INTRODUÇÃO
A esquistossomose mansônica é uma doença infecto-parasitária, cuja transmissão já foi relatada em 78 países1. O Brasil se destaca como o país com o maior registro de casos, com aproximadamente 2,5 milhões de portadores e 1,5 milhões de pessoas em risco de infecção2.
Em todos os estados brasileiros, há registro de casos confirmados de esquistossomose mansônica3. O Nordeste é a região do Brasil com a maior ocorrência de casos, cuja taxa de positividade da população infectada por Schistosoma mansoni é de 1,79%4. No estado do Piauí, a doença apresenta-se como área focal4; entretanto, é necessária a atenção epidemiológica, uma vez que a identificação de casos confirmados da doença promove o controle, evitando que determinada região se constitua como uma área de transmissão da parasitose5.
A esquistossomose é causada pelo trematódeo S. mansoni Sambon, 1907, que necessita de dois hospedeiros para a conclusão do seu ciclo de vida, sendo os caramujos do gênero Biomphalaria Preston, 1910 os hospedeiros intermediários6. A fauna brasileira de moluscos do gênero Biomphalaria é composta por 12 espécies: Biomphalaria glabrata (Say, 1818); Biomphalaria straminea Dunker, 1848; Biomphalaria amazonica Paraense, 1966; Biomphalaria intermedia Paraense & Deslandes, 1962; Biomphalaria kuhniana (Clessin, 1883); Biomphalaria occidentalis Paraense, 1981; Biomphalaria oligoza Paraense, 1974; Biomphalaria peregrina (d'Orbigny, 1835); Biomphalaria schrammi Crosse, 1864; Biomphalaria cousini Paraense, 1966; Biomphalaria tenagophila (d'Orbigny, 1835); e Biomphalaria guaibensis (Paraense, 1984)7.
O primeiro registro do gênero Biomphalaria no Brasil ocorreu nos municípios de Ilhéus e Almada, no estado da Bahia8, entre 1818 e 1819, respectivamente. Desde então, o gênero se dispersou pelas outras regiões brasileiras, apresentando atualmente ampla distribuição geográfica. Entre as espécies do gênero que ocorrem nos estados nordestinos, B. straminea apresenta ampla distribuição, B. glabrata ocorre em todos os estados (exceto no estado do Ceará) e B. tenagophila ocorre exclusivamente na Bahia8. Tais espécies possuem fundamental importância para a saúde pública, visto que são hospedeiras intermediárias de S. mansoni.
A identificação de possíveis focos de transmissão de S. mansoni carece do conhecimento da bionomia de seus hospedeiros intermediários. Entretanto, os estudos dessa natureza são escassos, sobretudo no semiárido nordestino, que possui ambientes de água doce ricos em espécies malacológicas9. Nesse sentido, a diversidade de espécies do gênero Biomphalaria para o Piauí ainda é pouco conhecida, e os registros de ocorrência se restringem, até o momento, a duas espécies: B. straminea e B. glabrata.
Com o intuito de conhecer a diversidade de espécies do gênero Biomphalaria e averiguar a infecção por S. mansoni, este estudo apresenta o primeiro registro de B. kuhniana para o estado do Piauí, ampliando os dados biogeográficos da espécie, além de demonstrar a ocorrência de B. straminea, espécie vetora que pode contribuir para a dispersão da esquistossomose mansônica.
MATERIAIS E MÉTODOS
As coletas de moluscos foram conduzidas em duas áreas de estudo no estado do Piauí, denominadas área I e área II. A área I corresponde à barragem de Boa Esperança (6º44'55" S, 43º33'59" W), situada no município de Guadalupe, enquanto a área II compreende o Complexo Lagoas do Norte (5º3'387" S, 42º50'51" W), na capital do estado, Teresina (Figura 1). Foram demarcados e georreferenciados 15 pontos de coleta, sendo 12 na barragem de Boa Esperança (área I) e três no Complexo Lagoas do Norte (área II).

