INTRODUÇÃO
O fenômeno da desigualdade social possui uma trajetória insistente no Brasil, sendo historicamente ignorada pelo Estado brasileiro. País de contrastes, onde há, ao mesmo tempo, um lado rico em potencial econômico, social, cultural e natural e, de outro, a miséria, o desemprego e a pobreza, que convivem lado a lado, resultando em indignas condições para a maior parte da população. Esse contraste resulta de desigualdades geradas por um modo de produção socialmente explorador, que aliena e domina a força de trabalho na maior parte da população do país1.
Ao ser avaliado o estado nutricional de uma população, é mister analisar a distribuição geográfica das deficiências nutricionais para propor medidas adequadas, que devem ter envolvimento da própria comunidade. Tema político no país, a fome sempre foi social e economicamente produzida, o que ficou evidenciado por crises entre 2008 e 2015, além da pandemia de COVID-19 nos anos 2020 e 2021, impactando na maior parte dos agravos de saúde aqui estudados, aumentando as disparidades econômicas e sociais já anteriormente vivenciadas no Brasil. No que tange à pandemia, ações relacionadas à quarentena e ao distanciamento social provocaram redução de atividades econômicas, afetando principalmente a população mais vulnerável, sobretudo os negros2,3.
Diversos trabalhos associam desigualdades socioeconômicas a deficiências nutricionais4,5,6,7, demonstrando que a pobreza pode gerar falta de nutrientes e exposição ambiental insalubre, provocando infecções agravantes do estado nutricional8, retroalimentando negativamente o cenário de desigualdades socioeconômicas. Entender deficiências nutricionais somente sob o ponto de vista biológico significa negar seus determinantes socioeconômicos, já que doença e saúde são influenciadas por diferenças de renda, pela escassez de recursos e por ausência de infraestrutura, resultantes de decisões políticas e de processos econômicos9.
Apesar da fome ainda não ter sido erradicada no Brasil, ocorreram relevantes níveis de crescimento no setor de exportação, em consonância ao modelo neoliberal capitalista, em um processo chamado de comoditização do alimento, sendo antagônico à soberania alimentar10. Embora tenham ocorrido avanços no que tange à produção agropecuária, não houve alterações em sua estrutura, que basicamente permanece monocultora, latifundiária e exploradora do trabalho, tendo como consequência a concentração de terras e a pauperização da população11.
Essa realidade foi observada no estado de Mato Grosso, que embora seja reconhecido como "o celeiro do Brasil", demonstrou a grande vulnerabilidade social existente no país, a partir da chamada "fila dos ossinhos", marcada por situações de ausência de direitos e de cidadania10. Como maior produtor de soja, algodão, gado e milho do Brasil, o Mato Grosso possui municípios que concentram grande parte da agricultura nacional12,13; porém, contraditoriamente, o estado apresenta um quadro de deficiências nutricionais em sua população8,14,15, revelando as desigualdades presentes não só em Mato Grosso, como também em todo o Brasil.
De acordo com o cenário observado, o presente estudo tem como objetivo analisar internações por deficiências nutricionais (na medida em que não há outros dados secundários referentes a esse agravo) e iniquidades em residentes no estado de Mato Grosso, Unidade Federativa pertencente à Amazônia brasileira, de 2007 a 2021 (maior período possível de acordo com os dados analisados, o mesmo ocorrendo com as faixas etárias, abrangendo menores de 1 ano a maiores de 80 anos).
MATERIAIS E MÉTODOS
O estado de Mato Grosso é composto por 141 municípios, sendo dividido em seis macrorregiões de saúde16: Norte, Centro-Noroeste, Centro-Norte, Leste, Oeste e Sul (Figura 1).
