INTRODUÇÃO
O Brasil possui a maior rede fluvial do mundo, onde a presença de animais peçonhentos é considerável1. Entre esses animais, estão as arraias de água doce da família Potamotrygonidae, distribuídas em quatro gêneros: Potamotrygon, Paratrygon, Plesiotrygon e Heliotrygon2. Confinadas às águas continentais, as arraias possuem ampla distribuição na América do Sul, com cerca de 20 espécies que colonizam todas as regiões do Brasil3,4,5. A espécie Paratrygon aiereba é a mais comum na bacia Tocantins-Araguaia, com uma das maiores distribuições geográficas entre as espécies do gênero6.
A bacia Tocantins-Araguaia é frequentemente utilizada para atividades recreativas, especialmente entre os meses de junho e agosto. Devido à estação seca, há diminuição dos níveis de água dos rios e consequente exposição de praias, que atraem turistas, onde acidentes com arraias são mais comuns6,7. Esses animais geralmente permanecem imóveis, ocultos por areia ou lama no fundo dos rios, com os olhos localizados dorsalmente, observando a possibilidade de comida e se escondendo de seus predadores8. Assim, banhistas se acidentam após o pisoteio do animal, com acometimento predominante de membros inferiores, principalmente nos tornozelos e pés, enquanto pescadores, tanto profissionais como esportivos, são normalmente atingidos nos membros superiores, especialmente nas mãos, ao tentarem manipulá-los9.
As arraias da família Potamotrygonidae são conhecidas por seu apêndice de cauda longa, com a presença de um a quatro ferrões calcificados serrilhados, cobertos por um epitélio glandular cujas células produzem veneno10. Além disso, as arraias, assim como outros peixes, são cobertas por um muco que abriga bactérias de vários tipos e que podem provocar infecções bacterianas secundárias6,11. Esse muco contém substâncias, como peptídeos, capazes de induzir inflamação e vasoconstrição que, juntamente com o veneno, aumentam a gravidade dos ferimentos causados pelo animal5,10. Dessa forma, quando ameaçadas, as arraias utilizam sua cauda como um chicote5,8,10, provocando uma lesão severa pela ação mecânica, que pode traumatizar os principais nervos e vasos sanguíneos, e química, por meio da liberação de toxinas na ferida6,8,10,11.
A dor é o principal sintoma relatado, surgindo com grande intensidade imediatamente após a ferroada, acompanhada do aparecimento de edema e eritema locais, evoluindo para necrose cutânea de grau variável5,9. A ferida costuma ser desproporcionalmente dolorosa em relação à lesão clínica visível8, sendo persistente mesmo com o uso de anestésicos, analgésicos e anti-inflamatórios6. Sintomas sistêmicos, como taquicardia, febre, sudorese fria, náuseas, vômitos e agitação, também já foram descritos e geralmente estão associados à dor e ao estresse da vítima7,8. O tempo médio de recuperação do paciente e a cicatrização das úlceras dura cerca de três meses; entretanto, envenenamentos graves que não são adequadamente tratados podem resultar em amputação ou morte6,7.
Os danos da ferroada são agravados por ainda não existir um tratamento específico para essa categoria de acidente. Além disso, muitos profissionais de saúde não recebem treinamentos adequados sobre o tema nos cursos de graduação ou no decorrer da atividade profissional9. Há relatos na literatura de soro antibotrópico sendo administrado para dor e inflamação e do uso de compressas de gelo; porém, esses procedimentos não são indicados por apresentarem baixa eficácia6, sendo ideal o uso de compressas quentes nesses casos5,6,9. Isso reflete o mau preparo dos profissionais no manejo desses pacientes.
Diante da necessidade de evidências científicas sobre as abordagens de tratamento empregadas, este estudo teve por objetivo identificar as terapêuticas aplicadas em traumas por ferroadas de arraias nos anos de 2018 a 2019, além de caracterizar o perfil clínico e sociodemográfico dos pacientes.
