018, o Brasil apresentou surtos de sarampo em 10 Estados e no Distrito Federal, confirmando um total de 10.326 casos, com maior ocorrência no Amazonas e em Roraima, com 9.803 e 361 casos, respectivamente. Também confirmaram casos, os estados do Pará (79), Rio Grande do Sul (46), Rio de Janeiro (20), Sergipe (quatro), Pernambuco (quatro), São Paulo (três), Bahia (três), Rondônia (dois); e o Distrito Federal (um). Os genótipos detectados foram o D8, proveniente da Venezuela e do Líbano, e o B3, proveniente da Europa12,13.
A taxa de incidência dos casos confirmados no Amazonas, de 2018 a 2019, foi de 273,1/100.000 hab., sendo os menores de 1 ano de idade e os da faixa etária de 20-29 anos o que apresentaram as maiores incidências, 2.191,8 e 358,6, respectivamente. Em Roraima, a taxa foi de 81,3/100,00 hab., tendo havido maior incidência nos menores de 1 ano de idade, com 841,8/100,00 hab., e nas crianças de 1 a 4 anos de idade, com 255,8/100.000 hab. O Pará apresentou incidência geral de 1,3/100.000 hab., sendo mais elevada em menores de 1 ano de idade, com 15,0/100.000 hab. Foram realizadas campanhas de vacinação para aumentar a CV, onde a meta era vacinar pelo menos 95% das crianças na idade de 1 a 5 anos13.
A OMS alertou o Brasil para a necessidade de contenção dos casos em menos de 12 meses; porém, Amazonas e Pará continuavam confirmando casos, o que fez com que o Brasil perdesse o status de país livre do sarampo em 201913.
O Brasil notificou, em 2019, 64.765 casos suspeitos de sarampo, dos quais 18.203 (28,1%) foram confirmados em 23 Unidades da Federação. A maioria ocorreu no estado de São Paulo, que registrou 16.090 (88,4%) casos confirmados em 259 municípios, seguido dos estados do Paraná (760; 4,2%), Rio de Janeiro (333; 1,8%), Pernambuco (268; 1,5%), Santa Catarina (251; 1,4%), Minas Gerais (135; 0,7%) e Pará (118; 0,6%). Nesse mesmo ano, foram confirmados 15 óbitos, sendo que seis (40,0%) ocorreram em menores de 1 ano de idade; dois (13,3%), em crianças de um 1 de idade; e sete (46,7%), em adultos maiores de 20 anos de idade. Dos 15 óbitos, dois casos eram vacinados contra o sarampo14.
O estudo de Pacheco et al.15, de 2019, descreveu o risco do restabelecimento da transmissão endêmica do sarampo no Brasil e constatou que, a nível nacional, a CV da D1 da vacina SCR reduziu desde 2014, não alcançando a meta estabelecida pelo MS; e o mesmo ocorreu com a D2 de SCR, que não atingiu a meta desde 2013. A nível regional, também foram encontradas reduções, sendo observado, na Região Norte, a menor CV para a D1 e D2. Segundo o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde do Brasil (DATASUS) do MS, Belém e Ananindeua apresentaram CV abaixo do preconizado tanto para a D1 como para D2. Em 2016, Belém apresentou D1 de 77,0% e D2 de 72,0%; em 2017, D1 de 65,8% e D2 de 42,4%; e, em 2018, D1 de 75,1% e D2 de 55,2%. Em 2016, Ananindeua apresentou D1 de 34,0% e D2 de 29,8%; em 2017, D1 de 52,6% e D2 de 57,9%; e, em 2018, D1 de 56,7% e D2 de 42,1%16.
O sarampo continua a expandir-se em surtos globais, tendo registrado, em 2019, 568.573 casos confirmados; e, até agosto de 2020, foram confirmados 77.673 casos em todas as regiões da OMS17. Os genótipos atualmente circulantes do vírus do sarampo são o B3 e o D818.
Diante desse cenário, estudos de soroprevalência norteiam a vigilância epidemiológica na aplicação de medidas profiláticas e de controle na população de suscetíveis, contribuindo, dessa forma, para a saúde pública e para o resgate da certificação da eliminação do sarampo no Brasil.