DESENHO DO ESTUDO
Estudo ecológico, com observações de variações no espaço e no tempo a partir de técnicas de geoprocessamento como ferramenta de análise. Os registros de internações decorrentes de deficiências nutricionais foram obtidos por meio do DATASUS17, sendo classificados por ano de atendimento e por municípios de residência no estado de Mato Grosso. Foram consideradas como deficiências nutricionais, com seus respectivos códigos na CID-10: anemia por deficiência de ferro (D50), outras anemias (D51-D64), desnutrição (E40-E46), deficiência de vitamina A (E50), outras deficiências vitamínicas (E51-E56), sequelas de desnutrição e de outras deficiências nutricionais (E64)18. Os registros de internação também foram analisados segundo características sociodemográficas categorizadas em: cor/raça (branca, preta, parda, amarela e indígena), sexo (masculino e feminino) e idade (faixas etárias - menores de 1 ano, de 1 a 4 anos, de 5 a 9 anos, de 10 a 14 anos, de 15 a 19 anos, de 20 a 29 anos, de 30 a 39 anos, de 40 a 49 anos, de 50 a 59 anos, de 60 a 69 anos, de 70 a 79 anos e 80 anos ou mais), esta última, visando ampliar ainda mais o cenário de análise para o estado, contemplando toda a população mato-grossense.
ANÁLISE ESTATÍSTICA
As variáveis sociodemográficas foram descritas por meio de frequências relativas e absolutas. O teste de hipótese utilizado foi o qui-quadrado de Pearson, e o nível de significância adotado foi de 5% para a tomada de decisão estatística. Todas as análises foram realizadas no programa Microsoft Excel (versão 2013). A estimativa de população por município foi obtida por meio do TABNET19.
As taxas de internação foram calculadas por ano e por município, a partir da divisão do número de internações pela população residente, multiplicando o resultado por 100.000 habitantes. Posteriormente, foram calculadas taxas médias de internação para cada período de estudo. Visando otimizar os resultados e as posteriores análises, foram utilizados recortes em quadriênios (2007-2010, 2011-2014, 2015-2018 e 2019-2021), sendo o último período de três anos, na medida em que se formou um panorama geral do agravo em questão, a partir da soma das taxas anuais dividida pela quantidade de anos por período. As taxas foram classificadas sob estratos de 0,00, 0,01 a 10,00 (de menor gravidade), 10,01 a 30,00, 30,01 a 50,00 e acima de 50,00 (de maior gravidade). Justifica-se esta estratificação pois, a partir desses valores, pôde-se diferenciar melhor os municípios por suas respectivas taxas por período.
O Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil, que utiliza dados do Censo de 201020, foi a fonte das seguintes variáveis socioeconômicas (referentes ao ano de 2017): taxa de distorção idade-série no ensino médio, transferência per capita do Bolsa Família, transferência per capita do Benefício de Prestação Continuada, porcentagem de extremamente pobres no Cadastro Único pós Bolsa Família, porcentagem de pobres no Cadastro Único pós Bolsa Família, porcentagem de vulneráveis à pobreza no Cadastro Único pós Bolsa Família, porcentagem de pessoas inscritas no Cadastro Único que recebem Bolsa Família, índice de Gini (coeficiente que mede a desigualdade a partir do nível de distribuição de renda, com valores de 0 a 1, onde 0 representa completa igualdade e 1 significa uma distribuição totalmente desigual)21, rendimento médio dos ocupados, porcentagem da população em domicílios com água encanada, porcentagem da população que vive em domicílios com banheiro e água encanada, porcentagem de pessoas em domicílios urbanos com coleta de lixo, porcentagem de pessoas em domicílios com energia elétrica, esperança de vida ao nascer, porcentagem de pessoas em domicílios vulneráveis à pobreza e dependentes de idosos, porcentagem de pessoas em domicílios sem energia elétrica, mortalidade infantil, Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (por renda), taxa de fecundidade total, razão de dependência, taxa de analfabetismo (em pessoas com 18 anos de idade ou mais), renda per capita, renda per capita média do primeiro quinto mais pobre, porcentagem de extremamente pobres, porcentagem de pobres, porcentagem de vulneráveis à pobreza, renda per capita dos extremamente pobres, renda per capita dos pobres e renda per capita dos vulneráveis à pobreza. A variável média mensal de visitas domiciliares por família realizadas por Agente Comunitário de Saúde (referente a 2012, ano mais recente disponível) foi obtida junto à Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso22.