MATERIAIS E MÉTODOS
O estudo foi realizado em Palmas, estado do Tocantins, que apresenta uma área territorial de 2.218,942 km² e possuía uma população de 306.296 habitantes em 201912. Esse território faz parte de uma área de transição do cerrado para a Amazônia, apresentando clima tropical, com temperatura média anual de 26,7 °C. Palmas é banhada por um lago formado a partir da hidrelétrica Luís Eduardo Magalhães, o qual possui 172 km de extensão e 8 km de largura, com ilhas e praias artificiais durante todo o ano (Figura 1). Por ser uma cidade de clima tropical e quente, entre junho e outubro, os banhistas são mais frequentes para atividades de lazer, oportunizando os traumas por arraias. Para o atendimento dessa categoria de acidente, o município conta, na rede pública, com o Hospital Geral de Palmas, sob gestão estadual, e duas Unidades de Pronto Atendimento (UPA), sob gestão municipal. Para este estudo, a investigação foi conduzida nas duas UPA, sendo uma localizada no Plano Diretor Norte e a outra no Plano Diretor Sul (Figura 1).
Trata-se de um estudo descritivo e quantitativo. Para a coleta dos dados, foi solicitada à gestão municipal a disponibilidade do banco de dados com todos os prontuários eletrônicos (e-SUS) das vítimas de traumas por ferroadas de arraia atendidas nas UPA, entre 2018 e 2019. A coleta foi conduzida de outubro a novembro de 2020. O filtro para a seleção dos prontuários foi feito pela aplicação das palavras-chave "arraias", "arraia", "raias" e "raia". Desse procedimento, foram obtidos 774 prontuários.
Após análise, foram incluídos somente prontuários de pessoas com informações completas do primeiro atendimento realizado pelo profissional médico. Foram excluídos os prontuários com duplicidade de informações, registros com erro de diagnóstico e divergências quanto à categoria de acidente/trauma e os prontuários sem informações terapêuticas e clínicas. Ao final da aplicação dos critérios de inclusão e exclusão, 189 pacientes fizeram parte do estudo.
Os dados foram coletados com as seguintes variáveis sociodemográficas: sexo, faixa etária, raça/cor, mês de ocorrência do acidente, local de procedência do paciente; e variáveis clínicas: região anatômica da lesão, tempo de procura por atendimento, sinais e sintomas, complicações, encaminhamentos realizados, classificação de risco pelo Protocolo de Manchester e categoria de tratamento aplicado.
Para a análise descritiva dos dados, o programa Stata 11 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos da América) foi utilizado, sendo os dados organizados e apresentados em tabelas e gráficos.
O estudo foi aprovado pela Comissão de Avaliação de Projetos e Pesquisa da Fundação Escola de Saúde Pública de Palmas. Em seguida, foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário Presidente Antônio Carlos de Araguaína, Tocantins (CAEE: 33623720.4.0000.0014, de 14 de julho de 2020), e obteve o registro da instituição coparticipante de onde os dados foram recrutados.
RESULTADOS
O perfil sociodemográfico (Tabela 1) demonstrou acometimento majoritário de vítimas do sexo masculino, representando 143/189 atendimentos (75,66%) do total. Quanto à faixa etária, sobressaíram-se os pacientes entre 21 e 50 anos (69,31%). Houve predominância da raça/cor de pele parda (48,15%) e de acidentes ocorridos nos meses de junho a setembro (46,56%). A população mais acometida era moradora do Plano Diretor Sul de Palmas (22,75%).
Variáveis | N | % |
---|---|---|
Sexo | ||
Feminino | 46 | 24,34 |
Masculino | 143 | 75,66 |
Faixa etária | ||
≤ 20 anos | 35 | 18,52 |
21 a 50 anos | 131 | 69,31 |
> 50 anos | 23 | 12,17 |
Raça/cor de pele | ||
Parda | 91 | 48,15 |
Branca | 53 | 28,04 |
Amarela | 34 | 17,99 |
Preta | 11 | 5,82 |
Mês de ocorrência do acidente | ||
Janeiro a maio | 66 | 34,92 |
Junho a setembro | 88 | 46,56 |
Outubro a dezembro | 35 | 18,52 |
Local de procedência | ||
Plano Diretor Sul | 43 | 22,75 |
Outro estado | 33 | 17,46 |
Outra cidade | 27 | 14,29 |
Aureny I, II, III e IV | 29 | 15,34 |
Plano Diretor Norte | 22 | 11,64 |
Taquaralto | 19 | 10,05 |
Taquari | 9 | 4,76 |
Taquaruçu | 2 | 1,06 |
Outros* | 5 | 2,65 |
Total | 189 | 100,00 |
* Loteamentos Água Fria, Sonho Meu e Irmã Dulce, e zona rural.