Nesse contexto, foi investigado o panorama da suscetibilidade ao vírus do sarampo em populações de dois municípios da área metropolitana de Belém, em uma população de indivíduos nascidos de 1978 a 2002.
MATERIAIS E MÉTODOS
Estudo transversal em uma população de indivíduos de 15 a 39 anos de idade, de ambos os sexos, aparentemente saudáveis, selecionados de forma aleatória e por conglomerados em escolas, faculdades, universidades, quartéis e instituto de pesquisa de dois municípios da Região Metropolitana de Belém. Esses foram contemplados por serem os mais populosos do Pará e com CV abaixo do preconizado pelo MS16.
O tamanho amostral foi calculado considerando tratar-se de uma amostragem estratificada por idade. Foi utilizado o aplicativo StatCalc, no programa Epi Info™ v7.0, e os parâmetros prevalência estimada máxima (80%), limite de confiança (5%), nível de confiança (95%) e ajuste por efeito de delineamento (deff = 1,5), para controlar fatores de confusão, bem como perda do poder do teste estatístico utilizado. O cálculo foi realizado empregando-se a fórmula n = [EDFF*Np(1-p)] / [(d2/Z21-α/2*(N-1)+p*(1-p)], e o resultado total foi 2.210, sendo 1.107 para Belém e 1.103 para Ananindeua. Essa amostragem foi calculada para a detecção das diferenças estatísticas consideradas significantes a partir do nível α de 5% e IC de 95%, considerando possíveis perdas no processo seleção.
Foram selecionados para o estudo 2.220 participantes, sendo 1.109 de Belém e 1.111 de Ananindeua, com amostras coletadas de abril de 2016 a setembro de 2018. Foram considerados como critério de inclusão: pertencer à faixa etária de 15 a 39 anos e ser residente dos municípios selecionados, independente do histórico de vacina contra sarampo ou histórico da doença.
Os locais do estudo em Belém foram: Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio (EEEFM) Professor Jorge Lopes Raposo (Icoaraci), EEEFM do Outeiro (Outeiro), EEEFM Abelardo Leão Condurú (Mosqueiro), Instituto Federal do Pará, Faculdades Integradas da Amazônia, Faculdade Maurício de Nassau, Universidade Estadual do Pará, Escola Superior da Amazônia, Comando Militar do Norte, Corpo de Bombeiros de Belém e Instituto Evandro Chagas (campi Belém e Ananindeua). Em Ananindeua: EEEFM Antônio Goldim Lins, EEEFM Antônio Teixeira Gueiros, EEEFM Erotides Frota Aguiar, Faculdade da Amazônia, Instituto Federal do Pará campus Ananindeua, Sistema de Ensino da Amazônia, Universidade Federal do Pará campus Ananindeua e Corpo de Bombeiros de Ananindeua.
Os que concordaram em participar assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; e, nos casos de menores de 18 anos de idade, um Termo de Assentimento Livre e Esclarecido foi assinado tanto pelo participante como pelo responsável. Posteriormente, os participantes responderam um questionário aplicado por oito pesquisadores de campo devidamente treinados, objetivando maior familiaridade e uniformidade nas informações. Os questionários foram digitados utilizando o Epi Info™ v7.0.
Foram coletados dados como: nome; idade; sexo; município de origem; endereço de residência; histórico de imunização (status vacinal, tipos de vacina e número de doses) com base na carteira de vacinação ou, se extraviada, com base em relatos do participante ou mãe/responsável, se menor; em caso de indivíduo não vacinado, a justificativa; histórico de ocorrência da doença; e duas perguntas para verificar se conheciam o modo de transmissão e o modo de prevenção do sarampo. O conhecimento foi computado como "parcialmente" no caso de saberem responder somente uma das perguntas.
De acordo com o endereço de residência, optou-se por mapear a distribuição dos participantes por distritos administrativos de Belém e por bairro de Ananindeua. Belém possui oito distritos administrativos19 e Ananindeua possui 22 bairros urbanos e nove rurais20.