ANÁLISE ESPAÇOTEMPORAL
Foi realizada a autocorrelação espacial entre as taxas médias de internação e as variáveis socioeconômicas acima citadas, a partir do cálculo do Índice Moran Local, com valores de -1 a + 1, seguida de análises de autocorrelação com a taxa média de internação para todo o período (soma das taxas anuais dividida por 15, quantidade de anos do período de estudo). Como estratos para valores do Índice Moran Local, foram utilizados: alto-alto (de maior prioridade), baixo-baixo (de menor prioridade), alto-baixo (prioridade intermediária) e baixo-alto (prioridade intermediária), com os dois primeiros estratos representando associação espacial positiva23.
No que tange à análise espaçotemporal, foi feita a varredura cilíndrica estatística no programa SaTScan (versão 9.6), a partir dos cálculos da Taxa do Log de Vizinhança (Log-Likelihood Ratio- LLR) e do Risco Relativo (RR) para aglomerados de internações por deficiências nutricionais (baseados na população residente).
Os mapas das taxas médias, dos índices de Moran Local e dos aglomerados espaçotemporais foram confeccionados no programa QGIS (versão 2.18.20).
RESULTADOS
Foram observados 22.302 registros de internação por deficiências nutricionais; porém, quando classificados sob variáveis sociodemográficas, obtiveram-se 22.648 internações (explicado pelo uso de dados secundários, provavelmente por inconsistência dos mesmos), com distribuição semelhante segundo sexo: 11.529 (50,9%) de pessoas do sexo masculino e 11.119 (49,1%) do sexo feminino. No que tange à cor/raça, 11.529 (50,9%) foram classificados como pardos, sendo 5.881 homens (26,0%) e 5.648 mulheres (24,9%). Observaram-se 3.436 (15,2%) registros de pessoas classificadas como brancas, sendo 1.719 homens (7,6%) e 1.717 (7,6%) mulheres. Destaca-se que 5.541 (24,5%) registros não tiveram essa informação (Tabela 1).
Sexo | Cor/raça | Subtotal | P-valor* | ||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Branca | Preta | Parda | Amarela | Indígena | Sem informação | ||||||||||
N | % | N | % | N | % | N | % | N | % | N | % | N | % | ||
Masculino | 1.719 | 7,6 | 360 | 1,6 | 5.881 | 26,0 | 172 | 0,8 | 589 | 2,6 | 2.808 | 12,4 | 11.529 | 50,9 | 0,01 |
Feminino | 1.717 | 7,6 | 261 | 1,2 | 5.648 | 24,9 | 156 | 0,7 | 604 | 2,7 | 2.733 | 12,1 | 11.119 | 49,1 | |
Total | 3.436 | 15,2 | 621 | 2,8 | 11.529 | 50,9 | 328 | 1,5 | 1.193 | 5,3 | 5.541 | 24,5 | 22.648 | 100,0 |
* Teste qui-quadrado.
Quanto às faixas etárias, a maior quantidade de internações foi observada em pacientes acima de 70 anos (5.903; 26,1%). Ao analisar as internações por sexo, observou-se maior quantidade de registros em homens, notadamente nas faixas etárias de 50 a 69 (2.896; 12,8%) e 70 anos ou mais (3.505; 15,5%). Em mulheres, ocorreram mais internações (com diferenças estatisticamente significativas para as categorias analisadas) nas faixas de 30 a 49 anos (2.768; 12,2%) e 70 anos ou mais (2.398; 10,6%) (Tabela 2).
Faixa etária | Sexo | Total | P-valor* | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Masculino | Feminino | ||||||
N | % | N | % | N | % | ||
0 a 4 anos | 1.902 | 8,4 | 1.651 | 7,3 | 3.553 | 15,7 | < 0,01 |
5 a 14 anos | 676 | 3,0 | 672 | 3,0 | 1.348 | 6,0 | |
15 a 29 anos | 870 | 3,8 | 1.647 | 7,3 | 2.517 | 11,1 | |
30 a 49 anos | 1.680 | 7,4 | 2.768 | 12,2 | 4.448 | 19,6 | |
50 a 69 anos | 2.896 | 12,8 | 1.983 | 8,8 | 4.879 | 21,5 | |
≥ 70 anos | 3.505 | 15,5 | 2.398 | 10,6 | 5.903 | 26,1 |
*Teste qui-quadrado.