A observação do perfil clínico (Tabela 2) demonstrou que o tempo de procura por atendimento em até 24 h (61,91%) foi o mais prevalente. Houve domínio dos sinais e sintomas locais (91,53%). Quanto à triagem dos atendimentos segundo a classificação de risco pelo Protocolo de Manchester, durante a escuta inicial na UPA, verificou-se que 61,38% receberam classificação amarela (urgente). Somente 17,46% dos pacientes apresentavam algum tipo de complicação e 7,41% geraram encaminhamentos.
Variáveis | N | % |
---|---|---|
Região anatômica da lesão | ||
Membros inferiores | 170 | 89,95 |
Membros superiores | 9 | 4,76 |
Membros superiores e inferiores | 1 | 0,53 |
Mento | 1 | 0,53 |
Tronco | 1 | 0,53 |
Não definida | 7 | 3,70 |
Tempo de procura por atendimento | ||
Até 24 h | 117 | 61,91 |
1 a 7 dias | 13 | 6,88 |
Acima de 7 dias | 19 | 10,05 |
Não especificado | 40 | 21,16 |
Classificação de risco* | ||
Verde | 19 | 10,05 |
Amarela | 116 | 61,38 |
Vermelha | 19 | 10,05 |
Não declarada | 35 | 18,52 |
Sinais e sintomas | ||
Locais | 173 | 91,53 |
Sistêmicos | 16 | 8,47 |
Complicações | ||
Sim | 33 | 17,46 |
Não | 14 | 7,41 |
Ignorado | 142 | 75,13 |
Encaminhamentos realizados | ||
Sim | 14 | 7,41 |
Não | 175 | 92,59 |
Total | 189 | 100,00 |
* Verde: pouco urgente, com atendimento em até 2 h; Amarela: urgente, com atendimento em até 1 h; Vermelha: grave, com atendimento imediato.
O perfil terapêutico (Figura 2) foi traçado conforme o total de vezes que determinada classe medicamentosa foi prescrita. As terapêuticas mais empregadas consistiram em uso de analgésicos locais e sistêmicos, incluindo opioides (61,90%), anti-inflamatórios (61,38%) e antibióticos (59,26%). Os registros classificados como "conduta não especificada" se referem a evoluções não registradas nos prontuários.
Os antibióticos mais prescritos (Figura 3) foram cefalexina (31,22%), amoxicilina (11,11%) e ciprofloxacina (10,05%). Houve sobreposição de prescrição de anti-inflamatórios para o mesmo paciente, sendo que os mais prescritos foram tenoxicam (125; 66,14%), ibuprofeno (61; 32,27%), nimesulida (60; 31,75%), diclofenaco (22; 11,64%), corticoide (19; 10,05%), meloxicam (3; 1,59%), aceclofenaco (1; 0,53%), cetoprofeno (1; 0,53%), naproxeno (1; 0,53%) e piroxicam (1; 0,53%).
DISCUSSÃO
Este estudo propiciou uma compreensão abrangente das terapêuticas adotadas nas UPA de Palmas para os casos de acidentes por ferroadas de arraias, além de favorecer o delineamento dos perfis sociodemográficos e clínicos dos pacientes que sofreram esse tipo de trauma. Os resultados evidenciaram maior acometimento na faixa etária entre 21 e 50 anos, em moradores provenientes do Plano Diretor Sul, no sexo masculino, na raça/cor parda e nos meses de junho a setembro. O perfil clínico mais apresentado foi de acometimento de membros inferiores, com sinais e sintomas locais e classificação de risco urgente (amarela) pelo Protocolo de Manchester em pacientes que procuraram atendimento em até 24 h, havendo raros encaminhamentos e relatos de complicações nos prontuários. No tocante às terapêuticas, houve predomínio do uso de analgésicos, anti-inflamatórios e antibióticos.
