INTRODUÇÃO
Flebotomíneos são insetos dípteros de reconhecida importância epidemiológica. As fêmeas desses insetos são hematófagas e, ao se alimentarem de sangue em animais infectados, adquirem agentes patogênicos como vírus, bactérias e protozoários; em um novo repasto sanguíneo, podem transmiti-los a outros animais e aos humanos1,2. Dessa forma, participam dos ciclos de transmissão de patógenos, como Leishmania spp. (Trypanosomatida: Trypanosomatidae), agentes etiológicos das leishmanioses tegumentar (LT) e visceral (LV).
Atualmente, são conhecidas 1.026 espécies de flebotomíneos em todo o mundo, das quais 546 ocorrem nas Américas e 278 com registro para o Brasil3. Na Amazônia brasileira, são encontradas 190 (68%) espécies de toda a fauna desses insetos registrada para o país3,4, o que reforça ainda mais a necessidade de estudos entomoepidemiológicos que avaliem a participação dessas espécies nos ciclos de transmissão de leishmanias, uma vez que a exposição aos insetos vetores (flebotomíneos) é o principal fator de risco para a transmissão dos agentes etiológicos das leishmanioses para humanos em áreas silvestres ou em áreas alteradas, resultado de urbanização, onde flebotomíneos se adaptam5,6.
No estado do Pará, há registros de 130 espécies de flebotomíneos4, mas esse quantitativo pode estar subestimado considerando a extensão territorial do estado (1.245.870,707 km²), associada à dificuldade de acesso a localidades em alguns municípios, além da escassez de profissionais especializados na identificação das espécies do grupo. No município de Cachoeira do Piriá, nordeste do Pará, estudos dessa natureza inexistem; no entanto, casos de LT são notificados anualmente. Entre 2018 e 2020, a média de casos notificados de LT foi de aproximadamente 17 casos/ano7. Frente ao exposto, o objetivo deste estudo foi identificar a fauna de flebotomíneos em Cachoeira do Piriá, Pará, Brasil.
MATERIAIS E MÉTODOS
Capturas entomológicas foram realizadas no município de Cachoeira do Piriá (1º44'33"S; 46º34'15"W), em 80 pontos amostrais distribuídos em áreas rurais e urbanas do município, usando armadilhas luminosas tipo CDC, dispostas a 1,5 m de altura em relação ao solo, durante 12 h (18:00 às 06:00), uma única noite por ponto amostral, nos meses de agosto, setembro e outubro de 2021. Os espécimes foram preservados em álcool a 70%. No laboratório, foram clarificados, diafanizados, montados entre lâminas e lamínulas com balsamo do Canadá e identificados de acordo com a chave de Galati8. Em seguida, os dados quantitativos das espécies identificadas foram tabulados em planilhas eletrônicas para a realização de estatística descritiva. Os exemplares identificados encontram-se no acervo do Laboratório de Epidemiologia das Leishmanioses do Instituto Evandro Chagas (EpiLeish/IEC). As capturas e o transporte dos flebotomíneos foram devidamente autorizados pelo Sistema de Autorização e Informações sobre Biodiversidade (SISBIO, 66954-5).
RESULTADOS
O total de 544 exemplares foram capturados, 239 machos (43,9%) e 305 fêmeas (56,1%), de 28 espécies distribuídas em 12 gêneros (Tabela 1), o que corresponde a 21,5% de todas as espécies registradas para o estado. As mais frequentes foram Nyssomyia antunesi (Coutinho, 1939) (37,5%; 204), Nyssomyia fraihai (Martins, Falcão & Silva, 1979) (24,6%; 134), Evandromyia infraspinosa (Mangabeira, 1941) (14,0%; 76) e Bichromomyia flaviscutellata (Mangabeira, 1942) (7,7%; 42).
Tabela 1 - Espécies, quantidade, frequência relativa e importância epidemiológica das espécies de flebotomíneos capturados entre agosto e outubro de 2021, no município de Cachoeira do Piriá, estado do Pará, Brasil
Gêneros | Espécies | M | F | Total | % |
---|---|---|---|---|---|
Bichromomyia | Bi. flaviscutellata (Mangabeira, 1942)* | 19 | 23 | 42 | 7,7 |
Evandromyia | Ev. andersoni (Le Pont & Desjeux, 1988) | - | 1 | 1 | 0,2 |
Ev. evandroi (Costa Lima & Antunes, 1936) | 2 | 2 | 4 | 0,7 | |
Ev. infraspinosa (Mangabeira, 1941) | 42 | 34 | 76 | 14,0 | |
Ev. monstruosa (Floch & Abonnenc, 1944) | - | 1 | 1 | 0,2 | |
Ev. sericea (Floch & Abonnenc, 1944) | 1 | - | 1 | 0,2 | |
Evandromyia sp. | - | 1 | 1 | 0,2 | |
Lutzomyia | Lu. evangelistai Martins & Fraiha, 1971 | - | 1 | 1 | 0,2 |
Lu. gomezi (Nitzulescu, 1931)* | - | 5 | 5 | 0,9 | |
Micropygomyia | Mi. micropyga (Mangabeira, 1942) | 1 | - | 1 | 0,2 |
Mi. pilosa (Damasceno & Causey, 1944) | - | 1 | 1 | 0,2 | |
Mi. trinidadensis (Newstead, 1922) | 1 | 1 | 2 | 0,4 | |
Nyssomyia | Ny. antunesi (Coutinho, 1939)* | 126 | 79 | 205 | 37,7 |
Ny. fraihai (Martins, Falcão & Silva, 1979) | 15 | 119 | 134 | 24,6 | |
