INTRODUÇÃO
A partir da última década do século XIX, foram feitas descobertas decisivas acerca do envolvimento de artrópodes na transmissão de parasitos humanos. Nesse sentido, destacam-se os achados de Patrick Manson (1844-1922), Ronald Ross (1857-1932) e Charles Louis Alphonse Laveran (1845-1922), que revelaram o papel dos mosquitos na transmissão da filariose bancroftiana e da malária, propiciando notável impulso nas pesquisas sobre esses dípteros até então pouco investigados1,2. No início do século XX, com a descoberta de que a febre amarela era também transmitida por um mosquito, o Aedes aegypti, intensificou-se ainda mais o estudo da sistemática e biologia desses insetos, de modo a se organizarem as ações de vigilância e controle, voltadas para os alvos corretos.
Em 1899, o Museu Britânico de História Natural, em Londres, criou uma rede de coleta e remessa de mosquitos de todo o mundo para a sua sede e contratou Frederick Vincent Theobald (1868-1930) para realizar um inventário que permitisse identificar as espécies vetoras da malária. A partir do acervo reunido e de correspondência trocando opiniões com vários pesquisadores, entre os quais se destaca Adolpho Lutz (1855-1940), Theobald publicou um trabalho monográfico3 com propostas de organizações taxonômicas para os mosquitos, que seriam essencialmente apoiadas e adotadas por Lutz.
Outra frente de estudos de mosquitos organizou-se no Museu de História Natural, em Washington D.C.. Nela destacam-se as contribuições de Leland O. Howard (1857-1950), Harrison G. Dyar (1866-1929) e Frederick Knab (1865-1918), que propuseram o uso de diferentes caracteres adotados em Londres nas organizações taxonômicas e definição das espécies, como aqueles da genitália masculina ou das formas imaturas4,5,6, sugestão refutada por líderes ou competidores, como Theobald e Lutz, mas que paulatinamente se mostrariam mais naturais que aquelas do entomologista britânico7,8,9,10.
O ESTUDO DE MOSQUITOS NO BRASIL NO RAIAR DO SÉCULO XX
No Brasil, as descobertas feitas pelos europeus de que mosquitos não eram apenas insetos incômodos e desagradáveis por suas picadas tiveram repercussão imediata junto aos nossos pesquisadores. Em São Paulo, Lutz já havia indicado anofelinos, mais tarde conhecidos como Anopheles cruzii, como transmissores da malária durante a construção de ferrovia na Serra de Cubatão11. Ainda que outros pesquisadores brasileiros também se devotassem ao estudo dos mosquitos na aurora do século XX, como Celestino Bourroul (1880-1958) e Emílio Goeldi (1859-1917), inclusive produzindo obras pioneiras12,13, Lutz se tornaria a principal referência a respeito desses insetos no Brasil14.
No Rio de Janeiro, o estudo dos mosquitos teve no Instituto Soroterápico Federal (1900), "Instituto de Manguinhos", depois Instituto de Patologia Experimental de Manguinhos (1907), e finalmente Instituto Oswaldo Cruz (1908), sua "sede" e "escola" desde os seus primórdios. A capital da República, endêmica de malária, carecia de conhecimento sobre os anofelinos vetores e o próprio diretor técnico de Manguinhos, Oswaldo Cruz (1872-1917), publicou o primeiro trabalho científico da Instituição, consistindo na descrição de uma espécie nova, o Anopheles lutzii15. Oswaldo Cruz, precocemente, inaugurou, em seu Instituto, linhas de pesquisas originais em vários campos, inclusive na entomologia médica. Henrique Aragão (1879-1956), um dos pioneiros de Manguinhos, apresentou o seguinte panorama em relação a esse feito do "mestre"16:
Oswaldo por seu lado, investigava vários assuntos: a fórmula hemoleucocitária nas infecções e intoxicações, a vacina antipestosa, os mosquitos transmissores do paludismo, a tuberculose e ainda encontrava tempo para fazer excursões [...] à zona, na época muito malarígena, de Sarapuhy, na baixada fluminense, afim de capturar anofelinos.
Logo, esse ambiente de pesquisa, "plural e inovador", atraiu médicos e estudantes de medicina interessados em aprimorar suas habilidades profissionais e desenvolver teses de doutoramento17. A entomologia médica seria tema de alguns deles na primeira década do século XX, como Carlos Chagas (1878-1934), Arthur Neiva (1880-1943) e Antonio Gonçalves Peryassú (1879-1962)14,18. O último se especializaria em mosquitos.