A pesquisa qualitativa de anticorpos IgG foi realizada pelo método de ELISA (Enzygnost Anti-Measles Virus/IgG), utilizando-se kits comerciais (SIEMENS®, Marburgo, Alemanha), conforme instruções do fabricante. A quantificação dos anticorpos IgG foi expressa em unidades internacionais (mIU/mL) mediante cálculo pelo método α, conforme instruções do fabricante. Os valores considerados reagentes foram títulos de IgG > 350 mIU/mL, não reagentes foram títulos < 150 mIU/mL e níveis inconclusivos entre 150-350 mIU/mL. Foram considerados susceptíveis os indivíduos não reativos (IgG-) e inconclusivos, e os que apresentaram reatividade (IgG+) foram considerados imunes. Amostras de soro com resultados inconclusivos foram submetidas a novo teste para confirmação do resultado.
Para a análise estatística, foi utilizado o teste não paramétrico binomial para uma proporção do programa BioEstat v5.3, estabelecendo nível de significância com p < 0,05, bem como o programa Microsoft Excel 2013 para as representações gráficas, e o software Arc GIS v10.2 para a geração do mapa.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do IEC, sob parecer de aprovação Nº 2556024 CAAE 46849515800000019, sendo assegurada a privacidade das informações e o anonimato dos sujeitos da pesquisa, conforme estabelecido pela Portaria Nº 466/2012, do Conselho Nacional de Pesquisa21.
RESULTADOS
Entre os 2.220 participantes, 49,9% (1.109/2.220) residiam em Belém e 50,1% (1.111/2.220) em Ananindeua. A média aritmética das idades foi de 21 anos, mediana 23 anos e desvio padrão de 1,3. A frequência de participantes do sexo feminino foi de 66,8% (1.482/2.220). Em Belém, 49,1% (545/1.109) dos participantes eram da faixa etária de 20 a 29 anos e, em Ananindeua, 52,4% (582/1.111) encontrava-se entre 15 e 19 anos de idade (Tabela 1).
Variáveis | Total | Localidades | p-valor* | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Belém | Ananindeua | ||||||
N | % | N | % | N | % | ||
Sexo | |||||||
Masculino | 738 | 33,2 | 363 | 32,7 | 375 | 33,8 | 0,6415 |
Feminino | 1.482 | 66,8 | 746 | 67,3 | 736 | 66,2 | |
Faixa etária (anos) | |||||||
15-19 | 908 | 40,9 | 326 | 29,4 | 582 | 52,4 | <0,0001 |
20-29 | 884 | 39,8 | 545 | 49,1 | 339 | 30,5 | |
30-39 | 428 | 19,3 | 238 | 21,5 | 190 | 17,1 | |
Status vacinal | |||||||
Vacinados | 1.615 | 72,7 | 795 | 71,7 | 820 | 73,8 | 0,5136 |
Não vacinados | 37 | 1,7 | 20 | 1,8 | 17 | 1,5 | |
Não soube informar | 568 | 25,6 | 294 | 26,5 | 274 | 24,7 | |
Carteira de vacinação | |||||||
Sim | 695 | 31,3 | 329 | 29,7 | 366 | 32,9 | 0,1055 |
Não | 1.525 | 68,7 | 780 | 70,3 | 745 | 67,1 | |
Tipos de vacinas e sua administração | |||||||
Vacina contra o sarampo (VCS) | 132 | 8,2 | 67 | 8,4 | 65 | 7,9 | <0,0001 |
Vacina dupla viral (SR) | 65 | 4,0 | 22 | 2,8 | 43 | 5,2 | |
Vacina tríplice viral (SCR) | 163 | 10,1 | 44 | 5,5 | 119 | 14,5 | |
VCS+SR | 413 | 25,5 | 257 | 32,3 | 156 | 19,0 | |