Em se tratando dos mapas de taxas médias de internação por deficiências nutricionais por período, observou-se tendência de aumento nos valores, considerando que houve aumento do número de municípios nos estratos de 30,01 a 50,00 e acima de 50,00 nos períodos de 2015 a 2018 (30 e 59 municípios, representando respectivamente 21,28% e 41,84% do total de municípios do estado) e de 2019 a 2021 (38 e 52 municípios, respectivamente 26,95% e 36,88%). Destaca-se que, no primeiro período de estudo, não foram observadas internações em cinco municípios, e que, no terceiro período, esse fato só foi observado em um município. O número de municípios no estrato de 0,01 a 10,00 também diminuiu, evidenciando a tendência de aumento de taxas de internação. Quanto a um padrão espacial, as maiores taxas foram percebidas em municípios das porções norte, sul, leste e oeste do estado (Figura 2).
Quanto ao Índice Moran, somente foram selecionadas as variáveis estatisticamente significativas e com maiores valores, a saber: mortalidade infantil (0,088), taxa de analfabetismo (0,087), esperança de vida ao nascer (-0,085) e visitas domiciliares (0,083). Constatou-se autocorrelação espacial em municípios das partes central, leste, sul e centro-oeste do estado. Na parte central, evidenciaram-se baixos valores entre taxa de mortalidade infantil e de taxa de analfabetismo com baixas taxas de internação (com ambas as correlações envolvendo dois municípios). Municípios da parte leste apresentaram baixos valores para taxas de mortalidade infantil (dois municípios) e de analfabetismo (três municípios); quanto à esperança de vida e visitas domiciliares, esses valores foram altos (todos associados a altas taxas de internação nos três municípios desta parte do estado). Na parte sul, três municípios apresentaram altos valores para mortalidade infantil, dois tiveram altas taxas de analfabetismo, três com baixos valores para esperança de vida e cinco com baixas taxas para visitas domiciliares (todas as correlações associadas a baixas taxas de internação). Na parte centro-oeste, observaram-se seis municípios com altas taxas de analfabetismo e dois com elevadas taxas de esperança de vida, além de baixos valores de visitas domiciliares (ambos associados a altas taxas de internação) (Figura 3).
Para a análise espaçotemporal, foi utilizado um raio de 200 unidades cartesianas. Foram obtidos 12 aglomerados significativos, sob p-valor de 5%. Destacaram-se elevados valores de RR e de casos observados/esperados nos aglomerados 1, 6, 7 e 11 (respectivamente de 5,22, 3,59, 4,19 e 4,34 e de 4,93, 3,57, 4,17 e 4,33) (Tabela 3). Os aglomerados 1, 2, 4, 6, 8 e 12 foram os que tiveram maior permanência ao longo do tempo abordado, permanecendo na análise por sete anos. O aglomerado 5 abrangeu a maior quantidade de municípios (13), seguido pelos aglomerados 1 e 2 (nove municípios cada). Em relação aos mapas, percebeu-se grande difusão espacial por todo o estado, já que apenas não foram observados aglomerados nas partes central e noroeste (Figura 4).