ANTONIO GONÇALVES PERYASSÚ: UM PARAENSE ENTRE OS PIONEIROS NA CULICIDOLOGIA NO BRASIL
Natural de Igarapé-Miri, interior do estado do Pará, Antonio Gonçalves Peryassú nasceu no dia 19 de novembro de 1879, filho de Napoleão Manoel Gonçalves e Benedita Pinheiro Gonçalves (Figura 1). No período da "belle époque amazônica", estudou na Escola Modelo, anexa à Escola Normal, e no Liceu Paraense, tradicionais estabelecimentos públicos de ensino de Belém19. Antes de se transferir para o Rio de Janeiro com o propósito de cursar medicina, obteve em 1902 o diploma de farmacêutico pela Faculdade de Medicina da Bahia20. Peryassú se casou com a também paraense Georgina Nunes Bezerra, neta de Antonio Gonçalves Nunes, barão de Igarapé-Miri, tendo com ela quatro filhos: Demétrio, que seria médico como o pai e prestigiado dermatologista, Dagmar, Carmen e Célia (Figura 2).
Em 1903, ao ingressar na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (FMRJ), Peryassú testemunhou a eclosão de uma epidemia grave de febre amarela que resultou em centenas de doentes e mortos na capital federal21. Para fazer frente a esse desastre sanitário, Oswaldo Cruz, no comando da Diretoria Geral de Saúde Pública, recrutou estudantes para o recém-criado Serviço de Profilaxia da Febre Amarela (SPFA), que contava com uma brigada de 2.500 homens. Embora o número de casos e a letalidade da doença tivessem diminuído em 1904, Peryassú foi nomeado, por Oswaldo Cruz, como auxiliar acadêmico do SPFA22, função que exerceu de forma ininterrupta até concluir o curso médico.
Na ausência de vacina, a profilaxia e o controle da febre amarela eram essencialmente restritos ao combate ao Ae. aegypti, àquela altura denominado Stegomyia callopus. A atuação de Peryassú nas campanhas antiamarílicas o aproximaria da entomologia médica, e as ações de campo do próprio SPFA (Figura 3) resultariam na reunião de farto material útil à confecção de sua futura tese de doutoramento.
Assim, Oswaldo Cruz estimulou o jovem paraense a desenvolver, em Manguinhos, uma tese baseada em mosquitos. Trata-se da "primeira tese sobre insetos" na história da Instituição23. Os conteúdos do proêmio desse trabalho monográfico e da correspondência entre Oswaldo Cruz e Lutz, apontam que o próprio Oswaldo orientou o estudo de Peryassú, com a colaboração de seu assistente Arthur Neiva. Porém, durante a elaboração da tese, entre 1906 e 1907, Oswaldo Cruz fez consultas a Lutz sobre algumas dúvidas surgidas quanto à distribuição geográfica e definição taxonômica de espécies de mosquitos, além de pedir autorização para que Peryassú utilizasse um esquema que Lutz havia produzido sobre padrões de manchas nas asas de um Toxorhynchitinae, subfamília de mosquitos não hematófagos muito coloridos. Oswaldo Cruz chegou a cogitar o envio de Peryassú para uma capacitação junto a Lutz, em São Paulo, no ano de 1907, mas desistiu devido ao prazo curto que o pupilo teria para defender a tese14.
Em Manguinhos, Peryassú pôde usufruir da troca de conhecimento com pesquisadores que ali já vinham estudando e colecionando mosquitos e do exame desse material de referência24. Durante a elaboração da tese, surgiram as primeiras produções acadêmicas de Peryassú: publicou uma nota sobre o mosquito silvestre Dendromyia medioalbipes25, foi a São Paulo, em 1907, expor os resultados parciais de sua pesquisa de doutoramento no VI Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia26, e os mosquitos por ele estudados participaram da coleção que Oswaldo Cruz exibiu, com sucesso, na Exposição de Higiene anexa ao XIV Congresso Internacional de Higiene e Demografia de Berlim27.