VCS+SCR | 58 | 3,6 | 38 | 4,8 | 20 | 2,5 | |
SR+SCR | 90 | 5,6 | 33 | 4,2 | 57 | 7,0 | |
VCS+SR+SCR | 68 | 4,2 | 49 | 6,2 | 19 | 2,3 | |
Não soube Informar | 626 | 38,8 | 285 | 35,8 | 341 | 41,6 | |
Número de doses | |||||||
Uma | 158 | 9,8 | 75 | 9,4 | 83 | 10,1 | 0,0004 |
Duas | 415 | 25,7 | 205 | 25,8 | 210 | 25,6 | |
Três ou mais | 424 | 26,2 | 243 | 30,6 | 181 | 22,1 | |
Não soube informar | 618 | 38,3 | 272 | 34,2 | 346 | 42,2 | |
Justificativa de não vacinar | |||||||
Falta de vacina no posto | 2 | 5,4 | 1 | 5,0 | 1 | 5,9 | 0,2799 |
Desconhecimento da vacina | 12 | 32,4 | 6 | 30,0 | 6 | 35,3 | |
Outros | 19 | 51,4 | 9 | 45,0 | 10 | 58,8 | |
Não soube informar | 4 | 10,8 | 4 | 20,0 | - | - | |
Ocorrência de sarampo | |||||||
Sim | 145 | 6,5 | 91 | 8,2 | 54 | 4,9 | 0,0004 |
Não | 1.758 | 79,2 | 843 | 76,0 | 915 | 82,3 | |
Não soube informar | 317 | 14,3 | 175 | 15,8 | 142 | 12,8 | |
Conhecimento sobre o sarampo | |||||||
Sim | 851 | 38,3 | 486 | 43,8 | 365 | 32,8 | <0,0001 |
Não | 868 | 39,1 | 355 | 32,0 | 513 | 46,2 | |
Parcialmente | 501 | 22,6 | 268 | 24,2 | 233 | 21,0 |
* Teste binomial para uma proporção; Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero, não resultante de arredondamento.
Quanto ao histórico vacinal para o sarampo, 72,7% (1.615/2.220) informaram ter recebido a vacina; porém, somente 31,3% (695/2.220) apresentaram a carteira de vacinação. Do total de vacinados autorreferidos, 38,8% (626/1.615) e 38,3% (618/1.615) não souberam informar o tipo de vacina e o número de doses, respectivamente (Tabela 1). A falta da carteira de vacinação devido ao extravio, para comprovar o status vacinal dos participantes, representa um fator limitante nos estudos soroepidemiológicos de agravos imunopreveníveis.
Entre as justificativas declaradas pelos indivíduos não vacinados, 32,4% (12/37) afirmaram desconhecimento da vacina, 5,4% (2/37) falta da vacina no posto e 51,4% (19/37) outros motivos, como moradia em área de difícil acesso, esquecimento do responsável, não adepto à vacinação, desconhecimento sobre os benefícios da vacina e medo das reações adversas. Do total de participantes, 39,1% (868/2.220) relataram desconhecer o modo de transmissão e prevenção do sarampo; e 6,5% (145/2.220) informaram já ter contraído o sarampo (Tabela 1), dos quais 58,6% (85/145) pertenciam à faixa etária de 30 a 39 anos.
A frequência geral de indivíduos imunes (reativos) para o sarampo, no teste de ELISA IgG, foi de 82,8% (1.838/2.220) e suscetíveis 17,2% (382/2.220), sendo que 10,2% foram não reativos e 7,0% inconclusivos (Tabela 2). A soropositividade foi de 83,6% em Belém e 82% em Ananindeua, ambos os municípios apresentaram diferenças estatisticamente significativas (p < 0,05) em relação ao percentual de CV preconizado pelo MS. Na estratificação por faixa etária, a proporção de adolescentes suscetíveis na idade de 15 a 19 anos foi de 22,4% e de 21,0% em Belém e Ananindeua, respectivamente (Tabela 2).