Fonte: Base cartográfica do IBGE (2019). Elaborado por: Diogo Brunno e Silva Barbosa (2022).
Figura 1 - Localização das áreas onde espécimes de B. straminea e B. kuhniana foram coletados nos municípios de Guadalupe (área I) e Teresina (área II), no estado do Piauí, Região Nordeste do Brasil
Para a captura dos moluscos, foram utilizadas conchas e/ou pinças em coleta direta por 10 min para cada ponto de coleta. Os moluscos coletados foram acondicionados em potes plásticos, mantidos com água do próprio local de coleta e transportados ao laboratório, conforme metodologia adaptada de Carvalho (2020)8. Os exemplares foram triados, acondicionados em gazes umedecidas com água desclorada e mantidos em sacos plásticos identificados quanto ao local de coleta, coordenadas geográficas, data, tipo de criadouro e nome do coletor. Variáveis abióticas, como temperatura da água e pH, foram registradas in loco com o uso de termo-higrômetro e pHmetro.
Os exemplares acondicionados foram encaminhados para o Laboratório de Helmintologia e Malacologia Médica do Instituto René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz (LHMM-IRR/Fiocruz-Minas), referência nacional para esquistossomose, para exame de cercárias de S. mansoni e identificação específica por análise morfológica8,10,11.
Em virtude da similaridade morfológica entre B. straminea e B. kuhniana, utilizou-se também a reação em cadeia da polimerase associada ao polimorfismo de tamanho de fragmento de restrição (PCR-RFLP). Nessa técnica, amplifica-se a região espaçadora transcrita interna (ITS) do rDNA, onde os iniciadores anelam-se nas regiões conservadas da porção final da subunidade 18S e na inicial da 28S, gerando um fragmento de aproximadamente 1.200 pb. Em seguida, aplica-se a digestão enzimática por DdeI, e os perfis de restrição são visualizados em gel de poliacrilamida, fotodocumentados e comparados com os padrões para cada espécie já disponíveis no Laboratório12.
As coletas foram autorizadas pelo Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade (SISBio), por meio das licenças nº 78917-1 e 79216-1. As amostras dos moluscos mencionados neste trabalho foram adicionadas ao acervo da Coleção de Malacologia Médica do IRR/Fiocruz-Minas.
RESULTADOS
Dos 12 pontos de coletas da área I, os moluscos estavam presentes em quatro, onde foram registrados oito exemplares de B. straminea e quatro de B. kuhniana. Na área II, os moluscos foram colhidos em todos os três pontos de coleta, totalizando 41 exemplares, dos quais um era de B. straminea e 40 de B. kuhniana (Figura 1). Ressalta-se que a ocorrência de B. kuhniana, constatada nas duas áreas de coletas, corresponde ao primeiro registro dessa espécie no Piauí. Nenhum dos exemplares examinados (n = 53) estava parasitado por S. mansoni.
O estudo molecular foi desenvolvido com a amplificação da região ITS do rDNA, obtendo-se um fragmento de 1.200 pb, cujo produto amplificado e os perfis eletroforéticos, após digestão enzimática, eram similares aos descritos por Caldeira et al. (2016)12. As análises morfológicas e moleculares foram repetidas a cada remessa de moluscos ao laboratório e documentadas nos laudos arquivados no LHMM-IRR/Fiocruz-Minas sob os números 02-22 (16/3/2022), 13-22 (24/10/2022) e 15-22 (18/11/2022), referentes aos moluscos coletados no Complexo Lagoas do Norte (Teresina) e na barragem Boa Esperança (Guadalupe). Por esse motivo, os géis oriundos de cada PCR-RFLP não estão representados neste trabalho.
Quanto às variáveis abióticas, os valores médios de temperatura da água e de pH foram, respectivamente, 29,9 °C e 7,6 para a área I e 32,7 °C e 7,0 para a área II (Figura 2).