Intitulada "Os culicídeos do Brazil" e declarada como "Trabalho do Instituto de Manguinhos", a tese de Peryassú foi apresentada à Cadeira de História Natural Médica, da FMRJ, em 16 de julho de 1907, e defendida em 3 de janeiro de 190828 (Figura 4). A banca examinadora, composta por Antonio Augusto de Azevedo Sodré (1864-1929), Oscar Frederico de Souza (1870-1941), Júlio Afrânio Peixoto (1876-1947) e Raul Leitão da Cunha (1881-1947), elogiou a tese, tendo Peixoto assim se dirigido ao discípulo de Oswaldo Cruz: "Saúdo em V. Ex. o Theobald brasileiro!"29.
Na tese foram abordados aspectos da taxonomia, sistemática, distribuição geográfica, comportamento, biologia e controle dos mosquitos. No que concerne à taxonomia e sistemática, Peryassú incluiu as descrições originais de oito espécies novas para a ciência, sendo que em seis delas os autores eram dois pesquisadores de Manguinhos e o seu consultor, Adolpho Lutz. A autoria dessas seis espécies lhe tinha sido equivocadamente atribuída por décadas e apenas recentemente corrigida10,24,30, sendo: Arribalzagia pseudomaculipes Chagas (= Anopheles pseudomaculipes), Cycloleppteron intermedius Chagas (= Anopheles medialis Harbach), Taeniorhynchus albicosta Chagas (=Coquillettidia albicosta), Myzorhynchella gilesi Neiva (=Anopheles gilesi), Megarhinus fluminensis Neiva (=Toxorhynchites theobaldi Dyar & Knab) e Janthinosoma albigenu Lutz (= Psorophora albigenu). Duas espécies são de sua própria autoria: Melanoconion chrysothorax (= Culex chrysothorax, nomen dubium) e Sabethes purpureus [= Sabethes purpureus (Theobald)].
Mas, como a forte opinião de Lutz teve influência na elaboração da tese, e este seguia a escola britânica, as partes relativas à taxonomia de "Os culicídeos do Brazil" foram essencialmente inspiradas nas propostas de classificação de Theobald. Pouco antes da defesa da tese, Oswaldo Cruz, em visita a Washington, em 1907, ficou impressionado com o trabalho dos norte-americanos e lamentou que seu orientando tivesse desprezado as propostas desses últimos e seguido Theobald sem questionamento. A tese de Peryassú, embora extensa e bem ilustrada para os padrões da época, não teria trazido original contribuição para a taxonomia e sistemática dos mosquitos do mundo, segundo opinião de Knab, em carta a Lutz, em 190914. Mas, o reconhecimento do esforço de Peryassú foi traduzido em homenagem com a descrição do mosquito Anopheles peryassui por dois norte-americanos, dentre os quais o próprio Knab31.
Além da taxonomia, a tese incluiu rica informação no que tange à biologia e ao comportamento das espécies tratadas, com maior ênfase àquelas vetoras de doenças que grassavam no país, gerando inclusive proposta original para o controle do mosquito vetor da febre amarela urbana, o Ae. aegypti. Tal proposição de controlar o inseto, que representava uma das principais ameaças à saúde pública e desenvolvimento do país, com o simples uso da água do mar recebeu particular atenção da imprensa tanto leiga quanto acadêmica da época29.
A tese de Peryassú também ofereceu um conjunto considerável de dados sobre a importância sanitária atribuída por ele a algumas espécies. Mas, talvez, um dos maiores méritos da tese seria a compilação, numa só obra, das informações pregressas sobre as espécies de mosquitos do Brasil que se encontravam dispersas até então24. Nela, merece destaque a existência de um grande e singular mapa, impresso a cores, com a distribuição geográfica de 43 espécies de mosquitos detectadas no Rio de Janeiro, assinalando a ocorrência de cada uma segundo as ruas ou mesmo quarteirões da cidade32. Nesse mapeamento, ficou clara a utilidade da informação entomológica nas ações de vigilância e controle. Para Peryassú33:
É notável a distribuição da Stegomyia calopus no centro da cidade em relação com os ex-fócos amarillicos.
Nesta distribuição servímo-nos de amostras de larvas e imagens colhidas e capturadas em excursões systematicas e em tempos diversos a quasi todos os bairros da cidade, feitas sobretudo pelo Serviço de Prophylaxia da Febre Amarella. As larvas e as imagens eram classificadas no laboratório e as larvas desconhecidas acompanhadas em sua evolução até o estado de imagem quando era identificada.