BELÉM | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Faixa etária (anos) | Total | % | Imune | % | IC 95% | Suscetível* | % | IC 95% | p-valor† |
15-19 | 326 | 29,4 | 253 | 77,6 | 75,2-79,6 | 73 | 22,4 | 20,0-24,4 | p < 0,05 |
20-29 | 545 | 49,1 | 457 | 83,9 | 81,6-85,7 | 88 | 16,1 | 14,1-18,0 | p < 0,05 |
30-39 | 238 | 21,5 | 217 | 91,2 | 89,5-92,5 | 21 | 8,8 | 7,2-10,2 | p < 0,05 |
Total | 1.109 | 100,0 | 927 | 83,6 | 81,4-85,4 | 182 | 16,4 | 14,3-18,2 | p < 0,05 |
ANANINDEUA | |||||||||
Faixa etária (anos) | Total | % | Imunes | % | IC 95% | Suscetível* | % | IC 95% | p-valor† |
15-19 | 582 | 52,4 | 460 | 79,0 | 76,5-80,9 | 122 | 21,0 | 18,6-23,0 | p < 0,05 |
20-29 | 339 | 30,5 | 279 | 82,3 | 80,0-84,2 | 60 | 17,7 | 15,1-19,2 | p < 0,05 |
30-39 | 190 | 17,1 | 172 | 90,5 | 88,8-91,9 | 18 | 9,5 | 7,8-11,0 | p < 0,05 |
Total | 1.111 | 100,0 | 911 | 82,0 | 79,7-83,9 | 200 | 18,0 | 15,8-19,9 | p < 0,05 |
Total geral | 2.220 | 100,0 | 1.838 | 82,8 | 81,3-84,1 | 382 | 17,2 | 15,6-18,5 | p < 0,05 |
* Somatório dos negativos e inconclusivos no teste de ELISA; † Teste binomial para uma proporção.
Participantes do sexo feminino apresentaram 84,2% de reatividade e do sexo masculino 80,0%, com diferença estatisticamente significativa (teste binominal, z = 0,51, p = 0,0061) (Figura 1). Os participantes de Belém eram provenientes de oito distritos administrativos do município: Distrito Administrativo Mosqueiro (DAMOS), Distrito Administrativo Outeiro (DAOUT), Distrito Administrativo Icoaraci (DAICO), Distrito Administrativo Benguí (DABEN), Distrito Administrativo Entroncamento (DAENT), Distrito Administrativo Sacramenta (DASAC), Distrito Administrativo Belém (DABEL) e Distrito Administrativo Guamá (DAGUA). De Ananindeua, os participantes pertenciam a 15 bairros: Centro, Águas Brancas, Águas Lindas, Coqueiro, Distrito Industrial, Maguari, 40 Horas, Atalaia, Conjunto Guajará I, Guanabara, Icuí-Guajará, Jaderlândia, Heliolândia, Curuçamba e PAAR.
O mapeamento dos indivíduos suscetíveis para o sarampo, dentre os oito distritos administrativos de Belém, revelou que seis (75,0%) distritos apresentaram frequências estatisticamente significativas (p > 0,0001): DAGUA (20,0%), DABEL (19,0%), DAICO (14,0%), DABEN (13,0%), DASAC (12,0%) e DAENT (16,0%). Em Ananindeua, sete (46,7%) bairros apresentaram percentuais de suscetíveis significantes (p > 0,0001) em relação ao vírus do sarampo: Coqueiro (22,0%); Distrito Industrial (16,0%); Águas Lindas (15,0%); Maguari (12,0%); Águas Brancas (12,0%); bairro Centro (9,0%) e Icuí-Guajará (6,0%) (Figura 2).
Fonte: LABGEO/IEC/SVS/MS.
DAMOS: Distrito Administrativo Mosqueiro; DAOUT: Distrito Administrativo Outeiro; DAICO: Distrito Administrativo Icoaraci; DABEN: Distrito Administrativo Benguí; DAENT: Distrito Administrativo Entroncamento; DASAC: Distrito Administrativo Sacramenta; DABEL: Distrito Administrativo Belém; DAGUA: Distrito Administrativo Guamá; D1: Primeira dose da vacina contra o sarampo; D2: Segunda dose da vacina contra o sarampo.