Nyssomyia sp. | - | 1 | 1 | 0,2 | |
Psathyromyia | Pa. abunaensis (Martins, Falcão & Silva, 1965) | - | 1 | 1 | 0,2 |
Pa. bigeniculata (Floch & Abonnenc, 1941) | - | 1 | 1 | 0,2 | |
Pa. hermanlenti (Martins, Silva & Falcão, 1970) | 2 | - | 2 | 0,4 | |
Pa. punctigeniculata (Floch & Abonnenc, 1944) | 2 | 1 | 3 | 0,5 | |
Pintomyia | Pi. christenseni (Young & Duncan, 1994) | - | 1 | 1 | 0,2 |
Pi. nevesi (Damasceno & Arouck, 1956) | 1 | - | 1 | 0,2 | |
Psychodopygus | Ps. ayrozai (Barretto & Coutinho, 1940)* | 5 | 10 | 15 | 2,7 |
Ps. chagasi (Costa Lima, 1941) | 6 | 1 | 7 | 1,3 | |
Ps. complexus (Mangabeira, 1941)* | - | 2 | 2 | 0,4 | |
Ps. davisi (Root, 1934)* | 10 | 10 | 20 | 3,7 | |
Sciopemyia | Sc. sordellii (Shannon & Del Ponte,1927) | 3 | 7 | 10 | 1,8 |
Trichophoromyia | Th. ruii (Arias & Young, 1982) | 1 | - | 1 | 0,2 |
Trichopygomyia | Ty. dasypodogeton (Castro, 1939) | 2 | - | 2 | 0,4 |
Viannamyia | Vi. furcata (Mangabeira, 1941) | - | 1 | 1 | 0,2 |
Vi. tuberculata (Mangabeira, 1941) | - | 1 | 1 | 0,2 | |
Total | 239 | 305 | 544 | 100,0 |
M: Macho; F: Fêmea; %: Frequência relativa; * Espécies comprovadas ou suspeitas na transmissão de Leishmania spp.
DISCUSSÃO
Espécies de flebotomíneos de reconhecida importância na transmissão de leishmanias foram identificadas, tais como: Bi. flaviscutellata (42 exemplares), vetor de Leishmania (Leishmania) amazonensis Lainson & Shaw, 19729; Ny. antunesi, espécie mais abundante (205 exemplares) e provável vetor de Leishmania (Viannia) lindenbergi Silveira et al., 200210; e Lutzomyia gomezi (Nitzulescu, 1931) (cinco exemplares), provável vetor de Leishmania (Viannia) shawi Lainson et al., 198911. Importantemente, essas espécies estão amplamente distribuídas no Pará12,13,14,15.
Das quatro espécies de Psychodopygus capturadas, três apresentam importância vetorial: Psychodopygus davisi (Root, 1934), provável vetor de Leishmania (Viannia) naiffi Lainson & Shaw, 1989, Leishmania (Viannia) braziliensis (Vianna, 1911) e L. (L.) amazonensis9,16; Psychodopygus ayrozai (Barretto & Coutinho, 1940), suspeita na transmissão de L. (V.) naiffi9; e Psychodopygus complexus (Mangabeira, 1941), vetor de L. (V.) braziliensis no Pará17. Considerando a importância epidemiológica conhecida dessas e de outras espécies do gênero18, o papel de Psychodopygus chagasi (Costa Lima, 1941) nos ciclos de transmissão de Leishmania spp. necessita ser caracterizado.
Ny. fraihai, segunda espécie mais frequente na amostra (24,6%), é morfologicamente similar a Nyssomyia yuilli yuilli (Young & Porter, 1972), sendo que as fêmeas de ambas as espécies são indistinguíveis entre si. Devido a essa similaridade intraespecífica, Ny. fraihai foi por muito tempo considerada sinônimo júnior de Ny. yuilli yuilli. Em 2016, Godoy e Galati19 revalidaram Ny. fraihai, e os espécimes identificados como Ny. yuilli yuilli, na Região Amazônica, foram considerados como Ny. fraihai. Sendo assim, a distribuição de Ny. fraihai no Brasil pode ser mais ampla do que a até então descrita, e sua importância como vetor de Leishmania spp. requer investigação.
No presente estudo, destaca-se o registro da espécie Evandromyia (Aldamyia) andersoni (Le Pont & Desjeux, 1988) para o município do estado do Pará, que anteriormente só havia sido capturada na Bolívia e em alguns estados do Brasil (Acre, Amapá, Mato Grosso e Roraima)20,21,22.
A dificuldade de acesso a muitas áreas da Região Amazônica é um fator limitante ao conhecimento da fauna e, consequentemente, da real distribuição de muitas espécies. À medida que capturas são realizadas, há possibilidade de ocorrência de novos registros, o que pode ser observado pela ampliação na distribuição de Ev. andersoni.
Embora não haja evidências sobre a importância epidemiológica da espécie, a presença de Ev. andersoni em Cachoeira do Piriá denota que a fauna de flebotomíneos do estado do Pará é certamente maior. Considerando o achado dessa espécie, reforça-se a necessidade de mais estudos prospectivos voltados ao conhecimento da fauna desses insetos no estado.
CONCLUSÃO
Ressalta-se a presença de espécies importantes na transmissão de leishmania em Cachoeira do Piriá, e o novo registro da ocorrência de Ev. andersoni para o estado do Pará, com ampliação da distribuição conhecida da espécie no Brasil.
As informações contidas no presente estudo são uma contribuição ao conhecimento sobre a diversidade e a distribuição de flebotomíneos no Pará e podem auxiliar na empregabilidade de medidas de controle direcionadas a minimizar a expansão da LT e em estratégias de vigilância entomológica no município de Cachoeira do Piriá.