Temos também como objectivo mostrar as zonas da cidade onde é possivel desenvolver-se o paludismo, a febre amarella e a filariose, pela existencia de vehiculadores nesses pontos.
A tese foi ricamente ilustrada por desenhos e microfotografias de alto poder descritivo*, confeccionados, respectivamente, por Manoel de Castro Silva (?-1934) e Joaquim Pinto da Silva, o J. Pinto (1884-1951), os primeiros profissionais contratados por Oswaldo Cruz para desenvolverem, em Manguinhos, esses trabalhos34. A tese foi impressa no Rio de Janeiro33 e amplamente referenciada dentro e fora do país19,35.
O ESTUDO DOS MOSQUITOS COMO BASE PARA COMBATER ENDEMIAS: PERYASSÚ MÉDICO SANITARISTA
Em 1908, a despeito do considerável investimento no estudo dos mosquitos em Manguinhos, Peryassú deixou o Rio de Janeiro, voltando a se radicar em seu Estado natal, após uma breve temporada no exterior ainda nesse mesmo ano35,36,37. Pouco se sabe a respeito de suas missões ao estrangeiro. Ele teria visitado importantes centros de pesquisas da Europa, como os institutos Pasteur de Paris e de Medicina Tropical de Berlin e Londres38. Como testemunho da passagem de Peryassú pelo Instituto Pasteur, existe um exemplar de sua tese na biblioteca da Instituição com a seguinte dedicatória: "Ao sábio professor dr. Marchoux. Oferece o autor. Paris 13-5-08". Trata-se de Emile Marchoux (1862-1943), quem Peryassú conhecera quando da participação do pesquisador francês na Missão Pasteur, que veio estudar a epidemia de febre amarela no Rio de Janeiro, a convite de Oswaldo Cruz, entre 1901 e 1904. Seja como for, é interessante o fato de Peryassú deixar Manguinhos, efervescente centro de estudos em entomologia médica e, apesar de suas credenciais, não ter feito especialização no exterior sobre mosquitos. Em 1907, enquanto Peryassú preparava a tese, Oswaldo Cruz planejou enviar Neiva, e não Peryassú, a Washington, para esse fim14. Esse conjunto de dados sugere que, aparentemente, não estavam nos planos nem de Peryassú e nem de seu orientador o aprofundamento, a especialização e a construção da carreira de Peryassú como entomologista. E, de fato, sua vocação e sua experiência, como médico e sanitarista no SPFA, foram requisitadas naquele momento, sobrepondo-se ao estudo da taxonomia, sistemática e biologia dos mosquitos pelo resto de sua vida profissional. Talvez por isso, focado em outras atividades profissionais, Peryassú tenha subsequentemente tratado de forma mais superficial o estudo da sistemática desses insetos. Ainda assim, o conhecimento que acumulou nesse campo de estudos permitiu o aperfeiçoamento das suas ações como sanitarista e a realização de certas contribuições para as pesquisas básica e aplicada em mosquitos, como veremos mais à frente.
Assim, entre 1909 e 1917, Peryassú teve importante atuação nas áreas do sanitarismo e ensino em Belém. Como médico bacteriologista do Serviço Sanitário do Estado, participou da luta empreendida pelo governador João Coelho (1852-1926) para livrar a cidade dos surtos epidêmicos de malária e febre amarela. Nesse contexto, foi nomeado chefe da Comissão de Saneamento para Combate à Malária, que erradicou a doença nas regiões do Marco da Légua, Pedreira e Canudos (1909)39, e médico auxiliar na célebre Comissão de Profilaxia da Febre Amarela, comandada por Oswaldo Cruz (1910-1911). Mesmo após ter deixado Manguinhos, Peryassú manteve laços pessoais e profissionais com seu diretor40 que, em visita a Belém, em 1910, indicou três ex-discípulos, entre os médicos locais, para a comissão: Jayme Aben-Athar (1883-1951), Afonso Mac-Dowell (1881-1958) e o próprio Peryassú41. A Comissão teve êxito e, em outubro de 1911, Oswaldo Cruz comunicou ao governador a erradicação da epidemia amarílica na capital paraense.
Ainda nesse período, Peryassú se dedicou também ao ensino secundário e superior nas seguintes instituições: Colégio Progresso Paraense, Escola Normal, Faculdade Livre de Direito, Escola Livre de Odontologia e Escola de Farmácia, da qual foi diretor19,20,42. Como médico, também atuou em consultórios particulares, no Hospital da Caridade e integrou a União Acadêmica do Pará e a Comissão de Microbiologia da Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará43,44,45.