As frequências de imunes e suscetíveis, de acordo com o histórico vacinal relacionado ao tipo de vacina e suas combinações, estão apresentadas na figura 3. Para avaliar o impacto dos possíveis lapsos nos autorreferidos, analisou-se as frequências de imunes e suscetíveis de acordo com a autorreferencia (Figura 3A) e, também, de acordo com a carteira de vacinação (Figura 3B). Nas análises, considerou-se parte dos vacinados autorreferidos, bem como parte dos vacinados comprovados pela carteira, visto que nem toda autorreferência de vacinação sabia informar o tipo, e nem toda carteira de vacinação apresentava essa informação legível. A diferença de imunes entre os indivíduos que receberam VCS única e combinada com dois (dupla viral - SR) e três componentes (SCR) apresentou teste G = 6,1677, p = 0,4491, para os vacinados autorreferidos e x2= 27,666, p=0,0001, para aqueles com carteira de vacinação. Comparando as duas análises, encontrou-se teste G = 2,4443, p < 0,0001.
A: Informação baseada em autorreferências; B: Informação de vacina comprovada pela carteira de vacinação. VSC: Vacina contra o sarampo - monovalente; SR: Sarampo e rubéola - dupla viral; SCR: Sarampo, caxumba e rubéola - tríplice viral. G = 244,43, p < 0,0001.
Os níveis de anticorpos IgG específicos para sarampo, em relação ao número de doses de vacina recebidas, foram analisados somente nos participantes que apresentaram a carteira de vacinação, excluindo os que declararam terem contraído a doença. Dos 521 analisados, 14,0% (73/521) havia recebido apenas uma dose da VCS; 32,8% (171/521), duas doses; e 53,2% (277/521), três doses ou mais. O teste de proporção para duas amostras independentes mostrou que a razão de chances (odds ratio - OR) para o título reagente de anticorpos foi semelhantes entre os participantes que receberam uma dose da vacina vs. três doses, OR = 1,70 (IC 95% 0,70-3,78); p = 0,2538) e também para os que receberam duas doses da vacina vs. três doses, OR = 0,79 (IC 95% 0,48-1,27); p = 0,3917), assim como para os que receberam uma dose vs. duas doses, OR = 2,17 (IC 95% 0,95-4,92; p = 0,0899) (Tabela 3).
Vacina com componente do sarampo | Títulos (mIU/mL) | ||
---|---|---|---|
Nº de doses administradas | > 350* | 150-350† | < 150‡ |
Uma (73) | 65 (89,0%) | 4 (5,5%) | 4 (5,5%) |
Duas (171) | 135 (78,9%) | 15 (8,8%) | 21 (12,3%) |
Três ou mais (277) | 229 (82,7%) | 21 (7,6%) | 27 (9,7%) |
Total (521) | 429 (82,3%) | 40 (7,7%) | 52 (10,0%) |
Comparação entre Nº de doses | Odds ratio | IC 95% | p-valor |
Uma dose x três doses | 1,70 | 0,70-3,78 | 0,2538 |
Duas doses x três doses | 0,79 | 0,48-1,27 | 0,3917 |
Uma dose x duas doses | 2,17 | 0,95-4,92 | 0,0899 |
* Reagente; † Indeterminado; ‡ Não reagente.
Para verificar uma possível associação entre títulos de anticorpos para sarampo e tempo pós-vacinação, foi empregada a análise de correlação de Spearman, considerando o tempo em anos decorridos após a última dose da vacina autorreferida e comprovada por vacinação por cada participante, resultando em rs = -0,0897; t = -28721; p = 0,004 (Figura 4).
DISCUSSÃO
O presente artigo é pioneiro no estado do Pará, com uma análise soroepidemiológica do sarampo abordando a soroprevalência e o perfil epidemiológico de uma população que vivenciou o período epidêmico e o processo de mudanças no programa de imunização, visando à eliminação do sarampo, com a implantação das vacinas SR e SCR a partir do ano 2000.
A frequência geral de indivíduos imunes, assim como em todas as faixas etárias do estudo, apresentou-se abaixo dos 95% preconizados pelo MS do Brasil. Esse fato demonstra que parte da população pode não ter recebido o reforço, conforme orientação do MS. Estofolete et al.22, ao descreverem a soroprevalência para o sarampo em indivíduos maiores de 10 anos de idade em São José de Rio Preto, no estado de São Paulo, encontraram percentuais semelhantes (84,2%) na população de 10 a 40 anos de idade.