O estado do Tocantins é composto majoritariamente pela raça/cor de pele parda, a qual corresponde a mais de 60% da população12. Esse dado corrobora a eventualidade da predominância de acidentes com arraias na raça/cor de pele parda.
Na bacia Tocantins-Araguaia, principalmente nos estados do Tocantins, Mato Grosso e Pará, os acidentes com arraias são mais frequentes durante a estação seca, entre os meses de julho a agosto, quando são formados bancos de areia e praias onde milhares de pessoas buscam realizar atividades recreativas6,7. Sendo assim, os maiores registros de acidentes encontrados nos meses de junho a setembro eram esperados. Pescadores amadores também são frequentemente feridos nos meses de abril e maio, quando há a temporada de pesca de espécies nativas e os habitantes da Região Sudeste procuram os rios Amazonas e Tocantins-Araguaia para a prática da pesca esportiva. Nesse contexto, as ferroadas ocorrem devido à manipulação de arraias presas em anzóis e ao pisoteio11. Esse cenário explica o alto número de atendimentos gerados entre o período de janeiro a maio e também o atendimento a moradores de outros estados.
Em Palmas, a maioria dos pacientes afetados é procedente do Plano Diretor Sul. Acredita-se que esse fato ocorra pela proximidade do setor com o lago da cidade, onde há praias durante todo o ano. Haddad Jr et al.7 observaram que, no rio Tocantins, devido ao alagamento de áreas extensas provocado pela construção de usinas hidrelétricas, foram construídas ilhas e praias artificiais que são usadas todos os meses pelos habitantes locais para lazer, o que contribui para que essa categoria de acidente ocorra durante todo o ano. Outro fator que contribui para o aumento da interação desses animais com humanos é o fato de que o represamento reduz a vazão e há proliferação de alimentos incluídos na dieta das arraias, levando ao seu aumento, como já foi observado no lago Tucuruí, em Marabá e Tucuruí, estado do Pará, e na hidrelétrica de Lajeado, em Palmas7.
O sexo masculino já mostrou ser o mais acometido em outros estudos sobre acidentes com arraias no Tocantins13. Esse fator pode estar associado ao padrão de comportamento de alto risco dos homens14 e à prática de pesca, muito associada a esse tipo de lesão5,7,9,15. Um estudo realizado na Amazônia, que analisou 476 casos de ferroadas de arraias, a faixa etária entre 21 e 50 anos também foi bastante registrada, somando 44,1% das injúrias estudadas12.
Os acidentes por arraias se caracterizam por sua ação inflamatória, em que a vítima se queixa de dor intensa e desproporcional ao tamanho da lesão, com aparecimento de eritema e edema em torno da ferida, que constitui a primeira fase do envenenamento5,16. Em um estudo realizado em 2015 com ratos, houve a conclusão de que o veneno da Potamotrygon motoro induz a formação de edema em apenas 15 min após a injeção nas patas dos ratos. Além disso, um grande número de células inflamatórias foi observado no início, bem como em períodos posteriores à injeção do veneno17. A lesão evolui com necrose central, flacidez do tecido e formação de úlcera rosada5,10. A análise de mudanças histopatológicas induzidas pelo veneno da Potamotrygon falkneri possibilitou a constatação de que, 6 h após a injeção, há o surgimento de infiltrados inflamatórios e focos de necrose em células epidérmicas basais e, em 24 h, pode-se observar necrose da pele, do tecido subcutâneo e do músculo esquelético, podendo ocasionar complicações graves, como a rabdomiólise, devido à necrose coagulativa do tecido muscular5,11.