Aglomerados | RR | LLR | Casos observados/ esperados | Duração (em semanas) | Número de municípios |
---|---|---|---|---|---|
Aglomerado 1 | 5,22 | 1249,48 | 4,93 | 01/01/2012 a 31/12/2018 | 9 |
Aglomerado 2 | 2,14 | 236,59 | 2,08 | 01/01/2015 a 31/12/2021 | 9 |
Aglomerado 3 | 2,77 | 202,82 | 2,73 | 01/01/2018 a 31/12/2021 | 8 |
Aglomerado 4 | 2,82 | 153,45 | 2,79 | 01/01/2008 a 31/12/2014 | 2 |
Aglomerado 5 | 1,90 | 126,92 | 1,87 | 01/01/2008 a 31/12/2011 | 13 |
Aglomerado 6 | 3,59 | 103,83 | 3,57 | 01/01/2015 a 31/12/2021 | 1 |
Aglomerado 7 | 4,19 | 102,49 | 4,17 | 01/01/2014 a 31/12/2020 | 1 |
Aglomerado 8 | 1,88 | 95,32 | 1,85 | 01/01/2011 a 31/12/2017 | 5 |
Aglomerado 9 | 2,97 | 40,67 | 2,96 | 01/01/2016 a 31/12/2020 | 2 |
Aglomerado 10 | 2,61 | 35,25 | 2,61 | 01/01/2019 a 31/12/2010 | 4 |
Aglomerado 11 | 4,34 | 32,10 | 4,33 | 01/01/2010 a 31/12/2011 | 1 |
Aglomerado 12 | 2,05 | 23,86 | 2,04 | 01/01/2013 a 31/12/2019 | 1 |
LLR: Taxa do Log de Vizinhança (Log-Likelihood Ratio); RR: Risco Relativo.
DISCUSSÃO
Os resultados do presente estudo corroboram os achados observados na literatura, que reforça as desigualdades presentes no Brasil (haja vista o estado de Mato Grosso, maior produtor de soja, algodão, gado e milho do Brasil), com municípios que concentram grande parte da agricultura nacional12,13. Não obstante essa grande produção de alimentos, percebe-se um quadro de desnutrição em sua população8,14,15, que deve ser enfrentado por ações e políticas sociais e econômicas, na medida em que um país doente e com fome tende a ruir, pois a deficiência energética acaba dificultando a realização de atividades cotidianas (característica que é mais complexa quando não se tem dados nutricionais disponíveis)24,25,26. Esse cenário de desigualdades e de contradições ficou evidenciado pelos achados deste trabalho, em que foi observada grande quantidade de internações em crianças de até 4 anos de idade, representando 15,69% do total de registros, sendo tema já reconhecido pela literatura27,28,29. Trata-se de um problema de saúde pública nacional, por causar danos ao crescimento, desenvolvimento e saúde geral das crianças, devendo ter seu controle entendido como ponto prioritário pelos gestores de políticas públicas, articuladas sob as três esferas de governo (municipal, estadual e federal)30.
Outro resultado a ser destacado foi a maior quantidade de internação em idosos, que representam a faixa etária de maior tendência à anemia31. Esse achado é reforçado pela literatura, que destaca a necessidade de maior atenção por parte da saúde pública, devido às potenciais consequências para a saúde dessa parcela da população, tornando necessária a redução das iniquidades32. Ademais, embora os dados não demonstrem o percentual de idosos internados que residam em instituições geriátricas, deve-se considerar essa realidade no Brasil, onde muitos desses idosos são vulneráveis e tendem a ser dependentes (funcional e cognitivamente) devido a doenças crônicas e ao uso de fármacos, que inclusive podem dificultar a absorção de nutrientes33,34. Reforça-se a necessidade da intervenção nessas condições, a partir do momento em que a vulnerabilidade não é uma situação cristalizada (mas sim dinâmica), podendo ser modificada por meio de processos de trabalho em saúde operados de forma concreta, através da ciência e da técnica, levando a reconstruções em prol de uma transformação social35.
Também deve-se considerar que mais da metade dos registros de internação foram de indivíduos classificados como pardos, reforçando a desigualdade sociodemográfica da questão, já que pardos podem ter 41% de diferença negativa em relação à renda de brancos. Tais desigualdades são confirmadas pela literatura científica brasileira, que indica forte impacto da cor na desigualdade de oportunidades educacionais e profissionais, na mobilidade social e nos rendimentos. Dessa forma, entende-se a identificação de cor não como característica fixa do indivíduo, mas como processo construído pelas relações sociais36.