Não há traços do desenvolvimento de pesquisa entomológica original feita por Peryassú nos anos em que esteve em Belém, tendo publicado apenas um folheto, "Prophylaxia da febre amarella", com instruções para o combate à doença46, e uma extensa matéria na primeira página do jornal Estado do Pará sobre clima, endemias e insetos vetores, intitulada "Saneamento do Pará"47. Entretanto, no exercício de suas ações sanitárias, prosseguiu eventualmente coletando insetos hematófagos, inclusive mosquitos, como indicam os agradecimentos feitos por Lutz e Neiva, pesquisadores de Manguinhos48.
Peryassú retornou ao Rio de Janeiro no dia 4 de junho de 191749. Nesse ano atuou como fiscal e consultor da Empresa de Produtos de Guaraná50 e médico, dando consultas como especialista em "moléstias tropicais e vias urinárias" ou de doenças do estômago, intestino, pulmão e geniturinárias, com destaque para a sífilis, na rua Gonçalves Dias, nº. 41, no Centro da cidade, onde também fazia exames laboratoriais51,52,53.
Em 1918, dez anos após realizar a tese em Manguinhos, Peryassú foi contratado como naturalista do Museu Nacional do Rio de Janeiro (MNRJ) pelo paraense Bruno Lobo (1884-1945), diretor da Instituição, e retomou suas atividades como entomologista54. O contrato foi renovado em 1920, por mais três anos, e finalizado em 31 de dezembro de 192255. Como atribuição específica, Peryassú deveria incorporar os culicídeos capturados à Coleção Entomológica do Laboratório de Entomologia Geral e Aplicada56, que era composta essencialmente por artrópodes de interesse agrícola e não possuía uma coleção específica desses dípteros vetores de doenças57,58,59.
Um legado digno de nota concernente à trajetória de nosso personagem como estudioso de mosquitos foi a composição de uma coleção no MNRJ dotada de uma interessante riqueza de espécies da nossa fauna culicidiana, fragmentos da qual foram doados e permutados com instituições científicas e acadêmicas do Brasil e do estrangeiro60, como do Rio de Janeiro, Pará, Minas Gerais, Argentina e Paraguai61,62,63,64,65. Sobre a doação de mosquitos para a Faculdade de medicina paraense, informou o Estado do Pará64:
A directoria do Museu Nacional distinguiu a Faculdade com a oferta de uma completa collecção de culicidios e outra de mineralogia, organizadas por essa secção, gentileza que fica a dever esta instituição de ensino superior ao nosso conterraneo dr. Bruno Lobo, sendo essas collecções organizadas pelo naturalista, também nosso conterraneo, dr. Antonio Peryassú.
Coletar e colecionar mosquitos foram práticas intensas por parte dos pesquisadores de Manguinhos desde o início do século XX e fizeram parte da formação e do desenvolvimento da tese de Peryassú, estando ele, portanto, preparado para o projeto do MNRJ. Considerando-se a intensidade dos estudos sobre mosquitos nas duas primeiras décadas do século XX, pouco do que foi coletado pelos pioneiros culicidólogos de Manguinhos, incluindo Peryassú, chegou aos nossos dias, e o material-tipo de algumas espécies descritas na Instituição acabou perdido9,66. Atualmente, existem apenas 26 exemplares de mosquitos coletados, no início do século XX, por Oswaldo Cruz (dois exemplares), Peryassú (três), Chagas (três), Neiva (quatro) e Lutz (14) na Coleção Entomológica do Instituto Oswaldo Cruz (CEIOC)67, considerada a mais antiga coleção de mosquitos no Brasil. O pouco que sobrou dos numerosos espécimes coletados pelos pioneiros de Manguinhos foi proveniente da "Antiga Coleção do Instituto" e principalmente agregado por Angelo Moreira da Costa Lima (1887-1964) à coleção histórica, da qual mais tarde seria o patrono67.
A coleção que Peryassú montaria no MNRJ se constituiria num reforço no que concerne aos acervos sobre mosquitos no Rio de Janeiro. Foi infelizmente perdida no incêndio que destruiu grande parte do Museu, em 201859,68.