Os danos causados por ferroada de arraia são mais comuns nos membros inferiores, principalmente no pé e tornozelo5,7,9,15,16,18. Isso se deve, sobretudo, ao hábito bentônico das arraias, que costumam ficar escondidas sob a areia, propiciando seu pisoteio, com consequente esporada como reflexo de defesa5. Não obstante, neste estudo, também houve registros de casos de acometimento em mento e tronco.
Nos atendimentos avaliados nas UPA, os sinais e sintomas foram majoritariamente locais, sendo a dor intensa na região da picadura a maior queixa relatada, seguida da constatação de edema, hiperemia e eritema locais. A dor intensa na região acometida foi o sintoma prevalentemente responsável pela classificação de risco amarela pelo Protocolo de Manchester, referida como urgente, sendo a mais observada na triagem dos atendimentos. Estudos apontam que em alguns casos a dor é tão intensa que pode causar desorientação e mudanças de comportamento nas vítimas7,16. A classificação vermelha, de emergência, foi indicada nesses atendimentos, sobretudo, para pacientes com picaduras que se apresentavam com pico hipertensivo no momento do atendimento.
O tempo de procura precoce após a esporada é essencial, pois envenenamentos graves com atraso do atendimento médico ou má gestão clínica podem resultar em complicações importantes6. Um estudo realizado no estado do Amazonas apontou que o tempo maior que 24 h para a procura da assistência médica esteve significativamente associado ao risco de infecção secundária, e que esse atraso no atendimento pode aumentar o risco de infecção secundária em até 15 vezes na Região Amazônica brasileira16. Neste estudo, observou-se que, dos 19 atendimentos de pacientes que buscaram o serviço somente sete dias depois de ocorrido o acidente, 17 apresentaram complicações. Tais complicações se manifestaram essencialmente na presença de sinais flogísticos e de infecções secundárias, além de ter sido reportado um caso de necrose que suscitou no encaminhamento para o Hospital Geral de Palmas para intervenção cirúrgica16.
O tratamento adequado para o envenenamento por arraia permanece pouco compreendido e um tanto controverso na comunidade médica brasileira6. Das terapias recomendadas, o uso da termoterapia por meio da imersão do membro em água quente, compressa quente e/ou lavagem com soro aquecido, foi uma terapia empregada e orientada aos pacientes pelos médicos em somente 22,22% dos atendimentos analisados neste estudo. A imersão do membro em água quente não escaldante, entre 45 °C e 60 °C, é a primeira e mais indicada conduta para controle da dor, pois as toxinas do veneno presentes no esporão são termolábeis, além dessa medida atenuar o efeito de vasoconstrição5,7,9. Um estudo prospectivo realizado na Califórnia referiu rápida redução na escala de dor em pacientes após um período relativamente curto de imersão dos membros afetados19.
É sabido, entretanto, que, após a retirada do membro afetado da água quente, pode haver persistência da dor. Preconiza-se o uso de analgesia oral, opioides intravenosos titulados e anestesia local (ou bloqueio locorregional), que devem ser administrados nos casos em que a termoterapia não for suficiente como alívio para dor aguda16. Segundo o manual de diagnóstico e tratamento de acidente por animais peçonhentos da Fundação Nacional de Sáude20, é indicado o bloqueio local com lidocaína a 2% sem vasoconstritor, visando não somente reduzir a dor, mas também propiciar a manipulação do tecido lesionado para remoção de possíveis corpos estranhos. Neste estudo, a anestesia local foi administrada em 31,74% dos pacientes.
A assepsia (25,39%) foi preconizada nessa categoria de ferimento. Todas as lesões penetrantes requerem irrigação e limpeza, sendo que feridas maiores ou que contenham detritos requerem exploração cirúrgica para extrair quaisquer fragmentos de cauda embutidos remanescentes, bem como desbridamento da ferida19. O desbridamento foi executado em 29,10% dos casos e a intervenção cirúrgica em somente 1,59% dos pacientes. A excisão precoce da área afetada é recomendada por alguns autores; no entanto, sua aplicação nem sempre é possível devido ao problema do delineamento impreciso da área necrosada nos estágios iniciais da condição6.