No que tange às autocorrelações espaciais, os resultados permitiram observar uma desigualdade socioeconômica, pois embora tenham sido observados municípios com baixas taxas de internação, de mortalidade infantil e de analfabetismo, também foram evidenciados municípios com altas taxas de visitas domiciliares e altas taxas de internação. Tal fato pode ser explicado pelo maior acesso ao serviço de saúde, diminuindo a demora em atendimentos a partir de diagnósticos mais rápidos (importante fator para controle de doenças, devendo ser estratégia a reforçar e a consolidar)37.
Esse raciocínio também pode servir de explicação para o fato do aglomerado de maior risco relativo estar localizado próximo à Cuiabá, que, por ser capital, tende a ter maior oferta de serviços de saúde; dessa forma, residentes em cidades próximas a este município tendem a ser mais atendidos, na medida em que as internações ocorrem quando é identificada a necessidade e quando há vagas para esse atendimento. Outra questão a considerar é a falta de padrão de distribuição espacial nos mapas de taxas médias de internação e de aglomerados espaçotemporais, demonstrando que as deficiências nutricionais estão presentes por todo o estado, inclusive em indígenas e descendentes de imigrantes, evidenciando importantes questões socioeconômicas, além da transição nutricional38,39.
Aliás, a referida capital foi cenário de episódio que refletiu a grande vulnerabilidade social existente no país a partir da chamada "fila dos ossinhos", onde pôde-se observar situações de ausência de direitos e de cidadania. Contraditoriamente, apesar de Mato Grosso ser reconhecido como "o celeiro do país", na medida em que é o estado que mais produz grãos (com relevantes níveis de crescimento no setor de exportação), percebe-se que a fome ainda não foi erradicada no país, sendo resultado do modelo neoliberal capitalista. Nesse sentido, percebe-se um caminho oposto ao da soberania alimentar, em que alimentos são vendidos como commodities. Ademais, o benefício de poucos é priorizado, enquanto há violação de direitos de muitos, passando-se por cima do meio ambiente em prol de uma dinâmica capitalista. Por isso, devem ser pensadas novas formas de sistemas agroalimentares capazes de assegurar uma alimentação socialmente mais justa, levando à uma segurança nutricional. Para isso, é primordial haver mudanças estruturais nas esferas social, cultural, econômica e política, contribuindo para uma sociedade mais humana10.
O cenário agropecuário do país revela que, embora tenham ocorrido avanços na produção, não houve alterações estruturais11, tendo dependência de alimentos de outras regiões, uso de agrotóxicos e desigualdades na ocupação dos territórios, impactando na produção local de alimentos (na medida em que a maior parte das áreas plantadas se destina às já referidas commodities). Como consequência, as poucas empresas transacionais que são beneficiadas por esse cenário acabam influenciando a alimentação local, homogeneizando o consumo de alimentos rápidos e ultraprocessados, contaminados por agrotóxicos e/ou altamente industrializados, delineando uma redução da oferta de alimentos saudáveis às populações locais40. Além disso, o agronegócio e a economia agroalimentar globalizada têm gerado aumento da ocorrência de doenças crônicas não-transmissíveis (além do crescimento da grave insegurança alimentar), provocando uma epidemia de agravos relacionados à alimentação. Logo, percebe-se que não há associação entre aumento da produção de commodities agropecuárias e diminuição de problemas de saúde referentes à alimentação41.
Dados referentes à Produção Agrícola Municipal de 202242 demonstram que os municípios de Sorriso, Campo Novo do Parecis, Nova Ubiratã e Diamantino produziram as maiores quantidades de soja em toneladas, contrastando com o que foi observado nos resultados do presente trabalho, na medida em que Diamantino (Macrorregião Centro-Noroeste) pertenceu ao Aglomerado 1, de maior RR. Em São Félix do Araguaia (11º produtor de soja do estado em 2022), essa contradição também pôde ser observada, na medida em que o município pertenceu ao Aglomerado 7. Esses achados demonstram incongruência entre o elevado padrão de produtividade agrícola e a prevalência de deficiências nutricionais, pois esperava-se que não houvesse problemas relacionados à inadequada alimentação em cidades onde há elevada produção no campo.