Entretanto, foi durante a organização dessa coleção no MNRJ que Peryassú voltou a se dedicar à pesquisa específica sobre a sistemática de mosquitos, ação aparentemente não executada formalmente desde a confecção da tese em 1908. Nos cinco anos em que esteve na Instituição, de 1918 a 1922, Peryassú descreveu cinco espécies novas de mosquitos: Cellia oswaldoi (= Anopheles oswaldoi), Cellia allopha (=Anopheles allopha, nomen dubium), publicada em parceria com Lutz no escopo de um trabalho monográfico denominado "Os anophelineos do Brasil"69, Chagasia maculata [=Chagasia fajardoi (Lutz)], Taeniorhynchus chrysonotum (=Coquillettidia chrysonotum) e Sabethes quasicyaneus70,71,72. Compêndio bem ilustrado e de grande repercussão, "Os anophelineos do Brasil" resume o conhecimento sobre a sistemática, biologia, comportamento, distribuição geográfica e envolvimento na transmissão da malária desses mosquitos em nosso território.
Em sua estada no MNRJ, Peryassú ainda participou, em 1919, de um ciclo de conferências públicas organizadas pela Instituição "com o fim de introduzir no Brasil o ensino superior e especializado nas Sciencias Naturaes [sic]"73. Nesse ciclo, que contou com a participação de Alípio de Miranda Ribeiro (1874-1939) e Edgard Roquette-Pinto (1884-1954), entre outros especialistas do MNRJ, Peryassú, identificado como professor, proferiu a conferência "Os insetos hematófagos brasileiros nocivos ao homem". Alguns médicos que frequentavam o Museu também se interessaram pelas pesquisas conduzidas por ele sobre mosquitos.
A contratação de Peryassú pelo MNRJ para o estudo de mosquitos e formação de uma coleção entre 1918 e 1922, os ciclos de conferências na Instituição, incluindo insetos hematófagos como tema, e a considerável produção de textos relativos à entomologia médica assinada por ele e outros pesquisadores no Rio de Janeiro indicam que a entomologia médica se tornava cada vez mais, uma disciplina de destaque nas ciências e de grande interesse naquele momento no ambiente acadêmico brasileiro10. Fortalece essa perspectiva a fundação da Sociedade Entomológica do Brasil, a qual vários médicos foram associados e uma das quais Peryassú fez parte†. Ele integrou também a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, a Sociedade Brasileira de Higiene, a Sociedade de Médicos Técnicos de Laboratório, a Sociedade Brasileira de Urologia e a Sociedade de Biologia do Rio de Janeiro75,76,77,78,79.
De 1919 a 1922, Peryassú escreveu uma série de artigos de divulgação científica sobre flebótomos80, hemípteros hematófagos81, pulgas82, moscas do berne83 e, obviamente, mosquitos84,85. Tais artigos foram publicados nos periódicos Saúde e A Folha Médica, semelhantes a capítulos que, em conjunto, denotavam a provável intenção da elaboração de um compêndio, não materializado na sua íntegra, sobre entomologia médica, ou zoologia médica, como se referiu o próprio autor84:
A fim de tornar a zoologia médica brasileira mais íntima da nossa gente e, ao mesmo tempo, mais prática e atraente, iniciamos hoje uma série de artigos de divulgação sobre os "Animais do Brasil nocivos ao homem". Começamos pelos Culicídeos, ou mosquitos pernilongos.
Quando no MNRJ, Peryassú combinava a ação específica de naturalista especializado em mosquitos com atividades não menos importantes nos campos do sanitarismo, do ensino e da divulgação da entomologia médica em geral e da medicina. Nesse último, continuou a clinicar no consultório da Rua Visconde do Rio Branco, nº. 31, no Centro carioca, e em sua residência, na Praia de Botafogo, nº. 248, na Zona Sul86,87. Também na qualidade de "clínico de larga e seleta clientela e entomologista do Museu Nacional" foi entrevistado pela imprensa leiga em questões sanitárias sobre a necessidade da melhoria da vigilância sanitária do leite consumido no Rio de Janeiro88. Nessa mesma época, acumulou outras funções: consultor da Empresa de Produtos de Guaraná (1918-1921)89, microbiologista do Gabinete Médico da Associação Brasileira de Imprensa (1918)90, diretor do Instituto e Laboratório Ehrlich (1922)91 e professor do Liceu Rio Branco, na Tijuca (1919-1920)92,93, e do Curso de Saúde Pública, sediado na Policlínica Geral do Rio de Janeiro (1920)94.