A suscetibilidade geral foi de 17,2% para o vírus do sarampo em Belém e Ananindeua; as maiores frequências de suscetibilidade foram detectadas entre os participantes de 15 a 29 anos de idade, fato motivado pela falta da segunda dose da vacina, por FVP ou por FVS. Todas as faixas etárias do estudo, em ambos os municípios, apresentaram diferenças estatisticamente significativas em relação ao percentual de suscetíveis admitidos pelo MS, demonstrando que existe risco de surtos de sarampo, devido à concentração de suscetíveis ao longo dos anos aliado à importação do vírus que passou a circular no país. Esses resultados foram maiores que o encontrado por Sampaio et al.23, quando estudaram a prevalência de anticorpos contra o sarampo entre estudantes vacinados de escolas e universidades na cidade de São Paulo, com 3,2%.
Segundo informações do Programa Nacional de Imunizações, a CV para o sarampo no Pará, no período de 1998 a 2018, foi de 79,5%. Após a implantação das vacinas SR e SCR, entre 2000 e 2003, registrou-se uma CV de 118,6% (conforme valores publicados pelo sistema do DATASUS), declinando para 62,1% em 2003; a partir de 2004, atingiu a meta estabelecida pelo MS (95%) até o ano 2012. No período de 2013 a 2018, a CV novamente declinou, chegando a registrar 53,2% em 201816.
Foi perceptível que, após a declaração da eliminação do sarampo, houve escassez das vacinas SR e SCR nos postos de saúde, além da redução das campanhas de vacinação, com pouca divulgação. Os movimentos antivacina cresceram globalmente, inclusive no Brasil, que sempre foi exemplo internacional de programas de imunização, provocando decréscimo na aceitação da vacina e aumento de surtos e epidemias de doenças evitáveis por vacina, como o sarampo24.
O sexo masculino apresentou suscetibilidade ao sarampo maior que o feminino, resultado esse semelhante aos achados de Poethko-Müller e Mankertz25 na Alemanha. Isso pode ter ocorrido devido às campanhas de vacinação, ocorridas na implantação da SR e da SCR, terem contemplado inicialmente as mulheres em idade fértil, com o objetivo de evitar a rubéola entre gestantes26. Observou-se, também, um menor percentual de participantes do sexo masculino no estudo, tanto em Belém como em Ananindeua, achado esse oposto ao estudo de Tafuri et al.27, ao analisar o monitoramento do processo de eliminação do sarampo em Apulian, Itália. Segundo os autores, a menor adesão pode ter sido influenciada pela aversão a procedimentos invasivos, manifestada pelos homens durante o procedimento de coleta de sangue27.
A distribuição geográfica de suscetíveis foi revelada pela comprovação desses indivíduos em seis distritos administrativos de Belém e em sete bairros de Ananindeua, inclusive com frequências de suscetibilidade significativa em vários deles. Ao verificar a CV de 2018, Belém registrou 65,2% e Ananindeua 49,4%, demonstrando um percentual muito aquém do desejado, criando com isso bolsões de suscetíveis em risco de contrair a doença, principalmente devido à migração populacional ao norte do país16.
Analisando as frequências de imunes e suscetíveis para sarampo entre os tipos de vacinas administradas (VCS, SR e SCR) nas informações baseadas em autorreferências, não foi encontrada diferença significativa; porém, entre os que apresentaram a carteira de vacinação, constatou-se essa diferença. Quanto ao tipo de vacina administrada, ao comparar as informações dos vacinados comprovados pela carteira de vacinação com as informações baseadas em autorreferencias, detectou-se diferença significativa, sugerindo que eventuais lapsos ocorridos nos relatos sobre o tipo de vacina foram impactantes. A vacina SCR apresentou maior frequência de positividade, pois é a mais usada desde a sua implantação. Santos et al.28 demonstraram que a imunogenicidade e a reatogenicidade da vacina combinada são semelhantes à vacina antígeno único do sarampo. Rivière et al.29, ao avaliar benefícios econômicos de um programa de vacinação com a vacina combinada no Canadá, concluiu uma economia de custo considerável.