Além de se apoiar em processos de (re)produção social, o processo saúde-doença não deve ser descolado da dimensão subjetiva, referente aos significados que indivíduos atribuem à vida em si, que acaba refletindo em comportamentos e atitudes das pessoas. Dessa forma, o conceito de vulnerabilidade deve considerar a dimensão individual, mas também o social local ocupado por esse indivíduo: a situação de saúde deve ser analisada integralmente e sob diferentes possibilidades de intervenção por meio da participação individual. Superando o caráter probabilístico e individualizante do clássico conceito de risco, a vulnerabilidade é dotada por um conjunto de aspectos que vão além do individual, contemplando aspectos contextuais e coletivos, que levam à maior suscetibilidade a agravos/doenças (considerando também a disponibilidade ou deficiência de recursos protetores das pessoas)43.
Entender deficiências nutricionais somente sob o ponto de vista biológico é negar seus determinantes socioeconômicos. Sabe-se que doença e saúde se produzem física e materialmente, sendo influenciadas por diferenças de renda, pela escassez de recursos e por ausência de infraestrutura, resultantes de decisões políticas e de processos econômicos. Além do mais, países marcados por iniquidades de renda são os que menos tendem a investir em capital humano, gerando desgaste de capital social, fundamental para a promoção da saúde individual e coletiva9. A compreensão da saúde e da doença privilegiando aspectos biológicos acaba centrando-se no indivíduo, limitando as possibilidades de compreender e de resolver o problema. Logo, embora sejam problemas orgânicos, as deficiências nutricionais não devem ser reduzidas somente a essa dimensão (somente explicando-se sua ocorrência), ou seja, por processos causais localizados no interior dos seres humanos. Deve-se, acima de tudo, considerar a realidade exterior na qual os indivíduos encontram-se inseridos e participando de processos sociais específicos e determinantes para condições de saúde44.
A grande contradição de nosso tempo é questão para reflexão: os subalimentados vivem em um mundo de fartura e de desperdícios. É por isso que a questão é considerada uma doença social, devendo ser compreendida sob as Ciências Sociais e as Econômicas (para compreender os porquês) e as Ciências Biomédicas (para entender as consequências para o organismo humano). Nesse contexto, pode-se observar que, por muitas vezes, diversas doenças (pneumonia, sarampo, desidratação e outras infecções) são consequências e não causas, já que a desnutrição (alimentação insuficiente) acaba abrindo portas para doenças que, sob condições ideais, seriam banais: ou seja, o sistema imunológico do desnutrido encontra-se prejudicado, com as células defensoras contra agressores externos trabalhando de maneira insuficiente. Porém, deve-se esclarecer muito bem essa questão: os desnutridos (notadamente as crianças) não são desnutridos por serem atacados, mas, ao contrário, são atingidos por agentes causadores de doenças pela desnutrição45.
Para modificação do cenário de iniquidades, deve-se intervir, sob práticas em saúde, nas necessidades dos indivíduos. A essência deve ser o cuidado ao indivíduo-coletivo, a partir do apoio dos sujeitos sociais quanto a seus direitos. Tais práticas em saúde necessitam ser renovadas (entendidas a partir de conhecimentos multidisciplinares), devendo contar com responsabilidade e de articulação de diferentes setores da sociedade43. Para tanto, intervenções em saúde não podem ser estáticas, com posturas limitadas, individualizadas e individualizantes de sujeitos-alvo (curar, tratar e controlar). O sujeito é técnico, mas também estético, afetivo e social; por isso, o cuidar na Saúde Coletiva não deve somente se restringir a tarefas técnicas, devendo-se expandir para a totalidade das intervenções e reflexões no campo da saúde, compreendendo, a partir do ato assistencial, qual o projeto de felicidade que está em questão46. Ressalta-se a importância da articulação de ações entre gestores da área da saúde e de outros campos de atuação, já que fatores ambientais (junto a aspectos econômicos e estruturais) configuram-se como determinantes do estado carencial, conforme observado em situações de deficiência de vitamina A em crianças sem acesso à água domiciliar. Por isso, torna-se mister uma atenção diferenciada das organizações de governo que tratam de nutrição e saúde da população47.