Os laços com Manguinhos pareciam não ter se desatado mesmo com mais de uma década de distância física do Instituto. Peryassú se descreveu "como um dos antigos companheiros de Carlos Chagas, no Instituto de Manguinhos" durante o seu discurso em homenagem à memória do descobridor da tripanossomíase americana, em maio de 194595. Carlos Chagas já tinha confiado a Peryassú a publicação original de três espécies novas de mosquitos em sua tese. A formação em Manguinhos e o duradouro intercâmbio com seus pesquisadores foram fatores importantes no recrutamento de Peryassú para assumir responsabilidades em ações sanitárias importantes. Em 1918, a "gripe espanhola" chegou ao Brasil, causando explosiva e histórica epidemia no Rio de Janeiro quando Peryassú se encontrava em atividade no MNRJ. Assim, no comando de Manguinhos e da luta contra a epidemia na capital federal, Carlos Chagas entregou aos cuidados de Peryassú a direção do Hospital Cayrú, instalado no bairro do Méier para atendimento aos acometidos pela doença96. Já em 1920, Carlos Chagas, então diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), nomeou Peryassú como inspetor do Serviço de Profilaxia Rural no Rio de Janeiro (SPRRJ)97. Suas atribuições, como médico e inspetor, estenderam-se até 1922, ano em que teve participação ou organização de duas campanhas sanitárias importantes referentes à profilaxia e ao controle da malária dignas de menção: uma no Espírito Santo e a outra no Rio de Janeiro.
Em março de 1922, Peryassú liderou uma excursão científica de grande repercussão ao Vale do Rio Doce, no Espírito Santo, por incumbência do sanitarista Belisário Penna (1868-1939), diretor de Saneamento e Profilaxia Rural do DNSP. O trabalho ali realizado visou ao diagnóstico das condições sanitárias, bem como propôs ações contra a situação insalubre da região e de seus habitantes. A descrição das condições insalubres daquelas paragens e as recomendações feitas por Peryassú em seu relatório eram detalhadas, ricas e oportunas98,99.
No estado do Rio de Janeiro, em 1922, iniciou-se um projeto na Baixada Fluminense, organizado pela Fundação Rockefeller, em colaboração com o governo brasileiro, cujo objetivo era testar se os métodos norte-americanos de controle da malária poderiam ser usados nos trópicos100. Peryassú, vinculado ao SPRRJ e como especialista em mosquitos, integrou a equipe codirigida por Mark Frederick Boyd (1889-1968), malariologista da Fundação Rockefeller. O empreendimento foi considerado bem-sucedido e pioneiro no que concerne à profilaxia e controle da malária no Brasil101. Peryassú atuou nele até 1923. Mais tarde, no contexto desse projeto, os estudos em Porto das Caixas, feitos por Francis Metcalf Root (1889-1934), resultariam na descrição do mais importante vetor da malária na América do Sul, o Anopheles darlingi.
Após deixar o MNRJ, em 1922, Peryassú continuou a atuar como médico, professor e sanitarista em vários estados brasileiros, desenvolvendo ações relacionadas à peste, lepra, malária e febre amarela, as duas últimas sob o ponto de vista entomológico.
Assim, no que concerne às ações no campo da saúde pública e medicina, Peryassú participou intensamente dos esforços governamentais de combate a malária, febre amarela e peste na cidade do Rio de Janeiro e arredores nas funções de chefe e assistente de laboratório bacteriológico, chefe de Posto de Profilaxia Rural e inspetor dos Serviços Especiais de Saúde Pública. Na ocasião, percorreu vários bairros em campanhas sanitárias para o controle dos mosquitos e ratos vetores dessas moléstias (1923-1942)20.
Na Bahia, Paraíba, Ceará, Sergipe, Alagoas, Minas Gerais e no Vale do São Francisco, respondeu pela direção e fiscalização de serviços contra a febre amarela, sob os auspícios dos governos locais, do DNSP e da Fundação Rockefeller, que havia estabelecido, em 1923, um convênio com o governo brasileiro visando à erradicação de endemias (1923-1926)20,38. A campanha antiamarílica em Pirapora, por exemplo, foi destacada como modelo de eficiência pelo governador Antonio Carlos Ribeiro de Andrada (1870-1946) em sua mensagem anual ao legislativo mineiro102:
Organizou-se então um serviço de prophylaxia específico, sob a direcção do dr. Peryassú, que rapidamente debellou a epidemia, pelo combate incessante ao mosquito transmissor, cujo indice baixou a 2%, além das medidas complementares de isolamento dos doentes e vigilancia sanitaria dos moradores e passageiros em transito.