Outra conduta pouco exercida foi a profilaxia antitetânica, sendo observada em somente 8,99% dos casos. O tétano pode ocorrer após o trauma, pois seu desenvolvimento não é incomum em pessoas com tecido necrosado, sendo a necrose uma pré-condição essencial para a multiplicação de Clostridium tetani12. Assim, a profilaxia antitetânica é recomenda no tratamento pós-lesão5,7,8,16,17.
A antibioticoprofilaxia após a esporada de raia também permanece controversa, visto que alguns estudos recomendam seu uso somente para feridas de penetração profunda do ferrão, para feridas com presença de corpos estranhos significativos ou por vítimas imunocomprometidas. Todavia, foi demonstrado também, em um estudo sobre o atendimento a pacientes na emergência, que 17% daqueles que não receberam antibioticoprofilaxia retornaram para novo atendimento com infecção, comparados ao retorno de somente 1,4% dos que receberam19.
Os agentes microbianos mais comuns no muco da arraia P. motoro são bastonetes gram-negativos, nomeadamente Aeromonas spp., incluindo cepas bacterianas resistentes a β-lactâmicos com potencial de causar infecção secundária grave16. Pseudomonas spp. e Staphylococcus spp. também são agentes associados a infecções secundárias5. O uso de quinolona por no mínimo cinco dias mostrou uma menor taxa de infecção8,15. Sulfametoxazol-trimetropima, ciprofloxacina ou tetraciclina também têm sido sugeridos para o tratamento de infecções em feridas provocadas por acidentes com peixes16.
Entretanto, mesmo que as espécies bacterianas sejam normalmente suscetíveis à ciprofloxacina, sendo uma das drogas antibióticas mais prescritas para os pacientes deste estudo (10,05%), há relatos do fracasso terapêutico desse medicamento6,16, sobretudo devido à resistência bacteriana de espécies que colonizam o muco da arraia, incluindo Pseudomonas aeruginosa, Staphylococcus aureus, Klebsiella pneumoniae, Escherichia coli, Acinetobacter spp. e Clostridium perfringens6.
A cefalexina foi a medicação antibiótica mais empregada (31,22%), sendo essa uma cefalosporina de primeira geração. Essas drogas, ainda que tenham se mostrado bem-sucedidas no tratamento, são antibióticos conhecidos pela resistência a várias espécies bacterianas pertinentes a envenenamentos causados por Potamotrygon, como Citrobacter freundii, P. aeruginosa, Aeromonas hydrophila, Enterobacter spp., Acinetobacter spp., K. pneumoniae6.
Nos traumas por ferroada por arraias, o uso de anti-inflamatório é preconizado para controle da evolução e piora do ferimento5,6. Ainda assim, seu uso e aplicabilidade não são amplamente discutidos na literatura. O uso de corticosteroides sistêmicos é controverso, podendo prolongar o tempo de cicatrização das úlceras7,9.
CONCLUSÃO
Em suma, os acidentes causados por arraias atendidos nos serviços de prontos atendimentos de Palmas ocorreram predominantemente no período de estiagem, sendo os homens jovens e da raça/cor de pele parda os mais acometidos. A predominância de acidentes em moradores do Plano Diretor Sul coincide com a maior disponibilidade de praias e banhos nessa região. No manejo terapêutico, houve dominância do uso de analgésicos, anti-inflamatórios e antibióticos.
Conforme a literatura, a medida prioritariamente recomendada é a imersão do local afetado em água quente. Porém, este estudo mostrou que a conduta foi pouco preconizada nos atendimentos. Os antibióticos mais empregados no manejo dos casos apresentam resistência bacteriana, podendo não ser tão eficazes no tratamento profilático das feridas. Demais condutas, como o emprego de corticosteroides, também podem ser discutíveis. Nota-se, portanto, o despreparo e possível desconhecimento dos profissionais de saúde do serviço de emergência para o manejo dessa categoria de injúria. Esses dados reportam a necessidade de educação em saúde para banhistas, pescadores e populações expostas, bem como a necessidade de protocolos específicos e profissionais treinados para o manejo dessa condição nos serviços de saúde.