A análise espacial é outro ponto que deve ser ressaltado por sua aplicabilidade48, possibilitando evidenciar diferenças no contexto das deficiências nutricionais no estado, destacando disparidades socioespaciais e demonstrando áreas de maior prioridade para intervenção, facilitando ações por parte dos gestores públicos. Trata-se de uma ferramenta para planejamento em diferentes esferas de governo (municipal, estadual e federal), otimizando ações em saúde. Não obstante a importância do tema como questão de saúde pública, foram observados trabalhos que abordassem deficiências nutricionais em escala estadual49,50,51,52; porém, esses abordavam apenas populações específicas, não fornecendo um panorama geral (inclusive em Mato Grosso, onde houve enfoque em povos indígenas), o que serviria como possível ponto de partida para gestores (reforçado com o uso de técnicas de geoprocessamento).
Como possíveis limitações deste trabalho, deve-se destacar que se trata de um estudo ecológico, no qual a definição dos estratos de vulnerabilidade social baseou-se em dados de área de residência e não de base individual, que poderiam produzir resultados diferentes. Além disso, dados secundários podem apresentar problemas de qualidade da base de dados, no caso do Sistema de Informações Hospitalares, como incompletude e inconsistências (haja vista os 5.541 registros que não tiveram informação sobre cor/raça), que podem conter erros de digitação (levando à subnotificação de internações e do local de residência, dentre outras informações), podendo enviesar as análises apresentadas53.
CONCLUSÃO
Conforme destacado, Mato Grosso é o estado que mais produz alimentos e carne de gado no país, não condizendo com o quadro de deficiências nutricionais em seus residentes, revelando concentração de renda (e de terras).
A partir dos achados deste trabalho, observou-se uma contradição entre a quantidade do que é produzido e o quadro de deficiências nutricionais no estado, na medida em que municípios de destaque na agropecuária pertenceram a aglomerados de deficiências nutricionais. Essa contradição é causada por problemas estruturais e pela elevada inflação (impactando itens básicos da alimentação tipicamente brasileira), além do próprio modelo adotado (formato de commodities), em que basicamente a produção é voltada à exportação. Como consequências, há uma dissonância entre o que é produzido e o que de fato fica no mercado interno nacional: cenário que ficou evidenciado durante a pandemia de COVID-19. Por envolver complexas dinâmicas, pertencentes ao campo da economia, do social, da área de saúde e da administração pública, essa contradição deve ser analisada sob abordagens interdisciplinares para uma eficaz intervenção nas condições de saúde, providenciando melhoras no quadro alimentar e nutricional das localidades em questão.
Compreender as contradições brasileiras requer superar o modelo biomédico, a partir de construções coletivas e participativas marcadas pela união entre conhecimento técnico e sabedoria popular. Na medida em que o processo saúde-doença possui dimensão subjetiva, é necessário analisar a situação de saúde de forma integral e contextualizada, o que pôde ser observado a partir das autocorrelações espaciais entre taxas médias de internação e variáveis socioeconômicas.
Ressalta-se que o uso do recurso de análise socioespacial permitiu abordar o tema em questão não sob a perspectiva clínica e sim contextualizada de acordo com as condições socioeconômicas do território, o que possibilitou destacar áreas prioritárias para intervenção de políticas públicas que visem erradicar a problemática considerada. Também deve ser destacada a incompletude de informações observada a partir das internações analisadas, recomendando-se melhoria da qualidade dos respectivos dados nos Sistemas de Informação em Saúde.
Ademais, instigam-se trabalhos que abordem a problemática apresentada com uso de dados primários, preferencialmente com uso de entrevistas ou de questionários. Dessa forma, há possibilidade de maior aprofundamento do tema em questão, permitindo que algumas lacunas ainda existentes sejam compreendidas.