Em meio a essa numerosa demanda, visando à melhoria das condições sanitárias no país e como forma de aprimorar suas atividades profissionais, Peryassú se diplomou nos pioneiros cursos de Higiene Rural do Instituto de Higiene da Faculdade de Medicina de São Paulo (1921)103 e de Higiene e Saúde Pública da Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro (1928)104.
Outro momento, igualmente relevante, da sua trajetória se deu na Região Norte, ao Peryassú chefiar a Delegacia Federal de Saúde, sediada em Belém, cuja jurisdição abarcava Maranhão, Amazonas, Acre e Pará. Sua gestão foi pautada em dois eixos: dar assistência aos leprosos por meio de instituições dignas para esse fim e sanear áreas malarígenas. Ao concluir seu trabalho na região, entregou renovado o Lazarópolis do Prata, no Pará, inaugurou a Colônia do Bomfim, no Maranhão, e a Ilha do Mosqueiro, também no Pará, estava livre da malária (1936-1937)19,105,106.
Ainda entre as décadas de 1930 e 1940, Peryassú se manteve ativo como professor no Rio de Janeiro. Ministrou disciplinas relacionadas às suas expertises profissionais - entomologia, parasitologia, história natural e biologia - em Cursos de Malariologia do Departamento de Saúde Pública, no Colégio Pedro II, no Liceu Francês, no Instituto La-Fayette, na Universidade do Brasil e na Universidade da Capital Federal, que era vinculada à Sociedade Propagadora do Ensino20,107,108.
Ao longo de sua trajetória como médico e sanitarista, (Figura 5), Peryassú também se apresentou bastante produtivo do ponto de vista acadêmico. Entre 1923 e 1947, ano em que publicou o último texto, os estudos realizados pelo paraense versaram sobre mosquitos109,110,111,112, incluindo-se o seu controle113,114,115 e a descrição de três espécies novas - Uranotania argenteopennis (= Uranotaenia nataliae Lynch Arribálzaga), Cycloleppteron rockefelleri [=Anopheles mediopunctatus (Lutz)], Anopheles alagoanii (=Anopheles peryassui Dyar & Knab)116,117,118. No total, Peryassú descreveu dez espécies de mosquitos, sendo que atualmente só três são consideradas válidas10. É possível que a não designação de espécimes-tipo por parte de Peryassú na quase totalidade de suas espécies24 tenha prejudicado a fixação de suas identidades e sido um fator decisivo na perda da validade de algumas.
Sua produção literária entre 1923 e 1947 incluiu ainda os temas saneamento119,120,121, epidemiologia122,123,124,125 e impactos na saúde pública relativos a uma variedade de agravos, com destaque para aqueles transmitidos por mosquitos126 ou pulgas127, com especial atenção para a Amazônia.
Peryassú se aposentou como médico sanitarista do então Ministério da Educação e Saúde, em 1950128, e morreu, no Rio de Janeiro, em 29 de março de 1962, aos 82 anos129.
CONCLUSÃO
"Este homem, que tanto deu de seu trabalho intelectual e físico, enfrentando todos os fatores adversos no desconforto do nosso 'hinterland', foi e será um exemplo."
Noticiário38.
Nos 46 anos que sucederam o seu ingresso ainda como estudante de medicina no SPFA para combater a epidemia de febre amarela no Rio de Janeiro em 1904, Peryassú contribuiu de forma significativa para o saneamento do Brasil por meio de seu conhecimento e prática multidisciplinar, versatilidade e capacidade de resposta aos desafios, desdobrando-se da clínica médica à entomologia básica, da atividade de campo ao planejamento e tomada de decisão, da investigação ao microscópio ao ensino, da difusão da ciência ao público leigo à volumosa produção de textos acadêmicos. Essa longeva trajetória revela a identidade e o legado de um personagem pouco conhecido, que acompanhou o contexto das transformações ocorridas nos campos das práticas científicas e sanitárias no Brasil na primeira metade do século XX, cujo retrato esta resenha procurou apresentar.