DISCUSSÃO
Neste artigo, relata-se, pela primeira vez, a ocorrência de B. kuhniana no estado do Piauí, enquanto B. straminea já havia sido registrada em 76 municípios piauienses, incluindo Guadalupe e Teresina8.
Essas espécies são semelhantes morfologicamente, de modo que o uso de métodos moleculares foi necessário para a identificação das espécies. A identificação embasada em caracteres morfológicos é complexa e não conclusiva11,13,14, sendo necessária a utilização de técnicas moleculares para a correta identificação a nível de espécie. Nesse sentido, o uso da taxonomia molecular torna-se um aliado importante em inventários de fauna e certamente modificará o mapa da distribuição das duas espécies, sobretudo na Região Nordeste do país.
Apesar de semelhantes morfologicamente, B. kuhniana e B. straminea diferem quanto ao seu comportamento. B. kuhniana é capaz de ocupar diferentes ambientes de água doce, como lagos, barragens, canais, córregos e rios15, estando amplamente distribuída em países como Suriname, Brasil, Venezuela, Panamá e Colômbia16. Destaca-se a resistência de B. kuhniana à infecção por S. mansoni17; ao contrário de B. straminea que é um importante hospedeiro intermediário do parasita, sobretudo na Região Nordeste do Brasil.
A biologia de B. kuhniana e B. straminea inclui a ocorrência em ambientes lênticos, de pouca correnteza e baixa profundidade18. A abundância de exemplares está relacionada à temperatura da água, com valores ideais entre 18 °C e 25 °C para as atividades alimentícias e reprodutivas19,20. No entanto, os valores registrados neste estudo variaram de 28,5 °C a 34 °C, divergindo do descrito na literatura que indica que os caramujos podem tolerar temperaturas de até 36 ºC20.
A adaptação dos moluscos às altas temperaturas reflete o arsenal de estratégias desenvolvidas por esses animais desde o seu aparecimento no Cambriano21,22, suportando eventos extremos. Assim, a elasticidade genotípica dessas espécies permite que suas populações sobrevivam ao aumento gradual da temperatura do planeta. Porém, deve-se atentar à possível expansão dos criadouros desses moluscos devido às alterações climáticas, fator que tem impactado a biodiversidade a nível mundial23. Nesse caso, a literatura tem demonstrado que o ciclo de vida de espécies hospedeiras está diretamente relacionado à dinâmica ambiental dos ecossistemas24.
O pH ótimo para o desenvolvimento dos gastrópodes encontra-se entre 6,0 e 8,025, valores similares aos exibidos neste estudo, registrados entre 6,8 e 8,1. Esse fator abiótico apresenta uma importante relação com o desenvolvimento do cálcio, elemento necessário para a formação das conchas dos moluscos, uma vez que, em ambientes ácidos, há o impedimento do desenvolvimento de conchas25.
Entre os 12 pontos de coleta, Biomphalaria spp. não esteve presente em sete, o que pode ser decorrente da presença de Melanoides tuberculata, espécie capaz de eliminar ou reduzir a população de moluscos nativos26. Um estudo realizado em reservatórios pernambucanos associou a diminuição da biodiversidade dos moluscos em razão da presença do M. tuberculata26, corroborando os achados deste estudo.
CONCLUSÃO
Registra-se, pela primeira vez, a ocorrência de B. kuhniana no estado do Piauí. O novo registro enriquece o acervo faunístico de planorbídeos, uma vez que a distribuição geográfica do grupo ainda é pouco conhecida. Enfatiza-se a necessidade da utilização de técnicas moleculares para diferenciar B. straminea de B. kuhniana. Em decorrência dessa semelhança, propõe-se rever a distribuição de B. straminea no estado. Embora nenhum molusco tenha sido encontrado infectado naturalmente, faz-se necessário destacar que B. straminea é o principal hospedeiro de S. mansoni no Nordeste brasileiro, e sua ocorrência remete à necessidade de investigação sobre a ocorrência de focos de transmissão de esquistossomose mansônica.