A presença de indivíduos suscetíveis nesses grupos mencionados, especialmente entre os vacinados comprovados com carteira de vacinação, evidencia a ocorrência de falha vacinal. O acúmulo de suscetíveis promove o surgimento de surtos, razão pela qual as condições adequadas da cadeia de frio, o correto manuseio e a administração da vacina são importantes, a fim de amenizar FVP e FVS30.
Comparando os títulos de anticorpos contra o sarampo dos que confirmaram pela carteira de vacinação, observou-se que o grupo de inconclusivos e não reagentes que receberam a D2 é preocupante, o que pode ser explicado pela ocorrência de FVP e FVS na administração dessa dose ou pela rápida perda de anticorpos. Achados semelhantes foram relatados por Kang al.31 ao estudarem uma população de vacinados na Coreia.
Os níveis de anticorpos IgG específicos para o sarampo, em relação ao número de doses de vacina recebidas, mostrou que a razão de chances (OR) para o título positivo de anticorpos não foi significante entre os participantes que receberam doses únicas, em comparação com duas ou três doses. Esses resultados mostram que, para alcançar a imunidade, uma dose da vacina pode ser o suficiente; porém, de acordo com o relatório do Centers for Disease Control and Prevention (CDC)32, uma dose da vacina SCR apresenta cerca de 93,0% de eficácia para o sarampo, e duas doses ou mais, 97,0%. Ao comparar os dados deste estudo com os do relatório do CDC e os do estudo de Ogawa et al.33, que avaliou o histórico de vacinação em médicos e estudantes de enfermagem, o nível de imunidade deste estudo foi inferior; porém, os resultados entre a comparação entre o número de doses foram semelhantes. Lievano et al.34 detectaram 8% de pessoas sem sintomas clássicos com evidências sorológicas de infecção para o sarampo. Parte da população do presente estudo vivenciou o período epidêmico do sarampo antes da eliminação.
A correlação entre o título de anticorpos IgG contra o sarampo e o tempo decorrido após a última vacinação demostrou uma associação negativa fraca, revelando uma redução dos níveis de anticorpos ao longo do tempo, cerca de 20 anos após a última vacinação, confirmando a diminuição da imunidade induzida pela vacina. Achados semelhantes foram relatados por Smetana et al.35 na República Tcheca, com redução dos anticorpos em torno dos 30 a 39 anos após a última vacinação. Esses resultados demonstram que os indivíduos que foram imunizados na infância ou adolescência podem se tornar suscetíveis quando adultos e, no caso de mulheres, podem transferir baixos níveis de anticorpos maternos aos seus filhos, comprovando a necessidade de cumprir as recomendações do MS quanto à orientação para a D2, a fim de corrigir possíveis falhas vacinais36.
O perfil diversificado de tipos de vacinas e esquemas vacinais contra o sarampo demonstra que essa população passou por mudanças durante as estratégias no programa de vacinação do MS, com a implantação do plano de eliminação do sarampo e da rubéola. No Pará, em 2000, ocorreu a primeira campanha de vacinação com a SR para as idades de 1 a 4 anos e para mulheres em idade fértil; e, em 2003, a VCS foi substituída pela SCR, passando a ser administrada aos 12 meses de idade, conforme preconizado pelo MS37.
CONCLUSÃO
O estudo revela suscetibilidade significativa na faixa etária de 15 a 39 anos, formando bolsões de vulneráveis, detectando uma lacuna na proteção contra o sarampo em adultos após 20 anos da última vacinação. Pode ter sido a causa da ocorrência de surtos de sarampo em Belém e Ananindeua desde 2018. Torna-se notória a necessidade do fortalecimento das estratégias de vacinação e tomadas de decisão por parte do Estado diante da reintrodução do vírus, visando o controle da doença no Brasil, a retomada da certificação da eliminação do sarampo no país e o alcance da sua erradicação. Sugere-se a implantação de uma vigilância sorológica para identificar suscetíveis e a revacinação quando a ausência de anticorpos protetores for detectada.